Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
174/21.7T8PTM-D.E1
Relator: MÁRIO BRANCO COELHO
Descritores: INQUIRIÇÃO DE TESTEMUNHA
ADMISSIBILIDADE DA PROVA TESTEMUNHAL
TRANSCRIÇÃO
ROL DE TESTEMUNHAS
PROVA TESTEMUNHAL
PODERES DO JUIZ
Data do Acordão: 06/30/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1. O art. 526.º do Código de Processo Civil não constitui um meio para a parte tornear a limitação legal ao número de testemunhas a inquirir.
2. A inquirição por esta via não é automática, apenas porque a parte, que não arrolou a testemunha ou excedeu o limite legal, insiste nessa inquirição: deve ser possível ao juiz presumir – e apenas o pode fazer através de um juízo de prognose com base em elementos já existentes no processo – que a pessoa não oferecida como testemunha tem conhecimento de factos, e que esses factos são relevantes para a boa decisão da causa.
3. Se a parte, no respectivo articulado, já havia requerido a inquirição de testemunhas em número superior ao limite legal, fundando o seu requerimento no art. 526.º do Código de Processo Civil, e viu esse requerimento indeferido no despacho de admissão dos meios de prova, não pode voltar a insistir nesse requerimento durante a audiência final, se não demonstrar que dos novos elementos de prova, aliados aos demais recolhidos nos autos, se pode concluir pela imprescindibilidade do depoimento daquelas pessoas para o esclarecimento da verdade material.
4. Na audiência final das acções, incidentes e procedimentos cautelares, cabe exclusivamente ao juiz determinar a transcrição dos requerimentos e respectivas respostas, despachos e decisões, oficiosamente ou a requerimento, por despacho irrecorrível, sendo essa transcrição feita no prazo de cinco dias a contar do respectivo acto.
5. Viola o dever de urbanidade a parte que, confrontada com o despacho que indeferiu o requerimento por si apresentado de nulidade da inquirição da sua própria testemunha, insiste em tomar a acta para ali fazer transcrever um novo requerimento, onde afirma que está a ser “forçada” a continuar essa inquirição, e que, aquando da designação da data de continuação da audiência, mediante acordo de agendas, toma de novo a acta para obrigar à transcrição de mais outro requerimento, no qual afirma estar a ser alvo de tratamento desigual, porque o juiz não designou essa continuação para uma data em relação à qual a parte contrária comunicou a sua impossibilidade de comparência. (sumário do relator)
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo do Trabalho de Portimão, o Ministério Público intentou acção especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho contra Maló Clinic, S.A., pedindo que seja reconhecida a existência de três contratos de trabalho, celebrados entre a demandada e três pessoas singulares, devidamente identificadas nos autos.
Na contestação oferecida, a Ré requereu o depoimento de parte dessas três pessoas singulares e arrolou nove testemunhas.
Foi proferido despacho, aquando do saneador, admitindo apenas a inquirição das três primeiras testemunhas arroladas na contestação e não admitindo o depoimento de parte das referidas pessoas singulares, uma vez que estas, nesse momento, ainda não se tinham constituído como parte no processo.
O recurso interposto pela Ré desse despacho, o qual subiu em separado e com efeito devolutivo, foi julgado improcedente por Acórdão desta Relação de Évora de 17.06.2021.

O julgamento iniciou-se a 15.04.2021 e prolongou-se por várias sessões.
Na sessão realizada a 15.04.2021, foram ouvidas as três testemunhas arroladas pelo Ministério Público, e duas das testemunhas arroladas pela Ré.

Na sessão realizada a 26.04.2021que é aquela onde foram proferidos os despachos aqui em recurso – continuou-se a inquirição de uma das testemunhas arroladas pelo Ministério Público e a Ré requereu a contradita dessa testemunha, o que apenas foi admitido parcialmente.
Após, ouviu-se a terceira testemunha arrolada pela Ré. No decurso desse depoimento, a Ré requereu a nulidade da inquirição da testemunha, por estar a ser “ouvida via Webex a partir do escritório da sua própria clínica”, e não a partir de um tribunal.
A arguição de nulidade foi indeferida por despacho proferido em acta, invocando o estado pandémico e a natureza urgente dos autos.
Nessa sequência, a Ré ditou para a acta o seguinte: “Para que não sejam precludidas faculdades processuais, o interrogatório será realizado, sendo certo que, a conduta que a ré é forçada a adoptar não constitui renúncia ao direito de recurso a respeito do despacho acabado de proferir. Isso mesmo se consigna, uma vez que, a exemplo do despacho anteriormente proferido, a 15 de Abril, também a respeito deste despacho recairá, assim que a acta do presente julgamento se encontre disponível, imediatamente recurso de apelação.”
Sobre este requerimento incidiu o seguinte despacho: “Após o último despacho que foi proferido em acta, a ré ocupou o tempo do Tribunal e da testemunha para, a pretexto de ditar um requerimento, afinal não o fazer porque nada requereu. Essa atitude processual não pode ser admitida e, como tal, vai a ré condenada numa taxa de justiça de 1 Uc.”
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Prosseguindo a audiência, a dado momento a Ré requereu o seguinte: “Nos termos e para os efeitos do artigo 526º do Código de Processo Civil, considera a ré que devem ser inquiridas enquanto testemunha a prestadora de serviços (…), bem como as testemunhas 4., 5., 7., 8. e 9., referidas na contestação, não apenas porque possuem conhecimento de elementos relevantes para os autos, como para o facto de isso mesmo haver já sido percepcionado pelo Tribunal. Em rigor, as testemunhas foram oferecidas para esta causa, todavia não foram admitidas, pelo que, a sua audição no presente momento processual é de sumo relevo nos temos da lei, em particular, estas testemunhas têm conhecimento de factos pertinentes à formalização e execução da relação contratual havida entre a ré e os prestadores de serviços, ao funcionamento da Modernitypower, Unipessoal, que o douto Tribunal já pode percepcionar nestes autos como sendo a beneficiária dos serviços de todo o grupo do anterior estabelecimento da ré, da falsidade das declarações constantes do auto promovido pela ACT, do modo como os prestadores de serviços escolheram ser contratados pela ré.”
Após contraditório da Magistrada do Ministério Público, foi proferido despacho convidando a Ré “a indicar qualquer meio de prova já produzido nos autos que possa apontar para os nomes das testemunhas arroladas em 4., 5., 7., 8. e 9. da contestação, como tendo conhecimento directo sobre a matéria em discussão.”
Após a Ré ter indicado os meios de prova que, no seu entender, apontavam nesse sentido, foi proferido despacho determinando a inquirição das três pessoas singulares cujo reconhecimento como trabalhadores da Ré se peticionava na p.i., mas indeferindo a inquirição das restantes testemunhas indicadas pela Ré, nos termos seguintes: “Já quanto às restantes testemunhas, não resulta dos indicados documentos que as mesmas tenham conhecimento directo dos factos que importam à decisão, não sendo relevante, o eventual conhecimento que as mesmas tenham sobre o conteúdo dos documentos que estão juntos aos autos e que lhes tenham sido dirigidos ou tenham sido por elas emitidos, pelo que se indefere, nessa parte, o requerido.”
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Mais se determinou: “Para continuação da audiência de discussão e julgamento, designa-se, após tentativa de conciliação de agendas, o dia 21-05-2021, pelas 09:30 horas.”
E passou-se o seguinte:
O Ilustre Mandatário da Ré ditou para a acta: “O mandatário da ré consigna em acta haver comunicado a inconveniência pessoal da referida data em sede de agendamento. Mais consigna, que tal inconveniência foi também comunicada relativamente ao dia 03 de Maio pela Digníssima Magistrada do Ministério Público, havendo a mesma sido atendida pelo Tribunal, destarte, é patente o tratamento desigualitário entre as partes. O presente uso da acta é feito ao abrigo do disposto no artigo 155º, n.º 7 do Código de Processo Civil.”
A Digna Procuradora da República disse: “Pese embora corresponda à verdade que o Ministério Público inicialmente solicitou que, caso existisse outra data disponível, não fosse designada a tarde do dia 03 de Maio para a continuação da presente audiência de julgamento, é igualmente verdade que, posteriormente, reiterou tal solicitação e manifestou a sua total disponibilidade para qualquer dia da semana, quer de manhã, quer de tarde. Não se compreende, pois, o motivo pelo qual o ilustre mandatário da ré persistiu em fazer a consignação que antecede em acta.”
E incidiu o despacho: “Como a Ré bem sabe, porque o seu ilustre mandatário aqui estava presente, a continuação do julgamento não foi designada para o dia 03 de Maio, porque o ilustre mandatário comunicou indisponibilidade para essa data. Persiste a ré na intenção de usar a acta sem nada requerer, acarretando tempo perdido para o serviço do Tribunal. Vai, por isso, condenada em multa de 2 Uc.”
A continuação do julgamento teve lugar, efectivamente, a 21.05.2021.
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A Ré interpôs recurso dos despachos proferidos na referida sessão de 26.04.2021, indicando o seguinte objecto: “(a) indeferimento da contradita apresentada em juízo (enquanto meio de prova); (b) admissão de prova documental sem suporte idóneo; (c) cominação em multa ilegal; (d) indeferimento de prova testemunhal solicitada pela R.; e (e) cominação em segunda multa ilegal”.
Porém, o tribunal recorrido não admitiu o recurso quanto ao indeferimento da contradita. E quanto ao recurso indicado em b), após se consignar que “Quanto à “admissão de prova documental sem suporte idóneo” tal título deve-se, certamente, a mero lapso de escrita. Percorrendo a alegação da ré verifica-se que a mesma se insurge contra a decisão que permitiu a inquirição da testemunha (…) através da plataforma “Webex””, foi também decidido não admitir o recurso nessa parte.
Reclamou a Ré desta não admissão parcial do recurso interposto, mas, por decisão de 15.06.2021, este Tribunal da Relação de Évora manteve o despacho reclamado.

As conclusões apresentadas pela Ré que incidem sobre a parte não afectada pela não admissão parcial do recurso, são:
M. “A Recorrente requereu, em sede audiência de discussão e julgamento, a inquirição da testemunha Ana Filipa Gonçalves e das testemunhas 4., 5., 7., 8., e 9. indicadas no Requerimento Probatório constante da sua Contestação (e não admitidas), por aplicação do disposto no art. 526.º do Código de Processo Civil.
N. Tendo o depoimento apenas sido deferido quanto a A…, mesmo após a Recorrente indicar, a instâncias do Tribunal, a relevância para a descoberta da verdade do depoimento das restantes testemunhas, após haver indicado, antes, o motivo da petição da sua inquirição (“estas testemunhas têm conhecimento de factos pertinentes à formalização e execução da relação contratual havida entre a ré e os prestadores de serviços, ao funcionamento da Modernitypower, Unipessoal, que o douto Tribunal já pode percepcionar nestes autos como sendo a beneficiária dos serviços de todo o grupo do anterior estabelecimento da ré, da falsidade das declarações constantes do auto promovido pela ACT, do modo como os prestadores de serviços escolheram ser contratados pela ré”).
O. Incumbindo ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer, conforme se estabelece nos arts. 411.º e 526.º do Código de Processo Civil, tal manifestamente não se verificou, ferindo o direito à tutela judicial efectiva da Recorrente,
P. Uma vez mais em violação da lição da jurisprudência, maxime do ac. da Relação de Lisboa de 31.05.2007 (Relator: JOSÉ EDUARDO SAPATEIRO), do ac. da Relação de Lisboa de 08.02.2018 (Relator: NUNO SAMPAIO), e, em especial, do ac. da Relação de Évora de 28.01.2021 (Relator: MANUEL BARGADO).
Q. Também esta decisão de rejeição de meio de prova é recorrível nos termos do disposto no art. 79.º-A, n.º 2, alínea d), do Código de Processo de Trabalho, e do art. 644.º, n.º 2, alínea d), aplicável ex vi art. 1.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo Trabalho, determinando a procedência da impugnação a anulação de todos os seus termos processuais subsequentes.
Por fim,
R. A Recorrente, em dois momentos, fez um uso legal da acta para consignar as suas declarações – cfr. o art. 155.º, n.º 7 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi, o art. 1.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo do Trabalho.
S. Havendo, devido a essas duas condutas, por duas vezes sido condenada em multa, respectivamente, de 1 (uma) Uc e de 2 (duas) Uc’s.
T. As decisões de condenação em multa são imediatamente recorríveis, nos termos do disposto no art. 79.º-A, n.º 2, alínea e), do Código de Processo de Trabalho, 644.º, n.º 2, alínea e), aplicável ex vi art. 1.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo Trabalho, e no art. 27.º, n.º 6, do Regulamento das Custas Processuais.
U. Em cúmulo, em nenhuma das referidas condenações em multa indicou o Tribunal a quo, o fundamento legal das mesmas, a norma jurídica violada pela Recorrente e/ou critérios empregues para a determinação do valor das penalizações.
V. Foi violado, em suma, o disposto nos arts. 136.º, n.º 1, 155.º, n.º 7, 195.º, n.º 1, 411.º, 500.º, 502.º, 521.º, 526.º e 531.º do Código de Processo Civil, no art. 6.º-E, n.ºs 2 e 5, da Lei n.º 13-B/2021, e no art. 27.º, n.º 1 e 3 do Regulamento das Custas Processuais.”

A resposta sustenta a manutenção do decidido.
Dispensados os vistos, cumpre-nos decidir.
Consigna-se que, através do sistema electrónico de acompanhamento à actividade dos tribunais, se procedeu à consulta do processo principal e dos respectivos apensos, inclusive os pendentes neste Tribunal.

Os factos a ponderar na decisão são os constantes do relatório.

Aplicando o Direito.
Da inquirição por iniciativa do tribunal
Liminarmente, deverá referir-se que o limite máximo de três testemunhas a apresentar por cada parte, estabelecido no art. 186.º-N n.º 3 do Código de Processo do Trabalho visa impedir práticas processuais dilatórias e estimular a eficiência na produção da prova – tanto mais que, em bom rigor, um número excessivo de testemunhas raramente conduz a melhores resultados probatórios, muito pelo contrário.
Não pode ser esquecido que estamos perante um processo de natureza urgente – art. 26.º n.º 1 al. i) do Código de Processo do Trabalho – com prazos curtos para o exercício de direitos processuais e tomada de decisão, e uma forma especial de processo, regulada nos arts. 186.º-K a 186.º-R do referido diploma.
Este regime processual, instituído como forma de combate à precariedade laboral e ao fenómeno dos falsos recibos-verdes, tem sido analisado pelo Tribunal Constitucional, o qual já decidiu pela não inconstitucionalidade dos arts. 26.º n.º 1 al. i), e 186.º-K a 186.º-R, por não violarem os princípios da liberdade de escolha do género de trabalho (Acórdão n.º 94/2015), e ainda que o 186.º-O n.º 1 não é inconstitucional, quando interpretado no sentido de que o putativo trabalhador não pode dispor do direito que o Ministério Público prossegue numa acção especial de reconhecimento de contrato de trabalho, não sendo permitido aos alegados trabalhador e empregador acordar, em audiência de partes, no sentido de que a relação que existiu entre ambos era de prestação de serviços, pondo, assim, termo ao processo por transacção (Acórdão n.º 86/2016).
Escreveu-se a dado momento no Acórdão n.º 94/2015: «…é no contexto destes valores subjacentes ao Direito do Trabalho, e tendo em atenção que, nas relações laborais, embora exista uma liberdade formal por parte do prestador de trabalho como pressuposto do contrato, tal liberdade está, muitas vezes, condicionada pelo empregador, que deve ser entendido o regime jurídico da acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, a qual visa, como vimos, prevenir as situações de utilização abusiva da figura do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado ou da utilização dos chamados “falsos recibos verdes”, enquanto práticas de fuga ao regime laboral. (…) Com efeito, embora o trabalhador seja em regra, o principal interessado na qualificação dessa relação jurídica como contrato de trabalho (por ser essa a qualificação que, tendencialmente, lhe confere uma melhor tutela), a sua situação de dependência económica em face da entidade empregadora, que faz com que se sinta normalmente inibido de accionar judicialmente esta última, pode também condicioná-lo no sentido de celebrar tal tipo de transacção em juízo no que respeita à qualificação do contrato, uma vez instaurada a acção pelo Ministério Público. Esta circunstância, contudo, em nada condiciona a liberdade de profissão, na referida dimensão, uma vez que, não está em causa, repete-se, impor que o putativo trabalhador fique sujeito a um determinado regime de prestação de actividade laboral, contra a sua vontade, mas apenas averiguar qual a natureza do vínculo a que ele já se encontra realmente vinculado e que é preexistente à acção e à transacção por este celebrada e não homologada.»
Não existindo fundamentos bastantes para considerar inconstitucional a limitação a três testemunhas nesta forma especial de processo, imposta pelo art. 186.º-N n.º 3, a Ré pretendeu tornear essa limitação requerendo, logo na contestação, a inquirição de um total de nove testemunhas e invocando para o efeito o disposto no art. 526.º do Código de Processo Civil.
Esse requerimento foi objecto de despacho de indeferimento, recorrido pela Ré, e objecto de análise no Acórdão desta Relação de Évora de 17.06.2021, que lhe negou provimento, ali se decidindo que “o limite do número de testemunhas fixado no n.º 3 do artigo 186.º-N do Código de Processo do Trabalho, não viola o direito à tutela jurisdicional efectiva, previsto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.”
A Ré insistiu na inquirição dessas mesmas testemunhas – com excepção da indicada em 6.º lugar na sua contestação – voltando de novo a invocar o disposto no art. 526.º do Código de Processo Civil. E o despacho recorrido voltou a negar essa pretensão, argumentando não resultar dos documentos indicados pela Ré que as mesmas tenham conhecimento directo dos factos que importam à decisão.
No Supremo Tribunal de Justiça já se decidiu o seguinte: “Da conjugação entre o disposto no art. 411.º e no n.º 1 do art. 526.º, ambos do CPC, emerge que o poder/dever de inquirição oficiosa de uma testemunha só deve ser exercido quando o tribunal não se considere suficientemente esclarecido acerca de factos relevantes e existam elementos que levem crer que a audição da pessoa em causa contribuirá para esclarecer as dúvidas que se suscitam em face da prova já produzida.”[1]
A propósito desta questão, Nuno de Lemos Jorge[2] escreveu que para a procedência da pretensão da parte seria necessário que esta lograsse “convencer o tribunal de que a diligência a promover é absolutamente necessária ao esclarecimento dos factos e que esta necessidade se impõe, por si, desligada da vontade que a parte manifesta na sua realização. Tal vontade é meramente acidental, não deve revelar autonomamente para a decisão do juiz, não sendo requisito ou critério legalmente previsto. O tribunal não deverá providenciar pela realização da diligência sugerida pela parte se: i) entender que a prova já produzida ou requerida é suficientemente esclarecedora; ou ii) não se convencer da especial utilidade da diligência que a parte pretenda que venha a ser promovida.”
Também Luís Filipe Sousa[3] escreve que “o juiz só deverá exercitar o poder-dever conferido pelo artigo 526.º quando resulte da produção de outras provas a necessidade de inquirição de outra testemunha, manifestandose tal necessidade em termos tais que permitam concluir que a inevitabilidade da inquirição ocorreria mesmo que a parte houvesse sido diligente na satisfação do seu ónus probatório.”
Ainda a propósito, Paulo Pimenta[4] ensina que o “equilíbrio do nosso quadro legal resulta da intersecção de das duas dimensões: por um lado, o ónus da iniciativa probatória das partes; por outro, o poder-dever do juiz em sede instrutória. Daqui resulta o seguinte: jamais as partes podem encontrar naquele poder-dever um pretexto para negligenciarem a sua iniciativa probatória; jamais o juiz pode ver naquela iniciativa probatória um alibi para a sua própria inércia. O critério firmado no art. 411º coloca a questão ao nível da necessidade das diligências probatórias para o apuramento da verdade e para a justa composição do litígio. Verificando-se o pressuposto da necessidade, o juiz tem um dever oficial de agir. Não se verificando o pressuposto, inexistirá aquele dever.”
Nesta linha, a conjugação do princípio do inquisitório, constante do art. 411.º do Código de Processo Civil, com o poder/dever do juiz inquirir determinadas pessoas por sua iniciativa, contido no art. 526.º, não constitui um meio da parte tornear a limitação legal ao número de testemunhas a inquirir.
O juiz só deverá tomar essa iniciativa se lhe for possível formular um juízo de imprescindibilidade do depoimento, em face do “decurso da acção” – assim consta da letra do art. 526.º n.º 1 – e das provas já produzidas, pois se entender que a prova já produzida é suficientemente esclarecedora, ou não se convencer da utilidade da diligência, não deve tomar essa iniciativa.
Não acompanhamos, de todo, a tese defendida pela Recorrente, segundo a qual o juiz não dispõe da faculdade de formular um juízo de prognose acerca da imprescindibilidade do depoimento da pessoa não oferecida como testemunha para o esclarecimento da verdade material.
Mesmo Lebre de Freitas admite que esse depoimento só deverá ter lugar em condições especiais, ligadas à relevância dos factos ainda não inequivocamente esclarecidos ou à susceptibilidade destes serem postos em causa pelo depoimento da pessoa não oferecida como testemunha. Lendo com atenção o seu texto, podemos concluir que este autor também reconhece que a inquirição de pessoa não oferecida como testemunha apenas tem lugar se for possível formular um juízo de prognose, com base nos elementos já existentes no processo, acerca da imprescindibilidade do seu depoimento. Vejamos o seu texto[5]: “Por outro lado, antes de ser ouvida a pessoa em causa, é prematuro dizer que o juiz é confrontado com o seu conhecimento dos factos. Desde que haja elementos do processo que levem a crer que esse conhecimento existe, tal é suficiente para que, considerada a relevância dos factos (ainda não inequivocamente esclarecidos ou susceptíveis de ser postos em causa pelo depoimento da testemunha) para a decisão da causa, o depoimento seja ordenado” – e, note-se, o negrito não é da nossa autoria, consta do texto citado, o que bem revela a importância que o autor atribui à necessidade de formulação de um juízo de prognose acerca da imprescindibilidade do depoimento da pessoa não oferecida como testemunha.
O que não podemos aceitar é que o juiz apenas possa formular esse juízo após ouvir a pessoa em causa. Não é esse o texto da lei, que prevê a possibilidade de o juiz ordenar a notificação para depor, desde que “haja razões para presumir que determinada pessoa, não oferecida como testemunha, tem conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa”. Ou seja, a inquirição por esta via não é automática, apenas porque a parte, que não arrolou a testemunha ou excedeu o limite legal, insiste nessa inquirição: deve ser possível ao juiz presumir – e apenas o pode fazer através de um juízo de prognose com base em elementos já existentes no processo – que essa pessoa tem conhecimento de factos, e que esses factos são relevantes para a boa decisão da causa.
Estabelecido, pois, “o requisito da relevância do depoimento da testemunha para o esclarecimento da verdade e a apreciação do tema da prova controvertido, não bastando a mera vontade da parte na sua audição”[6], apliquemos esses princípios ao caso dos autos.
A Ré, no requerimento que apresentou em acta na sessão do dia 26.04.2021, requereu a inquirição de uma das pessoas singulares que na p.i. se imputava como detendo um vínculo laboral com a Ré, e ainda de outras cinco pessoas, que já havia arrolado como testemunhas na sua contestação, nos 4.º, 5.º, 7.º, 8.º e 9.º lugares.
O tribunal recorrido determinou a inquirição das três pessoas singulares cujo vínculo laboral se sustentava na p.i., mas indeferiu quanto às restantes, por considerar que não resultava dos documentos indicados pela Ré que tivessem conhecimento directo dos factos que importam à decisão.
Pois bem, recordemos que sobre o requerimento de prova apresentado na contestação, nomeadamente quanto à extensão do rol de testemunhas, pretendendo a Ré inquirir nove testemunhas com fundamento no art. 526.º do Código de Processo Civil, já o tribunal se havia pronunciado. Esse despacho estava em recurso na altura em que decorreu a sessão de julgamento de 26.04.2021, mas certo é que existia já pronúncia do tribunal recorrido acerca do requerimento que a Ré havia apresentado para inquirição dessas pessoas, nos termos do art. 526.º do Código de Processo Civil e face à prova documental oferecida com os articulados.
E visto que o tribunal recorrido já se havia pronunciado acerca desse requerimento de prova, o seu poder jurisdicional acerca da matéria achava-se esgotado – art. 613.º n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil.
Outra solução não havia, pois, senão indeferir o requerimento apresentado na sessão de julgamento de 26.04.2021, se o mesmo se baseava apenas na prova documental já existente na fase dos articulados. Se a parte estava inconformada com o despacho proferido aquando do saneador, que só lhe admitiu a inquirição de três testemunhas, a solução que tinha à sua disposição era aguardar a decisão do recurso interposto.
Poderia, eventualmente, conceber-se que, face à prova produzida após aquele despacho, nomeadamente a prova testemunhal obtida durante o julgamento, a situação se tinha alterado, e que desses novos elementos, aliados aos demais recolhidos nos autos, se poderia concluir pela imprescindibilidade do depoimento daquelas pessoas para o esclarecimento da verdade material.
Porém, a Ré nada esclarece acerca desta novidade, e o que se pode depreender dos requerimentos que apresentou na acta de 26.04.2021 é que continuou a basear-se na prova documental já existente na fase dos articulados. Mas sendo assim, voltamos a repetir, ocorria esgotamento do poder jurisdicional do tribunal recorrido, pelo que outra solução não havia senão indeferir o requerimento apresentado naquela sessão, insistindo numa pretensão acerca da qual já existia decisão.
Em resumo, o recurso nesta parte não procede.

Da multa por violação do dever de urbanidade
De acordo com o art. 9.º n.º 1 do Código de Processo Civil, todos os intervenientes no processo devem agir em conformidade com um dever de recíproca correcção, pautando-se as relações entre advogados e magistrados por um especial dever de urbanidade.
Acrescenta o art. 150.º n.º 1 que ao juiz compete a manutenção da ordem nos actos processuais a que presida, tomando as providências necessárias contra quem perturbar a sua realização, podendo, nomeadamente, e consoante a gravidade da infracção, advertir com urbanidade o infractor, retirar-lhe a palavra quando se afaste do respeito devido ao tribunal ou às instituições vigentes, condená-lo em multa ou fazê-lo sair do local.
Finalmente, o art. 531.º permite ao juiz, por decisão fundamentada, aplicar excepcionalmente uma taxa sancionatória quando a acção, oposição, requerimento, recurso, reclamação ou incidente seja manifestamente improcedente e a parte não tenha agido com a prudência ou diligência devida.
Duas situações ocorridas na sessão de 26.04.2021 motivaram a aplicação de multas à Ré.
A primeira, quando a Ré, inconformada com o despacho que indeferiu a arguição de nulidade da inquirição da sua terceira testemunha, entendeu ditar para a acta um requerimento no qual anuncia que irá realizar o interrogatório, “sendo certo que, a conduta que a ré é forçada a adoptar não constitui renúncia ao direito de recurso a respeito do despacho acabado de proferir. Isso mesmo se consigna, uma vez que, a exemplo do despacho anteriormente proferido, a 15 de Abril, também a respeito deste despacho recairá, assim que a acta do presente julgamento se encontre disponível, imediatamente recurso de apelação.”
Argumenta a Ré que tinha o direito de ditar para a acta esse requerimento, com fundamento no art. 155.º n.º 7 do Código de Processo Civil.
A resposta é: não.
Para a audiência final das acções, incidentes e procedimentos cautelares, regem os n.ºs 1 a 6, 8 e 9 do art. 155.º. O n.º 7 aplica-se, somente, aos “demais actos processuais presididos pelo juiz”.
Quanto à audiência final da acção – e esse era o acto que decorria no dia 26.04.2021 – a regra é a gravação, “devendo apenas ser assinalados na acta o início e o termo de cada depoimento, informação, esclarecimento, requerimento e respectiva resposta, despacho, decisão e alegações orais” – n.º 1.
Quanto aos requerimentos e respectivas respostas, despachos e decisões, cabe ao juiz determinar a sua transcrição, oficiosamente ou a requerimento, por despacho irrecorrível (n.º 5), sendo essa transcrição feita no prazo de cinco dias a contar do respectivo acto (n.º 6).
Consequentemente, não apenas competia ao juiz determinar a transcrição dos requerimentos da Ré, como a secretaria dispunha do prazo de cinco dias para proceder a esse acto, não impondo a lei, sequer, que a dita transcrição constasse da própria acta – o n.º 6 refere, apenas, a “incorporação nos autos” da transcrição.
De todo o modo, não competindo à Ré determinar a transcrição dos seus requerimentos, a sua insistência em tomar a acta para impor a transcrição de requerimentos independentemente de decisão do juiz, só por si constituía uma forma de desautorização deste, pelo não reconhecimento de uma competência que a lei expressamente lhe atribui.
Por outro lado, qual a utilidade do requerimento, ditado irregularmente para a acta?
Estava a decorrer o depoimento da terceira testemunha da Ré – note-se, não era da parte contrária – por teleconferência, como havia sido determinado no despacho que designou a data da audiência final. A inquirição foi iniciada pelo mandatário da Ré e interrompida por este, para arguir a nulidade do depoimento dessa testemunha.
Indeferida essa arguição, a irregular tomada da acta, para se dizer que a Ré está a ser “forçada” a adoptar uma determinada conduta – a continuação do interrogatório da sua própria testemunha, note-se – e a menção que “a exemplo do despacho anteriormente proferido, a 15 de Abril, também a respeito deste despacho recairá, assim que a acta do presente julgamento se encontre disponível, imediatamente recurso de apelação”, para além de pura inutilidade, revela tão só uma atitude de desforço para com o juiz e desvalorização da sua autoridade.
Se a Ré estava inconformada, recorria, nos termos e prazos prescritos na lei, e logo se discutiria a legitimidade e admissibilidade do seu recurso (o qual, de resto, não era admissível, como esta Relação já decidiu). Agora o que não pode dizer é que foi “forçada” a inquirir a sua própria testemunha, apenas porque o tribunal exerceu a competência de decidir o incidente de arguição de nulidade, em sentido que não lhe agradou.
O requerimento da Ré, inútil, despropositado e em dupla afronta à autoridade do juiz, deve ser qualificado como violador do especial dever de urbanidade, e bem mereceu ser sancionado, ao abrigo do art. 150.º n.º 1 do Código de Processo Civil.
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Vejamos agora a segunda situação.
Tratava-se da designação da data de continuação da audiência, para 21.05.2021, sendo que o despacho menciona que se procedeu a tentativa de conciliação de agendas.
A este respeito, o art. 606.º n.º 3 do Código de Processo Civil estipula que, se não for possível concluir a audiência num dia, esta é suspensa e o juiz, mediante acordo das partes, marca a continuação para a data mais próxima.
A Ré não diz que a data designada para continuação do julgamento não teve o seu acordo – menciona, apenas, uma “inconveniência pessoal”, de natureza indeterminada, mas não a impossibilidade de comparecer nessa data ou “a sobreposição de datas de diligências”, que é o critério estabelecido para este efeito no art. 151.º n.º 1 do Código de Processo Civil.
O que a Ré diz é que a data não foi marcada noutra data – 3 de Maio – apenas porque a Magistrada do Ministério Público comunicou a sua inconveniência, “havendo a mesma sido atendida pelo Tribunal, destarte, é patente o tratamento desigualitário entre as partes. O presente uso da acta é feito ao abrigo do disposto no artigo 155º, n.º 7 do Código de Processo Civil.”
De novo, pergunta-se: qual a utilidade deste requerimento e desta irregular tomada da acta?
Como vimos, a decisão de transcrição do requerimento não competia ao mandatário da Ré.
E o que estava em causa era determinar a data de continuação da audiência, mediante acordo das partes – e, necessariamente, do juiz, para evitar que também corresse o risco de sobreposição de datas de diligências.
Nesta situação, o que importava era a fixação da data de continuação da audiência.
Se outras datas foram propostas, e o juiz não as fixou porque qualquer das partes comunicou a sua impossibilidade, o que estava a fazer era, tão só, cumprir os critérios legais que regem esta matéria.
Agora, a Ré acusar o juiz de tratamento desigual porque cumpre o critério legal e não fixa uma data em relação à qual uma das partes comunicou a sua impossibilidade, é absolutamente despropositado e inútil.
Revela, tão só, um padrão de litigância agreste e deselegante, um acirramento litigioso perfeitamente desajustado e que de nada serve para a defesa dos interesses da Ré, e a violação do dever de recíproca correcção, que bem mereceu a sanção – benévola, diga-se – que lhe foi atribuída.
Também nesta parte o recurso não procede.

DECISÃO
Destarte, nega-se provimento ao recurso, com confirmação das decisões recorridas.
Custas pela Recorrente.
Évora, 30 de Junho de 2021
Mário Branco Coelho (relator)
Paula do Paço
Emília Ramos Costa
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[1] Em Acórdão de 05.07.2018 (Proc. 97/12.0TBPV.L2.S1), publicado em www.dgsi.pt.
Adoptando a mesma linha jurisprudencial, vide os Acórdãos da Relação de Lisboa de 21.02.2019 (Proc. 1922/17.5T8VFX-A.L1-2), da Relação de Guimarães de 23.05.2019 (Proc. 1345/18.9T8CHV-A.G1), e da mesma Relação de 15.10.2020 (Proc. 2023/19.7T8VNF-A.G1), todos na base de dados da DGSI.
[2] In Os problemas instrutórios do juiz: alguns problemas, Revista Julgar, n.º 3, Setembro/Dezembro 2007, pág. 72.
[3] In Prova testemunhal, Almedina, 2013, pág. 275.
[4] In Processo Civil Declarativo, 2.ª ed., Almedina, 2017, págs. 372/373 (nota 871).
[5] In Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 3.ª ed., Almedina, 2017, pág. 415, em anotação ao art. 526.º.
[6] Na feliz expressão do Acórdão da Relação de Lisboa de 21.02.2019, supra citado.