Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
727/21.3T8ORM.E1
Relator: FRANCISCO MATOS
Descritores: PRIVAÇÃO DO USO DE VEÍCULO
CESSAÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 11/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Ocorrendo perda total do veículo sinistrado e não colocando a empresa de seguros a indemnização à disposição do lesado, por não se considerar responsável pela reparação do acidente, o cômputo da indemnização por privação do uso do veículo cessa com a comunicação ao lesado da situação de perda total do veículo.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 727/21.3T8ORM.E1

Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório
1. (…), casado, residente na Rotunda (…), n.º 20-4.º, Z Edifício (…), Fátima, instaurou contra (…) Seguros, S.A., com sede na Avenida da (…), n.º (…), em Lisboa, ação declarativa com processo comum.
Alegou, em resumo, que no dia 21/6/2021, na Estrada da (…), em Fátima, conduzia o veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula 47-…-33, propriedade sua e ao efetuar uma manobra de viragem à esquerda foi embatido pelo veículo ligeiro de mercadorias, com a matrícula 04-…-36, conduzido por (…), propriedade de (…), S.A., com responsabilidade civil por danos ocasionados pela circulação transferida para a R., o qual de forma imprudente e descuidada, invadiu a hemifaixa de rodagem ocupada pelo veículo do A., ocasionando o acidente.
Sofreu, em consequência, traumatismo crânio-encefálico com perda de conhecimento e traumatismo na mão esquerda, quebrou os óculos, o seu veículo ficou danificado e impossibilitado de circular e a R. não lhe facultou viatura de substituição.
Concluiu pedindo a condenação da R. no pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais no montante de € 8.816,00, bem como no pagamento do valor da reparação do seu veículo ou, em alternativa, a sua substituição por outro em similar estado.
Contestou a R., em resumo, alegando a culpa do A. na produção do acidente (iniciou a manobra de virar à esquerda sem olhar para a sua retaguarda e verificar se podia fazer tal manobra em segurança) e impugnando os danos e/ou a sua extensão.
Concluiu pela improcedência da ação.

2. Foi proferido despacho que afirmou a validade e regularidade da instância, identificou o objeto do litígio e enunciou os temas da prova.

Teve lugar a audiência de discussão e julgamento e depois foi proferida sentença em cujo dispositivo designadamente se consignou:
“Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente, por provada, a presente ação e decide-se condenar a R. em parte dos pedidos formulados nos autos pelo A.

Designadamente, determina-se a condenação da R. no pagamento ao A., a título de indemnização:

a-) Da quantia de 127,50 euros correspondente ao valor do dano de privação de uso do veículo 47-…-33 durante o período de 17 dias de paralisação do mesmo, e calculado à razão de 7,50 euros diários.

b-) Da quantia de 800 euros, correspondente ao valor dos danos não patrimoniais sofridos pelo A. em resultado do acidente de viação em causa nos autos e das lesões que lhe advieram em consequência do mesmo.

c-) Do valor dos juros de mora que se venceram e se vencerem, contados desde da data da citação da R. para a presente ação até integral pagamento, calculados sobre os montantes da indemnização descritos nas alíneas a) e b), à taxa legal dos juros civis, que será atualmente de 4%, na medida em que é esta que se encontra atualmente em vigor.

d-) Do valor da perda total do veículo 47-…-33, pertencente ao A., devido ao acidente de viação em causa nos autos. Contudo, irá remeter-se a realização da liquidação desse dano da perda total para incidente ulterior a instaurar pelo interessado, ou seja o A., na qualidade de lesado.

Em qualquer dos casos tal valor do dano da perda total da viatura 47-…-33, nunca poderá ultrapassar o montante de 9.843,75 euros, que foi o que foi reclamado pelo A.

e-) Do valor dos juros de mora que se vencerem até integral pagamento, calculados sobre o montante do dano da perda total do veículo 47-…-33, liquidado nos termos descritos em d-), contados desde a data em que se proceder à liquidação do mesmo, à taxa legal dos juros civis, que será atualmente de 4%, na medida em que é esta que se encontra atualmente em vigor.

Por outro lado, decide-se declarar improcedente a restante parte da presente ação em relação aos outros pedidos formulados pelo A. nos presentes autos.

Designadamente, absolve-se a R. dos outros pedidos de indemnização dos danos formulados pela A.”


3. O recurso
O A. recorre da sentença e conclui assim a motivação do recurso:
“A- O presente recurso vem interposto da douta Decisão constante da sentença proferida em 20.04.2022, na parte em que julgou improcedente o pedido relativo aos danos com os óculos, bem como, do montante da indemnização atribuída pela privação de uso;

B- Decisão na qual, o Mm.º Juiz julgou como não provado, que na sequência do acidente tenha ocorrido a queda e a quebra dos óculos que o A. tinha postos e que o mesmo tenha adquirido novas armações e lentes para substituir os óculos danificados), com um custo total de 1.136,00 euros;

C- No que se refere à questão da quebra dos óculos, o Mm.º Juiz desconsiderou o teor das declarações de parte do A., conjugadas com a fatura e recibo que constitui doc. 12, juntos com a P.I.;

D- Em sede de audiência de julgamento, ocorrida em 05.04.2022, o A. prestou declarações de parte (14h29m41s a 14h46.39s), nas quais, para além do mais, quando questionado sobre o que tinha acontecido aos seus óculos, afirmou (08m51s a 09m37s)…Os óculos partiram-se...ficaram todos danificados;

E- E, no que se refere à compra de outros óculos, esclareceu que teve que comprar óculos normais de ver e os óculos de sol...por se terem partido os dois;

F- O A. juntou, com a P.I., fatura e recibo emitidos pela … (doc. 12), em 01.07.2021, no montante de € 1.136.00, documento que não foi objeto de impugnação pela Ré e, como tal, sustenta a versão do A.;

G- Da prova documental referida, conjugada com as declarações de parte do A., resulta comprovado que os óculos do A. se danificaram no acidente e que o mesmo teve que adquirir outros para sua substituição, no valor de e 1.136,00;

H- Contexto em que, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 662.º do C.P.C., deve a matéria de facto ser alterada (2), julgando-se como provado que:

1. Na sequência do embate referido em 6), ocorreu a queda e a quebra dos óculos que o A. tinha postos a si pertencentes.

2. O A. procedeu à aquisição de novas armações e lentes para substituir os óculos referidos em A), tendo arcado com o custo total de 1.136,00 euros.

I- Com o mesmo fundamento, deve dar-se por não provado que a Ré tenha enviado ao Autor uma carta, em 07.07.2021 (factos assentes 18), porquanto, não só não se trata de qualquer carta, mas sim de um Relatório Pericial, sem endereço, como ainda,

J- Não se fez qualquer prova do seu envio ao A. e, muito menos, que tal documento configura alguma “oferta” ou “disponibilização” de indemnização, limitando-se a considerar um valor para indemnização;

K- Pelo contrário: por carta datada de 05.07.2021 (doc. 7-P.I.), a Ré refuta qualquer responsabilidade pelo pagamento de qualquer indemnização resultante do sinistro em apreço, posição que manteve ao logo de todo o processo;

L- Acresce que, tendo remetido as partes para liquidação posterior do valor da viatura, não poderia o Mm.º Juiz considerar como proposta de indemnização, um valor que nem o próprio tribunal considera;

M- No que refere ao valor diário de indemnização, pela privação de uso da viatura, não pode aceitar-se como equitativo o valor de € 7,50 dia;

N- O valor de referência, mesmo em termos de equidade, não pode deixar de ser o do aluguer de viatura similar, tendo em conta que o A. utilizava a viatura, de forma diária, para as suas deslocações pessoais, nos termos comprovados na decisão;

O- Valor esse que, para viaturas similares, segundo os sites da especialidade, varia, atualmente, entre € 65,00 e € 85,00/dia;

P- O A. pede um valor mínimo de € 30,00 dia, que corresponde a menos de metade do valor médio que, atentas as circunstâncias e período em que este está privado da viatura, deve ser arbitrado, desde a data do acidente, até ao pagamento da indemnização, com a qual pode ser suprida a privação, com a aquisição de uma outra.

TERMOS EM QUE, REVOGANDO A DECISÃO RECORRIDA, NOS TERMOS ALEGADOS, FARÃO V.EXAS., JUSTIÇA !!!

Respondeu a R por forma a defender a confirmação da decisão recorrida.

Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


II. Objeto do recurso
Considerando que o objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso (artigos 635.º, n.º 4 e 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), que nos recursos se apreciam questões e não razões ou argumentos e que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido, importa decidir: i) a impugnação da decisão de facto, procedendo esta, as suas implicações na solução de direito, ii) o montante da indemnização pela privação do uso do veículo.

III. Fundamentação
1. Factos
1.1. A decisão recorrida julgou assim os factos:
Provado:
1- No dia 21 de Junho de 2021, pelas 12 horas e 50 minutos, o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de marca e modelo: (…), de matrícula 47-(…)-33, pertencente e conduzido pelo A., circulava pela Estrada da (…), na localidade de Fátima, na área de competência deste Tribunal de Ourém, no sentido Fátima-Batalha, nas proximidades do restaurante denominado de (…).

2- Na mesma data, hora, e via, referidas em 1), no mesmo sentido de trânsito, alguns metros atrás do veículo 47-(…)-33, circulava o veículo automóvel ligeiro de mercadorias, de marca e modelo: (…), de matrícula 04-(…)-36, pertencente à empresa “(…)”, e conduzido pela testemunha (…).

3- O A. deslocava-se com a sua viatura 47-(…)-33, na direção do mencionado restaurante “(…)”, situado do lado esquerdo da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha.

4- Ao pretender virar para a sua esquerda para aceder ao referido restaurante “(…)”, após ter assinalado essa sua pretensão, ligando o pisca-pisca para a esquerda, o veículo 47-(…)-33, saiu da hemifaixa direita, por onde circulava, e invadiu e entrou na hemifaixa da esquerda, começando a atravessar a mesma.

5- Quando o veículo 47-(…)-33 se encontrava a realizar a manobra de mudança de direção para a sua esquerda referida em 4), o veículo 04-(…)-36 iniciou uma manobra de ultrapassagem daquele veículo 47-(…)-33.

6- Na sequência, o veículo 04-(…)-36 foi embater com a parte da frente do lado direito na parte lateral esquerda do veículo 47-(…)-33, com maior incidência na parte da porta da frente do lado esquerdo.

7- Com o embate referido em 6), o veículo 47-(…)-33 foi projetado ao longo de vários metros, até se imobilizar na berma do lado direito, da hemifaixa direita de rodagem, atento o seu sentido de marcha, ou seja Fátima-Batalha, junto aos rails aí existentes, onde embateu com a parte da frente do lado direito, e junto às instalações das empresas (…) e (…).

8- O embate referido em 6), ocorreu junto ao eixo da via da faixa de rodagem referida em 1).

9- A via referida em 1), no local onde ocorreu o embate, configura uma reta e dispõe de duas hemifaixas de rodagem, de dois sentidos contrários, separados por um traço descontínuo.

10- Em resultado do embate referido em 6), o veículo 47-(…)-33 sofreu estragos ao longo de toda a parte lateral esquerda, com maior incidência junto à porta da frente do lado esquerdo, e ainda na parte da frente do lado direito.

11- Na ocasião referida em 1), o condutor do veículo 04-(…)-36, ou seja a testemunha (…), tripulava esta viatura distraído em relação aos demais veículos que circulavam pela via por onde seguia, quer no mesmo sentido, quer no sentido oposto.

12- Na ocasião referida em 1), a testemunha (…) conduzia o 04-(…)-36 por conta e no interesse da dona da viatura, ou seja a empresa (…), para quem trabalhava.

13- Na data referida em 1), o proprietário da viatura, havia transferido para a Seguradora (…), que foi integrada na R., a responsabilidade pelos danos causados a terceiros em resultado de acidente de viação pelo veículo de matrícula 04-(…)-36, através da celebração de um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, com a apólice n.º (…).

14- Após o embate referido em 6), o veiculo 47-(…)-33 ficou impossibilitado de circular pelos seus próprios meios devido ao facto de ter ficado com a direção empenada e com a parte lateral esquerda destruída.

15- Por incumbência da R., foi realizada uma peritagem aos estragos sofridos pelo veículo 47-(…)-33 na sequência do sinistro referido supra, tendo sido orçamentado o custo da reparação desses estragos na quantia de 9.843,75 euros.

16- O veículo 47-(…)-33 tinha um valor comercial situado entre 4.000 euros e 6.000 euros, na data em ocorreu o sinistro referido em 6), antes de sofrer os estragos referidos em 10).

17- A R. obteve como melhor proposta para a aquisição do veículo 47-(…)-33, com os estragos referidos em 10), pela contrapartida de 355 euros.

18- A R. enviou ao A. a carta datada de 7 de Julho de 2021, cuja cópia se encontra junta a fls. 60, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido, no qual consta, designadamente, que: “O veículo sofreu danos extensos quer ao nível mecânico quer na sua estrutura como demonstram as fotos que juntamos. O orçamento estimativa para reparação do veículo, elaborado sem qualquer desmontagem, aponta para valores na ordem dos 9.843,75 euros. Assim, técnica e economicamente, é de considerar a arrumação deste assunto por perda parcial”.

19- Na sequência do sinistro referido supra, o A. sofreu traumatismo crânio-encefálico, com perda de conhecimento, ferimentos na mão esquerda e uma lesão no tendão externo do 2º dedo da mão esquerda.

20- Na sequência, o A. foi transportado pelo INEM para o Centro Hospitalar de Leiria, onde recebeu assistência médica e tratamento às lesões por si sofridas, referidas em 19).

21- Nos meses de Julho e Agosto de 2021, o estado do A. foi avaliado em consultas de oftalmologia, ortopedia e fisiatria, tendo realizado 17 sessões de fisioterapia para tratamento e recuperação da sua lesão no 2º dedo da mão esquerda.

22- O A. sofreu dores quando sofreu o embate referido em 6), pelas lesões sofridas em resultado do acidente em causa nos autos, que se encontram referidas em 19), e pelos tratamentos a essas lesões, que se encontram mencionados em 20) e 21).

23- O A. encontra-se reformado, e utilizava a viatura 47-(…)-33 para afazeres domésticos ou de lazer, designadamente para realizar compras, e realizar viagens para visitar os pais e amigos.

Não provado:

A- Na sequência do embate referido em 6), ocorreu a queda e a quebra dos óculos que o A. tinha postos a si pertencentes.

B- O A. procedeu à aquisição de novas armações e lentes para substituir os óculos referidos em A), tendo arcado com o custo total de 1.136,00 euros.

C- Após o sinistro referido supra, a viatura 47-(…)-33 ficou tecnicamente em condições de ser reparável.

D- O A. recuperou a consciência quando se encontrava encarcerado dentro da sua viatura, tendo tido 15 minutos de angústia, sofrimento e temor pela sua vida, até ser desencarcerado.

E- As patologias que o A. sofria antes da data referida em 1), agudizaram-se devido às lesões por ele sofridas em consequência do sinistro referido supra.

F- A determinada altura, de forma inopinada, junto à entrada do restaurante “(…)”, situada do lado esquerdo, atento o seu sentido de marcha, o veículo 47-(…)-33, fez uma manobra de mudança de direção à esquerda, invadiu a hemifaixa esquerda de rodagem, por onde estava a circular o veículo 04-(…)-36, na medida em que estava a realizar a manobra de ultrapassagem daquele veículo 47-(…)-33.

G- Antes de iniciar a manobra de mudança de direção à esquerda referida supra, o A. não olhou para trás para verificar se se encontrava a circular outro veículo na retaguarda do veículo por si tripulado, e se se encontrava a realizar a manobra de ultrapassagem da sua viatura.

H- O veículo 47-(…)-33 tinha o valor comercial de 3.800 euros, na data em ocorreu o sinistro referido em 6), antes de sofrer os estragos referidos em 10).

1.2. Impugnação da decisão de facto

1.2.1. Com fundamento nas suas declarações de parte e nos documentos junto aos autos a fls. 22 vº e 23, o A. considera que se prova a matéria de facto vertida nos pontos A e B dos factos não provados – “A- Na sequência do embate referido em 6), ocorreu a queda e a quebra dos óculos que o A. tinha postos a si pertencentes; “ B- O A. procedeu à aquisição de novas armações e lentes para substituir os óculos referidos em A), tendo arcado com o custo total de 1.136,00 euros”.

A decisão recorrida motivou assim as respostas:

“A factualidade dada como não provada resultou da ausência total de provas ou da inexistência de prova convincente quanto à mesma. Designadamente, o A. e a R. não fizeram prova, ou prova convincente, quer testemunhal, quer documental, conforme lhes competia, por terem o respetivo ónus, desses factos que fundamentariam a sua versão”.

Apreciando.

Segundo as declarações de parte prestadas pelo A., à data do acidente usava óculos, os quais tinham acopladas “lentes de sol”, na sequência do embate os óculos partiram-se e teve que comprar outros óculos para substituir os óculos partidos.

A fls. 22 vº e 23 dos autos constam cópias de uma fatura e de um recibo, emitidos em nome do A. referentes à aquisição de óculos e respetivas aros, no valor global de € 1.136,00.

A inutilização dos óculos é compatível com as lesões sofridas pelo A. (traumatismo crânio-encefálico – ponto 19 dos factos provados) e com a dinâmica e consequências materiais do acidente (o veículo do A. foi projetado ao longo de vários metros, ficou com a direção empenada, com a parte lateral esquerda destruída e impossibilitado de, por si, circular – pontos 7 e 14 dos factos provados) e a data da fatura de aquisição de óculos novos, 1/7/2021, é compatível com as necessidades de substituição dos óculos partidos à data do acidente, 21/6/2021.

É certo, como afirma a R., que inexiste qualquer imagem dos óculos partidos, mas tal omissão mostra-se perfeitamente justificada numa situação de traumatismo crânio-encefálico, com perda de conhecimento só recuperado em contexto hospitalar, como foi o caso; nestas circunstâncias, à luz das regras da experiência da vida e da normalidade das coisas, não era exigível ao A. que averiguasse o paradeiro dos óculos ou do que restava deles.

A prova, ensina Manuel de Andrade, “não é certeza lógica, mas tão só um alto grau de probabilidade, suficiente para as necessidades práticas da vida (certeza histórico-empírica)”[1] e a prova produzida evidencia, com alto grau de probabilidade, que o A. suportou um prejuízo de € 1.136,00 com a compra de óculos destinados a substituir os óculos que se partiram por efeito do acidente.

A impugnação procede e, em consequência, deverão aditar-se aos factos provados os seguintes:

“24. Na sequência do embate referido em 6), ocorreu a queda e a quebra dos óculos que o A. tinha postos a si pertencentes;

25. O A. procedeu à aquisição de novas armações e lentes para substituir os óculos referidos em A), tendo despendido a quantia € 1.136,00 euros.”

1.2.2. O A. impugna a decisão de facto vertida no ponto 18 dos factos provados – “A R. enviou ao A. a carta datada de 7 de Julho de 2021, cuja cópia se encontra junta a fls. 60, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido, no qual consta, designadamente, que: “O veículo sofreu danos extensos quer ao nível mecânico quer na sua estrutura como demonstram as fotos que juntamos. O orçamento estimativa para reparação do veículo, elaborado sem qualquer desmontagem, aponta para valores na ordem dos 9.843,75 euros. Assim, técnica e economicamente, é de considerar a arrumação deste assunto por perda parcial” – por forma a ver eliminada a parte em que se afirma que “a R. enviou ao A. a carta datada de 7 de Julho de 2021, cuja cópia se encontra junta a fls. 60”.

Argumenta que o documento em vista da resposta, nem é uma carta (é um relatório pericial), nem foi enviada ao A., como se ajuizou.

A decisão recorrida motivou assim a resposta:

Por sua vez, para a prova dos factos referidos no ponto 18), levou-se em consideração o documento junto a fls. 60, consistente na carta em causa, onde constam esses elementos de facto”.

O documento de fls. 60 aparenta ser um documento interno da Seguradora, com a data de 7/7/2021, reportado ao acidente dos autos, com menção de dados, avaliação e danos verificados no veículo do A. e em cuja conclusão consta: “a considerar para indemnização € 3.245,00”.

Não se mostra endereçado ao A., nem contém qualquer sinal ou evidencia de haver sido enviado ao A. pela R.; facto – o envio – que esta, aliás, não alegou, alegou que elaborou o boletim de perda total (artigo 33.º da contestação) mas não esclarece, nem adiantou, se dele deu conhecimento ao A.

Em vista do enunciado, a impugnação mostra-se justificada; o ponto 18 dos factos provados deverá ser alterado a contento da Autora.

Procede a impugnação da decisão de facto e assim:

- adita-se aos factos provados:

“24. Na sequência do embate referido em 6), ocorreu a queda e a quebra dos óculos que o A. tinha postos a si pertencentes;”

25. O A. procedeu à aquisição de novas armações e lentes para substituir os óculos referidos em A), tendo despendido a quantia € 1.136,00 euros.”

- altera-se o ponto 18 dos factos provados por forma a constar:

“Com data de 7 de Julho de 2021, a R. elaborou o documento de fls. 60, referente ao veículo do A., no qual consta, designadamente: “O veículo sofreu danos extensos quer ao nível mecânico quer na sua estrutura como demonstram as fotos que juntamos. O orçamento estimativa para reparação do veículo, elaborado sem qualquer desmontagem, aponta para valores na ordem dos 9.843,75 euros. Assim, técnica e economicamente, é de considerar a arrumação deste assunto por perda parcial. Conclusão: valor venal € 3.600,00, valor veículo com danos € 355,00, a considerar para indemnização € 3.245,00”.

2. Direito

2.1. Âmbito da indemnização

Por falta de prova, a decisão recorrida não reconheceu ao A. o direito à reparação do prejuízo decorrente da alegada inutilização dos óculos, no valor de € 1.136,00 [(…) ao contrário do que foi alegado pelo A., não ficou demonstrado nos autos que na sequência do embate referido em 6), ocorreu a queda e a quebra dos óculos que o A. tinha postos a si pertencentes. Do mesmo modo, também não ficou demonstrado que o A. procedeu à aquisição de novas armações e lentes para substituir os óculos referidos em A), tendo arcado com o custo total de 1.136,00 euros. Consequentemente, ter-se-á que concluir que não ficou demonstrado nos autos que o A. sofreu o referido dano correspondente à perda dos óculos (…)”, consignou-se, designadamente].

Com êxito, o A. impugnou a decisão de facto que fundamentou este segmento da decisão recorrida e por efeito desta procedência, o A. prova o prejuízo decorrente da quebra dos óculos que usava à data do acidente e o montante que despendeu para os substituir [pontos 24 e 25 dos factos provados supra].

Provando-se que a inutilização dos óculos constitui um prejuízo do A. decorrente do acidente e não se questionando a obrigação da R. de reparar os danos por forma a reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, a indemnização deverá ser calculada por forma a reparar este prejuízo (artigos 563.º e 564.º do Código Civil).

O recurso procede quanto a esta questão.

2.2. Privação do uso do veículo

Depois de considerar o veículo do A. em situação de perda total e de anotar “que o A. apenas utilizava a viatura em causa para deslocações pessoais e de lazer”, a decisão recorrida fixou em € 127,50, a indemnização devida pela privação do uso do veículo, correspondente ao período (17 dias) que mediaram entre a data do acidente (21/6/2021) e a data em que a Ré seguradora terá disponibilizado ao A. o valor da indemnização (7/7/2021), à razão de € 7,50 diários fixados com recurso à equidade.
O A discorda dos pressupostos do cálculo; o valor diário da indemnização, defende, deve ser fixado em € 30,00, correspondente a menos de metade do valor médio do aluguer de um veículo similar ao veículo sinistrado (€ 65,00 a 85,00/dia) e deve abranger o período que medeia entre a data do acidente e o pagamento da indemnização.
Aceitando pacificamente as partes que ao A. é devida uma indemnização pela privação do uso do seu veículo a partir da data do acidente, questiona-se os pressupostos do cálculo desta indemnização, ou seja, o número de dias em que a indemnização é devida e o valor diário da indemnização e isto porque, quanto a este último aspeto, o A não demonstra (não alegou) quaisquer despesas ou prejuízos concretos resultantes da privação do uso do veículo.
Iniciando pelo período de incidência da indemnização, os nºs 1 e 2 do artigo 42.º do D.-L. n.º 291/2007, de 21/8, dispõem o seguinte:
1 - Verificando-se a imobilização do veículo sinistrado, o lesado tem direito a um veículo de substituição de características semelhantes a partir da data em que a empresa de seguros assuma a responsabilidade exclusiva pelo ressarcimento dos danos resultantes do acidente, nos termos previstos nos artigos anteriores.
2 - No caso de perda total do veículo imobilizado, nos termos e condições do artigo anterior, a obrigação mencionada no número anterior cessa no momento em que a empresa de seguros coloque à disposição do lesado o pagamento da indemnização.
(…)”
Ocorrendo a imobilização do veículo sinistrado a empresa de seguros mostra-se obrigada a assegurar um veículo de substituição ao sinistrado a partir da data em que assuma a responsabilidade exclusiva pelo ressarcimento dos danos resultantes do acidente, obrigação que cessa com a reparação do veículo sinistrado, nos casos em que a reparação é técnica e economicamente viável ou com a colocação à disposição do lesado do pagamento da indemnização, nos casos em que o veículo sinistrado se encontra numa situação de perda total.
No caso, não se questiona que o veículo do A., em consequência do acidente, ficou numa situação de perda total [o valor estimado para a reparação dos danos sofridos, € 9.843,76, adicionado do valor do salvado, € 355,00, ultrapassa em 120 % do valor venal do veículo, € 4.000,00 a € 6.000,00 – pontos 15 a 17 dos factos provados e artigo 41.º, n.º 1, alínea c), do D.-L. n.º 291/2007], nem se questiona, como antes afirmado, que a indemnização é devida e que é devida a partir da data do acidente, por se tratarem de questões resolvidas pela decisão recorrida não impugnadas pelas partes, situando-se a divergência na determinação do momento a partir do qual a R. colocou a indemnização à disposição do sinistrado.
Questão de facto, portanto e supra já referenciada por efeito da impugnação da decisão facto e seu conhecimento, importando aqui reafirmar que a Ré não demonstra haver colocado à disposição do A. a indemnização devida pela perda total do veículo.
Não demonstra o facto, nem o alegou, aliás, em perfeita coerência com a posição assumida quanto à reparação dos prejuízos; por imputar ao A culpa exclusiva no acidente, a R. declinou a sua responsabilidade pelo pagamento de qualquer indemnização (cfr. missiva dirigida ao A. em 5/7/2021 junta a fls. 17), defesa que veio a documentar na contestação (cfr. v.g. artigos 23.º e 24.º).
A R. não demonstra haver comunicado ao A. a situação de perda total do veículo; tal não significa, porém, que a indemnização deva ser computada até ao pagamento do valor indemnizatório que vier a ser fixado, como defende o A.
A partir do momento em que o lesado toma conhecimento de que o seu veículo (sinistrado) se encontra numa situação de perda total, passa a saber que tal veículo não irá ser reparado e, com este conhecimento, a expectativa de utilização do veículo (reparação, veículo de substituição ou indemnização pela privação do uso) cessa, sendo substituída pela expectativa de vir a ser compensado através da indemnização pela perda total do veículo.
Assim, v.g. Ac. RG de 19-01-2017, “[a] partir do momento em que se constata a inviabilidade económica da reparação de veículo automóvel (situação de «perda total»), o direito do proprietário deixa de ter por objeto o veículo (sua reparação e veículo de substituição ou indemnização pela privação do uso), passando a ter por objeto a indemnização em dinheiro; e o atraso no pagamento desta é ressarcido pelos juros de mora.”[2]
Na espécie, o A. teve conhecimento que o seu veículo se encontrava em situação de perda total, pelo menos, com a notificação da contestação (artigos 29.º a 35.º) e, por conseguinte, é esta a data relevante, se bem vemos, para efeitos do termo do cômputo da indemnização devida pela privação do uso do veículo sinistrado.
Em resposta a esta questão dir-se-á que a indemnização é devida entre 21/6/2021, data do acidente e 6/1/2022, data em que a contestação se presume notificada ao A. (cfr. refª citius 88749355 e artigos 248.º e 138.º do CPC) e, assim, durante 200 dias.
Privado do veículo que habitualmente usava para afazeres domésticos ou de lazer, designadamente para realizar compras, viagens, visitar os pais e amigos (ponto 23 dos factos provados), dano inquestionavelmente sofrido pelo lesado, mas relativamente indeterminado quanto ao seu exato montante, aberta se mostra a possibilidade de o tribunal computar o dano com recurso à equidade, julgando dentro dos limites que tenha como provados, como prevê e permite o artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil.
Assim se decidiu em 1ª instância por forma a considerar justo e adequado fixar o valor do dano de privação do uso da viatura no montante de € 7,50 euros diários; valor que não merece o acordo do A., o qual aponta para € 30,00 diários correspondente, afirma, a menos de metade do aluguer de viatura com características semelhantes ao veículo sinistrado.
Os valores de aluguer de veículos similares serve de ponto de referência para computar o dano sofrido pelo A. mas claramente extravasam este na medida em que nem o A. utilizaria o veículo (na realização de compras, viagens e visitas aos pais e amigos), todos os dias da semana ou mês, nem preencheria os dias por completo em tais atividades, ou seja, o uso dado ao veículo pelo A. tem, segundo se prova, uma latitude bem mais modesta daquela que resultaria da disponibilidade permanente de um veículo alugado similar ao seu, por isto que, julgando o tribunal com estes limites, temos por justo e adequado o decidido em 1ª instância quanto ao valor diário do dano.
Definidos os pressupostos, o montante da indemnização pela privação do uso do veículo deverá ser fixado em € 1.500,00 [200 x 7,50].
Com este alcance, o recurso procede quanto a esta questão.

3. Custas
Vencidos no recurso, incumbe ao Autor / recorrente e à Ré / recorrida o pagamento das custas fixando-se em ½ a respetiva proporção (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).

Sumário (da responsabilidade do relator – artigo 663.º, n.º 7, do CPC).
(…)

IV. Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto, em julgar parcialmente o recurso e, em consequência:
a) altera-se a decisão recorrida por forma a condenar a ré (…) Seguros, S.A., a pagar ao autor (…), as quantias de € 1.136,00, a título de indemnização do prejuízo decorrente da inutilização dos óculos e de € 1.500,00 a título de indemnização pela privação do uso do veículo;
b) manter, no mais, a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente e Recorrida na proporção de ½.
Évora, 10/11/2022
Francisco Matos
José Tomé Carvalho
Mário Branco Coelho

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[1] Noções Elementares de Processo Civil, pág. 192.
[2] Ac. RG de 19-01-2017 (proc. 1060/16.8T8VCT.G1), in www.dgsi.pt.