Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
190/09.7GBABF.E1
Relator: PROENÇA DA COSTA
Descritores: DECISÃO INSTRUTÓRIA
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
VÍCIOS DO ART. 410.º
N.º 2 DO CPP
ERRO DE JULGAMENTO
Data do Acordão: 02/26/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
I - Os vícios do art.º 410.º do CPP e a invocação do erro de julgamento são meios que a lei prevê de forma a se poder questionar a matéria de facto acolhida na sentença, o que desde logo resulta da própria colocação sistemática de tal temática no Código de Processo Penal.

II - Assim, quando se queira questionar a decisão instrutória não se pode falar de matéria de facto, antes de indícios, de suficiência indiciária, já que as provas recolhidas nesta fase não constituem pressuposto da decisão de mérito, mas de mera decisão processual quanto à prossecução do processo até à fase do julgamento.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em Conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora.

Inconformada com o despacho de arquivamento do inquérito proferido pelo Magistrado do Ministério Público, veio a assistente CF requerer a abertura da instrução contra o arguido M, de forma a ser-lhe imputada a prática de um crime de abuso sexual de criança p. e p. pelo artigo 172º, n° 1, com referência ao artigo 171º, n° 1, ambos do Cód. Pen.

Declarada aberta a instrução, realizaram-se as diligências admitidas e ordenadas, vindo, no seu seguimento, a ter lugar o debate instrutório.

Finda a instrução, o M.mo Juiz de Instrução veio a não pronunciar o arguido M, pela prática de um crime de abuso sexual de criança p. e p. pelo artigo 172º, n° 1, com referência ao artigo 171º, n° 1, ambos do Código Penal.

Por entender que não se verificam indícios suficientes da prática pelo arguido dos factos descritos no requerimento para abertura de instrução e do crime que lhe vinha imputado, pois é de prever que a prova que foi produzida conduza com maior probabilidade à sua absolvição em julgamento, face à sua fragilidade.

Inconformada com o assim decidido, traz a assistente CF, o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:

I. O presente recurso assenta na existência de: a)-Contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, vício previsto no art. 410º, nº 2, al.ª b), do CPP, resultante do texto da decisão e de onde decorre errada apreciação da prova produzida, com reflexos na decisão tirada; b)-Errado julgamento da matéria de facto, de que se recorre nos termos do art. 412º, nº 3 e 4, do CPP, quanto ao seguinte ponto de facto, incorrectamente julgado: que a não observação às 23h05m de lesões no ânus do menor é reveladora de não ter sido praticado o acto; e por si um dado suficiente para abalar os demais indícios; c)- Errada valoração da prova produzida em sede de instrução.

II. O Mmº JIC declarou aberta a instrução, com o objectivo de confirmar ou não a existência de indícios suficientes da prática pelo arguido do crime denunciado, praticando-se como acto a inquirição da testemunha AT, médico pediatra, que observou o menor numa 2ª observação e dele ouvira o relato do que se passara; porém, na decisão ora recorrida, o Mmº Juiz “a quo” refere-se ao depoimento desta testemunha apenas no que concerne ao resultado da observação clínica feita por este, omitindo o demais.

III.O facto de às 23h05m ter sido verificada a mucosa anal em situação normal, pode contrariar, mas não pode abalar a anterior observação das 21h54m, primeiramente realizada e temporalmente mais próxima dos factos denunciados, que dera conta de ânus hipermiado com lesão superficial; pois a observação posterior atesta o verificado às 23h05; mas não declara errada, impossível ou viciada a observação das 21h54m; nem a decisão sequer assim a declara (reconhecendo aliás que a mesma se realizou e que teve como conclusão a verificação de ânus hipermiado e de lesão às 5-6h). A 2ª observação reporta uma realidade física verificada às 23h05m; mas não atesta que a realidade física verificada às 21,45h era impossível ou inexistente; pelo que a conclusão tirada pelo Mm. JIC de que a segunda observação abala a primeira é sem sustentação na realidade dos factos apurados.

IV. Existe uma contradição insanável entre a decisão e a fundamentação, e entre a fundamentação entre si, fundamento de recurso nos termos do art. 410º, nº 2, al. c) do CPP, vício que se deixa invocado e que resulta do próprio texto da decisão recorrida, e do qual decorre uma errada apreciação da prova produzida, com reflexos na decisão tirada.

V. Violando-se assim o art.127º, do CPP por não conjugação da globalidade das provas produzidas de acordo com as regras da experiência; e viola-se também assim o art. 308º, nº 1, do CPP, no seu primeiro segmento.

VI. Quanto ao errado julgamento da matéria de facto, de que se recorre nos termos do art. 412º, nº 3 e 4 do CPP, a invocação do testemunho do Dr. AT “seguramente médico experiente”, como diz a Mm JIC, é feita na decisão de modo não completo, omitindo-se ali a exposição feita pelo menor quanto aos factos, identificando o pai como o agente deles, exposição que o pediatra classificou de espontânea, genuína e não induzida. Facto que resulta da transcrição (pedida, mas já apresentada pela recorrente na Motivação supra) do depoimento desta testemunha, de minutos 7,20 a minutos 9, 24 do CD identificado, que as contem.

VII. Assim, na decisão recorrida a contribuição da testemunha T, para a descoberta da verdade, foi apresentada de forma incompleta, apenas quanto ao facto narrado de na observação não terem sido verificadas lesões; mas sem alusão aos factos narrados - medo anómalo da criança quanto à observação do seu ânus, e quanto à espontaneidade das declarações do menor, assim qualificadas por um pediatra experiente, - incompletude que contribuiu, de modo decisivo para que os factos fossem apreciados incorrectamente por defeito.

VIII. A conjugação (que ficou por fazer) da primeira observação (a das 21h54), que revelou ânus hipermiado com lesão superficial, com o medo anómalo da criança na segunda observação (declarado pela testemunha mas não constante na decisão), e ainda conjugadas estas com a espontaneidade das palavras do menor, confirmadas pela experiência da testemunha, justificaria que se entendesse como muito séria a existência a existência da lesão verificada às 21h54m e do indício de ter sido praticado o acto acusado, pois a própria decisão reconhece (fls., 5 antepenúltimo parágrafo) a capacidade que o menor tem de efectivamente dizer a verdade.

IX. Está assim incorrectamente julgado o seguinte ponto de facto: de que a não observação às 23h05m de lesões no ânus do menor é reveladora de não ter sido praticado o acto e de não terem havido lesões; e, por si, um dado suficiente para abalar os demais indícios.

X. Com as restantes provas indiciárias recolhidas (observação das 21h54 que verificou lesões; reacção do menor de medo anómalo na segunda observação; espontaneidade e genuinidade da explicação do menor ao Dr. T; reconhecida capacidade do menor para dizer a verdade, como aceite na própria decisão), provas que igualmente resultam da transcrição supra, tal ponto de facto deveria ter sido dado como provado; dando-se por provado indiciariamente a existência da lesão verificada às 21h54m, a qual conjugada com a exposição genuína do menor ao Dr. T e com o reconhecimento da capacidade do menor em falar verdade, deveriam levar à Pronúncia do arguido.

XI. Violou assim o Mmº Juiz “a quo” os art. 413.º e 127.º ambos do CPP.

XII. Quanto à errada valoração da prova produzida em sede de instrução, o relatório pericial solicitado pelo próprio JIC só pode significar que, possuindo já os autos os resultados de ambas as observações, o Mm. JIC pretendeu esclarecer se a espontaneidade e genuinidade do menor ao relatar o facto e ao identificar o pai como agente do mesmo ante o Dr. T, era séria ou não.

XIII. Ora, das duas uma: ou já por essa altura o Mmº JIC estava convencido de que a ausência de verificação de lesões na observação das 23h05m era factor decisivo para uma não pronúncia – e, assim, o que o menor contara, de forma mais ou menos genuína, já não interessaria e logo o relatório não interessava, sendo inócuo; ou considerava que, apesar daquela observação das 23h05m, era importante saber se o menor era genuíno e capaz de dizer a verdade, como afirmava a testemunha (e então isso confirmaria a observação das 21h54m e indiciava ter ocorrido o facto).Só esta aparente necessidade de esclarecer tal contradição (e, desse modo, poder decidir-se por pronúncia ou não pronúncia), explica a necessidade de pedir-se o relatório pericial.

XIV. O relatório é claro: o menor revela inteira capacidade de falar verdade, e não se mostra influenciado pela mãe; e alude à qualidade técnica dos relatórios já nos autos, produzidos pelos psicólogos MV e PS, os quais também apontam para essa capacidade do menor de falar verdade e para a existência de um trauma.

XV. Esta conclusão do relatório pericial; mais o resultado da observação das 21h54; mais o medo revelado pelo menor, de forma anómala, na segunda observação; mais a explicação genuína e espontânea do menor ao Dr. T; não podem ser abalados na sua força probatória indiciária pela não verificação de lesões na segunda observação, a mais distante temporalmente dos factos.

XVI. Aquilo que as testemunhas indicadas pelo arguido vieram dizer não é crível, pois não resulta das regras da experiência que estranhos, ainda que amigos do arguido, passem todo o tempo da visita com este e o filho; tal não é normal, nem para o pai, nem para a criança.

XVII. Neste tipo de crime entre duas pessoas, há sempre necessidade de recurso a outros elementos probatórios, e á conjugação de diversos indícios, para se concluir pela prática dos factos, conjugação essa não feita pela decisão, e da falta da qual resulta que foram mal valoradas, de forma errada, e sem recurso às regras da experiência, as provas seguintes:

- Testemunho integral do Dr. T;- Relatório pericial pedido pelo JIC;-observação médica das 21,54h;-declarações do menor ante o Dr. T.

XX- Assim se mostrando também violado o art. 127º do CPP.

Termos em que se recorre, devendo proceder o presente recurso, declarando-se a existência de contradição insanável apontada e declarando-se estar mal julgado o ponto de facto que dá como não provada a existência de lesão com base na observação das 23h05m, devendo dar-se como provado a existência de lesão observada às 21h45m, conjugando-se toda a demais prova indiciária recolhida, sendo a decisão recorrida revogada e substituída por outra que pronuncie o Arguido.

Respondeu ao recurso a Magistrada do M.P., dizendo.

1ª. A circunstância de o M.mo Juiz de Instrução ter fundamentado a sua decisão nas declarações da testemunha AT, na parte em que este depõe sobre o seu conhecimento directo dos factos, fruto da observação do menor na qualidade de médico pediatra e não na observação efectuada no Centro de Saúde, não constitui o vício de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.

2ª. Tendo sido efectuadas duas observações médicas do menor, uma que dá conta de lesão superficial no ânus (efectuada às 21H45) e outra que dá de que a mucosa anal se encontrava em situação normal (efectuada às 23H05), sendo do conhecimento comum que qualquer lesão corporal, por mais superficial que seja, não se cura sem deixar vestígios em uma hora e vinte minutos, não é possível concluir que ambas estão acertadas, sendo necessário optar por uma delas.

3ª. O M.mo Juiz de Instrução expressamente optou pela observação efectuada pelo Dr. AT, com o fundamento de que este como médico pediatra, revela-se seguramente médico experiente na avaliação das lesões nos menores.

4ª. O M.mo Juiz de Instrução não efectuou um errado julgamento da matéria de factos em virtude de não ter invocado o testemunho do Dr. AT na sua totalidade, omitindo a exposição feita pelo menor quanto aos factos, identificando o pai como agente deles, exposição que o pediatra classificou de espontânea, genuína e não induzida e também no que respeita ao medo anómalo da criança relativamente à observação do ânus.

5º O M.mo Juiz de Instrução valorou as declarações da testemunha Dr. AT na exacta medida em que as mesmas podiam e deviam ter sido por si valoradas, já que se é certo que a qualidade de médico pediatra lhe confere seguramente muita experiência na observação das reacções das crianças e poder suspeitar se as mesmas estão ou não a ser espontâneas, não lhe permite dizer com certeza, nem tão pouco com um grau de probabilidade elevado, que o menor foi espontâneo. Nem por outro lado o facto de o menor ter um medo, considerado pela testemunha como anómalo relativamente à observação do ânus permite concluir que esse medo tenha advindo da circunstância de ter sido sexualmente abusado.

6ª. Na qualidade de médico pediatra o Dr. AT pode efectivamente atestar se o ânus do menor apresentava lesões e tal declaração tem de ser valorada à luz da sua qualidade de médico que observou tais lesões. Já no que concerne a sua observação do comportamento da criança, podendo ainda ser valorada, terá de ser ponderada em tal valoração a circunstância de a testemunha não conhecer a criança e desconhecer como a mesma reage em circunstâncias normais.

7ª. O M.mo Juiz de Instrução fez uma correcta valoração da prova pois embora tenha elaboração de perícia ao menor e o respectivo relatório conclua que o menor revela inteira capacidade de falar verdade e não se mostra influenciado pela mãe, concluiu que tais declarações eram abaladas pelas declarações do arguido e as testemunhas AV e MV.

8ª. Ora, não se verifica o invocado vício pois quanto o relatório pode afirmar e afirma é que o menor “revela inteira capacidade de falar verdade e não se mostra influenciado pela mãe”. O que já não pode afirmar o perito que realizou tal relatório, e não afirma é que o menor falou efectivamente com verdade. Uma coisa é ser capaz de o fazer, outra é fazê-lo efectivamente.

9ª E isso mesmo é quanto conclui, ainda que não expressamente, o Mmo. Juiz de Instrução. Sabendo que o menor é capaz de falar com verdade, ainda assim é com reservas que aprecia as usas declarações na medida em que as mesmas são contrariadas pelas declarações do arguido e das testemunhas AV e MV.

Termos em que, deverá o presente recurso ser julgado improcedente mantendo-se na íntegra o despacho recorrido.

Nesta Instância, o Exmo. Procurador Geral-Adjunto emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

O Despacho recorrido considerou indiciados os seguintes factos:

1. O menor D nasceu a 14 de Maio de 2005, e é filho da assistente CF e do arguido M.

2. A assistente e o arguido foram casados um com o outro, tendo-se separado de facto em Agosto de 2008.

3. O menor D ficou a residir com a mãe, após a separação do casal.

4. O arguido passou a estar com o D de 15 em 15 dias, de acordo com o que então foi estipulado pelo Tribunal de Família e Menores.

5. No dia 24 de Janeiro de 2009, o arguido, que na altura residia no Porto, deslocou-se a Albufeira a fim de passar algumas horas do dia com o seu filho D.

6. O menor D foi nesse dia entregue ao arguido, pela ora assistente, cerca das 12 h, junto da Marina de Albufeira, tendo o arguido entregue o menor à mãe cerca das 19h 30m, no mesmo local, acordado para o efeito.

7. Aquando da entrega do menor, a assistente estava acompanhada de dois militares da GNR, por virtude de já anteriormente terem ocorrido desentendimentos no contacto dos progenitores do D.

8. Em seguida, o arguido deslocou-se com o menor D ao consultório da pediatra do mesmo, a fim de ser informado acerca da alimentação que o menor podia ingerir, já que o D havia contraído uma virose dias antes.

9. Após, o arguido almoçou com o menor no estabelecimento Pizza Hut.

10. Naquele dia 24 de Janeiro de 2009, já depois do almoço, o arguido levou o menor para casa de um amigo, AV, em Albufeira, onde passou a tarde, o qual lhe tinha posto a residência à disposição para que o arguido pudesse estar com o menor nos dias em que se deslocava ao Algarve para o efeito.

11. Na residência do referido AV encontravam-se também a esposa deste último, e os dois filhos deste casal, menores de idade.

Todavia, a prova produzida não permite encontrar elementos sólidos, convergentes, e sustentados (com suficiente virtualidade para a demonstração de tais factos em julgamento), e assim não permite considerar suficientemente indiciado, de que:

1. No dia 24 de Janeiro de 2009, o arguido M, voluntariamente, na casa do seu amigo A, sita na Travessa..., Albufeira, despiu o seu filho D, e introduziu-lhe o seu dedo e outros objectos redondos no ânus do menor, sem outro objectivo que não o seu próprio contentamento.

Como consabido, são as conclusões que o recorrente extrai da sua motivação que definem o objecto do recurso.

A assistente CF veio reagir ao despacho de não pronúncia proferido pelo Tribunal recorrido interpondo o presente recurso.

E por via dele, pretende seja revogado aquele despacho e, em consequência, pronunciado o arguido M, de forma a ser-lhe imputada a prática de um crime de abuso sexual de criança p. e p. pelo artigo 172º, n° 1, com referência ao artigo 171º, n° 1, ambos do Cód. Pen.

Tudo, por em seu entender, existirem nos autos indícios suficientes da prática pelo arguido do crime que lhe é imputado no requerimento de abertura de instrução.

Como consabido, a instrução é formada pelo conjunto de actos de instrução (art.º 289.º,n.º1, do Cód. Proc. Pen.) tendentes á comprovação judicial da decisão de deduzir a acusação ou arquivar o inquérito, conforme decorre do disposto no art.º 268.º, do mesmo diploma adjectivo.

Só sendo de proferir despacho de pronúncia caso se tenham recolhido indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, cfr. art.º 308.ºn.º1, do Cód. Proc. Pen.

A lei define o que se deve considerar por indícios suficientes, considerando-se, como tal, aqueles de que resulte “uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, uma pena ou uma medida de segurança”, ver art.º 283.º, n.º2, do Cód. Proc. Pen.

No ensinamento do Prof. Germano Marques da Silva, a respeito, refere-se que nas fases preliminares do processo não se visa alcançar a demonstração da realidade dos factos e antes e tão só indícios, sinais de que um crime foi eventualmente cometido por determinado arguido.

Na pronúncia o Juiz não julga a causa; verifica se se justifica, com as provas recolhidas no inquérito e na instrução, que o arguido seja submetido a julgamento (…).

A lei só admite a submissão a julgamento desde que da prova dos autos resulta uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força delas, uma pena ou uma medida de segurança (art.º 283.º, n.º2), não impõe a mesma exigência de verdade requerida pelo julgador a final[1].

No mesmo sentido, vemos o Ac. Relação do Porto[2], de 20.01.1993, onde se escreveu que para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige que a prova, no sentido de certeza moral, da existência do crime, bastando-se com a exigência de indícios, de sinais, dessa ocorrência. Isto, porém, não significa que a lei confira aos mencionados despachos um estatuto de ligeireza.

E prossegue o dito aresto, a simples sujeição de alguém a julgamento, mesmo que a decisão final se salde pela absolvição, não é um acto neutro, quer do ponto de vista das suas consequências, morais, quer jurídicas; submeter alguém a julgamento é sempre um incómodo se não mesmo um vexame.

É por isso que, quer a doutrina, quer a jurisprudência, vêm entendendo que aquela possibilidade razoável de “condenação é uma possibilidade mais positiva que negativa”: o Juiz só deve pronunciar quando, por elementos de prova recolhidos nos autos, forma a convicção no sentido de que é provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido ou “os indícios são suficientes quando haja uma lata probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição”.

Como refere a Prof. Fernanda Palma, a relação entre os indícios e a possibilidade de condenação é que caracteriza os indícios.

Com efeito, os indícios de que resulta a possibilidade de condenação são indícios suficientes para a condenação, o que significa que revelam uma espécie de causalidade para aquele resultado, mas tal qualificação não se refere directamente á natureza dos indícios, nomeadamente a sua caracterização como fortes, fracos ou de média intensidade. Na lógica do Código de Processo Penal, os indícios que justificam a acusação (ou a pronúncia) são, segundo me parece, necessariamente graves ou fortes, no sentido de serem factos que permitem uma inferência do tipo probabilístico da prática do crime (enquanto facto) de elevada intensidade, permitindo estabelecer uma conexão com aquela prática altamente provável.

E é, assim, porque só os indícios de elevada intensidade são suficientes, isto é, justificam um juízo normativo de “possibilidade razoável” da condenação[3].

No ensinamento de Jorge Noronha e Silveira, para a suficiência dos indícios não deve bastar uma maior possibilidade de condenação do que de absolvição. Só uma forte ou alta possibilidade pode justificar a dedução da acusação ou a prolação de um despacho de pronúncia. Não apenas por ser esta a solução que melhor se adapta á particular estrutura do processo penal, como também por ser a única que consegue a imprescindível harmonização entre o critério normativo presente no juízo de afirmação da suficiência dos indícios e as exigências do principio da presunção de inocência do arguido.

E prossegue, por todas estas razões, afirmar a suficiência dos indícios de pressupor a formação de uma verdadeira convicção de probabilidade de futura condenação. Não logrando atingir essa convicção o M.P. deve arquivar o inquérito e o Juiz de Instrução deve lavrar despacho de não pronúncia[4].

No fundo, a indicação suficiente é, no dizer do Supremo Tribunal, a verificação suficiente de um conjunto de fatos que, relacionados e conjugados, componham a convicção de que, com a discussão ampla em julgamento, se poderão vir a provar em juízo de certeza e não de mera probabilidade, os elementos constitutivos do crime/da infracção porque os agentes virão a responder.[5]

Ou como referia Luís Osório, por indícios suficientes se devem ter aqueles que fazem nascer em quem os aprecia a convicção de que o réu poderá vir a ser condenado.[6]

Com base nos ensinamentos expostos vejamos, pois, se é, ou não, de manter o despacho de pronúncia prolatado e aqui posto em crise com o presente recurso.

Como decorre das conclusões formuladas pela recorrente, vemos que várias são as questões que coloca a decisão deste Tribunal de recurso.

Desde logo, importa decidir se nesta fase processual se podem vir suscitar os vícios compaginados no art.º 410.º, do Cód. Proc. Pen., e bem assim o erro de julgamento.

Pois, como decorre da conclusão I, a aqui recorrente vem imputar à decisão recorrida, entre o mais, o padecer do vício da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, art. 410º nº 2, al. ª b), do Cód. Proc. Pen., e bem assim de erro de julgamento, nos termos do art. 412º, nº 3 e 4, do mesmo diploma legal.

Como consabido, os vícios do art.º 410.º, e o erro de julgamento são meios que a lei prevê de forma a se poder questionar a matéria de facto acolhida na sentença.

O que desde logo resulta da própria colocação sistemática de tal temática no Código de Processo Penal.

Pelo que quando se queira questionar a decisão instrutória se não possa falar de matéria de facto, antes de indícios, de suficiência indiciária.

Já que as provas recolhidas nesta fase não constituem pressuposto da decisão de mérito, mas de mera decisão processual quanto á prossecução do processo até á fase do julgamento.

Daí que nesta fase processual se não possam chamar a terreiro os preditos vícios, porquanto nesta fase processual se não vise alcançar a demonstração da realidade dos factos, antes, e tão só, os indícios, os sinais de que um crime foi cometido por um arguido.[7]

Ou como se deu nota no Acórdão da Relação do Porto, de 27-10-2010, no Processo n.º 321/07.1PSPRT.P1, 4ª Secção, sendo facto assente que a instrução configura um momento processual de comprovação que culmina na formulação de um juízo de probabilidade, para legitimar a sujeição do arguido a julgamento, assente nos indícios recolhidos nos autos, é inegável que, em tal fase processual, não tem cabimento fazer-se apelo ao conceito de “matéria de facto provada”.

Para divergirmos do mesmo Aresto quando entende que, apesar disso, não repugnar a apreciação desses vícios quanto à decisão instrutória por referência à matéria indiciariamente assente.

Por outro lado, a sua apreciação autónoma será balizada pelo limite estabelecido no n.º 2, do aludido art. 410º, ou seja os vícios terão que resultar do texto da decisão recorrida (por si ou conjugado com as regras da experiência comum).

E que todas as demais questões cairão já no domínio da suficiência ou insuficiência de indícios.

Importa, pois, descortinar se os autos contêm indícios suficientes para que se conclua, como pretende a assistente, pela imputação ao arguido da prática do crime de abuso sexual de menores, p. e p. pelo art.º 172º n° 1, com referência ao artigo 171º n° 1, ambos do Cód. Pen.

Para afastar tal imputação, o tribunal recorrido veio dar como não suficientemente indiciado que o arguido no dia 24 de Janeiro de 2009, voluntariamente, na casa do seu amigo A, sita na Travessa.., Albufeira, despiu o seu filho D, e introduziu-lhe o seu dedo e outros objectos redondos no ânus do menor, sem outro objectivo que não o seu próprio contentamento.

A recorrente afronta tal conclusão, entendendo que deve ser valorada a observação médica levada a cabo na pessoa do menor, ocorrida às 21h54m, onde se veio dar conta de ânus hipermiado com lesão superficial às 5-6 h.

Sendo certo que a observação a que mais tarde o menor veio a ser sujeito, 23h05m, dá nota de que a mucosa anal se encontrava em situação normal.

Porém, e sempre na óptica da recorrente, a observação levada a cabo às 21h54m é de valorar, não tendo a observação ocorrida às 23h 05m a apetência de inutilizar a realidade física verificada inicialmente.
Sendo errónea a conclusão retirada pelo Tribunal recorrido.

Perante uma tal situação, como decidir?

A testemunha AT, médico pediatra, foi peremptória em afirmar que não existiam alterações no ânus, minutagem 6.15 a 6.17.

Como não havia indícios de fissuras nem de feridas; nem alterações traumáticas, nem equimoses, nem hematomas na região, ver minutagem 6.50 a 6.52 e 7.00 a 7.04.

Vindo a dar uma explicação para o que foi observado pelos seus colegas médicos no Centro de Saúde, às 21h54m. Referindo que os ditos médicos não são médicos pediatras e que o observado ao menor (lesão) se trata de uma prega anal normal, não havendo quaisquer lesões no ânus, minutagem: 11.50 e 11.55 a 12.25.

E que da observação levada a efeito no Centro de Saúde se tem de concluir que existiu hiperemia normal sem feridas e ânus sem feridas ou fissuras, mucosa íntegra e sem sangue, minutagem 17.25 a 17.38.

Dando uma explicação para a hiperemia observada, que considerou normal, dizendo que bastava haver algum movimento do muco anal espontâneo para provocar a mesma.

Importa reter, como disso bem dá nota a decisão recorrida, e que nenhum sujeito processual pôs em crise, que o menor no dia dos autos estava com diarreia, facto narrado pelas testemunhas AV e MV, na casa de quem o menor passou a tarde do predito dia. O bastante para lhe poder provocar tal hiperemia.

Depois, importa ter em linha de conta, como bem o refere a Magistrada recorrida, que é do conhecimento comum que qualquer lesão corporal, por mais superficial que seja, não se cura sem deixar vestígios em uma hora e vinte minutos.

Pois, caso tivesse existido essa dita lesão, como referido pela recorrente, vestígios a testemunha, Dr. AT, teria encontrado no corpo da criança e não os encontrou.

Daí que não se veja modo de não se ater ao depoimento da aludida testemunha, por tudo o que se vem dizendo, sempre tendo em conta até a qualidade em que participou nos feitos trazidos a pretório.

Daí que bem andou o M.mo Juiz a quo ao valorar o seu depoimento e nos termos em que o fez, sendo certo que é a própria recorrente que, ao longo da sua motivação, se vem louvar no depoimento desta testemunha, como adiante se verá.

Pelo que se não entende a atitude que assume quando critica uma parte do seu depoimento e se venha pronunciar de modo favorável sobre outra parte desse mesmo depoimento e sem que se avance qualquer explicação para tal procedimento, que não lobrigamos qual seja.

Quando é de justiça destacar a coerência manifestada pela testemunha ao longo de todo o seu depoimento.

Depois, entende a recorrente que na decisão sob censura não se ateve ao depoimento da testemunha AT quando refere haver um medo anómalo da criança quanto à observação do seu ânus, nem quanto à espontaneidade das declarações do menor, assim qualificadas por um pediatra experiente.

De facto ao longo do depoimento da aludida testemunha é feita referência ao medo manifestado pelo menor quando se tem de lhe observar o ânus.

Chegando a testemunha a referir que o menor manifestava um medo anómalo na observação da região em causa, ânus. Para afirmar a sua preocupação perante tal atitude por parte menor, ver minutagem 9.09 a 9.18.

Já em momento anterior havia mencionado que a criança revelou muito medo e muito receio quando compreendeu que se lhe ia observar a região anal e defendeu-se intensamente, ver minutagem 8.16 a 8.22.

Quanto à espontaneidade das declarações prestadas pelo menor, sempre a testemunha se pronunciou de forma positiva, afastando qualquer orientação por parte da mãe no pelo menor relatado.

Dizendo que a criança, em sua opinião, não foi instruída, considerando-a avançada para a idade, ver minutagem 7.50 a 8.00 e 8.20.

Mais dando nota de que o menor explicou que tinha sido o pai que tinha introduzido o dedo e di-lo, sempre segundo a testemunha, de forma espontânea e não instruída, ver minutagem 8.35 a 8.45.

Porém, é a mesma testemunha que refere que a criança estava perfeitamente confusa, ver minutagem 25.48 a 25.50, e mais adiante vem afirmar que a criança tinha dificuldade em saber o que se tinha passado, ver minutagem 29.28.

De tudo poderá concluir-se pela existência de agressão sexual, acto sexual de relevo, como pretende a recorrente?

Pensamos que não.

Demos a palavra á testemunha, Dr. AT.

Terá havido uma agressão física, mas não tem dados físicos, ver minutagem 25.00 a 25.30 e 26.10.

Não viu dados de que objectivamente tenha acontecido agressão sexual, minutagem 26.45.

Em seu entender houve sobretudo agressão psicológica, 24.31.
O que explicaria o facto de o comportamento da criança ser extremamente anómalo, ver minutagem 12.36.

Face ao exposto, importa firmar entendimento no sentido da sem razão da recorrente, devendo, por isso, concluir-se, como o fez o despacho sob censura, de que é de prever que a prova que foi produzida conduza com maior probabilidade à absolvição do arguido em julgamento, que á sua condenação, face à sua fragilidade.

Termos são em que Acordam em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar o despacho recorrido.

Custas pela recorrente, fixando-se em 3 ucs, a taxa de justiça devida.

(texto elaborado e revisto elo relator).

Évora, 26 de Fevereiro de 2013.

(José Proença da Costa)

(Sénio Alves)
__________________________________________________
[1] Ver, Curso de Processo Penal, Vol. II, págs. 182 e segs..

[2] Na C.J., ano XXIII, tomo IV, págs. 261.

[3] Cfr. Da Acusação e Pronúncia num Direito Processual Penal de conflito entre presunção de inocência e a realização da Justiça punitiva, págs. 121-123, in I Congresso de Processo Penal.

[4] Ver, o Conceito de Indícios Suficientes no Processo Penal Português, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, págs.171.

[5] Ver, Ac. de 10.12.92, no Processo n.º 427747.

[6] Ver, Comentário ao Código de Processo Penal Português, Vol. IV, págs. 411.

[7] Ver, Vinício Ribeiro, in Código de Processo Penal, Notas e Comentário, págs. 1239.