Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1856/16.0T8STR.E1
Relator: JOSÉ ANTÓNIO MOITA
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 06/25/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Tendo resultado no caso concreto provada a existência de um crédito da Apelada sobre o Apelante constituído antes do acto de alienação realizado por este último à sua filha (igualmente Co-Ré na causa), assim como o montante concreto da dívida correspondente a tal crédito, além da natureza não pessoal e gratuita de tal acto, que implicou diminuição da garantia patrimonial do crédito e, bem assim, que da prática daquele resultou ainda uma situação de impossibilidade prática de satisfação do crédito por parte da Apelada, é de considerar reunidas as circunstâncias atinentes ao âmbito de aplicação do instituto da impugnação pauliana, bem como os requisitos gerais da mesma previstos no artigo 610.º do CC, impondo-se, pois, confirmar a sentença recorrida.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Apelação nº 1856/16.0T8STR.E1
Comarca de Santarém - Juízo Local Cível de Santarém - Juíz 1

Apelante: (…)
Apelada: (…) e Associados – Sociedade de Advogados

Sumário do Acórdão
(da exclusiva responsabilidade do relator – artigo 663.º, n.º 7, do CPC)

(…)
***
I – RELATÓRIO

A Autora (…) e Associados – Sociedade de Advogados, R.L., pessoa colectiva nº (…), com sede na Av. (…), n.º 35, 9.º, 1050–118 Lisboa, intentou a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra os réus:
1. (…), contribuinte fiscal n.º (…), residente na Quinta do (…), Casais da (…), (…) e

2. (…), contribuinte fiscal n.º (…), residente na Rua (…), n.os 10, 11-E, 1750-171, Lisboa,
pedindo que seja declarada a ineficácia, em relação à Autora, da doação celebrada, entre os Réus e registada em 29/04/2016, referente aos seguintes imóveis:
A) Fracção autónoma destinada a comércio designada pela letra “B”, correspondente ao Rés-do-Chão esquerdo, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, denominado “Lote 23”, sito no lugar de (…), União das Freguesias do Cartaxo e Vale da Pinta, concelho do Cartaxo, descrito na Conservatória do Registo Predial do Cartaxo sob o n.º (…) da extinta freguesia do Cartaxo e inscrito na matriz predial urbana da União das Freguesias do Cartaxo e Vale da Pinta sob o artigo (…);
B) Fracção autónoma destinada a habitação designada pela letra “E”, correspondente ao Segundo Andar Direito, com um lugar de estacionamento situado na cave, com saída ao nível dos rés-do-chão, directamente para o exterior e uma arrecadação no sótão, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, denominado “Lote 23”, sito no lugar de (…), União das Freguesias do Cartaxo e Vale da Pinta, concelho do Cartaxo, descrito na Conservatória do Registo Predial do Cartaxo sob o n.º (…) da extinta freguesia do Cartaxo e inscrito na matriz predial urbana da União das Freguesias do Cartaxo e Vale da Pinta sob o artigo (…);

C) Fracção autónoma destinada a habitação designada pela letra “F”, correspondente ao Segundo Andar Esquerdo, com um lugar de estacionamento situado na cave, com saída ao nível dos rés-do-chão, directamente para o exterior e uma arrecadação no sótão, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, denominado “Lote 23”, sito no lugar de (…), União das Freguesias do Cartaxo e Vale da Pinta, concelho do Cartaxo, descrito na Conservatória do Registo Predial do Cartaxo sob o n.º (…) da extinta freguesia do Cartaxo e inscrito na matriz predial urbana da União das Freguesias do Cartaxo e Vale da Pinta sob o artigo (…).
Alegou, em síntese, que prestou diversos serviços jurídicos ao Réu, no montante global de € 39.206,25, que este, apesar de instado, não pagou. Acrescentou que no dia 29/04/2016, o Réu doou a sua quota-parte em três prédios à Ré, ficando com o seu usufruto e que em consequência desta doação o Réu ficou sem quaisquer bens em seu nome susceptíveis de responder pelo pagamento da dívida a si, o que pretendeu com a realização deste negócio.
Citados os Réus, a Ré não contestou nem constituiu mandatário.
Já o Réu contestou, por impugnação, alegando que acordou a prestação de serviços, que não correspondem ao invocado pela Autora, com os Srs. Drs. (…) e (…) e não com aquela, acrescentando que, aquando da apresentação da nota de honorários, não aceitou o montante peticionado por não corresponder ao previamente acordado, mais alegando que não foi deduzido a tal montante o valor de € 2.000,00 entregue anteriormente por si e bem assim que sobre a nota de honorários foi aplicado IVA à taxa de 23% quando esse imposto deveria ter sido aplicado à taxa de 6%, dado que beneficiou de protecção jurídica.
Disse ainda que a Autora teve conhecimento da permuta que esteve na base da doação outorgada a favor da Ré assim como de que ele, Réu, iria ficar apenas com o usufruto das fracções e a Ré com a sua nua propriedade, esclarecendo que para além do valor obtido com a venda e permuta da Quinta do (…), com a doação ficou detentor do usufruto dos três prédios, de valor superior ao montante peticionado pela Autora, não se verificando com o negócio qualquer impossibilidade para esta obter a satisfação do seu crédito ou agravamento dessa possibilidade, acabando por pugnar pela improcedência da acção – cfr. fls.87 e ss.
*
Realizou-se audiência prévia, com prolação de despacho saneador, identificação do objecto do litígio e enunciação dos temas de prova, tendo sido admitidos os meios de prova e designada data para realização da audiência final.
Realizada tal audiência foi, subsequentemente a ela, proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, julgo a presente acção intentada pela autora (…) e Associados – Sociedade de Advogados, R.L., parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência:
1) Declaro a ineficácia, em relação à autora, do acto de doação realizado em 29/04/2016 pelo réu (…) à ré (…) identificado na alínea H) dos factos provados, relativamente às fracções autónomas identificadas na alínea D) dos factos provados, podendo a autora executá-los no património da ré, no que for necessário para pagamento dos seus créditos, no montante de € 16.600,00 (dezasseis mil e seiscentos euros), acrescida de juros à taxa legal de 4%, contados desde a data da sentença proferida no âmbito do Proc. n.º 105/14.0TBCTX-A até integral pagamento, acrescida de IVA à taxa de 6% sobre o montante global de honorários, no valor de € 18.600,00 (dezoito mil, seiscentos euros).

2) Custas pelas partes na proporção do decaimento, que se fixam em 1/5 para a autora e 4/5 para os réus – artigos 527º, n.ºs 1 e 2 e 607.º, n.º 6, ambos do NCPC e artigo 6.º do RCP, por referência à Tabela I-A anexa.

Após trânsito, comunique à Conservatória do Registo Predial do Cartaxo – artigos 3.º, n.º 1, alínea c), 8.º-B, n.º 3, alínea a) e 8.º-C, n.º 3, todos do Código do Registo Predial.
Registe e notifique”.
*
Inconformado com a decisão, o Co-Réu (…) apresentou requerimento de recurso alinhando as seguintes Conclusões:
A – Dos factos dados como provados, nomeadamente das alíneas W e X, resulta que o acto impugnado – a escritura celebrada em 29 de Abril de 2016 – constitui um acto acessório ou instrumental da escritura celebrada em 17 de Março de 2016.
B - Tudo começou com uma negociação transposta para o contrato promessa de permuta e compra e venda celebrado em 4 de Janeiro de 2016, em que os RR. permutaram um imóvel de que eram comproprietários, o R. (…) a sua metade com o usufruto de três fracções e a R. (…) a sua metade com a nua propriedade dessas três fracções, de acordo com a alínea X dos factos provados.
C - Em 17 de Março de 2016 foi então outorgada a escritura referente ao negócio prometido naquele contrato promessa, onde, devido a um erro no pagamento das guias de imposto, a permuta foi efectivada atribuindo 2/7 ao R. (…) e 5/7 à R. (…), conforme o exposto na alínea W dos factos provados.
D - Assim sendo, a escritura outorgada em 29 de Abril de 2016 – o acto impugnado na presente acção – mais não é que uma correcção da escritura de 17 de Março de 2016, que não espelhava o negócio ajustado, e mais não fez do que repor a situação que deveria ter saído desta escritura.
E - A impugnação pauliana insere-se no conjunto de meios colocados à disposição dos credores para evitarem a frustração da posição de segurança que constitui a garantia patrimonial, enquanto expectativa jurídica do direito de executar o património do devedor para satisfação dos seus créditos.
F – Encontra-se provado na presente acção que ao R. (…) sempre e só caberia o direito de usufruto vitalício das três fracções, sendo estes direitos de usufruto os únicos a fazer parte do seu património para satisfação dos seus créditos.
G - A A. não impugnou o acto principal – a escritura de 17 de Março de 2016 – pelo que não pode atacar o acto acessório ou instrumental – a escritura de 29 de Abril de 2016 – e, ao fazê-lo, age em abuso de direito.
H - Existe abuso de direito quando alguém, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos apodicticamente ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante.
I - É o que acontece no caso vertente, em que a A. prescinde de atacar o acto principal para atacar o acessório.
J - Por outro lado, também não se encontram preenchidos todos os pressupostos para a procedência de uma impugnação pauliana e que são, de acordo com o artigo 610.º e seguintes do Código Civil:
a) A realização pelo devedor de um acto que diminua a garantia patrimonial do crédito e não seja de natureza pessoal;
b) Que o crédito seja anterior ao acto, ou sendo posterior, ter sido ele dolosamente praticado com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor;
c) Que o acto seja de natureza gratuita ou, sendo oneroso, ocorra má-fé tanto do alienante como do adquirente;
d) Que resulte do acto a impossibilidade do credor obter a satisfação integral do crédito ou agravamento dessa impossibilidade.
K – O n.º 1 do artigo 612.º do Código Civil exige, para a procedência da impugnação pauliana, que o acto seja de natureza gratuita ou, sendo oneroso, ocorra má-fé tanto do alienante como do adquirente.
L - Um acto oneroso pressupõe atribuições patrimoniais de ambas as partes, ligadas por um nexo de correspectividade, segundo a sua vontade, enquanto um acto gratuito cria, para uma só, uma vantagem patrimonial sem nenhum equivalente.
M - O acto impugnado, a escritura pública de 29 de Abril de 2016 denominada “Doações”, não encerra uma simples doação de um sujeito para outro, mas na realidade uma permuta de doações, em que ambos os sujeitos dão e recebem, pelo que é um acto oneroso.
N - Cada uma das partes, fez uma atribuição patrimonial que considera retribuída ou contrabalançada pela atribuição da contraparte. Cada uma das prestações ou atribuições é o correspectivo (a contrapartida) da outra, pelo que, se cada parte obtém da outra uma vantagem. O R. (…) doa à R. (…) o direito a 2/7 indivisos de que era titular nas fracções autónomas identificadas na alínea D dos factos provados, pelo valor de € 39.644,35 e a R. (…) doa ao R. (…) o direito de usufruto vitalício nessas mesmas fracções, pelo valor de € 41.620,58.
O - Assim sendo, tendo o acto natureza onerosa, para proceder a impugnação pauliana, a A. teria de ter provado a má-fé, tanto de alienante como de adquirente, ou seja, de ambos os RR, o que não logrou fazer.
P - Efectivamente, resulta do artigo 612.º do Código Civil que o acto oneroso só está sujeito à impugnação quando devedor e terceiro estejam de má-fé, e sendo esta a consciência do prejuízo causado ao credor, verifica-se que há, seguramente, sempre dolo, directo ou, pelo menos, necessário.
Q - Ora, o dolo dos RR. foi exactamente o que não ficou provado na acção em crise; pelo contrário, ficou provado que os RR. se limitaram a corrigir um acto que havia sido escriturado deficientemente.
R - Não se encontra preenchido outro dos pressupostos, designadamente o que impõe que resulte do acto a impossibilidade do credor obter a satisfação integral do crédito ou agravamento dessa impossibilidade.
S - Afere-se tal impossibilidade através da avaliação da situação patrimonial do devedor logo após a prática do acto a impugnar, sendo o peso comparativo do montante das dívidas e do valor dos bens conhecidos do devedor, susceptíveis de penhora, que indicará se desse acto resultou a mencionada impossibilidade.
T - Se o montante das dívidas for superior ao valor dos bens do devedor, verificar-se-á uma lesão da garantia patrimonial do credor que permite a utilização da impugnação pauliana; mas se for igual ou inferior, deve considerar-se que aquela garantia não foi afectada pelo acto praticado, não se verificando um prejuízo que justifique qualquer reacção.
U - Analisando o caso vertente, acontece que 2/7 das fracções B, E e F têm o valor patrimonial de € 39.644,35 (ou seja, fracção B = VPT € 32.058,75 + fracção E = VPT € 54.178,25 + fracção F = VPT € 52.518,25, num valor total de € 138.755,25 x 2/7), conforme se extrai da alínea D dos factos provados, nomeadamente do documento de fls. 46 e seguintes que é dado por reproduzido.
V - Sendo o valor dos três direitos de usufruto de montante superior, ou seja, de € 41.626,58, de acordo com as regras constantes do artigo 13.º do Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis, e uma vez que a idade do R. e usufrutuário à data do acto impugnado era menor que 70 anos e maior que 65 anos, conforme se extrai da alínea I dos factos provados, nomeadamente do documento de fls. 215 que é dado por reproduzido.
W - Donde se conclui que, com o acto impugnado, o R. não agravou ou impossibilitou a satisfação integral do crédito da A.; pelo contrário, no seu património entraram bens ou direitos de valor superior aos que saíram.
X - Só por inércia da A., e não por um acto doloso do R., não se encontram arrestados os direitos de usufruto vitalício do R. relativos às fracções em causa, com a inerente possibilidade de convolação em penhora, penhoras essas que se encontrariam registadas previamente às penhoras referidas nas alíneas L, N e P dos factos provados, registadas em Dezembro de 2017.
Y - Com esta decisão, violou o tribunal a quo os artigos 334.º, 610.º e 612.º, todos do Código Civil”.
*
A Apelada apresentou resposta à motivação recursiva alinhando as seguintes conclusões:
“A. Cabe, antes de mais dizer que andou bem a sentença recorrida relativamente aos factos considerados provados e não provados e sua subsunção ao direito.
B. Nesta o Tribunal a quo declarou procedente, por provada, a impugnação pauliana intentada pela A., ora Recorrida, na qual declarou a ineficácia do ato doação realizado pelo R., Recorrente, relativamente à seguintes frações:
C. Fracção autónoma destinada a comércio designada pela letra “B”, correspondente ao Rés-do-Chão esquerdo, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, denominado “Lote 23”, sito no lugar de (…), União das Freguesias do Cartaxo e Vale da Pinta, concelho do Cartaxo, descrito na Conservatória do Registo Predial do Cartaxo sob o n.º (…) da extinta freguesia do Cartaxo e inscrito na matriz predial urbana da União das Freguesias do Cartaxo e Vale da Pinta sob o artigo (…);
D. Fracção autónoma destinada a habitação designada pela letra “E”, correspondente ao Segundo Andar Direito, com um lugar de estacionamento situado na cave, com saída ao nível dos rés-do-chão, directamente para o exterior e uma arrecadação no sótão, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, denominado “Lote 23”, sito no lugar de (…), União das Freguesias do Cartaxo e Vale da Pinta, concelho do Cartaxo, descrito na Conservatória do Registo Predial do Cartaxo sob o n.º (…) da extinta freguesia do Cartaxo e inscrito na matriz predial urbana da União das Freguesias do Cartaxo e Vale da Pinta sob o artigo (…);
E. Fracção autónoma destinada a habitação designada pela letra “F”, correspondente ao Segundo Andar Esquerdo, com um lugar de estacionamento situado na cave, com saída ao nível dos rés-do-chão, directamente para o exterior e uma arrecadação no sótão, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, denominado “Lote 23”, sito no lugar de (…), União das Freguesias do Cartaxo e Vale da Pinta, concelho do Cartaxo, descrito na Conservatória do Registo Predial do Cartaxo sob o n.º (…) da extinta freguesia do Cartaxo e inscrito na matriz predial urbana da União das Freguesias do Cartaxo e Vale da Pinta sob o artigo (…).
F. O Recorrente recorreu desta decisão, alegando abuso de direito por parte da A., Recorrida, uma vez que o ato impugnado não é o ato principal da doação, mas sim um ato acessório.
G. Posição com a qual a Recorrida discorda, uma vez que a data da escritura de doação é de 29/04/2016, independentemente do que motivou a celebração nesta data.
H. A doação de 29/04/2016, registada na Conservatória do Registo Predial da freguesia do Cartaxo a 12/05/2016 é o único ato que releva para estes efeitos.
I. Assim, o ato impugnado é a doação de 29/04/2016, e não a permuta anterior a esta pelo qual o Recorrente ficou com 2/7 da propriedade dos imóveis, na qual ainda teria bens que poderiam responder pela dívida.
J. A consequência da doação impugnada foi a diminuição da liquidez do Recorrente para responder à dívida perante a Recorrida, conforme ficou bem provado, salvo melhor entendimento, na sentença recorrida, pressupostos que importam para a aplicação do instituto da impugnação pauliana.
K. O Recorrente alega em segundo lugar que não se encontra verificado o pressuposto do ato gratuito necessário para a procedência da impugnação pauliana.
L. Para tal, afirma que o ato de doação impugnado não é uma simples doação, mas uma permuta de doações.
M. Efetivamente cada uma das partes fez uma doação, com pressupostos próprios destes, mas constituindo negócios jurídicos autónomos.
N. Basta, desde logo, atentar para o facto de a doação ter sido com dispensa de colação e por conta da quota disponível da Ré (…), filha do Recorrente.
O. A doação do usufruto por parte desta não tem salvo melhor entendimento, qualquer influência na caracterização do negócio jurídico unilateral que o Recorrente, por sua vez, fez.
P. O ato impugnado cuja ineficácia foi declarada pelo Tribunal a quo, contrariamente àquilo que o Recorrente alega, cinge-se à doação à R., de 2/7 dos quais era proprietário nas frações supra referidas, cujo único objetivo foi dissipar património.
Q. Independentemente da motivação do Recorrente quanto à doação propriamente dita, para o presente, importa apenas que estamos perante um negócio jurídico gratuito, o que preenche o pressuposto do artigo 612. º, n.º 1, do Código Civil.
R. Mesmo que assim não fosse e se considerasse que se tratava de um ato oneroso, hipótese que não se aceita e não faz qualquer sentido, mas se considera apenas por hipótese de raciocínio, estariam sempre, o Recorrente e a sua filha (terceiro), de má-fé.
S. Isto porque, conforme ficou expresso na petição inicial, o Recorrente nunca mais entrou em contacto com a Recorrida para pagar a dívida de honorários, sempre lhe omitiu que já havia conseguido dinheiro suficiente para a pagar e procurou, com a doação das suas quotas partes de propriedade nos imóveis em causa, dissimular o seu património para que deixasse de ter quaisquer bens suscetíveis de responder pela dívida.
T. Também não pode deixar de se considerar que a R. (…), sua filha, sabia que a doação em causa tinha apenas como objetivo dissimular o património do Recorrente.
U. Para além da relação direta de parentesco entre os RR. (pai e filha), mais se diz que se a intenção do Recorrente fosse que a R. (…) ficasse com a propriedade total dos imóveis em causa, poderia tê-lo deixado expresso logo no ato de permuta da Quinta do (…).
V. Por fim, alega o Recorrente que o pressuposto previsto no artigo 610.º, alínea b), do Código Civil que do ato de disposição impugnado resulte a “(…) impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa impossibilidade” também não se encontra preenchido.
W. Uma vez que o Recorrente, que é detentor do direito de usufruto das frações referidas supra, alega capacidade para responder pela dívida perante a Recorrida.
X. Ora, sobre as fracções mencionadas recai já uma penhora para pagamento de dívida exequenda no âmbito de outro processo executivo, conforme se verifica nos factos provados K) a P) da sentença recorrida.
Y. Mesmo que não haja uma impossibilidade total de satisfação do seu crédito, a satisfação ficou absolutamente enfraquecida.
Z. Isto porque há um conjunto de factos, dados como provados na sentença recorrida e não impugnados pelo Recorrente, para além do ato da doação impugnado, que indiciam um enfraquecimento das garantias patrimoniais do Recorrente.
AA. Nomeadamente no âmbito do procedimento cautelar de arresto não ter sido possível encontrar saldos bancários que permitissem garantir o pagamento da dívida; e no âmbito da ação executiva instaurada pela Recorrida contra o Recorrente com vista ao pagamento da quantia devida a título de honorários constatou-se que o próprio direito de usufruto sobre as frações incidia penhora anterior que determinou a sustação da execução.
BB. Não havendo outros bens propriedade do Recorrente, conforme também ficou provado na sentença recorrida, a satisfação do crédito da Recorrida encontra-se impossibilitado ou gravemente diminuído, encontrando-se, como tal, preenchido o pressuposto do artigo 610.º, alínea b), do Código Civil.
CC. Desta forma, contrariamente à pretensão do Recorrente, a sentença recorrida andou bem, uma vez que se encontram preenchidos todos os pressupostos para ação de impugnação pauliana previstos nos artigos 610.º a 612.º do Código Civil, devendo ser mantida”.
*
Foi proferido despacho que admitiu o recurso e ordenou a subida do mesmo a este Tribunal Superior para apreciação.
O recurso é o próprio e foi admitido adequadamente quanto ao modo de subida e efeito.
*
Correram Vistos.
*
II – QUESTÕES OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do disposto no artigo 635º, nº 4, conjugado com o artigo 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil (doravante apenas CPC), o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso, salvo no que concerne à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas pertinentes ao caso concreto e quando se trate de matérias de conhecimento oficioso que, no âmbito de recurso interposto pela parte vencida, possam ser decididas com base em elementos constantes do processo, pelo que no caso concreto constitui objecto deste recurso:
1- Reapreciação de mérito, aferindo do preenchimento dos pressupostos legais da impugnação pauliana;
2- Aferir de eventual abuso de direito por parte da Apelada.
*
III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Consta da sentença recorrida o seguinte:

“II. FUNDAMENTAÇÃO
Da discussão da causa resultaram os seguintes
Factos Provados
A) A autora é uma sociedade de advogados.

B) O réu mandatou os Srs. Drs. (…) e (…), sócios da autora, para a prestação de diversos serviços jurídicos no período compreendido entre Junho de 2013 e 19/11/2015, designadamente no âmbito do Proc. n.º 105/14.0TBCTX.

C) Na sequência da conclusão dos processos judiciais em que patrocinou o réu, a autora, em 20/11/2015, emitiu uma nota de despesas e honorários com saldo a seu favor no valor de € 39.206,25, dos quais € 7.331,25 correspondiam a IVA, cfr. doc. de fls. 41 e 42, cujo teor aqui se dá por reproduzido, a qual foi enviada ao réu por e-mail de 23/11/2015, e na sequência da qual autora e réu trocaram as comunicações constantes de fls. 43, 44, 58 a 60 dos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
D) Por escritura pública de 17/03/2016, o réu, por si e na qualidade de procurador da ré, cada um na qualidade de proprietários, na proporção de metade cada um, do prédio urbano, destinado a habitação, composto por uma casa de cave, rés-do-chão, primeiro e segundo andares, garagem, casa de caseiro, armazém e logradouro, sito no lugar da (…), Quinta do (…), Casais da Amendoeira, freguesia de Pontével, concelho do Cartaxo, descrito na Conservatória do Registo Predial do Cartaxo sob o n.º (…), inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…), com o valor patrimonial de € 285.560,00, declarou ceder por si o direito a um meio no referido prédio (inscrito a seu favor na CRP mediante a Ap. …, de 10/12/1991) e na qualidade de representante da ré ceder o direito a um meio desta (inscrito a seu favor na CRP mediante a Ap. …, de 27/11/2015) no referido prédio a (…) – Imobiliária, Lda., e em troca a sociedade declarou ceder ao réu o direito a dois sétimos em cada uma das seguintes fracções e entregar-lhe a quantia de € 128.645,65 e ceder à ré o direito a cinco sétimos em cada uma das seguintes fracções e entregar-lhe a quantia de € 69.179,10:
i. fracção autónoma destinada a comércio designada pela letra “B”, correspondente ao Rés-do-Chão esquerdo, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, denominado “Lote 23”, sito no lugar de (…), União das Freguesias do Cartaxo e Vale da Pinta, concelho do Cartaxo, descrito na Conservatória do Registo Predial do Cartaxo sob o n.º (…) da extinta freguesia do Cartaxo e inscrito na matriz predial urbana da União das Freguesias do Cartaxo e Vale da Pinta sob o artigo (…);
ii. fracção autónoma destinada a habitação designada pela letra “E”, correspondente ao Segundo Andar Direito, com um lugar de estacionamento situado na cave, com saída ao nível dos rés-do-chão, directamente para o exterior e uma arrecadação no sótão, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, denominado “Lote 23”, sito no lugar de (…), União das Freguesias do Cartaxo e Vale da Pinta, concelho do Cartaxo, descrito na conservatória do Registo Predial do Cartaxo sob o n.º (…) da extinta freguesia do Cartaxo e inscrito na matriz predial urbana da União das Freguesias do Cartaxo e Vale da Pinta sob o artigo (…);
iii. fracção autónoma destinada a habitação designada pela letra “F”, correspondente ao Segundo Andar Esquerdo, com um lugar de estacionamento situado na cave, com saída ao nível dos rés-do-chão, directamente para o exterior e uma arrecadação no sótão, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, denominado “Lote 23”, sito no lugar de (…), União das Freguesias do Cartaxo e Vale da Pinta, concelho do Cartaxo, descrito na Conservatória do Registo Predial do Cartaxo, sob o nº (…) da extinta freguesia do Cartaxo e inscrito na matriz predial urbana da União das Freguesias do Cartaxo e Vale da Pinta sob o artigo (…), cfr. doc. de fls.46 e ss, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
E) Por decisão não transitada em julgado (em virtude da oposição deduzida pelo aqui réu) proferida em 27/05/2016 no âmbito do procedimento cautelar de arresto intentado pela aqui autora contra o aqui réu, e que constitui o Apenso B dos presentes autos, para garantia dos serviços mencionados em B, foi decretado o arresto dos seguintes bens do segundo:

1) Contas bancárias até à quantia de € 39.206,25;

2) Quota parte de 2/7 em nome do Réu (…) nas fracções autónomas identificadas em D), cfr. doc. de fls. 197 e ss, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

F) Em 23/06/2016, a autora intentou contra o aqui réu acção de honorários peticionando a condenação deste no pagamento da quantia de € 39.206,25, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento, devida a título de honorários pelos serviços prestados pela primeira e mencionados em B), que correu termos na Comarca de Santarém, Instância Central de Santarém, Secção Cível, J3.

G) A referida acção correu termos sob o Apenso A ao mencionado Proc. n.º 105/14.0TBCTX.

H) Por escritura pública celebrada em 29/04/2016, o réu declarou doar à ré, que aceitou, e por conta da sua quota disponível, com dispensa de colação, o direito a 2/7 indivisos de que era titular nas fracções autónomas identificadas em D), e a ré declarou doar ao réu, que aceitou, por conta da quota disponível e com dispensa de colação, o direito de usufruto vitalício nessas mesmas fracções, no valor de € 41.620,58, cfr. doc. de fls. 153 e seguintes, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

I) A ré é filha do réu, cfr. doc. de fls.215, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

J) No âmbito do Proc. n.º 105/14.0TBCTX-A, por sentença transitada em julgado em 02/05/2019, o réu foi condenado a pagar à autora, a título de honorários, a quantia de € 16.600,00, acrescida de juros à taxa legal de 4%, contados desde a data da sentença até integral pagamento, acrescida de IVA à taxa de 6% sobre o montante global de honorários, no valor de € 18.600,00, cfr. doc. de fls. 382 e ss, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
K) A titularidade da fracção autónoma designada pela letra “B” identificada no ponto i. da alínea D) encontra-se registada a favor da ré, mediante as Aps. (…), de 21/03/2016 e (…), de 12/05/2016, e o usufruto da mesma a favor do réu mediante a Ap. (…), de 12/05/2016.

L) Sobre a referida fracção encontra-se registada, mediante a Ap. (…), de 11/12/2017, penhora de usufruto a favor de (…) e (…), para garantia do pagamento da quantia exequenda de € 160.907,59, no âmbito do Proc. n.º 3602/17.2T8ENT, cfr. doc. de fls. 458 e ss, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

M) A titularidade da fracção autónoma designada pela letra “E” identificada no ponto ii. da alínea D) encontra-se registada a favor da ré, mediante as Aps. (…), de 21/03/2016 e (…), de 12/05/2016, e o usufruto da mesma a favor do réu mediante a Ap. (…), de 12/05/2016.

N) Sobre a referida fracção encontra-se registada, mediante a Ap. (…), de 11/12/2017, penhora de usufruto a favor de (…) e (…), para garantia do pagamento da quantia exequenda de € 160.907,59, no âmbito do Proc. n.º 3602/17.2T8ENT, cfr. doc. de fls. 453 e ss, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

O) A titularidade da fracção autónoma designada pela letra “F” identificada no ponto iii. da alínea D) encontra-se registada a favor da ré, mediante as Aps. (…), de 21/03/2016 e (…), de 12/05/2016, e o usufruto da mesma a favor do réu mediante a Ap. (…), de 12/05/2016.

P) Sobre a referida fracção encontra-se registada, mediante a Ap. (…), de 11/12/2017, penhora de usufruto a favor de (…) e (…), para garantia do pagamento da quantia exequenda de € 160.907,59, no âmbito do Proc. n.º 3602/17.2T8ENT, cfr. doc. de fls. 463 e ss, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
Q) A autora instaurou contra o réu acção executiva para pagamento das quantias mencionadas em J) a correr termos sob o n.º 105/14.0TBCTX.1.

R) No âmbito do mencionado processo foi penhorado o usufruto das fracções mencionadas em J), L) e N) mediante a Ap. (…), de 21/02/2018.

S) … E ordenada a sustação da execução e virtude das penhoras mencionadas em L), N) e P).

T) No âmbito do processo referido em D) e com vista ao arresto dos das contas bancárias, apenas foram apurados os seguintes saldos relativos a contas bancárias em nome do réu: € 47,36, € 212,80 e € 7,07.

U) Em consequência da doação, mostra-se agravada a possibilidade da autora obter a satisfação integral do seu crédito.

V) Após a doação realizada a favor da filha, aqui ré, o réu ficou sem qualquer bem imóvel cuja propriedade esteja registada em seu nome, susceptível de responder pelas dívidas à autora.

W) A aquisição pelo réu de 2/7 das fracções mencionada em D) ocorreu apenas por questões técnicas e fiscais com que foi deparado no momento da celebração da escritura e de forma a não inviabilizar o acto.

X) A doação mencionada em H) apenas teve em vista dar cumprimento ao previamente acordado com a (…) – Imobiliária, Lda., na cláusula 4.ª do documento escrito constante de fls.130 e ss, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

Factos Não Provados
Com relevância para a decisão da causa, não se provou que:
1) O réu pagou à autora as quantias mencionadas em J).
2) Com a doação referida em H), os réus pretenderam dissipar o património do réu, actuando de forma deliberada e conscientes do prejuízo que estes actos iram causar à autora.

3) Ao outorgar a escritura de doação das suas quotas-partes nos imóveis em causa, o réu agiu com o propósito de deixar de ter património que pudesse responder pela dívida à autora.

4) Desde 04/01/2016 que a autora tinha conhecimento da celebração pelo réu do documento escrito junto a fls.130 e ss, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

5) Para além da titularidade dos 2/7 sobre as referidas fracções autónomas ou o usufruto sobre as mesmas, o réu é titular de outros bens de valor igual ou superior ao montante devido à autora”.
**
IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1- Dispõe o artigo 610º, do Código Civil (doravante apenas CC), atinente aos requisitos gerais da impugnação pauliana o seguinte:
“Os actos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito e não sejam de natureza pessoal podem ser impugnados pelo credor, se concorrerem as circunstâncias seguintes:
a) Ser o crédito anterior ao ato ou, sendo posterior, ter sido o ato realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor;
b) Resultar do ato a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou o agravamento dessa impossibilidade”.
Por seu turno, resulta do artigo 611º do mesmo diploma legal que:
“Incumbe ao credor a prova do montante das dívidas e ao devedor ou a terceiro interessado na manutenção do ato a prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor”.
No artigo seguinte (612º), prevê-se no nº 1 que:
“O ato oneroso só está sujeito à impugnação pauliana se o devedor e o terceiro tiverem agido de má-fé; se o ato for gratuito, a impugnação procede, ainda que um e outro agissem de boa-fé”, sendo certo que no nº 2 se clarifica que:
“Entende-se por má-fé a consciência do prejuízo que o ato causa ao credor”.
Estabelece, ainda, o artigo 614º, do dito CC, no seu nº 1, que:
“Não obsta ao exercício da impugnação o facto de o direito do credor não ser ainda exigível“.
Seguindo a lição de Mário Júlio de Almeida Costa (“Direito das Obrigações”, Almedina, 12ª edição, 2018), concluímos que no âmbito das chamadas relações imediatas, ou seja quando o credor visa (como sucede no caso concreto), atingir uma primeira transmissão, o exercício da impugnação judicial reduz-se a três requisitos, sendo dois deles (que descriminaremos infra como a) e b)), gerais e um terceiro (c)), relativo apenas a determinadas hipóteses, a saber:
a) Anterioridade do crédito, exigindo-se que o crédito se mostre anterior ao acto a impugnar.
Todavia, este pressuposto sofre uma importante e justificada restrição na medida em que também poderá ser impugnado um acto anterior ao crédito, quando se prove que esse acto foi realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor.
“Deve entender-se que tal dispositivo impõe tanto o dolo do devedor como a participação dolosa do terceiro, ainda que sob a forma de puro conhecimento da intenção fraudulenta daquele …” (obra citada, pág. 861);
b) Impossibilidade, ou agravamento da impossibilidade, de satisfação integral do crédito:
Nesta sede, afigura-se correcto acompanhar o seguinte raciocínio:
“Em regra, a fórmula legal reconduzir-se-á ao critério de o acto produzir ou agravar a situação patrimonial deficitária do devedor”, sem embargo de se conceberem situações em que tal coincidência não se verifique tais como “[…] quando o devedor continue solvente, mas o credor não possa de facto obter a satisfação do seu crédito, «maxime» dada a impossibilidade ou dificuldade prática de executar os restantes bens do devedor […] (idem, pág. 862-863).
No campo jurisprudencial registe-se, pelo seu interesse, o Acórdão do STJ de 20/05/2014 (Proc.º 471/2002, in Sumários, 2014, pág. 313), que relacionou o prejuízo na impugnação pauliana com a impossibilidade prática de satisfação do crédito por parte do credor admitindo ainda a existência de má-fé sempre que haja intenção ou consciência dessa impossibilidade;
c) Má fé por parte do devedor e do terceiro:
Este último requisito, conforme acima salientado, não se exige em todas as situações, mas apenas no caso de estarmos perante um acto oneroso, tornando-se necessária a má-fé cumulativa do devedor e do terceiro adquirente, dispensando-se tal pressuposto se o acto for gratuito procedendo nestes casos a impugnação pauliana mesmo que devedor e terceiro se encontrem de boa-fé.
Continuando a acompanhar o raciocínio de Almeida Costa … “Se o acto é oneroso e as partes estão de boa-fé – inexistindo, assim, qualquer suspeita de fraude –, considera-se que não há razão de censura ao devedor, nem se afiguraria justo privar o terceiro dos benefícios do acto. Tanto mais que no património do devedor entrou um equivalente económico do valor que dele saiu […].
Diversamente, se o acto reveste natureza gratuita, no património do devedor não entra uma contrapartida” (ibidem, pág. 864).
Na jurisprudência destacamos aqui e designadamente quanto ao preenchimento do requisito da má-fé, o Acórdão do STJ de 13/01/2015 (Proc.º 1381/12, in Sumários, Janeiro/2015, pág. 12), que sustentou afigurar-se essencial que o devedor e o terceiro tenham a consciência do prejuízo que a operação causa ao credor, sendo bastante a mera representação da possibilidade da produção do resultado danoso em consequência da conduta do agente.
Sobre as características do acto a impugnar e destacando ainda o pensamento de Almeida Costa na obra que temos vindo a referir, salientamos a seguinte passagem:
“Cumpre distinguir os verdadeiros actos de renúncia do devedor – pelos quais ele faz sair direitos do seu património – das simples inacções que se limitam a impedir a entrada de direitos. Aqueles constituem objecto de impugnação pauliana; estas possibilitam a sub-rogação do credor ao devedor” (pág. 857, em nota de pé de página).
Realizada a necessária incursão normativa, doutrinária e jurisprudencial sobre o instituto da impugnação pauliana e seus requisitos é tempo de baixarmos ao campo factual a fim de, perante a análise da factualidade provada e não provada nos autos, a qual não foi objecto de impugnação, nos termos do disposto no artigo 640º do CPC, por parte do Apelante ou da Apelada, decidirmos da sorte deste recurso.
Antes, porém, há que relembrar que do ponto de vista probatório recaia sobre a Apelada o ónus de provar a titularidade de um crédito sobre o Apelante e montante da dívida deste perante si, bem como a prática entre este último e terceiro (concretamente a Ré …), posteriormente à contração de tal crédito, de um acto jurídico de natureza não pessoal e gratuito, concretamente de uma doação de bens.
Ao invés, sobre o Apelante recaia o ónus de provar que possui bens penhoráveis de valor igual ou superior ao do montante da dívida para com a Apelada, por forma a afastar o requisito atinente à impossibilidade, ou agravamento da impossibilidade, para a Apelada de vir a obter a satisfação integral do seu crédito em resultado do acto jurídico praticado entre o Apelante e a Ré (…).
Da matéria de facto assente na sentença recorrida, mormente dos factos elencados sob as alíneas A) a C) F) e J) dos “Factos Provados” resulta inequívoco que a Apelada, que é uma sociedade de advogados, possui um direito de crédito sobre o Apelante (…) a título de honorários devidos pela prestação de diversos serviços jurídicos ao mesmo por parte de dois ilustres causídicos, a favor de quem aquele emitiu procuração forense, no âmbito de contrato de mandato judicial, os quais são sócios da Apelada.
Na verdade, do articulado de contestação do Apelante decorre, sem margem para rebuços, que o mesmo aceitou expressamente estar em dívida relativamente aos ditos honorários, pelo que a circunstância de aquele não ter aceite, por o considerar excessivo, o montante pecuniário liquidado na nota de honorários que lhe foi enviada em 23/11/2015 não significa que o direito de crédito não se tenha gerado nessa data, ou seja antes do trânsito em julgado da sentença condenatória proferida na acção de honorários nº 105/14.0TBCTX-A, o qual se operou apenas em 02/05/2019, constituindo aquela o meio de prova do concreto montante da dívida do Apelante para com a Apelada.
Na realidade, tal discrepância sobre o concreto valor em dívida, evidenciado na troca de missivas referidas na parte final do facto provado na sentença recorrida sob a alínea C), não pode, em concreto, afectar a constituição e a existência do crédito, sendo certo que de acordo com o disposto expressamente no nº 1 do artigo 614.º do CC, mesmo a não exigibilidade do crédito no momento da impugnação pauliana não obsta ao exercício desta.
Sobre esta temática e em apoio ao que acabamos de exprimir referiu Luís Meneses Leitão (“Garantias das Obrigações”, Almedina, 2ª ed, 2008, pág. 75), o seguinte:
“É apenas relevante a data da constituição do crédito e não a data em que o credor obteve um título executivo sobre o devedor, dado que essa circunstância não se inclui entre os pressupostos da impugnação pauliana”.
Resulta, outrossim, igualmente provado na sentença recorrida o acto jurídico de doação do Apelante à Ré (…) formalizado pela escritura pública celebrada em 29/04/2016, ou seja, em data posterior a 23/11/2015 pelo que podemos considerar preenchido o requisito legal da anterioridade do crédito da Apelada sobre o Apelante (…).
Ainda nesta sede impõe-se clarificar que estando, ou não, preenchidos os restantes requisitos necessários à procedência da impugnação pauliana suscitada na presente acção, reapreciação que iremos continuar a fazer infra, certo é que temos como assente que o acto impugnado pela Apelada é o acto de doação acima mencionado não sendo de apreciar nesta sede recursiva se a Apelada deveria antes ter impugnado paulianamente o acto jurídico formalizado na escritura realizada em 17/03/2016, a que alude a alínea D) dos factos provados na sentença recorrida, por virtude de alegadamente se tratar do “acto principal” relativamente ao acto jurídico escriturado em 29/04/2016, alegadamente tido pelo Apelante como “acessório ou instrumental” daquele.
De facto, tal questão da alegada acessoriedade, ou instrumentalidade, que poderia enquadrar questão excepcional, não foi suscitada expressamente nos articulados, concretamente na contestação, por parte do ora Apelante, que a veio invocar pela primeira vez nesta sede recursiva, tratando-se, como tal e por isso, de questão nova.
Assim, não se traduzindo em questão de conhecimento oficioso não haverá que conhecer da mesma uma vez que o recurso, em regra, reaprecia questões apreciadas em instância inferior não lhe cabendo apreciar questões novas não apreciadas anteriormente naquela, sendo certo que, a nosso ver, a análise da factualidade dada como assente sob as alíneas W) e X) dos factos considerados provados na sentença recorrida não permite concluir inequivocamente no sentido da invocada acessoriedade ou instrumentalidade, tanto mais que não resultou assente que tenha sido suscitado qualquer vicio relativamente à escritura pública, validamente outorgada, celebrada em 17/03/2016, a que melhor se alude na alínea D) dos factos considerados provados na sentença ora impugnada.
Prosseguindo na reapreciação de mérito temos como certo que o acto jurídico formalizado na escritura publica celebrada em 29/04/2020, melhor definido sob a alínea H) dos factos considerados provados na sentença recorrida, não possui natureza pessoal, pois não teve como objecto matéria atinente ao estado das pessoas, tal como sucede com actos como o casamento a perfilhação, o divórcio ou a separação judicial de bens, que até podem ter reflexos no património dos respectivos sujeitos, mas que dada a sua inquestionável natureza pessoal escapam sempre ao âmbito de aplicação da impugnação pauliana.
Por outro lado, ainda em sede de análise do âmbito de aplicação do instituto da impugnação pauliana, resulta do cotejo dos factos considerados como provados na sentença recorrida sob as alíneas H) e V) que o acto de doação em apreço implicou diminuição da garantia patrimonial de anterior crédito já acima identificado de que é titular a Apelada.
Na verdade, mesmo aceitando que o acto jurídico descrito na mencionada alínea H) comporta não apenas uma doação realizada pelo Apelante, mas sim uma troca de doações, ou doações recíprocas, entre o mesmo e a sua filha (Ré nesta causa), …, conforme sustenta, aliás, o Apelante, certo é que o usufruto sobre as três frações, cuja titularidade foi, efectivamente, registada a favor do Apelante como decorre dos factos considerados provados na sentença recorrida sob as alíneas K) , M) e O), por se tratar de direito de gozo de coisa alheia ou direito alheio, traduzido no concreto poder de usar, fruir e administrar a(o) mesma(o) (cfr. artigos 1439º e 1446º do CC), não deve ser considerado verdadeiramente como elemento integrante da garantia patrimonial de créditos nomeadamente na acepção prevista no corpo do artigo 610º do CC, que aponta para coisa (ou direito) pertença ou na titularidade do devedor.
Em suma, é de entender, por um lado, que a doação feita pelo Apelante à filha (…), nos termos validamente outorgados através da escritura celebrada em 29/04/2016, do direito a 2/7 indivisos, de que aquele era titular, de cada uma das três frações melhor identificadas nos factos provados na sentença recorrida sob a alínea D), por conta da sua quota disponível e com dispensa de colação, implicou inequivocamente uma diminuição da garantia patrimonial do anterior crédito da Apelada e bem assim, por outro lado, que a doação do usufruto sobre tais frações realizada pela Ré (…) ao Apelante não se traduziu numa verdadeira e efectiva contrapartida patrimonial apta a obviar à diminuição da mencionada garantia patrimonial do crédito da Apelada.
Destarte, se conclui necessariamente no sentido de que o acto jurídico de doação impugnado paulianamente no caso em apreço reveste características de acto gratuito e não de acto oneroso.
Aqui chegados, tendo como provadas no caso concreto as circunstâncias respeitantes ao âmbito de aplicação da impugnação pauliana, impõe-se reapreciar o requisito que falta analisar atinente à impossibilidade, ou agravamento da impossibilidade, de satisfação integral do crédito da Apelada.
Conforme se alcança da análise dos factos considerados como não provados na sentença recorrida, mormente sob o ponto 5), o Apelante não logrou fazer prova de ser titular de outros bens penhoráveis além dos 2/7 indivisos, ou do usufruto, sobre as três frações autónomas descritas na alínea D) dos factos considerados como provados na sentença recorrida.
Acresce, por outro lado, que da factualidade considerada provada na sentença recorrida sob as alíneas T), U) e V), resulta à saciedade que a realização do acto de doação escriturado em 29/04/2016 gerou para a Apelada uma situação de impossibilidade prática de obter a satisfação integral do seu crédito.
E ainda que considerássemos, o que não defendemos conforme já o salientamos supra, que a doação do direito de usufruto sobre as três frações autónomas constituía uma contrapartida patrimonial dos 2/7 cedidos, também por doação, sobre as ditas frações funcionando, assim, aquele usufruto como verdadeira garantia patrimonial de tal crédito da Apelada, a verdade é que também resultou assente sob os pontos L), N) e P) dos elenco dos factos provados na sentença recorrida que na acção executiva nº 3602/17.2T8ENT, movida contra o ora Apelante por (…) e (…), foi penhorado tal usufruto tendo o registo dessa penhora sido feito em 11/12/2017, ou seja em data anterior ao registo da penhora, ocorrido em 21/02/2018, concretizada sobre o mesmo direito e realizada a favor da ora Apelada no âmbito da execução que a mesma moveu contra o Apelante na acção de honorários com o nº 105/14.0TBCTX.1 (e que motivou a sustação desta última), conforme decorre da factualidade descrita sob as alíneas Q), R) e S) dos factos considerados provados na sentença recorrida.
Aqui chegados, impõe-se, pois, reconhecer estarem preenchidos no caso concreto, todos os requisitos da impugnação pauliana.
Como refere Luís de Meneses Leitão (obra acima citada, pág. 79):
“Assim se o credor provar o montante das dívidas e não for feita pelo devedor ou por terceiro a prova da existência de bens penhoráveis no património do devedor, a impugnação pauliana será naturalmente julgada procedente”.

2- Por fim, urge abordar a questão do abuso de direito invocada pelo Apelante nas suas conclusões recursivas.
Dispõe o artigo 334º do CC, epigrafado precisamente “Abuso de direito”, o seguinte:
“É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Esta norma consagra o principio do abuso de direito cuja essência pode ser precisada ou através do recurso a uma teoria subjectiva, que coloca a tónica na intenção do agente, ou objectiva, que se debruça sobre o alcance objectivo do comportamento do agente, ou ainda através de fórmulas intermédias que procuram combinar um critério com o outro.
A redacção do artigo 334º do CC aceitou a concepção objectiva do abuso de direito não sendo necessário que o agente tenha consciência da contrariedade do seu acto à boa fé, aos bons costumes ou ao fim social ou económico do direito exercido, bastando que tal acto revele essa contrariedade, mas num contexto de abuso nítido, dado que o titular do direito tem de ter excedido manifestamente os limites impostos ao seu exercício (neste sentido Mário Júlio de Almeida Costa, obra acima citada, págs. 84 a 86).
A boa fé revela-se, antes demais, como principio geral de direito, sendo que numa perspectiva jurídico-positiva exprime-se através de cláusulas gerais, traduzindo o apelo que o legislador faz directamente a tal principio na regulamentação de certos domínios, existindo no direito obrigacional outras como por exemplo os bons costumes. Tais cláusulas gerais, a par dos conceitos indeterminados, destinam-se a conferir ao julgador uma generosa margem de liberdade de apreciação em cada caso concreto.
De todo o modo, agir segundo os ditames da boa fé pressupõe que os membros de uma comunidade jurídica adoptem “uma linha de correcção e probidade, tanto na constituição de relações entre eles como no desempenho das relações constituídas […] que se exprimem na virtude de manter a palavra e a confiança, de cada uma das partes, proceder honesta e lealmente, segundo uma consciência razoável, para com a outra parte, interessando as valorações do círculo social considerado, que determinam expectativas dos sujeitos jurídicos” (obra citada, pág. 122-123).
Já no que tange ao conceito dos “bons costumes”, tratando-se igualmente de cláusula geral a preencher casuisticamente através do labor jurisprudencial, sempre será de entende-lo como um “conjunto de regras de convivência, de práticas de vida, que, num dado ambiente e em certo momento, as pessoas honestas e correctas aceitam comummente” (idem, pág. 88), pelo que o exercício de um direito será contrário aos mesmos quando tiver laivos de imoralidade ou de violação das normas básicas impostas pelo decoro social.
No que concerne ao último conceito determinativo da legitimidade ou ilegitimidade do exercício de um direito atinente precisamente ao “fim social ou económico” deve salientar-se que se prende com a função instrumental própria que cada direito possui, a qual justifica a sua atribuição ao titular e define o seu exercício.
A propósito do exposto veja-se pelo seu interesse, entre outros, o Acórdão do STJ de 19/10/2005 (in Acórdãos Doutrinais, 531º - 549).
Verificando-se abuso de direito e uma vez que a norma constante do artigo 334º do CC apenas alude a ilegitimidade do exercício abusivo de direito compete ao juiz determinar casuisticamente as consequências sancionatórias que derivam de tal acto abusivo, podendo sancionar-se, “[…] por um lado, com a nulidade, a anulabilidade, a inoponibilidade ou a resolubilidade, nos termos gerais, do próprio acto ou negócio abusivo e por outro lado, com o restabelecimento de actos ou negócios conexionados, recusando-se a acção de anulação, concedendo-se a excepção de dolo […]” (ibidem, pág. 90).
Ora, no caso concreto e perante os factos considerados como provados na sentença recorrida não é possível sustentar que a Apelada tenha agido em abuso de direito, devendo recordar-se que o Apelante pretendeu sustentar tal com base na circunstância da Apelada ter impugnado paulianamente o acto escriturado em 26/04/2016, quando na sua perspectiva deveria ter impugnado antes o acto escriturado em 17/03/2016, questão essa que não abordamos pelas razões expostas supra (tratou-se de questão nova e de natureza excepcional colocada apenas no recurso).
Improcedem, assim, na totalidade, as conclusões recursivas, sendo de manter a sentença recorrida.
*
V – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal em negar provimento ao recurso interposto pelo Apelante (…) e, em consequência, decidem:
a) Confirmar a sentença recorrida;
b) Fixar custas a cargo do Apelante, nos termos do disposto no artigo 527.º, n.os 1 e 2, do CPC.
*
Évora, 25/06/2020
(José António Moita, relator - Assinatura electrónica certificada no canto superior esquerdo da primeira folha do acórdão).
(Silva Rato, 1º Adjunto - Votou o acórdão em conformidade por comunicação à distância, nos termos do disposto no artigo 15º-A do Dec.-Lei nº 10-A/2020 de 13/03, aditado pelo artigo 3º do Dec.-Lei nº 20/2020, de 01/05).
(Mata Ribeiro, 2º Adjunto - Votou o acórdão em conformidade por comunicação à distância, nos termos do disposto no artigo 15º-A do Dec.-Lei nº 10-A/2020 de 13/03, aditado pelo artigo 3º do Dec.-Lei nº 20/2020, de 01/05).