Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
7/10.0JASTB.E1
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: CRIME DE EXTORSÃO
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
Data do Acordão: 05/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Sendo o património o bem jurídico primacialmente protegido pelo tipo de crime previsto no artigo 223º do Código Penal, tal norma também tutela o bem jurídico liberdade de decisão e de ação.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
I - RELATÓRIO

1. Nos presentes autos com o NUIPC nº 7/10.0JASTB, do Tribunal Judicial da Comarca de … Juízo Local Criminal de … – Juiz …, em Processo Comum, com intervenção do Tribunal Singular, foi a arguida AA condenada, por sentença de 26/06/2013, pela prática de um crime de extorsão agravada, p. e p. pelo artigo 223º, nºs 1 e 3, alínea a), por referência ao artigo 204º, nº 2, alínea a), do Código Penal, na pena de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova, de acordo com plano individual de reinserção social e subordinada ao dever de, no prazo de suspensão, proceder ao pagamento da quantia de 59.591,00 euros, verba esta destinada a indemnizar BB e CC pelos danos causados.

2. A arguida não se conformou com a decisão e dela interpôs recurso, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

A) A pena de 5 (cinco) anos de prisão a que a arguida foi condenada, foi suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova, de acordo com o plano individual de reinserção social a elaborar pela Direcção Geral de Reinserção Social, sujeita à condição de, no prazo da suspensão, proceder ao pagamento da quantia de € 59.591,00 (cinquenta e nove mil, quinhentos e noventa e um euros) verba esta destinada a indemnizar BB e CC pelos danos experimentados.

B) Estabelece o artigo 51º n.º 2 do Código Penal que os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não lhe seja razoavelmente de exigir.

D) (sequência como no original) O tribunal ao decidir pela suspensão da pena, sujeita ao pagamento da quantia de € 59.591,00 não cuidou de efectuar o juízo de prognose, que se impunha, sobre a real possibilidade de cumprimento por parte da arguida e efetividade da injunção suspensiva, sob pena de tal benefício ser apenas legal e não real, aparente e não existente e de constituir prisão por dívidas, situação vedada pela nossa Constituição.

E) Esse juízo deve ter em conta conta a concreta situação económica, presente e futura, do condenado pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia, conforme acórdão de fixação de jurisprudência pelo Supremo Tribunal de Justiça (Ac. 8/2012).

F) E, como o próprio Tribunal consigna, (fls. da sentença) não foi possível apurar com o mínimo rigor a real situação económica e pessoal da arguida, pelo que o Tribunal não podia ter decidido pela suspensão da execução da pena de prisão subordinada ao pagamento de tal quantia, como o fez.

G) Assim, a sentença proferida nos autos é nula, por omissão de pronúncia (artigo 379º n.º 1 c) do CPP, devendo ser declarada tal nulidade.

H) Se assim não se entender, a recorrente não se conforma com a decisão proferida, desde logo por entender que os factos em causa não preenchem o tipo legal de crime conforme infra se explana.

I) De acordo com o artigo 223.º, n.º 1, do Código Penal, «Quem, com intenção de conseguir para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, constranger outra pessoa, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, a uma disposição patrimonial que acarrete, para ela ou para outrem, prejuízo é punido com pena de prisão até 5 anos».

J) Tal como bem sintetizado no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12-10-2009 (Processo n.º 1701/06.5TABRG.G1), são requisitos para a verificação do assinalado tipo legal de crime: «a) o emprego de violência ou ameaça ou a colocação de outra pessoa na impossibilidade de resistir; b) o constrangimento dai resultante a uma disposição patrimonial que cause prejuízo para alguém; c) intenção de conseguir para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo.

K) O crime de extorsão é um crime de processo típico, no sentido de que os meios para a sua realização estão taxativamente referidos na lei “Por meio de violência ou de ameaça com mal importante”.

L) No caso concerto, inexiste violência, pelo que vejamos se a conduta da arguida configura ou não ameaça com mal importante".

M) Não resulta dos autos, sequer a concretização desse mal importante, já que nas mensagens transcritas nunca é referido o que vai ser contado ou falado pela arguida, pelo contrário, observa-se que a arguida diz se não tens lá o que me pró ...o que te pedi...isto vai dar um grande buraco para ti e para mim.

N) Ou seja, algo que iria ser mal para ambas, ofendida e arguida, pelo que depreende que a arguida não iria revelar algo que a pudesse comprometer também.

O) Do depoimento da ofendida não é claro, nem é concretizado que ameaça com mal importante a arguida faria;

P) Ora, em bom rigor, admitindo que a arguida iria contar tal facto ao companheiro da arguida, o facto resumia-se ao seguinte: "a BB pediu-me para fazer uma reza ou feitiço para que vocês parassem de discutir e eu fiz."

Q) Não se vislumbra como tal facto pudesse configurar uma ameaça com mal importante, já que era uma situação [vamos admitir que uma pessoa média pudesse cair em tal logro e configurasse que tal pudesse melhorar a sua situação conjugal] que visava fazer o bem: acabar com discussões, trazer paz à vida do casal.

R) Qualquer pessoa média negar-se--ia a fornecer dinheiro a terceiro com um argumento tão infantil e sem qualquer fundamento, vindo de uma pessoa que o casal mal conhecia e que facilmente era negado.

S) O que se vislumbra, das regras da experiência e do senso comum, o que se parece adivinhar é que a BB, por motivos que se desconhecem, acedeu a emprestar dinheiro à arguida.

T) Só assim se compreende que a ofendida efetue transferências para a dita conta de valores consideráveis, em dias seguidos, praticamente todos os dias de Novembro e Dezembro de 2010.

Foi só quando a ofendida não tinha mais dinheiro [em 18 de janeiro de 2010 já não tem mais dinheiro] e conta ao companheiro o que se estava a passar e apresentam denúncia a 20 de janeiro é que cessaram as transferências.

E o que o companheiro não aceitou não foi o facto da BB ter contado que fez o tal feitiço, mas o facto de ter transferido dinheiro para a conta da arguida, tal como o mesmo refere.

U) Mesmo o facto da BB se encontrar fragilizada e dai poder estar mais permeável a certo tipo de pressão psicológica, não é isento de dúvidas, nos termos que supra se explanaram.

V) Em suma, não se encontram presentes os elementos típicos do crime pelo qual a arguida foi condenada, nomeadamente, a ameaça com um mal importante, tratando-se esta questão duma questão do foro cível e não criminal, pelo que a arguida deverá ser absolvida do crime pelo qual foi condenada.

W) Acrescendo que a sentença recorrida dá como provados, entre outros os seguintes factos:

X) Facto 5. Em agosto de 2009 a arguida entregou a dita substância à BB que a ministrou na comida do companheiro (…)

Y) Facto 6. Paralelamente, a arguida começou a solicitar á BB e ao companheiro adiantamentos no vencimento, entre outros empréstimos, os quais no final do mês de Agosto, lhe foram debitados do salário.

Z) Facto 10 (...) exigindo que BB realizasse transferências de quantias monetárias sempre de valor crescente sob pena de contar ao companheiro que ela o havia enfeitiçado (...)

AA) Facto 12 (...) a qual deixava mensagens no sistema de voz e mail do telemóvel da BB, exigindo nomeadamente em 18 de janeiro de 2010, o depósito de 950.000$00 (o equivalente a € 4.738,58 quatro mil setecentos e trinta e oito euros e cinquenta e oito cêntimos) sob pena de telefonar ao companheiro daquela e contar tudo o que se havia passado.

BB) As declarações prestadas pela ofendida BB, gravadas no sistema de gravação digital do Tribunal a partir das 9.30h da audiência, conforme acta de julgamento constante nos autos, contam uma história diferente;

CC) Ou seja, em face dos elementos de prova que supra se transcreveram o Tribunal não podia ter dado como provado que:

DD) Facto 5. Em agosto de 2009 a arguida entregou a dita substância BB que a ministrou na comida do companheiro (…)

EE) Facto 6. Paralelamente, a arguida começou a solicitar á BB e ao companheiro adiantamentos no vencimento, entre outros empréstimos, os quais no final do mês de Agosto, lhe foram debitados do salário.

FF) Facto 10 (...) exigindo que BB realizasse transferências de quantias monetárias sempre de valor crescente sob pena de contar ao companheiro que ela o havia enfeitiçado (...)

GG) Facto 12 (...) a qual deixava mensagens no sistema de voice mail do telemóvel da BB, exigindo nomeadamente em 18 de janeiro de 2010, o depósito de 950.000$00 (o equivalente a 4.738,58 quatro mil setecentos e trinta e oito curas e cinquenta e oito cêntimos) sob pena de telefonar ao companheiro daquela e contar tudo o que se havia passado.

HH) O depoimento da ofendida contraria os factos dados como provados, já que a BB nunca teve a dita substância, não a ministrou, nem viu a arguida ministrar; a arguida nunca solicitou adiantamentos de salário (apenas 10 ou 20 euros para o autocarro); a arguida nas mensagens transcritas nos autos, não exigiu o depósito de 950.000$00 (o equivalente a € 4.738,58 quatro mil setecentos e trinta e oito euros e cinquenta e oito cêntimos) sob pena de telefonar ao companheiro daquela e contar tudo o que se havia passado, mas referindo tão só que ia falar com o CC e que se não tens lá o que me pró...o que te pedi... isto vai dar um grande buraco para ti e para mim.

II) Pelo que os segmentos de prova ora transcritos, na ausência de outros elementos de prova que corroborem a versão da ofendida, impõem que se deem tais factos por não provados, devendo a sentença ser alterada em conformidade, sendo a arguida absolvida do crime pelo qual vem condenada, uma vez que o próprio fundamento da "chantagem" [ser a BB a colocar o pó na comida do companheiro], inexiste, face ao depoimento prestado pela mesma.

Termos em que deverá o presente recurso ser recebido, julgado procedente por provado e, em consequência:

A) Decretar-se a nulidade da sentença nos termos do disposto no artigo 379º n.º 1 c) do CPP;

B) Se assim não se entender, ser a mesma revogada e substituída por outra que absolva a arguida;

C) Em qualquer caso ser decretada a revogação da condição de suspensão da pena de prisão, ou seja, ser revogado o dever imposto à condenada de pagar o montante de € 59.591,00 aos ofendidos como condição de suspensão da pena de prisão a que foi condenada.

3. O recurso foi admitido, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

4. A Magistrada do Ministério Público junto do tribunal a quo apresentou resposta à motivação de recurso, pugnando pelo seu não provimento.

5. Neste Tribunal da Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de o recurso ser julgado improcedente.

6. Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, nº 2, do CPP, não tendo sido apresentada resposta

7. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1. Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410º, nº 2, do CPP – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/99, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.

No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:

Impugnação da matéria de facto/erro de julgamento.

Enquadramento jurídico-penal da conduta da recorrente.

Razoabilidade do dever imposto para a suspensão da execução da pena/nulidade da sentença por omissão de pronúncia.

2. A Decisão Recorrida

O Tribunal a quo deu como provados os seguintes factos (transcrição):

1. Em data não concretamente apurada, mas certamente em 2009, BB e CC adquiriram para exploração um estabelecimento comercial denominado "…", sito na Rua …, n.º …, em …, sendo que em Junho de 2009 contrataram, para exercer funções de cozinheira, a ora arguida.

2. No. decurso da relação de convivência que se instalou, entre a arguida e a BB, esta confidenciou-lhe que estaria a ter problemas na sua relação conjugal e que temia pelo futuro da mesma,

3. pelo que, a arguida se disponibilizou para ajudar, dizendo que conhecia quem fizesse um "feitiço" que "amarrava" o marido, consistindo o mesmo em introduzir um pó branco na comida do companheiro.

4. Fragilizada sentimentalmente, a BB aceitou a proposta, tendo entregue cerca de € 250,00 (duzentos e cinquenta Euros) à arguida para que esta adquirisse junto do feiticeiro o referido pó.

5. Em Agosto de 2009, a arguida entregou a dita substância à BB que a ministrou na comida do companheiro. Contudo, e porque não sentiu que alguma existido na relação, comentou tal facto com a arguida que lhe disse que o efeito demorava a fazer-se surgir;

6. Paralelamente, a arguida começou a solicitar à BB e ao companheiro adiantamentos no vencimento, entre outros empréstimos, os quais, no final do mês de Agosto, lhe foram debitados do salário.

7. Perante tal atitude dos patrões, a arguida despediu-se no mês de Setembro.

8. Em finais, de Setembro de 2009, a arguida contactou com a BB através do seu telemóvel, ameaçando-a de que contaria ao companheiro que esta lhe tinha ministrado um feitiço na comida caso ela não lhe transferisse para a conta bancária n.º …, sedeada no … e titulada pela arguida, a quantia de € 1.000,00 (mil Euros).

9. Atormentada e receando que o companheiro terminasse o relacionamento, a BB acedeu, transferindo no dia 20.10.2009 a quantia de € 250,00 (duzentos e cinquenta Euros) para a referida conta bancária.

10. Desde então, a arguida efectuava telefonemas, exigindo que a BB realizasse transferências de quantias monetárias sempre de valor crescente, sob pena de contar ao companheiro que ela o havia enfeitiçado, sendo que em:

- 22.10.2009 transferiu € 500,00 (quinhentos Euros) para a conta titulada pela arguida;

- 26.10.2009 transferiu € 505,00 (quinhentos e cinco Euros) para a conta titulada pela arguida;

- 28.10.2009 transferiu € 1.000,00 (mil Euros), para a conta titulada pela arguida;

- 29.10.2009 transferiu € 590/00 (quinhentos e noventa Euros), para a conta titulada pela arguida;

- 02.11.2009 transferiu € 1.000,00 (mil Euros) para a conta titulada pela arguida;

- 04.11.2009 transferiu € 1.000,00 (mil Euros) para a conta titulada pela arguida;

- 06.11.2009 transferiu € 1.000,00 (mil Euros) para a conta titulada pela arguida;

- 09.11.2009 transferiu € 1.250,00 (mil duzentos e cinquenta Euros) para a conta titulada pela arguida;

- 11.11.2009 transferiu € 1.000,00 (mil Euros) para a conta titulada pela arguida;

- 13.11.2009 transferiu € 1.246,86 (mil duzentos e quarenta e seis Euros e oitenta e seis cêntimos) para a conta titulada pela arguida;

- 16.11.2009 transferiu € 1.000,00 (mil Euros) para a conta titulada pela arguida;

- 17.11.2009 transferiu € 1.000,00 (mil Euros) para a conta titulada pela arguida;

- 19.11.2009 transferiu € 1.000,00 (mil Euros) para a conta titulada pela arguida;

- 21.11.2009 transferiu € 1.000,00 (mil Euros) para a conta titulada pela arguida;

- 23.11.2009 transferiu € 1.250,00 (mil duzentos e cinquenta Euros) para a conta titulada pela arguida;

- 26.11.2009 transferiu € 2.500,00 (dois mil e quinhentos Euros) para a conta titulada pela arguida;

- 03.12.2009 transferiu € 2.500,00 (dois mil e quinhentos Euros) para a conta titulada pela arguida;

- 07.12.2009 transferiu € 2.500,00 (dois mil e quinhentos Euros) para a pela arguida;

- 10.12.2009 transferiu € 2.500,00 (dois mil e quinhentos Euros) para a conta titulada pela arguida;

- 12.12.2009 transferiu € 2.500,00 (dois mil e quinhentos Euros) para a conta titulada pela arguida;

- 17.12.2009 transferiu € 2.500,00 (dois mil e quinhentos Euros) para a conta titulada pela arguida;

- 18.12.2009 transferiu € 2.500,00 (dois mil e quinhentos Euros) para a conta titulada pela arguida;

- 2.12.2009 transferiu € 2.500,00 (dois mil e. quinhentos Euros) para a conta titulada pela arguida;

- 24.12.2009 transferiu € 2.500,00 (dois mil e quinhentos Euros) para a conta titulada pela arguida;

- 29.12.2009 transferiu € 1.500,00 (mil e quinhentos Euros). para a conta titulada pela arguida;

- 31.12.2009 transferiu € 2.500,00 (dois mil e quinhentos Euros) para a conta titulada pela arguida;

- 01.012010 transferiu € 2.500,00 (dois mil e quinhentos Euros) para a conta titulada pela arguida;

- 04.01.2010transferiu € 5.000,00 (cinco mil Euros) para a conta titulada pela arguida;

- 06.01.2010 transferiu € 7.500,00 (sete mil e quinhentos Euros) para a conta titulada pela arguida;

- 08.01.2010 transferiu € 2.500,00 (dois mil quinhentos Euros) para a conta titulada pela arguida;

Num total de € 59.591,00 (cinquenta e nove mil, quinhentos e noventa e um Euros).

11. Não obstante a arguida continuasse a efectuar telefonemas intimidatórios para a BB, esta, no mês de Janeiro, resolveu contar ao companheiro o que se passava tendo cessado de imediato, as transferências bancárias.

12. Simultaneamente, passaram a não atender os telefonemas da arguida, a qual deixava mensagens no sistema de “voice mail” do telemóvel da BB, exigindo, nomeadamente em 18 de Janeiro de 2010, o depósito, de “950.000$00” (o equivalente a € 4.738,58 quatro mil setecentos e trinta e oito Euros e cinquenta e oito cêntimos), sob pena de telefonar ao companheiro daquela e lhe contar tudo o que se havia passado.

13. A arguida, agiu livre, voluntária e, conscientemente, na sequência de um plano previamente delineado e com o propósito concretizado de se apropriar e integrar no seu património, quantias monetárias de que a ofendida fosse titular; bem sabendo que aquela temia pela estabilidade da sua relação conjugal, que se encontrava fragilizada emocionalmente e que estava convicta que o companheiro nunca aceitaria aquilo que havia feito.

14. Para tal, agiu com o intuito concretizado de a intimidar por aquele meio a entregar-lhe quantias em dinheiro repetidas e de valores substanciais.

15. Sabia a arguida que tal conduta é proibida e punida por lei penal, não se abstendo, contudo, de a cometer,

16. A arguida não tem antecedentes.

Quanto aos factos não provados, considerou inexistirem.

Fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):

A decisão da matéria de facto resultou da análise dos documentos juntos aos autos e do teor dos depoimentos das testemunhas. prestados em audiência de julgamento, analisados à luz de regras da experiência comum e de critérios de razoabilidade, como se passa a expor.

BB depôs de forma objectiva, espontânea, natural e verdadeira, pese embora denotando alguma comoção inerente às sequelas que os acontecimentos deixaram na sua vida. Relatou todo o comportamento da arguida, desde a abordagem inicial até ao momento em que tiveram início os sucessivos pedidos de dinheiro, sempre sobre a ameaça de revelar ao marido o feitiço.

As palavras da testemunha em causa foram de tal modo elucidativas e impressivas que não deram margem para qualquer dúvida quanto à veracidade do relato.

Também não se logrou descortinar que procurasse ampliar os factos sobre que depôs, como seria até tentador, atenta a natureza humana e considerado o contexto e a gravidade das situações que se apreciam.

Aliás, ao invés de revolta, manifestou sobretudo desilusão face aos acontecimentos, descrevendo as repercussões (pessoais, familiares e financeiras) e marcas que estes lhe deixaram.

Igualmente digno de crédito foi o depoimento de. CC, ex-companheiro da BB. Depôs de forma objectiva e precisa, descrevendo o enquadramento, assim como a forma como veio a descobrir o que sucedera e o impacto que- os acontecimentos dos autos tiveram no relacionamento conjugal e famíliar.

A conjugação destes testemunhos com os extractos bancários que descrevem os movimentos de conta da arguida, os documentos a fls. 65 a 74, e a transcrição das mensagens de telemóvel enviadas pela arguida a fls. 105 a 107, permitiram melhor concretizar as datas em que ocorreram os factos.

Não foi possível apurar com o mínimo rigor a real situação económica e pessoal da arguida, pois esta não prestou declarações (faltou ao julgamento e, apesar dos mandados de detenção, não foi possível obter a sua comparência – fls. 183 a 192 e 195 a 200), nem existem formas alternativas de descortinar essa factualidade, visto que foi infrutífera a consulta de bases de dados oficiais (segurança social, dgv, registo automóvel, etc. -fls. 179 a 184).

O certificado de registo criminal a fls. 159 atesta a ausência de antecedentes.

Apreciemos.

Impugnação da matéria de facto/erro de julgamento

Conforme estabelecido no artigo 428º, nº 1, do CPP, os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito, de onde resulta que, em regra e quanto a estes Tribunais, a lei não restringe os respectivos poderes de cognição.

A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do CPP, no que se denomina de “revista alargada”, cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento – neste sentido, por todos, Ac. do STJ de 05/06/2008, Proc. nº 06P3649 e Ac. do STJ de 14/05/2009, Proc. nº 1182/06.3PAALM.S1, disponíveis em www.dgsi.pt. - ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se reporta o artigo 412º, nºs 3, 4 e 6, do mesmo diploma legal.

A recorrente discorda da matéria de facto dada como provada nos pontos 5, 6, 10 e 12 dos fundamentos de facto da decisão recorrida, fazendo apelo, entre o mais, ao depoimentos das testemunhas BB e CC, prestados em audiência de julgamento.

Ora, quando se visa impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto na modalidade ampla, as conclusões do recurso, por força do estabelecido no artigo 412º, nº 3, do CPP, têm de discriminar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas.

Segundo o nº 4 da mesma disposição legal, quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 364º (cumprindo, actualmente, face à revogação deste nº 3 pela Lei nº 94/2021, de 21/12, que entrou em vigor em 22/03/2022, considerar a remissão como feita para o seu nº 1), devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação, sendo que, neste caso, o tribunal procederá à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa - nº 6.

Para dar cumprimento a estas exigências legais tem o recorrente nas suas conclusões de especificar quais os pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados, quais as provas (específicas) que impõem decisão diversa da recorrida, bem como referir as concretas passagens/excertos das declarações/depoimentos que, no seu entender, obrigam à alteração da matéria de facto, transcrevendo-as (se na acta da audiência de julgamento não se faz referência ao início e termo de cada declaração ou depoimento gravados) ou mediante a indicação do segmento ou segmentos da gravação áudio que suportam o seu entendimento divergente, com indicação do início e termo desses segmentos (quando na acta da audiência de julgamento se faz essa referência – o que se verifica no caso em apreço - o que não obsta a que, nesta eventualidade, o recorrente, querendo, também proceda à transcrição dessas passagens).

Analisando as conclusões e a motivação (corpo) do recurso, constata-se que se assinalam os pontos de facto considerados como incorrectamente julgados.

Contudo, não se especificam quais as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, com individualização das específicas passagens que alicerçam a impugnação.

Com efeito, nem na motivação de recurso (corpo da mesma), nem nas respectivas conclusões, a recorrente estabelece a relação entre um concreto segmento, individualizado pela menção ao seu início e termo (quanto ao depoimento da testemunha BB apenas refere “a partir das 9:30 da audiência” e nada se indica quanto ao depoimento de CC), dos depoimentos trazidos à colação e o ponto ou pontos de facto que, por este meio, almeja alterar.

Não sendo o recurso um novo julgamento, mas um mero instrumento processual de correcção de concretos vícios praticados e que resultem de forma clara e evidente da prova indicada pelo recorrente, é patente a necessidade de observar as exigências da impugnação especificada.

Não tendo cumprido a recorrente (nas conclusões ou sequer no corpo da motivação, realça-se pela repetição) o ónus de impugnação especificada a que estava vinculada, não pode este Tribunal da Relação conhecer do respectivo recurso nesta parte afectada e defeso estava fazer-lhe convite para aperfeiçoamento, pois trata-se de uma deficiência da estrutura da motivação, equivalente a uma falta de motivação na plenitude dos seus fundamentos, que coloca até em crise a delimitação do âmbito do recurso e esse procedimento equivaleria, na verdade, à concessão de novo prazo para recorrer, o que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso – neste sentido, Ac. do STJ de 07/10/2004, Proc. nº 3286/04, 5ª Secção, disponível em www.dgsi.pt e Acs. do Tribunal Constitucional nºs 259/2002, de 18/06/2002 e 140/2004, de 10/03/2004, consultáveis no sítio respectivo.

Não obstante, o que realmente resulta, desde logo, das conclusões do recurso, é a divergência entre a convicção pessoal da arguida sobre a prova produzida em audiência e aquela que o tribunal firmou sobre os factos, o que se prende com a apreciação da prova em conexão com o princípio da livre apreciação da mesma consagrado no artigo 127º, do CPP, cumprindo não olvidar, como é jurisprudência corrente dos nossos Tribunais Superiores, que o tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador, fundamentada na sua livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se se evidenciar que a solução por que optou, de entre as várias possíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum. Se a decisão sobre a matéria de facto do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.

Analisemos então.

O tribunal recorrido dá-nos a conhecer, como transcrito se mostra, o percurso de formação da sua convicção quanto à factualidade dada como provada colocada em causa e, também, as razões da valoração que fez relativamente à credibilidade dos depoimentos das testemunhas, resultando dessa exposição que a prova foi valorada com razoabilidade e os elementos apontados na sentença como relevantes para a decisão de facto foram coerentemente explanados e valorados de acordo com um raciocínio lógico-dedutivo que não fere as regras da experiência comum.

E, importa se diga. mostra-se absolutamente irrelevante para a determinação da culpabilidade da recorrente (desde logo para a verificação dos elementos constitutivos do tipo de crime imptado) ou a determinação da sanção, se a substância (o denominado “pó branco”) referenciada nos pontos 3 e 5 foi entregue a BB e se foi esta ou a arguida que a ministrou ao CC.

Como descartável também se apresenta se a arguida solicitou ou não (como se sustenta na motivação de recurso) adiantamentos no vencimento, como se refere no ponto 6 dos factos provados, pois, como assente também está, estes no final do mês de Agosto, lhe foram debitados do salário, sendo certo que as disposições patrimoniais que integram o crime de extorsão são as efectuadas a partir de finais de Setembro de 2009.

Quanto à tese aventada pela recorrente de que as transferências de quantias em numerário da testemunha BB para si foram realizadas a título de empréstimo, para além de infirmadas pelo depoimento desta (que mereceu credibilidade ao julgador da 1ª instância e não vemos que se mostre inadmissível este juízo), resulta inverosímil face à experiência comum.

Na verdade, não se alcança, nem a recorrente demonstra, que relacionamento tão estreito e forte entre elas existia que levasse BB a, de livre e espontânea vontade, “emprestar-lhe” quantias monetárias em 20/10/2009, 22/10/2009, 26/10/2009, 28/10/2009, 20/10/2009, 02/11/2009, 04/11/2009, 06/11/2009, 09/11/2009, 11/11/2009, 13/11/2009, 16/11/2009, 17/11/2009, 19/11/2009, 21/11/2009, 23/11/2009, 26/11/2009, 03/12/2009, 07/12/2009, 10/12/2009, 12/12/2009 , 17/12/2009, 18/12/2009, 21/12/2009, 24/12/2009, 29/12/2009, 31/12/2009, 01/01/2010, 04/01/2010, 06/01/2010 e 08/01/2010, no montante global de 59.591,00 euros e qual a razão ou razões desse aperto financeiro pela banda da arguida.

Argumenta também a arguida que, “qualquer pessoa média negar-se-ia a fornecer dinheiro a terceiro com um argumento tão infantil e sem qualquer fundamento, vindo de uma pessoa que o casal mal conhecia e que facilmente era negado”.

Seria assim, é vero, se estivéssemos a avaliar no campo da racionalidade e não no domínio mais profundo da mente que se prende com as crenças populares sobre o paranormal.

Elucida-nos José Pedro Paiva, Bruxaria e Superstição, Notícias Editorial, pág. 96, que “uma das áreas onde a actividade das feiticeiras mais se fazia sentir em Portugal, era no plano da tentativa de manipulação dos actos e dos desejos. De facto, enquanto possuidoras de conhecimentos ou poderes para “inclinar vontades”, expressão ao tempo amiúde utilizada, as feiticeiras eram muito procuradas.”

E mais alumia: “o campo do amor, ou talvez melhor o da regulação do complexo universo das relações entre os sexos, era o de maior labor. Deste modo provocar que dois seres se sentissem apaixonados, dominar ou “amansar” um amor excessivo que desequilibrava e punha “como doido” quem o sentia, ajustar casamentos, fazer com que um marido não se apercebesse de uma relação ilegítima mantida por sua mulher, evitar que os maridos materializassem o seu “mau génio” em comportamentos violentos sobre as esposas, forçar maridos que abandonavam os lares a regressarem a casa, atrair homens para “tratos desonestos”, limitar as capacidades sexuais dos homens que não correspondendo ao amor desejado se sentiam atraídos por outras mulheres, destruir frutos de amores ilegítimos, eram pedidos para os quais com enorme frequência se procuravam feiticeiras”.

E, embora se reportando este estudo aos séculos XVII e XVIII, vero é que se comprova tal explanação se aplicar inteiramente à actualidade, para o que basta percorrer alguns periódicos onde proliferam os anúncios de “mestres”, “professores”, “astrólogos”, “videntes”, “médiuns”, “cartomantes”, “tarólogos” e “bruxos”, que prometem êxito em curas milagrosas, problemas de amor, “mau-olhado” e afins e relembrar o caso de …, jogador de futebol da selecção ….

De onde, a argumentação em causa não mereça acolhimento.

Para que se proceda à alteração da matéria de facto no sentido propugnado pela recorrente teria esta que demonstrar que a convicção obtida pelo tribunal a quo constitui uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação das aludidas regras, uma manifestamente errada utilização de presunções naturais, não bastando que apresente uma argumentação no sentido de que outra convicção era possível.

Tal demonstração de que as provas que aponta conduzem inequivocamente a uma convicção diversa daquela a que chegou o tribunal recorrido, não a fez, pelo que não merece acolhimento a sua pretensão de alteração da matéria de facto.

Termos em que, cumpre concluir que da análise efectuada resulta que a factualidade considerada provada objecto de impugnação se apresenta sustentada por prova suficiente, adequada e legalmente permitida, não se registando obliteração das regras da experiência comum, sem margem para dúvidas razoáveis, não havendo, por isso, fundamento para a pretendida alteração da matéria de facto, não podendo proceder a pretensão da recorrente de impor a sua convicção pessoal face à prova produzida em audiência em detrimento da do julgador, pois a decisão sobre esta está devidamente fundamentada, tendo sido proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção – artigo 127º, do CPP.

Assim, carecendo de razão no que tange à alteração da matéria de facto, tem de se considerar esta definitivamente fixada nos termos mencionados, improcedendo o recurso nesta parte.

Enquadramento jurídico-penal da conduta da recorrente

No entender da arguida, os factos que provados se mostram não integram o crime por que foi condenada.

Considerou o tribunal a quo que estavam preenchidos os elementos objectos e subjectivos do crime de extorsão agravada, p. e p. pelo artigo 223º, nºs 1 e 3, alínea a), por referência ao artigo 204º, nº 2, alínea a), do Código Penal.

Estabelece-se no referido artigo 223º:

“1- Quem, com intenção de conseguir para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, constranger outra pessoa, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, a uma disposição patrimonial que acarrete, para ela ou para outrem, prejuízo é punido com pena de prisão até 5 anos.

(…)

3 - Se se verificarem os requisitos referidos:

a) Nas alíneas a), f) ou g) do n.º 2 do artigo 204.º, ou na alínea a) do n.º 2 do artigo 210.º, o agente é punido com pena de prisão de 3 a 15 anos;

(…)”.

O bem jurídico protegido pela norma do nº 1 é, primacialmente, o património, mas também tutela o bem jurídico liberdade de decisão e de acção, como elucida Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, Coimbra Editora, pág. 343.

Coloca em causa a recorrente que a disposição patrimonial tenha resultado de “ameaça com mal importante”.

Analisemos.

Provado está que a arguida comunicou a BB que daria a conhecer ao seu companheiro que esta “o havia enfeitiçado”, caso não fizesse as transferências de quantias monetárias para a conta bancária de que era titular, o que integra o conceito de “ameaça”, pois trata-se de um mal futuro e dependente a sua verificação da vontade do agente.

Quanto à ameaça se traduzir em um “mal importante”, importa ter em atenção que a vítima se encontrava em situação de fragilidade emocional (debilidade psicológica), pois considerava que estava a ter problemas na sua relação conjugal e temia pelo futuro desta, o que era do conhecimento da arguida, sendo, por isso, adequada, não só objectivamente, de acordo com o juízo do homem comum, como do da pessoa da BB, a dominar a vontade desta em ordem às disposições patrimoniais que realizou em prejuízo próprio e a um benefício da ora recorrente que não lhe era devido (não legítimo), do que também estava ciente a arguida.

Extrai-se ainda da factualidade provada, que foi essa ameaça (repetida, acrescente-se), que determinou a vítima às entregas monetárias, pelo que demonstrada está também a relação de causalidade entre a acção e o resultado.

E, tendo em conta os factos provados vertidos nos pontos 13, 14 e 15, estão igualmente preenchidos os elementos consubstanciadores do dolo. Quer do dolo do tipo, quer do da culpa, onde se inclui a consciência da ilicitude.

Assim sendo, não se verificando quaisquer causas que excluam a ilicitude ou a culpa, não merece censura a sua condenação pelo crime de extorsão.

Improcede, pois, o recurso neste segmento.

Razoabilidade do dever imposto para a suspensão da execução da pena/nulidade da sentença por omissão de pronúncia

Considera também a recorrente, que a decisão revidenda padece de nulidade por omissão de pronúncia, porquanto suspendeu a execução da pena aplicada com subordinação ao dever do pagamento a BB e CC da quantia de 59.591,00 euros no período da suspensão, fixado em cinco anos, sem que tivesse efectuado juízo algum sobre a sua concreta situação económica.

A nulidade por omissão de pronúncia – prevista na alínea c), do nº 1, do artigo 379º, do CPP - como é jurisprudência consolidada do nosso Supremo Tribunal de Justiça, verifica-se quando o tribunal não se pronuncia sobre questões que devesse apreciar, quer porque lhe foram submetidas, quer porque o seu conhecimento é oficioso, entendendo-se por questões os problemas concretos a decidir e não os simples argumentos, opiniões ou doutrinas expendidos pelas “partes” na defesa das teses em presença - neste sentido, vd. por todos os Acs. do STJ de 25/05/2006, Proc. nº 06P1389 e de 23/10/2008, Proc. nº 08P2869, consultáveis em www.dgsi.pt.

Explicitando-se ainda, mais recentemente, no Ac. do STJ de 16/02/2022, Proc. nº 333/14.9TELSB.L1-A.S1, disponível no mesmo sítio: “Omissão de pronúncia significa, fundamentalmente, ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre questões ou matérias, de direito substantivo ou processual, que conformam o objeto da concreta pretensão de justiça penal. A omissão de pronúncia causadora de nulidade de sentença ou acórdão, prevista no art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, preenche-se com a falta de pronúncia sobre questão ou questões que, suscitadas pelos sujeitos processuais ou de conhecimento oficioso, o tribunal devia ter apreciado. Omitir pronúncia sobre determinada questão é, simplesmente, nada dizer sobre a mesma, não tomar sobre essa concreta questão, substantiva ou processual, qualquer posição, expressa ou implícita, mas claramente entendível, a não ser que resulte claramente prejudicada pela decisão de outras.”

De acordo com o estabelecido no artigo 51º, do Código Penal: “1 – A suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente: a) Pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado, ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea; b) Dar ao lesado satisfação moral adequada; c) Entregar a instituições, públicas ou privadas, de solidariedade social ou ao Estado, uma contribuição monetária ou prestação de valor equivalente. 2 - Os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir. (…)”.

Ora, percorrida a decisão sob censura, consta-se que dela não constam factos alguns relativos às condições pessoais e situação económica da arguida, nem juízo sobre a razoabilidade do dever imposto por referência a esta. Contudo, a arguida não compareceu em audiência de julgamento, não obstante ter sido devidamente notificada, nem justificou sua falta, tendo sido julgada na ausência, nos termos do estabelecido no artigo 333º, do CPP. Por outro lado, realizadas diversas diligências para a sua localização, incluindo emissão de mandados de detenção para a fazer comparecer na audiência, tendo em conta as moradas apuradas após aquelas (… – …, constante do termo de identidade e residência prestado; Rua …, …; … - … e Rua … – Bairro … – …), resultaram infrutíferas, pelo que também inviável se apresentava a solicitação aos Serviços de Reinserção Social de relatório social ou informação sobre a sua situação económica (não se podendo deixar de apontar que, sendo a sentença datada de 26/06/2013, a arguida só dela foi pessoalmente notificada aos 24/11/2022, pela GNR, em …). Destarte, inexistindo essa factualidade, que só não foi apurada porque a arguida/recorrente o impediu ao se ausentar para paradeiro desconhecido, também inexiste a assinalada nulidade por omissão de pronúncia. Diga-se ainda que, nos termos do artigo 51º, nº 3, do Código Penal, “os deveres impostos podem ser modificados até ao termo do período de suspensão sempre que ocorrerem circunstâncias relevantes supervenientes ou de que o tribunal só posteriormente tiver tido conhecimento”, pelo que a condenação nos termos em que se mostra efectuada, concretamente no que tange ao dever imposto, pode ainda ser alterada, desde que comprovada a impossibilidade ou irrazoabilidade do seu cumprimento por força da situação económica que venha a ser conhecida.

Assim sendo, cumpre negar provimento ao recurso.

III - DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pela arguida AA e confirmar a decisão recorrida.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC.

Évora, 9 de Maio de 2023

(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário)

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(Artur Vargues)

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(Nuno Garcia)

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(António Condesso)