Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
| ||
Relator: | EDGAR VALENTE | ||
Descritores: | DRONE CRIME DE INTRODUÇÃO EM LUGAR VEDADO AO PÚBLICO BUSCAS DOMICILIÁRIAS | ||
![]() | ![]() | ||
Data do Acordão: | 09/12/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
![]() | ![]() | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | - O sobrevoo de um Estabelecimento Prisional por um drone poderá constituir a prática de uma contraordenação. Contudo, diz-nos o art.º 20.º do DL n.º 433/82, de 27.10, que se o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contra-ordenação, será o agente sempre punido a título de crime, sem prejuízo da aplicação das sanções acessórias previstas para a contraordenação. - É possível “entrar ou permanecer” nos espaços mencionados no art.º 191.º do C. Penal através do controle de drone operado a partir do exterior dos mesmos. - Considerando que a recusa da busca se fundou na inexistência “de elementos fácticos que traduzam a imputação objectiva do tipo em análise” e que tal inexistência não ocorre, deve o recurso ser procedente (nesta parte), devendo os autos baixar à 1.ª instância para que, salvaguardado aquele entendimento (que se revoga), venha a ser apreciado o pedido de buscas mencionado quanto aos demais pressupostos. | ||
![]() | ![]() | ||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I - Relatório. No Juízo de Instrução Criminal de … (J…) do Tribunal Judicial da Comarca de … e no âmbito do processo de inquérito (Actos Jurisdicionais) n.º 5/23.3JASTB foi proferido despacho judicial no qual, entendendo-se “não existirem elementos que permitam fundamentar a realização da diligência de busca que vem requerida, por não verificados os pressupostos estabelecidos nos artigos 174º, números 1 e 2, e 177º, ambos do Código de Processo Penal, [se concluiu que] vai a mesma indeferida.” Inconformado com essa decisão, da mesma recorreu o MP, terminando a motivação do recurso com as seguintes conclusões (transcrição): “1. O Mm. Juiz de Instrução Criminal, por despacho proferido em 19/06/2023, indeferiu a busca à habitação sita em Rua …, n.º …, …, justificando a sua decisão, dizendo, em suma, “não existirem elementos que permitam fundamentar a realização da diligência de busca que vem requerida, por não verificados os pressupostos estabelecidos nos artigos 174.º, números 1 e 2, e 177.º, ambos do Código de Processo Penal.” 2. Salvo o devido respeito, não assiste razão ao Mm. Juiz de Instrução Criminal porque se verificam, em concreto, todos os pressupostos de deferimento da busca domiciliária requerida pelo Ministério Público, concretamente a existência de um ilícito típico e a séria possibilidade de, no interior de uma específica residência, se encontrarem objetos relacionados com o crime em apreço e que servirão de prova e que podem levar à identificação do seu agente. 3. Comete o crime de introdução em lugar vedado ao público o piloto remoto da aeronave não tripulada, vulgarmente conhecida por drone, que sobrevoa o pátio do campo da bola do Estabelecimento Prisional de … desce e entra no mesmo com um pequeno saco branco pendurado por um fio, aí colocado por uma pessoa, se aproxima imediatamente da janela da cela … e aí faz a entrega do pacote transportado, sem para tal estar autorizado pelos guardas prisionais ou pelo Diretor daquele estabelecimento prisional. 4. No caso concreto, o drone foi o prolongamento do corpo humano, sendo que através dele a pessoa transpôs os muros e edifícios do estabelecimento prisional, introduzindo-se num dos pátios, espaço completamente vedado por muros e edifícios e inacessível ao público. 5. Existindo suspeita fundada de que o comando da aeronave não tripulada e apreendida nos autos e a fatura de compra se encontram numa específica habitação e havendo crime, estão reunidos todos os pressupostos para o deferimento por parte do Juiz de Instrução da busca domiciliária. 6. Assim sendo, o Mm. Juiz de Instrução, ao decidir como decidiu, violou as normas ínsitas nos artigos 191.º do Código Penal, 174.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal.” Pugnando, em síntese, pelo seguinte: “Nesta conformidade, deverá o Venerando Tribunal da Relação revogar o despacho recorrido, ordenando a prolação de outro que autorize a busca domiciliária requerida.” O recurso foi admitido. Aberta “vista” ao MP, a Exm.ª PGA neste Tribunal da Relação exarou o seguinte parecer: “Decorre do processo que através de um drone se pretendeu fazer entrega de material de comunicação (telemóvel) em cela especifica do estabelecimento prisional. Da investigação realizada indicia-se segundo o recorrente que o envio do drone terá procedido de um ex-recluso que conhecerá o local e tem ligações familiares com o destinatário, pretendo por isso a busca domiciliária para encontrar eventuais elementos (nomeadamente o comando) para manobra do drone. Segundo o recorrente os fatos em inquérito constituem um crime de introdução em lugar vedado ao público, por o drone ser como que uma extensão do braço. Salvo o devido respeito não partilhamos deste entendimento. A qualificação jurídica de quaisquer fatos deriva sempre do confronto entre o interesse jurídico protegido a ação praticada (mais o seu resultado em alguns casos) e a intenção do sujeito. Como resulta da experiência comum, neste caso visou-se levar à posse do recluso um objeto cuja entrada por via legal aquele não pode deter e não a violação da intimidade do referido espaço. Ninguém, nenhuma pessoa se introduziu no referido espaço, nem tão pouco existe qualquer indício de captação de imagens do reclusos para que se possa falar em invasão de intimidade ou privacidade. Tanto faz que esta entrega se processe por drone, por entrega na visita pelo correio ou por arremesso para o pátio… Há que aplicar a legislação que regula o espaço prisional! O recorrente tem razão quanto ao exemplo do furto, este pode ser praticado não diretamente pelo corpo humano mas por uma extensão deste, mas tal exemplo não colhe porquanto o que revela é a existência da subtração, o retirar da esfera de controle do dono ou possuidor em nome alheio para a sua. Assim, entendemos que no presente caso não existem indícios do ilícito criminal invocado pelo Ministério Público para fundamentar o pedido, devendo manter-se o despacho recorrido.” Procedeu-se a exame preliminar. Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir. Reproduzem-se (i) o requerimento do MP para realização de buscas e o (ii) despacho que sobre o mesmo recaiu (decisão recorrida), na parte que interessa: “Remeta os autos, de imediato, ao Juízo de Instrução Criminal, a fim de o Mm. Juiz de Instrução se pronunciar sobre o infra requerido, nos termos dos artigos 177º, nº 1 e 269º, nº 1, alínea c), ambos do Código de Processo Penal. Mandados de Busca Domiciliária Os presentes autos tiveram origem na comunicação de notícia de crime lavrada pela Polícia Judiciária, através da qual foi reportado que no dia 31/12/2022, cerca das 03h.50m., o drone de marca "…", com a placa identificativa "… sobrevou o pátio do campo da bola do Estabelecimento Prisional …, desceu e entrou no mesmo, com um pequeno saco branco pendurado por um fio, aproximando-se imediatamente da janela da cela …. Devido aos puxões sofridos pelas mãos dos reclusos destas duas celas … e …, o drone embateu na parede e despenhou-se, caindo no chão do pátio. Nessa sequência, o drone foi apreendido e foram realizadas buscas às celas em causa e revistas sumárias aos reclusos, habitantes dessas mesmas celas, tendo resultado a apreensão na cela … de um telemóvel de marca …, azul, cinco cartões SIM e respetivos códigos, um carregador, um auricular e cinco cabos USB, que se encontravam numa parte comum, não tendo nenhum dos reclusos reclamado a posse. Foram, então, realizadas perícias aos cartões SIM apreendidos com vista a poder-se identificar alguém, assim como à memória do próprio telemóvel. Foi ainda realizada perícia ao software do próprio drone, pela Autoridade Nacional de Aviação, tendo sido concluído o seguinte: - o nº de série do equipamento foi retirado; - equipamento de cor original branca, tendo sido pintada manualmente em preto, incluindo as hélices e colocada fita gomada também preta sobre as luzes de navegação existentes nas asas; - a aeronave tem um controlo remoto, que fica na posse do piloto remoto; - permite a gravação de vídeos de alta resolução, pese embora, o piloto remoto não tenha efetuado gravação de nenhum dos voos; - o cartão de memoria gravou os últimos seis voos da aeronave apreendida, tendo sido (1) 29/12/2022, às 03.43m., o local de descolagem Rua …, nº …, … e local de aterragem Rotunda …, em …, (2) no mesmo dia, às 17h.32m., o local de descolagem e de aterragem foi a Rua …, nº…, … (3) e assim sucedeu no mesmo dia, às 18h.55m., (4) 30/12/2022, às 04h.22 e às 04h.41m., o local de descolagem Rua …, nº…, … e (5) no mesmo dia, às 03h.44m., o local de descolagem foi a Rua …, nº…, …, e o de aterragem é o pátio do estabelecimento prisional; e - apenas nas três descolagens do dia 30/12/2023, o aparelho indicou o erro "Not enouth Force error/EPS Error". Antes de se encontrar a cumprir pena de prisão no Estabelecimento Prisional de …, o recluso nº… AA residia na morada Rua …, nº…, …, na qual, atualmente residem os seus pais, BB e CC, e a sua irmã, DD. Numa vigilância realizada pelo OPC, em 05/04/2023, EE, também irmão de AA, foi visto à janela da fração autónoma supra referida a fumar, havendo também a possibilidade de aí residir. EE já esteve preso no Estabelecimento Prisional de …, tendo, assim, perfeita noção de todo o espaço, de onde se localizam as celas e quais as fragilidades em termos de segurança. Os factos supra descritos, em nosso entender, consubstanciam o crime de introdução em lugar vedado ao público, p. e p. pelo art. 191.º do Código Penal. Na verdade, o piloto do drone que se suspeita ser uma das pessoas residentes na habitação, sita em Rua …, nº…, …, por meio daquele equipamento conseguiu introduzir-se no pátio do EP de …, lugar completamente vedado e não livremente acessível ao público, sem autorização dos guardas prisionais ou do Diretor deste estabelecimento prisional, conseguindo entregar a mercadoria que transportava aos reclusos. Devido a esta intromissão, o próprio Diretor do estabelecimento prisional apresentou atempadamente queixa (cfr. fls. 191 e 192). Apesar do tempo decorrido, consideramos que ainda existem fortes possibilidades de o comando do drone utilizado e a fatura de compra ou garantia se encontrarem na residência onde foram realizados os primeiros testes de voo, no …. A apreensão do comando do drone e da fatura de compra elou garantia seria muito importante para desembaraçar a presente investigação, sobretudo descobrir o agente do crime em causa. Se é verdade que o crime de introdução em lugar vedado ao público é considerado uma bagatela penal, não é menos verdade que o crime em causa, considerando as suas especificidades, isto é, pondo em causa, a segurança, a estabilidade e o regular funcionamento do estabelecimento prisional, demonstra um grau de ilicitude muito elevado de quem o praticou, sendo altamente reprovável. Dispõe o art. 34º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa que o domicílio é inviolável. Contudo, estabelece exceções, sendo uma delas a possibilidade de entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade nos casos e formas previstas na lei, mediante autorização de autoridade judicial competente (nº 2 do mesmo preceito legal). O art. 174º, nº 2 do Código de Processo Penal diz-nos que quando houver indícios de que objetos relacionados com um crime se encontrem em lugar reservado ou não acessível ao público, é ordenada busca. Nos termos do art. 177º, nº 1 do Código de Processo Penal, a busca em casa habitada ou numa sua dependência fechada só pode ser ordenada ou autorizada pelo juiz e efetuada entre as 7 e as 21 horas, sob pena de nulidade. Ora, do acima exposto, resultam, claramente, indícios de que o comando através do qual o drone apreendido foi tripulado poderá ainda encontrar-se naquela habitação onde foram efetuados os primeiros treinos de voo e onde residem familiares diretos do recluso da cela …, AA, até porque pode ser aproveitado para tripular outras aeronaves civis tripuladas remotamente. Por tudo exposto, afigura-se que a única forma de aquilatar esta matéria e obter prova é ir ao local, na perspetiva da previsível eficácia na captação do elemento em falta. Assim, considera-se que está justificada e fundamentada a realização de buscas à residência infra indicada, estando indiciariamente verificado o pressuposto a que alude o art. 174º, nº 2, em articulação com o nº 1 do Código de Processo Penal e demais requisitos legais para o efeito. Termos em que se promove, ao abrigo do disposto no art. 177º, nº 1 do Código de Processo Penal, seja autorizada a realização de buscas, entre as 07h.00m. e as 21h.00m., com recurso ao arrombamento de portas, cofres, armários, gavetas ou similares caso seja estritamente necessário, a administração de substâncias adequadas à neutralização de animais e a desativação de sistema de vigilância eletrónica à habitação, suas dependências ou anexos, garagens, armazéns e barracas de: - BB e CC, pais do recluso AA, residentes em Rua …, nº…, …,…. Mais se requer, sendo deferida a emissão dos mandados de busca em apreço, seja fixado o prazo de validade de 30 dias, a fim de ser dado cumprimento aos mesmos. Suscita-se que em caso de emissão, no cumprimento de tais mandados de busca domiciliária sejam observadas as formalidades a que alude o art. 176º do Código de Processo Penal. (…) …, 15/06/2023.” (ii) “Vem o Ministério Público requerer “o abrigo do disposto no art. 177.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, seja autorizada a realização de buscas, entre as 07h.00m. e as 21h.00m., com recurso ao arrombamento de portas, cofres, armários, gavetas ou similares caso seja estritamente necessário, a administração de substâncias adequadas à neutralização de animais e a desativação de sistema de vigilância eletrónica à habitação, suas dependências ou anexos, garagens, armazéns e barracas de: - BB e CC, pais do recluso AA, residentes em Rua …, n.º …, …, ….” Sustenta a sua pretensão com a existência de indícios de que BB e CC poderão ter em sua casa elementos que esclareçam quem tripulou um drone que no dia 31/12/2022, cerca das 03h.50m., sobrevoou o pátio do campo da bola do Estabelecimento Prisional …, desceu e entrou no mesmo, com um pequeno saco branco pendurado por um fio, aproximando-se imediatamente da janela da cela …, aí podendo ter deixado a um telefone de marca …, azul, cinco cartões SIM e respetivos códigos, um carregador, um auricular e cinco cabos USB. Sustenta o Ministério Público que o piloto de tal drone o crime de introdução em lugar vedado ao público, p. e p. pelo artigo 191.º do Código Penal. Vejamos. Dispõe o artigo 191º, do Código Penal, que “Quem, sem consentimento ou autorização de quem de direito, entrar ou permanecer em pátios, jardins ou espaços vedados anexos a habitação, (...) , ou em qualquer outro lugar vedado e não livremente acessível ao público, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 60 dias”. No que toca ao bem jurídico protegido, a jurisprudência tem entendido que o crime de introdução em lugar vedado ao público não é um crime contra o património, mas sim um crime contra as pessoas, visando-se, através dele, tutelar ainda a intimidade pessoal a que todo o cidadão tem direito (1). Todavia, como refere Manuel da Costa Andrade, “a punição da violação dos espaços previstos no art.º 191.º está, assim, preordenada à salvaguarda de um conjunto heterogéneo de valores ou interesses. Que vão desde os valores ainda conotados com a reserva e o segredo pessoais, passando pelo segredo comercial e industrial, até aos valores da eficiência económica e burocrático-administrativa. A incriminação pode mesmo resultar em protecção, pura e simples do direito de propriedade. Ora, face a esta plétora de interesses não se afigura possível identificar um único bem jurídico capaz de, sem perda da consciência material-teleológica, emprestar à incriminação a indispensável racionalidade dogmática” (2). No que respeita ao tipo objectivo, o objecto da acção tem de assumir a forma de um espaço fisicamente limitado, em termos de a entrada arbitrária só ser possível ultrapassando uma barreira física. Pode ser um muro, uma sebe, uma paliçada, uma rede, um portão, fiadas de arame, barras horizontais, etc.. Pode tratar-se de uma barreira descontínua “desde que não perca o carácter de protecção física” (3). De acordo com o teor do preceito caem sob a protecção típica “coisas” ou espaços muito diversificados. A acção típica compreende duas modalidades de conduta, a entrada sem consentimento e a permanência, depois da intimação para se retirar ou esgotado o fundamento de legitimação ou de não punição da permanência, sendo sobretudo na determinação do universo de condutas típicas que se reflecte a diversidade de estatutos dos múltiplos e heterogéneos espaços cobertos pela incriminação. A lei exige ainda, como elemento típico do crime a “não existência de consentimento ou autorização de quem de direito”, contudo, a correcta interpretação e aplicação da factualidade típica impõe uma decidida redução teleológica ao nível deste elemento, limitando o seu sentido e alcance à expressão contra a vontade, seja expressa ou presumida, de quem de direito. O tipo subjectivo de ilícito exige o dolo em qualquer das suas vertentes – dolo directo, necessário ou eventual – e deverá reportar-se a cada um dos elementos do tipo objectivo de ilícito, ou seja, o agente conhece e quer realizar o facto típico previsto na lei penal. Ora verificada a factualidade relatada, verifica-se desde logo que inexistem elementos fácticos que traduzam a imputação objectiva do tipo em análise, porquanto não há a entrada física de quem quer que seja em espaço vedado ao público, ou seja o estabelecimento prisional. Com efeito, o que aí entrou foi um aparelho, eventualmente utilizado para captar imagens ou efectuar entregas, mas não foi uma pessoa. E como supra se referiu, a acção típica exige a entrada ou permanência física de pessoa e determinado tipo de espaços. O surgimento hodierno de aeronaves não tripuladas de grande manobrabilidade disponíveis para compra por quantias relativamente reduzidas faz naturalmente surgir novas questões jurídicas, como a que se apresenta nestes autos: será criminalmente enquadrável a conduta do piloto do aparelho voador não tripulado? A resposta para esta questão é-nos dada pelo Decreto-lei número 87/2021, de 20 de Outubro, que estabelece normas de operação e o regime sancionatório aplicável às aeronaves não tripuladas. E tal como se retira deste diploma legal, determinadas utilizações deste tipo de aparelhos podem fazer constituir o utilizador na prática de contra-ordenações. Crê-se mesmo que, em determinadas situações, estes aparelhos podem ser utilizados para a prática de outros tipos criminais, como o de fotografias ilícitas (artigo 199º do Código Penal). Mas é importante nunca perder de vista que são utilizados como uma ferramenta, e não, como uma extensão da pessoa. A autorização para a realização de uma busca domiciliária tem como pressuposto legal, de verificação indispensável, a existência de indícios de que objectos relacionados com o crime ou que possam servir de prova se encontram em casa habitada ou em sua dependência fechada (artigos 174º, números 1 e 2, do Código de Processo Penal, ex vi do art. 177º, do mesmo diploma legal). Tais indícios hão-de, ao menos, ter apoio em suspeitas com um mínimo de sustentação, em função do decorrer da investigação. Como se sabe, a inviolabilidade do domicílio é um valor constitucionalmente protegido, e que só deve ceder perante valores mais elevados, nomeadamente, a investigação criminal. Todavia, tal cedência só deve ser permitida se os indícios já recolhidos permitirem concluir que a suspeita em que se baseia a busca (artigo 174º, número 2, do Código de Processo Penal) é solidamente fundada. O que nos presentes autos, salvo o devido respeito por outra opinião, se não verifica. A protecção do domicílio tem assento constitucional, e não será de certo de ânimo leve que deverá ter lugar a autorização para a realização de uma busca domiciliária, com recurso até a arrombamento de portas, como pretende o Ministério Público. Conclui-se, assim, que os autos não fornecem o mínimo de indícios que permitam autorizar, por ora, a realização de uma busca na residência visada.” ----------------------------------------------------------------------- 1 Neste sentido, entre outros, vejam-se os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Março de 1988, BMJ 375-213, de 25 de Outubro de 1990, AJ n.º 12 e o Acórdão da Relação de Évora de 30 de Março de 1993, CJ, ano XVIII, Tomo II, pág. 282. 2 In Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 718. 3 Costa Andrade, obra citada, pág. 719.
2 - Fundamentação. A. Delimitação do objecto do recurso. A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (art.º 412.º), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso. A questão (única) a decidir no presente recurso é: Questão – A utilização de um drone pode configurar o crime de introdução em lugar vedado ao público e, consequentemente, fundamentar a realização de uma busca para apreensão do mesmo. B. Decidindo. Não nos parece que existam quaisquer dúvidas de que o sobrevoo de um Estabelecimento Prisional por um drone (1) poderá constituir a prática de uma contraordenação. (2) Contudo, diz-nos o art.º 20.º do DL n.º 433/82, de 27.10 (3), que se o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contra-ordenação, será o agente sempre punido a título de crime, sem prejuízo da aplicação das sanções acessórias previstas para a contraordenação. Vejamos, antes de mais, a norma que define o crime alegado pelo MP(4) para promover a busca em causa. Artigo 191.º Introdução em lugar vedado ao público Quem, sem consentimento ou autorização de quem de direito, entrar ou permanecer em pátios, jardins ou espaços vedados anexos a habitação, em barcos ou outros meios de transporte, em lugar vedado e destinado a serviço ou a empresa públicos, a serviço de transporte ou ao exercício de profissões ou actividades, ou em qualquer outro lugar vedado e não livremente acessível ao público, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 60 dias. Em primeiro lugar, quanto à definição do bem jurídico tutelado por esta incriminação, parece estarmos em presença “de um conjunto heterogéneo de valores ou interesses” (5), sendo certo que poucas dúvidas aqui existirão de que o valor que se pretende tutelar no acesso (ou na sua proibição não autorizada) a um Estabelecimento Prisional (EP) será o da eficiência burocrática-administrativa, na sua vertente mais intensa de tutela da segurança dos cidadãos e da autoridade do Estado. Quanto à acção típica, ainda é de sublinhar que estamos, no caso dos EP, perante um caso relativamente ao qual também se nos afigura não existirem quaisquer dúvidas que, dada a natureza por natureza fechada daqueles, preenche a factualidade típica a entrada / permanência nas instalações vedadas / muradas dos mesmos contra a vontade expressa (se existirem ordens nesse sentido, que poderão assumir qualquer forma) ou, até na inexistência daquelas, uma vontade meramente presumida, facilmente perceptível, mesmo na esfera paralela do leigo. Resta-nos, assim, a análise do alcance da expressão introdução ou permanência (quem entrar ou permanecer) nos locais recortados pela norma. Segundo vimos, a decisão recorrida defende-se que, atenta a factualidade invocada, verifica-se, desde logo, que inexistem elementos fácticos que traduzam a imputação objectiva do tipo em análise, porquanto não há a entrada física de quem quer que seja em espaço vedado ao público, ou seja no EP, já que o que aí entrou foi uma máquina, eventualmente utilizada para captar imagens ou efectuar entregas, mas não foi uma pessoa. E, como supra se referiu, a acção típica exige a entrada ou permanência física de uma pessoa em determinado tipo de espaços. A tese do recorrente é diversa, já que considera que o piloto do drone apreendido introduziu-se no pátio do estabelecimento prisional por meio daquele, funcionando o mesmo como um prolongamento do corpo humano. Por seu turno, segundo a Exm.ª PGA neste TR, a “qualificação jurídica de quaisquer fatos deriva sempre do confronto entre o interesse jurídico protegido a ação praticada (…) e a intenção do sujeito.” Não poderíamos estar mais de acordo. Porém, afirmando que nenhuma pessoa se introduziu no EP (nem havendo indícios de captação (6) de imagens do reclusos), conclui que não pode aqui estar em causa qualquer “invasão de intimidade ou privacidade”, o que também é verdade, mas, como vimos, o bem jurídico aqui tutelado nada tem a ver com o crime do art.º 190.º, aí sim, sendo tutelada especificamente a privacidade / intimidade (7), estando aqui aquele especificamente relacionado com tutela da segurança dos cidadãos e a autoridade do Estado, como vimos. Também se nos afigura como incontroverso que a ação de comandar um drone do exterior de forma a penetrar intencionalmente nas instalações de um EP é ação que fere o bem jurídico consistente na defesa da eficácia administrativa da função deferida ao Estado de assegurar a reclusão dos a tal condição condenados, com implicações directas, como assinalámos, na segurança dos cidadãos e na autoridade do Estado. Quanto ao verbo entrar, estamos perante um termo que, até em sede temporal já não muito recente, não tem necessariamente associada a componente física assinalada na decisão recorrida (vide o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa (8), entrada respectiva, pontos 10, 11, 12, 13, 15, 16, 19 e 20). Idêntico raciocínio se efectua relativamente ao substantivo “introdução” (vide o referido supra Dicionário (9), entrada respectiva, ponto 6). Mais, relativamente a este último termo, é a própria lei (Lei n.º 109/2009, de 15.09 – Lei do Cibercrime) que na definição de alguns tipos de crime prescinde da componente física para recortar a conduta criminosa (vide, por exemplo, o art.º 4.º, n.º 3 e 5.º, n.º 1 de tal normativo). Assim, como se pode ler no Acórdão n.º 205/99 do Tribunal Constitucional, “[u]ma determinação do sentido actual das palavras pode acontecer, por exemplo, quando se verifica uma evolução no campo abrangido por um conceito, por se virem a integrar nele realidades anteriormente não pensáveis, como, por exemplo, ao integrar-se no conceito de arma, primitivamente pensado para meios mecânicos, as armas químicas (cf., sobre este exemplo, Arthur Kaufmann, Analogie und Natur der Sache, 1982, p. 70).” Aliás, é hoje linguagem corrente que é possível entrar ou permanecer num determinado espaço (ou, até mais latamente, num País) através do controle de um drone, destinado às mais diversas funções (inclusive de natureza letal). Deste modo, entendemos que é possível “entrar ou permanecer” nos espaços mencionados no art.º 191.º do C. Penal através do controle de drone operado a partir do exterior dos mesmos. Considerando que a recusa da busca se fundou na inexistência “de elementos fácticos que traduzam a imputação objectiva do tipo em análise” e que tal inexistência, como se explanou, não existe, deve o recurso ser procedente (nesta parte (10)), devendo os autos baixar à 1.ª instância para que, salvaguardado aquele entendimento (que se revoga), venha a ser apreciado o pedido de buscas mencionado quanto aos demais pressupostos. O recurso é, assim, parcialmente procedente. 3 - Dispositivo. Por tudo o exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder parcial provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido, devendo os autos baixar à 1.ª instância para que, salvaguardado o entendimento ali expresso (de inexistência de elementos fácticos que traduzam a imputação objectiva do tipo de crime de introdução em lugar vedado ao público, que se revoga), venha a ser apreciado o pedido de buscas mencionado quanto aos demais pressupostos / requisitos. Sem custas. (Processado em computador e revisto pelo relator)
------------------------------------------------------- 1 Sistemas de Aeronaves Não Tripuladas (UAS), na terminologia do DL n.º 87/2021, de 20.10, que estabelece as normas de operação e o regime sancionatório aplicável às mesmas. 2 Ver, a propósito, o art.º 11.º, n.º 3 do Regulamento n.º 1093/2016, de 14.12 (e também, quanto à definição da gravidade da contraordenação, o art.º 13.º, que remete para o art.º 7.º do DL 10/2004, de 09.01), ainda não revogado enquanto não for publicada a Portaria referida no art.º 8.º, n.º 1 do mencionado DL n.º 87/2001, cfr. art.º 23.º, n.º 2 in proemio) 3 Ver, a propósito, também o art.º 12.º do citado DL n.º 10/2004, que, apesar do teor do respectivo n.º 1, prevê um regime essencialmente semelhante, considerando o seu n.º 2. 4 Cfr. fls. 214 dos presentes autos. 5 Manuel da Costa Andrade in Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, Coimbra, tomo I, 2001, 1999, página 718. 6 Aqui discordamos, pois o que se verifica é que o drone “permite a gravação de vídeos de alta resolução, pese embora, o piloto remoto não tenha efetuado gravação de nenhum dos voos” (fls. 213 dos presentes autos). Assim, o que não ocorreu foi a gravação, mas já quanto à captação de imagens, parece-nos notório que a mesma ocorreu, pois, caso contrário, seria impossível a pilotagem do dispositivo. Em síntese, apenas se desconhece se ocorreu ou não a captação de imagens de qualquer recluso (ou qualquer outra pessoa, nomeadamente guardas prisionais). 7 Neste sentido, vide Manuel da Costa Andrade in Ob. cit., página 701. 8 Verbo, I volume, 2001. 9 Verbo, II volume, 2001. 10 Recorde-se que se pretende no recurso, de forma mais abrangente, que, na sequência da revogação do despacho recorrido, se ordene “a prolação de outro que autorize a busca domiciliária requerida
|