Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
226/13.7TBETZ-A.E1
Relator: FERNANDO CARDOSO
Descritores: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
RECURSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO
COMPETÊNCIA MATERIAL
COMPETÊNCIA TERRITORIAL
Data do Acordão: 06/12/2015
Votação: DECISÃO SINGULAR
Texto Integral: S
Sumário: I - Não parece ter sido intenção do legislador provocar desaforamento de causas em casos como o presente, por virtude da alteração da competência territorial anteriormente fixada.
II - Na transição de processos pendentes e para efeitos do disposto no artigo 104º, nº 5, da LOSJ, deve entender-se por respetivas instâncias locais” as secções de instância local que, na nova estrutura judiciária, tenham, no mesmo município (o do tribunal abrangido pela extinção), competência material idêntica, sem consideração das novas regras de competência territorial.
Decisão Texto Integral:
* *
O Digno Magistrado do Ministério Público junto da Instância Local de Fronteira veio suscitar a resolução do conflito negativo de competência surgido entre a Meritíssima Juiz daquela Instância Local e a Meritíssima Juiz da Instância Local de Estremoz para o conhecimento do recurso de impugnação judicial em que é recorrente A,. Lda., pela prática de uma contraordenação prevista e punida pelos artigos 9.º n.º 1 e 65.º n.º 1 alínea a) do Regulamento Municipal da Publicidade de Sousel, uma vez que cada uma das Magistradas das referidas instâncias locais imputou à outra a competência para a realização do julgamento, declinando a própria.

Entende o Digno Magistrado do Ministério Público que a competência para o conhecimento do recurso deve ser deferida à Instância Local de Estremoz, secundando o entendimento da Meritíssima Juíza da instância local de Fronteira.

Foi cumprido o disposto no art.º 36.º do Código de Processo Penal.

O Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto, nesta sede, emitiu o respetivo Parecer, no sentido de que o presente conflito deve ser resolvido atribuindo-se a competência para o efeito em causa à instância local de Estremoz.

Não se torna necessário recolher outras informações e provas.

Cumpre decidir.

Com o presente incidente pretende-se, em síntese, obter decisão que resolva definitivamente a quem deferir a competência para o conhecimento do recurso de impugnação judicial supra referido.

Não existem divergências entre as Exmªs Magistradas em conflito quanto ao quadro de facto essencial traçado para a solução deste e quanto ao trânsito em julgado das respetivas decisões.

Dos autos extraem-se as seguintes ocorrências com relevância para a decisão:

A.- A arguida A., Lda., depois de condenada pela prática de uma contraordenação, interpôs recurso de impugnação judicial para o então tribunal da comarca de Estremoz, onde foi recebido em 24-09-2012.

B.- Por seu despacho de 03-02-2015, na sequência de promoção do Ministério Público e de audição do arguido, a senhora juiz 1 da Instância Local de Estremoz, da comarca de Évora, considerando que os factos que sustentam a contraordenação terão ocorrido no Município de Sousel, que, nos termos do disposto no artigo 33.º e no anexo II da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, conjugado com o artigo 104.º e anexo III do Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27 de Março, passou a fazer parte da circunscrição do Tribunal da Comarca de Portalegre, declarou aquela Instância Local territorialmente incompetente para a tramitação subsequente dos autos e determinou a remessa dos autos ao tribunal competente.

C.- Recebidos os autos na Instância Local de Fronteira – Secção de Competência Genérica, a Meritíssima Juiz, proferiu em 23 de Março de 2015, o despacho que, em parte, a seguir se transcreve:

[“A Mm.ªJuiz da Instância Local de Estremoz remeteu a esta Instância Local os presentes autos, julgando-se incompetente territorialmente para apreciar a causa.

Foi recebido o recurso apresentado pela A. em 24.09.2012 (fls. 101).

Atenta a remessa dos autos a esta Instância Local após trânsito do despacho de incompetência relativa, importa analisar se estamos perante uma situação que i) em primeiro lugar configure um caso de incompetência relativa, e consequentemente e ii) em função de tal decisão apreciar o rumo e iter processual que aqueles devem tomar.

Vejamos.

Dispõe o art.61.º do CPC: Quando ocorra alteração da lei reguladora da competência considerada relevante quanto aos processos pendentes, o juiz ordena oficiosamente a sua remessa para o tribunal que a nova lei considere competente.

Acresce o disposto no art. 38.º da Lei da Organização Judiciária (aprovada pela Lei n.º62/2013, de 26 de Agosto):

1 - A competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos previstos na lei.

2- São igualmente irrelevantes as modificações de Direito, excepto se for suprimido o órgão a que a causa estava afecta ou lhe for atribuída competência de que inicialmente carecia para o conhecimento da causa.

A aludida LOSJ foi regulamentada pelo Regime aplicável à Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (ROFTJ), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 49 /2014, de 27 de Março.

Nos termos do disposto nos art. 104.º e 105.º do mesmo diploma legal pode ler-se:

1. Os processos que em cada uma das áreas se encontrem pendentes nos atuais tribunais de comarca, à data da instalação dos novos tribunais, transitam para as secções de competência especializada das instâncias centrais, de acordo com as novas regras de competência material e territorial, com exceção dos processos pendentes nos juízos de competência específica cível relativos às matérias da competência das secções de comércio, os quais transitam para as correspondentes secções da instância local. (...)

5. Os processos pendentes nas atuais comarcas, não abrangidos pelas regras previstas nos números anteriores, transitam, à data da instalação dos novos tribunais, para as respetivas instâncias locais. (...).

Acrescentando-se no art. 105.ºdo aludido DL n.º 49 /2014, de 27 de Março:

Na transição de processos pendentes, os aspetos não especialmente regulados no artigo anterior serão objeto de deliberação (...) do Conselho Superior da Magistratura.

Consoante resulta do teor do citado art. 104.º, n.º 5 do ROFTJ os processos pendentes nas comarcas à data da entrada em vigor daquele diploma 1egal transitam para as respectivas instâncias locais.

Acresce ainda que, de acordo com os melhores critérios hermenêuticos, do confronto entre a tese vertida a propósito dos Tribunais de Comarca e o inciso normativo respeitante aos n.º 2, 3, 4 do art. 104.º do ROFTJ, resulta claramente que a intenção do legislador foi precisamente a de não proceder à remessa de processos entre comarcas distintas.

Na verdade, atento o período de tempo entretanto transcorrido desde a entrada em vigor da nova organização judiciária, a questão já foi objecto de pronúncia pelo STJ.

A este respeito, o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça em situação análoga (no caso de instância especializada que sucedeu a tribunal de competência especializada e que, na sucessão legal da LOSJ e do ROFTJ, "perdeu" ou "ganhou" competência territorial sobre outros concelhos) tem sido precisamente a de que não foi determinada a transição dos processos pendentes, registe-se, daqueles que estavam pendentes à data de início de vigência da nova organização judiciária porque não tinham de o ser, não se tratando aqui de circunstância susceptível de ver aplicação no disposto no art. 61.º do CPC uma vez que os art. 104.º e 105.º do ROFTJ consubstanciam lei especial que afasta a aplicação da regra geral:

(...) Ocorrendo alteração da lei reguladora da competência considerada relevante quanto aos processos pendentes impõe-se sempre definir e determinar o Tribunal para o qual a processo deve transitar, não relevando, a existir sobre este ponto conflito, o transito em julgado da primeira decisão, como sucede nos casos de incompetência relativa, visto que está aqui em causa um interesse público no plano da organização judiciária e não um mero interesse particular, que sobreleva, tratando-se de incompetência relativa, ponto este salientado (...)

Trata-se, portanto, de saber qual o Tribunal de entre os novos Tribunais competentes em razão da matéria e do território para o qual deve transitar - se é que o deve - o presente processo (processo pendente). Note-se que nenhuma das entidades em conflito põe em causa que o Tribunal (...) para as novas causas seja o competente em razão do território, tratando-se aqui, no entanto, de ponderar a eventual transição de processos pendentes. (...)

A aludida deliberação (do CSM) admite a transição apenas para “as Instâncias Centrais Especializadas que, no mesmo município, tenham idêntica competência material sem consideração das regras de competência territorial"; ela afasta a transição naqueles casos em que o processo, ao abrigo das aludidas regras, deveria ser remetido para o tribunal de destino inserido noutro município, afastamento resultante do facto de ser manter instalado no município de origem o tribunal ou juízo especializado.

Pretende-se com tal deliberação evitar desafectar o processo do tribunal onde ele se encontrava o que pressupõe o entendimento de que a transição de processos pendentes se efectua, de acordo com as regras de competência material e territorial, quando se trate de municípios em que os tribunais de origem perderam competência nessa jurisdição material.

Assim sendo, a partir de uma leitura da aludida deliberação com o sentido que se perspectiva, afasta-se o regime que as regras de competência em razão da matéria e do território determinariam, para se continuar a manter a competência no tribunal onde o processo corria termos, não se efectuando in casu a transição do processo (…)

Importa chamar a atenção para o facto de estarmos num domínio transitório e, por conseguinte, esta solução restringe-se a processos pendentes e, no caso particular, vale apenas para se evitar a transferência dos autos para um tribunal que nem sequer está inserido na mesma unidade territorial (...). (sublinhado nosso)

(Decisão do STJ, 7.ª Secção, prolatada pelo Exmo. Sr. Vice-presidente do STJ, Cons. Salazar Casanova, de 13 de Fevereiro de 20l5; vide também e no mesmo sentido Decisões do STJ de 12.02.2015, 2.ª secção; e de 13.02.2015, 6.ª Secção)
*
Para além dos preceitos legais supra citados e da doutrina expendida nas decisões acima aludidas, não podemos ainda deixar de fazer referência à deliberação do CSM decorrente do prescrito no art. 105.º do ROFTJ.

Tal deliberação foi tomada pelo Plenário em 27 de Maio de 2014 e dela constam as seguintes orientações genéricas, para o que releva:

c) Consideram-se “correspondentes secções de instância local” e “respectivas instâncias locais” para os efeitos do art. 104.º, n.ºs 1 e 5, do RLOSJ, as secções de instância local que na nova estrutura judiciária tenham, no mesmo município, competência material idêntica. (sublinhado nosso)

g) Nos casos omissos os processos transitam para as instâncias centrais ou locais competentes de acordo com as novas regras de competência material e territorial.

i)No que respeita às operações de transição por atribuição, a que alude a deliberação do CSM de 9 de abril de 2014, a definição do destino concreto na unidade de processos da nova estrutura judiciária acorrerá imediatamente após conhecimento do movimento judicial.

Tais orientações genéricas foram concretizadas por posterior despacho do Exmo. Senhor Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura, publicitado no respectivo sítio da Internet em 25 de Junho de 2014, o qual determinou fossem cumpridas as seguintes regras:

a)A excepção da parte final do artigo 104.º, n.º1, do RLOSJ, não incluí os juízos de competência especializada cível nem os tribunais de competência genérica;

b)(…)

c)Consideram-se “correspondentes secções de instância local” e “respetivas instâncias locais”, para os efeitos do artigo 104.º, n.ºs 1 e 5, do RLOSJ, as secções de instância local que na nova estrutura judiciária tenham, no mesmo município, competência material idêntica. (sublinhado nosso)

f) Nos casos omissos, os processos pendentes em tribunais ou juízos especializados, instalados em município que perde competência nessa jurisdição material, transitam para as instâncias centrais ou locais competentes de acordo com as novas regras de competência material e territorial.

g) Nos casos omissos, os processos transitam para as instâncias centrais ou locais competentes de acordo com as novas regras de competência material e territorial.

Sendo certo que, por referência ao expresso na deliberação do CSM acima aludida se clarificou cristalinamente que correspondentes “secções de instância local” e “respectivas instâncias locais” se reporta a secções de instância local que na nova estrutura judiciária tenham, no mesmo município, competência material idêntica, ou seja, no sentido por nós acima propugnado.

Por consequência, de acordo com o despacho exarado pelo Exmo. Vice-Presidente do CSM, e tal como dali resulta expresso, nas operações de transição de processos apenas ocorreram transferências de processos para as instâncias locais que mantêm a competência dentro do mesmo município, não sendo transferidos os processos pendentes à data da entrada em vigor do ROFTJ, para as instâncias locais cuja sede (própria ou da nova comarca) se situasse fora do mesmo município.

Aliás, embora não seja vinculativo, por se tratar de decisão administrativa, do ponto de vista teleológico e histórico, a deliberação do órgão de gestão da magistratura Judicial reporta a intenção da construção da norma legal, a qual tem subjacente o já aludido interesse público, e não critérios de natureza meramente formal, como sejam os da competência territorial.

Neste ponto cumpre ainda salientar que, tal como resulta do preâmbulo e estudos preparatórios da LOSJ e do ROFTJ, existiu grande proximidade entre o legislador e o CSM na elaboração destas normas, sendo que a deliberação do CSM, de resto de cariz explicativo, atenta a prescrição do art.105.º do ROFTJ, interpreta fielmente os motivos subjacentes à edição daquelas normas e, bem assim, as razões subjacentes de interesse público, no sentido de se pretender garantir uma estabilidade intraprocessual no tratamento das questões pelos tribunais que, à data da propositura da acção, eram (mantendo-se) os competentes.

Do exposto conclui-se que as normas legais de relevo bem como todos os elementos interpretativos, as decisões do STJ e, bem assim, as normas de natureza administrativa respeitantes à aplicação da lei e operacionalização da nova organização judiciária vão num só (e no mesmo sentido) - o de não desafectar processos pendentes de uma Comarca para outra - nos casos em que não se verificou alteração da competência material e em abono de princípios de estabilidade judiciária (incluindo para as partes e sujeitos processuais) e economia processual.

Cumpre, pois, referir que a regra geral determina que a competência para apreciar determinada causa fixa-se no momento da sua propositura, sendo irrelevantes as alterações subsequente, a menos que seja suprimido o órgão a que a causa estava afecta au lhe for atribuída competência de que inicialmente carecia.

Verificando-se que, no caso concreto a Instância Local de Estremoz e a Instância Local de Fronteira mantêm precisamente a mesma competência material (tal como decorre do disposto nos art. 77.º e 92.º do ROFTJ já mencionado), em nenhuma delas suprimido órgão jurisdicional nem foi atribuída competência de que antes carecia.

Os art. 104.º e 105.º da LOFTJ referem expressamente os moldes da transição dos processos pendentes pelos Tribunais de Comarca a que sucederam Instâncias Locais, pelo que não estamos já perante uma omissão ou lacuna legislativa.

O que consta do n.º5 do art. 104.º do RLOSJ, reportado a Tribunais de Comarca e, determinando a sua transição para respectiva, leia-se pertencente, referente, recíproca Instância Local não oferece dúvidas de interpretação, para além de que, quer na deliberação do CSM, quer no despacho supracitado se determinou que a transição de processos apenas ocorrerá (ria) dentro do município em que se encontra sedeado o tribunal de origem, ou seja, que não há lugar a transição de processos nos casos em que o tribunal de origem se situe em município diferente do putativo tribunal de destino (ou seja, do tribunal criado pela Lei n.º 62/2013).

Apenas nos casos omissos os processos transitariam para as competentes Instâncias Locais nos termos da nova LOSJ e do ROFTJ.

Como acima observámos da exaustiva disciplina legal, e aqui repetimos, não estamos perante um caso omisso.

Não se discute que todos os processos instaurados a partir da entrada em vigor dos diplomas referidos (e relativos ao município de Sousel sejam da competência da Instância Local de Fronteira.

A questão está precisamente em saber se pode entender-se que estamos perante uma circunstância que releve, para efeitos de aplicação da excepção da parte final do art. 38.º, n.º 2 da LOSJ, para alteração da competência territorial que, por via da regra estabelecida na primeira parte do preceito legal, se fixa no momento da propositura da acção.

No fundo e em suma, o que resulta da boa interpretação do preceituado nos art. 104.º e 105.º do ROFTJ, tal como doutamente explanado nas decisões do STJ acima elencadas é que não estamos perante uma situação de incompetência territorial, relativa, pelo que não releva o conflito a seu respeito nem sequer o trânsito da decisão em causa;

Trata-se de uma situação de interesse público, tutelada pelas regras dispostas nos art. 104.º e 105.º do ROFTJ, de natureza especial, que afastam a aplicabilidade do regime regra e, por sua remissão, implicam que seja tido em conta pelos juízes o determinado a seu respeito pela acima citada deliberação do CSM e consequente despacho do Exmo. Vice - Presidente do CSM, também já aludido.

O presente processo não transitou para esta Instância Local ao abrigo e em cumprimento daquelas regras legais.

Não foi remetido porque não tinha de o ser, uma vez que a "unidade orgânica" a que pertence a Instância Local de Estremoz é Évora e aquela em que se integra a Instância Local de Fronteira é Portalegre, resultando assim, e claramente, que tratamos de municípios diversos e que os processos pendentes à data de início da vigência da nova lei da organização judiciária, naqueles termos, transitam (e transitaram) dos respectivos Tribunais de Comarca para as competentes Instâncias Locais que, relativamente aos mesmos, mantêm o poder jurisdicional e a competência – fixada à data da propositura da acção.

No fundo, seguir a boa doutrina do STJ nas decisões acima referenciadas, implica considerar que i) não são aplicáveis as regras gerais do CPC por existir norma especial que disciplina a situação (art. 104.º e 105.º do ROFTJ) e ii) não ocorreu qualquer modificação relevante que determinasse a "perda ou supressão da competência" da Instância Local de Estremoz, por referência ao extinto Tribunal Judicial da Comarca de Estremoz, uma vez que, de acordo com aqueles normativos e a interpretação que lhes foi dada no âmbito do CSM, não se determinou a sua remessa a esta Instância Local (por não se inserirem no mesmo concelho).

Assim, tudo visto e ponderado, nos termos dos art, 38.º, n.º2 da LOSJ, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, conjugada com o art. 104.º, n.º5 do ROFTJ, aprovado pelo Decreto-lei n.º 49/2014, de 27 de Março, determina-se a remessa destes autos à Instância Local de Estremoz.

Notifique.”

D. Os despachos em causa transitaram em julgado.

***
Como decorre dos autos, os factos integrantes da contraordenação imputada à arguida terão ocorrido na área do Município de Sousel.

Até à entrada em vigor, em 1 de Setembro de 2014, do DL n.º49/2014, de 27 de Março, que veio regulamentar a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (LOSJ), as localidades de Cano, Casa Branca, Santo Amaro e Sousel, do Município de Sousel, pertenciam à comarca de Estremoz – cf. mapa anexo ao DL. 186-A/99, de 31 de Maio, que regulamentou a Lei n.º 3/99, de 3 de Janeiro (LOFTJ).

Com a entrada em vigor da LOSJ e do diploma que a regulamentou, surgiram novas matrizes na reorganização judiciária do território, com extinção das comarcas então existentes (artigo 117.º, n.º3 do Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27 de Março) e integração das áreas por elas abrangidas em áreas territoriais de maior dimensão, em regra coincidentes com a dos distritos administrativos, tendo o Município de Sousel passado a integrar a comarca de Portalegre, do mesmo passo que o Município de Estremoz e a respectiva área territorial passou a integrar a comarca de Évora.

Os atuais tribunais de comarca estão desdobrados em instâncias e estas em secções (cf. art. 81.º da LOSJ).

Em Estremoz foi criada uma instância local, constituída por uma secção de competência genérica, com competência territorial no Município de Estremoz (cf. Mapa III, anexo ao DL 49/2014).

Na comarca de Portalegre, e concretamente no município de Fronteira, foi criada uma instância local – Secção de competência genérica – cuja área de competência territorial passou a abranger os municípios de Alter do Chão, Avis, Fronteira, Monforte e Sousel.

A questão que se coloca é a determinar, perante a alteração levada a cabo pelos supra referidos diplomas, qual o tribunal competente para conhecer do recurso de impugnação judicial.

Regra geral, a competência para conhecer do recurso pertence ao tribunal em cuja área territorial se tiver consumado a infração

Essa a determinação do RGCO, artigo 61.º, n.º1.

À data em que foi recebido em juízo o recurso interposto [24-09-2012], não há dúvidas de que o tribunal competente para conhecer do recurso, em termos de competência territorial e material, era o tribunal da comarca de Estremoz.

A solução da questão aqui aportada terá de passar pela aplicação das disposições transitórias, referentes à transição de processos pendentes, estabelecidas nos artigos 104.º e 105.º do citado Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27 de Março (ROFTJ).

Interessa-nos, em particular, o n.º5 do artigo 104.º, convocado pela Meritíssima Juíza da instância local de Fronteira, cuja interpretação constitui a chave para a resolução do conflito aqui em causa.

Resulta dessa disposição legal que “Os processos pendentes nas atuais comarcas (as que foram extintas, entenda-se), não abrangidos pelas regras previstas nos números anteriores, transitam, à data da instalação dos novos tribunais, para as respectivas instâncias locais”.

A competência das instâncias locais vem prevista no artigo 130.º da LOSJ, onde se inclui o julgamento dos recursos das decisões das autoridades administrativas [al. e) do n.º1, em conjugação com o artigo 112.º do mesmo diploma].

O Conselho Superior da Magistratura, em deliberação tomada em 27 de Maio de 2014, ao abrigo do preceituado nos artigos 105.º do ROFTJ e 182.º da LOSJ, aprovou genericamente as linhas de interpretação do artigo 104.º do ROFTJ, no que tange à transição dos processos pendentes, que, no que ao caso releva, são as seguintes:

«a) A exceção da parte final do artigo 104.º, n.º 1, do RLOSJ, não inclui os juízos de competência especializada cível nem os tribunais de competência genérica.
(…)

c)Consideram-se “correspondentes secções de instância local” e “respetivas instâncias locais”, para os efeitos do artigo 104.º, n.ºs 1 e 5, do RLOSJ, as secções de instância local que na nova estrutura judiciária tenham, no mesmo município, competência material idêntica.
(…)
e) O artigo 104.º, n.º 4, do RLOSJ, refere-se a todos os tribunais e juízos especializados, ocorrendo a transição de processos apenas dentro do município em que se encontra sedeado o tribunal ou juízo de origem.

f) Nos casos omissos, os processos pendentes em tribunais ou juízos especializados, instalados em município que perde competência nessa jurisdição material, transitam para as instâncias centrais ou locais competentes de acordo com as novas regras de competência material e territorial.

g) Nos casos omissos, os processos transitam para as instâncias centrais ou locais competentes de acordo com as novas regras de competência material e territorial.
(…)”
Na sequência da referida deliberação do CSM, o Exmo. Senhor Vice-Presidente, em despacho concretizador, determinou que na transição dos processos pendentes fosse observado o seguinte:

a) A exceção da parte final do artigo 104.º, n.º 1, do RLOSJ, não inclui os juízos de competência especializada cível nem os tribunais de competência genérica;

b) O artigo 104.º, n.º 1, do RLOSJ, determina a aplicação das novas regras de competência em razão do valor pelo que as ações declarativas cíveis de valor compreendido entre € 30.001,00 e € 50.000,00, pendentes nos juízos de competência especializada cível e de competência genérica transitarão para as correspondentes secções locais;

c) Consideram-se “correspondentes secções de instância local” e “respetivas instâncias locais”, para os efeitos do artigo 104.º, n.ºs 1 e 5, do RLOSJ, as secções de instância local que na nova estrutura judiciária tenham, no mesmo município, competência material idêntica;
(…)

e) O artigo 104.º, n.º 4, do RLOSJ, refere-se a todos os tribunais e juízos especializados, ocorrendo a transição de processos apenas dentro do município em que se encontra sedeado o tribunal ou juízo de origem;

f) Nos casos omissos, os processos pendentes em tribunais ou juízos especializados, instalados em município que perde competência nessa jurisdição material, transitam para as instâncias centrais ou locais competentes de acordo com as novas regras de competência material e territorial;

g) Nos casos omissos, os processos transitam para as instâncias centrais ou locais competentes de acordo com as novas regras de competência material e territorial.
(…)

i)No que respeita às operações de transição por atribuição, a que alude a deliberação do CSM de 9 de abril de 2014, a definição do destino concreto na unidade de processos da nova estrutura judiciária ocorrerá imediatamente após conhecimento do movimento judicial.”

Quid juris?

A interpretação jurídica constitui a uma atividade intelectual, respeitando esta à determinação da mensagem normativa que emerge de determinado texto legal, devendo concretizar-se numa reconstituição, a partir do texto – e estamos a parafrasear o artigo 9.º, n.º 1 do Código Civil –, do pensamento legislativo, tendo em conta, sobretudo, a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias de elaboração da lei e as condições específicas da sua aplicação.

Neste caso, na compreensão (na interpretação) do texto do artigo 104.º, n.º5, do ROSJ, é significativa a utilização da expressão “respectivas instâncias locais”.

Do exposto supra decorre que a interpretação que a melhor se adequa ao espírito do legislador, e que respeita o princípio do juiz natural, é a de que, no caso concreto, apenas é admissível a transição do processo para a instância local que, no mesmo município (o do tribunal abrangido pela extinção), tenha idêntica competência material, sem consideração das novas regras de competência territorial.

Esta interpretação conforma-se com o deliberado pelo CSM e respeita o despacho concretizador do Exmo. Senhor Vice-Presidente do mesmo órgão de gestão da magistratura judicial.( - O CSM, como órgão constitucional autónomo (artigo 218.º, n.º 1, da CRP) dispõe de poder regulamentar à semelhança do Governo, que lhe é conferido, caso a caso, pelo legislador, cabendo-lhe, nos termos do artigo 182.º da LOSJ, tomar as deliberações necessárias à execução daquela lei e das suas normas complementares, nomeadamente para efeitos de redistribuição de processos. Como é evidente, extravasa a competência do CSM interferir com a independência interna ou endógena do juiz ou seja com o livre exercício da sua atividade de julgador a levar a cabo com respeito apenas pela lei e dentro dos seus limites e das regras extrajurídicas cujo uso a mesma lhe consinta, mormente na avaliação em termos objetivos da matéria de facto, de acordo com a sua consciência.
)

Não parece ter sido intenção do legislador provocar desaforamento de causas em casos como o presente, por virtude da alteração da competência territorial anteriormente fixada.

Assim, assiste razão à Meritíssima Juiz da Instância Local de Fronteira, devendo o processo prosseguir os seus ulteriores trâmites na instância local de Estremoz – secção de competência genérica.

DECISÃO:

Em face do exposto, decido o presente conflito atribuindo à Meritíssima Juiz da Secção de Competência Genérica da Instância Local de Estremoz a competência territorial para o conhecer do recurso de impugnação supra referido.

Comunique aos tribunais em conflito e notifique nos termos do art.º 36.º, n.º 3, do CPP, e dê-se conhecimento aos Senhores Juízes Presidentes das Comarcas de Évora e Portalegre.

Sem tributação.

(Texto processado informaticamente e integralmente revisto pelo relator que assina)

Évora, 12 de Junho de 2015

Fernando Ribeiro Cardoso