Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
57/14.7TBCVD.E1
Relator: MÁRIO SERRANO
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
EMPRÉSTIMO BANCÁRIO
MORTE
Data do Acordão: 07/09/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - Não faz qualquer sentido que o contrato de seguro permitisse a exclusão de responsabilidade da seguradora pela simples presença de álcool no sangue acima do valor ali indicado, fosse qual fosse a conduta empreendida no momento da morte do segurado.
2 - Pois que, então, bastaria que o segurado tivesse uma TAS acima de 0,5 g/l e estivesse a realizar qualquer actividade inócua, do ponto de vista da produção do evento morte (como comer, andar, ler um livro), para haver exclusão de responsabilidade.
3 - Em consequência, a cláusula em apreço sempre imporá que se averigue se a presença de álcool é causal em relação à produção do evento morte.
Decisão Texto Integral: Proc. nº 57/14.7TBCVD.E1-1ª (2015)
Apelação-1ª (2013 – NCPC)
(Acto processado e revisto pelo relator signatário: artº 131º, nº 5 – NCPC)
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ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:


I – RELATÓRIO:

Na presente acção de processo comum que (…) intentou contra «(…) – Companhia de Seguros, SA», e actualmente a correr termos na Secção Cível da Instância Local de Portalegre da Comarca de Portalegre (depois de iniciada no Tribunal Judicial de Castelo de Vide), foi pela A. invocada a celebração, por parte da A. e do seu falecido marido, com a «Caixa Geral de Depósitos», de um contrato de empréstimo para aquisição de fracção autónoma para habitação, a que foi associado um contrato de seguro em que é parte a R. seguradora, destinado a cobrir o risco de morte de algum dos mutuários, caso em que assumiria o pagamento à «Caixa» do valor em dívida à data do sinistro, o qual veio a ocorrer em relação ao marido da A., mas sem que a R. aceitasse a sua responsabilidade por tal pagamento, por alegada ocorrência de situação excluída da cobertura do seguro, ao abrigo das condições gerais do contrato de seguro (concretamente, suicídio por afogamento, quando a vítima acusava uma taxa de alcoolemia de 1,92 g/l), do que a A. discorda – pelo que a A. peticiona o seguinte: a) declaração de que o evento da morte do segurado, seu falecido marido, constitui risco coberto pela apólice que titula o referido contrato de seguro; b) condenação da R. a pagar à «Caixa Geral de Depósitos» o valor em dívida do referido contrato de empréstimo celebrado por A. e falecido marido com a «Caixa»; c) condenação da R. a pagar à A. as quantias a esta cobradas como capital e prémio de seguro desde a data da morte do segurado (e até à suspensão dessas cobranças).

Contestando, a R. impugnou o pedido, alegando, no essencial, que a morte do segurado, marido da A., ocorreu em circunstâncias excludentes da cobertura do seguro, de acordo com as condições gerais do contrato de seguro, já que essa morte ocorreu na sequência de acto voluntário, configurável como suicídio, quando a vítima acusava uma taxa de alcoolemia de 1,92 g/l – pelo que concluiu no sentido da total improcedência da acção e consequente absolvição da R. do pedido.

Na sequência da normal tramitação processual, foi realizado o julgamento, após o qual foi lavrada sentença em que se decidiu julgar procedente a acção, declarando que a morte do marido da A. constituiu risco coberto pela apólice que titula o contrato de seguro em causa (segmento sob a al. a) do dispositivo da sentença) e condenando a R. «(…)» a pagar à «Caixa Geral de Depósitos» o valor em dívida à data da morte do segurado, relativamente ao contrato de empréstimo celebrado entre A. e marido e a «Caixa» (segmento sob a al. b) do dispositivo da sentença), e à A. as quantias a esta cobradas, em relação ao empréstimo e ao seguro, desde a data da morte do segurado e até à suspensão dessas cobranças (segmento sob a al. c) do dispositivo da sentença).

Para fundamentar a sua decisão, argumentou o Tribunal, essencialmente, o seguinte: da matéria de facto provada resultou ter a R. celebrado com o falecido marido da A. contrato de seguro de vida, associado a um contrato de mútuo celebrado por este último com entidade terceira para aquisição de habitação, segundo o qual, em caso de morte do segurado, seria beneficiária a entidade mutuante pelo valor em dívida à data do sinistro; de acordo com cláusula daquele contrato de seguro, estaria excluída a cobertura do seguro quanto a «acções ou omissões praticadas pela pessoa segura (…) quando lhe for detectado um grau de alcoolemia no sangue superior a 0,5 gramas por litro»; tendo em conta que se provou que o segurado apresentava, no momento da morte, uma taxa de alcoolemia de 1,92 g/l, há que interpretar essa cláusula, de forma a saber se basta ser essa TAS (taxa de álcool no sangue) superior a 0,5 g/l para o sinistro não estar coberto, como sustenta a R., ou se ainda é necessário que se prove que essa situação de excesso de álcool foi causal em relação à morte; é de entender que a R. ainda tem o ónus de provar que foi a existência de álcool no sangue que determinou a morte; discussão semelhante existe em matéria de acidentes de viação, quanto ao direito de regresso das seguradoras em caso de condução sob o efeito do álcool, mas essa situação não é assimilável à dos presentes autos, por ali haver a prática de uma acção em desconformidade com o ordenamento jurídico (condução sob o efeito do álcool, que pode ser contra-ordenação ou crime, consoante a TAS apresentada), enquanto no caso presente a acção do sinistrado não era ilícita (entrar na água depois de ingerir álcool); tem, pois, de se aferir a existência de uma relação efectiva e directa entre a ingestão do álcool, em quantidade determinante de uma TAS superior a 0,5 g/l, e o evento que deu origem à morte do sinistrado; no caso concreto, não se provou que a morte do marido da A. se deveu a suicídio ou à ingestão de álcool (factos não provados sob os nos 1 e 2) e constata-se que a entrada na água do sinistrado, para nadar ou se refrescar, não era, em condições normais, susceptível de provocar a morte, pelo que não ocorre o circunstancialismo excludente da responsabilidade da R., relativamente à morte do marido da A.; uma interpretação da cláusula contratual que se bastasse com a mera prova da existência de álcool no sangue (em quantidade superior a 0,5 g/l) para excluir a responsabilidade da seguradora seria desajustada à normalidade da vida, já que levaria a tal exclusão em qualquer circunstância, por mais inócua que fosse a actividade que o segurado estivesse a praticar no momento da morte; não se aplicando a cláusula de exclusão, deve funcionar o benefício a favor da «Caixa», pelo valor da dívida à data do sinistro (que se apurou ser de 44.567,40 €, conforme facto provado nº 10); de igual modo, e porque a R. não reconheceu a sua responsabilidade e continuou a cobrar à A. prémios e capital de seguro, devem ser restituídas à A. as quantias indevidamente cobradas.

Inconformada com tal decisão, dela apelou a R., formulando as seguintes conclusões:

«1ª – O que, em bom rigor, se discute nestes autos é a interpretação da cláusula contratual que exclui da cobertura da apólice, as mortes que ocorram na prática de um acto voluntário, apresentando a pessoa segura, então uma taxa de alcoolemia superior a 0,5 g/l.

2ª – Sendo certo que tal interpretação não pode ser decalcada da que possa ser efectuada no âmbito da responsabilidade civil, mais especificadamente da responsabilidade civil decorrente de acidentes de viação.

3ª – Nomeadamente, tendo como referência a veneranda jurisprudência que foi construída com base na interpretação da al. c) do artº 19º do já revogado DL 522/85.

4ª – E se quisermos recorrer à jurisprudência proferida quanto a esta matéria, o que se deverá ter em consideração é a nova jurisprudência resultante da entrada em vigor do Decreto-Lei 291/2007, que na al. c) do seu artº 27º atribui às seguradoras um direito de regresso sobre os condutores alcoolizados, que provoquem danos a terceiros.

5ª – A qual entende que, a eliminação da expressão “sob influência” pôs em causa a exigência do estabelecimento do “nexo causal” entre o álcool e o dano, como se defendia quanto ao disposto no referido artº 19º.

6ª – E dúvidas não existem que o legislador ao eliminar tal expressão o fez com perfeito conhecimento da jurisprudência praticada no âmbito da aplicação do anterior diploma e com inequívoca intenção de pôr fim à exigência interpretativa do referido “nexo causal”.

7ª – Ora, se é o próprio legislador que numa norma da sua autoria estabelece que as seguradoras para exercerem o direito de regresso sobre os condutores alcoolizados só têm que provar a culpa dos mesmos e a respetiva alcoolemia, por maioria de razão a cláusula contratual em causa nestes autos não pode ser considerada abusiva.

8ª – Sendo certo que na referida cláusula não se exige o estabelecimento de qualquer nexo causal entre o sinistro e o álcool, contrariamente ao doutamente defendido pela meritíssima juíza da primeira instância.

9ª – Assim sendo, e por se encontrarem verificados, quer a existência de um acto voluntário, quer o grau de alcoolemia (cerca de quatro vezes) superior ao patamar máximo da taxa contratualmente permitida, a morte da pessoa segura encontra-se inequivocamente excluída das coberturas contratadas.

10ª – A aceitar-se, porém, a necessidade de se ajuizar da existência de um eventual nexo causal entre o álcool e o decesso da pessoa segura, então deveria ser a própria autora a provar que o evento sempre teria ocorrido no caso de o seu defunto marido ter entrado na albufeira sem se encontrar alcoolizado.

11ª – O que nem sequer foi alegado.

12ª – Pelo que a ora recorrente deve absolvida do pedido formulado pela autora.

Sem conceder,

13ª – Se assim não se entender, então este Venerando Tribunal não deixará de ter em consideração que a R. foi condenada a pagar duas vezes o mesmo “capital”.

14ª – Com efeito, ao ser condenada a pagar o capital em dívida ao banco à data do decesso do defunto marido da autora, bem como o capital incluído nas prestações, por esta, pagas ao banco depois de tal ocorrência, a mesma beneficiará, a verificarem-se tais pagamentos, indevidamente de um saldo credor, correspondente ao total dos “capitais” pagos após o sinistro.

15ª – Consequentemente, no caso de se entender que a R. terá que pagar à CGD o capital em dívida à data do decesso, então, em bom rigor a autora terá apenas direito a receber os juros e os prémios do seguro que suportou após a referida data.

16ª – No caso, porém, de este Venerando Tribunal entender que a autora tem direito a receber o montante total das prestações que a mesma pagou após o decesso, então o montante a pagar ao banco terá que ser, necessariamente, o que ficou em dívida desde a data da referida suspensão dos pagamentos.»


A A. apelada contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

Como é sabido, é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (cfr. artos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (cfr. artº 608º, nº 2, ex vi do artº 663º, nº 2, do NCPC).

Do teor das alegações da recorrente resulta que a matéria a decidir se resume a apreciar do acerto da decisão recorrida – ou seja, e muito singelamente, saber se assiste razão ao tribunal de 1ª instância quanto ao seu entendimento, contrário ao da R. apelante, de que o contrato de seguro (e, em particular, o artigo 2º, ponto 5-1-b) das respectivas Condições Gerais) deve ser interpretado no sentido de não funcionar a exclusão de responsabilidade da R. nas circunstâncias de facto da morte do segurado (encontrar-se sob o efeito do álcool, com uma TAS de 1,2 g/l, superior à TAS de 0,5 g/l, prevista na referida cláusula do contrato de seguro), por ser exigível a demonstração de um nexo causal entre a presença de álcool no sangue e a morte do segurado. Mais se suscita, subsidiariamente (i.e., no caso de se entender não excluída a responsabilidade da R.), a questão de o pedido da A., julgado procedente pelo tribunal a quo, resultar numa duplicação de pagamentos pela R. quanto ao montante relativo à dívida de capital.

Cumpre apreciar e decidir.

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II – FUNDAMENTAÇÃO:
A) DE FACTO:

O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, que se passam a reproduzir:

«1. (…) e a Autora, (…), sua mulher, compraram em 22 de Julho de 2006, para sua habitação, a fração autónoma com a letra L, correspondente ao 1º andar-C do prédio urbano em propriedade horizontal, Bloco 5, no topo do Bairro da (…), em Castelo de Vide, pelo preço de € 75.000,00.

2. Para pagamento do preço contraíram junto da Caixa Geral de Depósitos um empréstimo do montante de € 55.000,00.

3. Esse empréstimo ficou a ser processado na Caixa Geral de Depósitos como processo de empréstimo nº (…).

4. Entre aquela instituição de crédito e a Ré Seguradora estava então em vigor um contrato de seguro do Ramo 11 Vida Grupo, titulado pela apólice nº (…), sujeito à disciplina de condições gerais e particulares. Com esse contrato se pretendia cobrir o risco de morte ou invalidez de quem contratasse empréstimos com a Caixa Geral, com a consequência de a Ré assumir o pagamento do valor que estivesse em dívida à data do sinistro.

5. Ao contrair o empréstimo o (…) aderiu ao contrato de seguro sob o nº (…) e a Autora (…) sob o nº (…), ambos passando a pessoas seguras.

6. O contrato de seguro passou a valer para o (…), a partir de 22-6-2006, e para a Autora, a partir de 29-6-2006.

7. O risco seguro, com relação ao … (e também a Autora) era de morte por doença ou acidente, até aos 80 anos, e invalidez absoluta e definitiva para doença ou acidente, até aos 70 anos.

8. A beneficiária do seguro é a entidade mutuante.

9. O capital garantido do empréstimo concedido ao (…) foi de início de € 55.000,00; e seria, à data do sinistro, o que estivesse em dívida no início do respetivo ano.

10. Em 01 de Janeiro de 2012 o capital de seguro era de € 44.567,40.

11. O segurado (…) nasceu em 22-9-52 e faleceu em 2 de Setembro de 2012.

12. Foi encontrado, sem vida, na água da albufeira da Barragem da Póvoa, concelho de Castelo de Vide.

13. Da certidão de óbito o médico fez constar que faleceu de “asfixia por afogamento”.

14. No relatório da autópsia, escreveu-se:

- que a morte ocorreu por afogamento em água doce;

- que se admite que terá ocorrido suicídio;

- que a vítima acusava, à data da morte, uma taxa de alcoolemia de 1,92 g/l.

15. A Autora participou o acidente após a sua ocorrência; mas a seguradora declinou a responsabilidade.

16. Invocou para tanto o artigo 2º, ponto 5-1-b), das condições gerais que diz:

“Estão sempre excluídas de todas as coberturas do seguro as seguintes situações:

b) Acções ou omissões praticadas pela pessoa segura quando acuse consumo de produtos tóxicos, estupefacientes ou outras drogas fora da prescrição médica, bem como quando lhe for detectado um grau de alcoolemia no sangue superior a 0,5 g por litro.”

17. O segurado, antes de entrar na água, despiu as calças, descalçou os sapatos e entrou em tronco nu.

18. (…) estava casado com a Autora e faleceu sem testamento, no estado de casado com ela. Ela sucedeu-lhe, por isso, como herdeira.

19. A partir da data da morte de (…), a Ré, porque recusou assumir o risco, levou a que a Caixa Geral de Depósitos tenha continuado a exigir da Autora o pagamento das prestações relativas ao empréstimo.

20. A Ré continuou a exigir os prémios de seguro.»


B) DE DIREITO:

1. A questão nuclear do presente recurso centra-se na discussão sobre a interpretação que deve merecer o ponto 5-1-b) do artº 2º das Condições Gerais do contrato de seguro celebrado entre a R. e a A. e seu falecido marido, supra transcrita no ponto de facto nº 16.

Do respectivo teor dessa cláusula do contrato de seguro resulta a exclusão da responsabilidade da R., pelo pagamento do montante em dívida do contrato de mútuo a que aquele está associado, em caso de morte do segurado, sempre que a morte ocorra na sequência de «acções ou omissões praticadas pela pessoa segura (…) quando lhe for detectado um grau de alcoolemia no sangue superior a 0,5 gramas por litro».

Questiona-se se o teor desta cláusula significa que a exclusão da cobertura do seguro decorre da mera presença de álcool no sangue do segurado em valor superior a 0,5 g/l (como sucedeu in casu, já que se provou que o marido da A. apresentava uma TAS de 1,92 g/l, conforme ponto de facto nº 14) – ou se, pelo contrário, a mesma exige que exista um nexo causal entre essa presença de álcool e a morte.

Pretendeu a R. trazer à colação toda a discussão sobre as condições de exercício de direito de regresso das seguradoras em caso de condução sob o efeito do álcool, no âmbito dos acidentes de viação – e, em particular, em torno da alteração operada nessa questão, na passagem do regime do Decreto-Lei nº 522/85, de 31/12 (cujo artº 19º, al. c), exigia um nexo de causalidade entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente, na interpretação que veio a ser estabelecida pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do STJ nº 6/2002, in DR, I-A, de 18 de Julho) para o regime do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21/8 (cujo artº 27º, nº 1, al. c), apresenta redacção algo diversa da do anterior regime, o que na jurisprudência, mas de forma não unânime, passou a ser entendido como um afastamento da exigência de demonstração desse nexo causal, com a consequente inaplicabilidade da doutrina do referido AUJ-STJ: cfr., por todos, com uma síntese de posições e de argumentos, o Ac. RC de 18/2/2014, Proc. 2452/12.7TBLRA.C1, in www.dgsi.pt). Porém, para além de não ser nada pacífico esse entendimento, mais favorável às seguradoras, de que deixou de ser exigível o referido nexo causal, à luz do Decreto-Lei nº 291/2007, o certo é que – como muito bem salienta o tribunal a quo – não existe analogia possível entre a situação dos presentes autos e o condicionalismo do direito de regresso nos acidentes de viação com condução sob o efeito do álcool. Aqui trata-se de interpretar um clausulado contratual, e não a lei; aqui estamos perante uma conduta lícita praticada sob o efeito do álcool, e não perante uma conduta ilícita. Há é que encontrar um sentido razoável para o clausulado contratual, à luz das regras gerais da interpretação (independentemente de questões afins, mas não análogas, discutidas noutros domínios).

Ora, como também com acerto sublinha o tribunal a quo, não faz qualquer sentido que o contrato permitisse a exclusão de responsabilidade da seguradora pela simples presença de álcool no sangue acima do valor ali indicado, fosse qual fosse a conduta empreendida no momento da morte do segurado (aliás, mesmo que fosse transponível para o presente caso a referida discussão sobre o alcance do artº 27º, nº 1, al. c), do Decreto-Lei nº 291/2007, note-se que, mesmo na tese mais favorável às seguradoras, sempre estas têm o ónus de provar que o condutor deu causa ao acidente, ou seja, a existência de um prévio nexo causal entre a actuação do condutor e a produção do acidente: cfr., para além do aresto supracitado, ainda, por todos, o Ac. RL de 21/11/2013, Proc. 291/11.1TBAGH.L1-2, idem). Como afirma o tribunal a quo, bastava que o segurado tivesse uma TAS acima de 0,5 g/l e estivesse a realizar qualquer actividade inócua, do ponto de vista da produção do evento morte (como comer, andar, ler um livro), para haver exclusão de responsabilidade. Seria uma interpretação que não atenderia ao normal equilíbrio entre prestações próprio de um contrato sinalagmático. Afigura-se-nos, pois, evidente que a cláusula em apreço sempre imporá que se averigue se a presença de álcool é causal em relação à produção do evento morte.

Neste ponto, seria então de indagar se existiria um nexo causal entre a ingestão do álcool e a morte do segurado. Não obstante parecer notório, no caso presente, que a mera entrada do sinistrado na água, mesmo estando sob o efeito do álcool, não constituía causa adequada da sua morte, poderiam ter-se verificado circunstâncias concretas que permitissem estabelecer essa ligação entre esses dois factos.

Porém, a apreciação sobre essa matéria está definitivamente encerrada – e no sentido da inexistência desse nexo. Vejamos.

Como se assinalou supra, no âmbito da discussão da matéria de facto, chegou o tribunal a quo à conclusão de que não ficaram provados dois factos que seriam relevantes desse ponto de vista: não se provou que a morte do marido da A. se deveu a suicídio ou à ingestão de álcool (factos não provados sob os nos 1 e 2). Ou seja, a partir da análise das circunstâncias apuradas sobre a produção do evento morte e da taxa de alcoolemia apresentada pelo sinistrado, e feita a respectiva ponderação, chegou o tribunal a quo a respostas negativas sobre questões relevantes para aferir do nexo causal entre a presença de álcool e a morte.

Poderia até sustentar-se que a conclusão sobre a existência ou não desse nexo causal seria alcançável por dedução lógica, a partir dos factos disponíveis e fundada em presunções judiciais. Mas a verdade é que, neste caso, foram formulados juízos de facto sobre a matéria do nexo causal, no âmbito da decisão de facto. Ora, perante essas respostas negativas, e sem que tenha sido impugnada pela R. a decisão sobre a matéria de facto, não pode a mesma deixar de ter toda a relevância sobre o destino da acção, em termos de carência da prova de um pressuposto essencial (nexo de causalidade) da exclusão da responsabilidade da seguradora que se pretendia fazer valer in casu – e isto sem que tenha sequer que se discutir aqui a questão de saber quem tinha o ónus da prova da existência desse nexo causal.

Se é negado o nexo causal em sede de decisão de facto, não se encontra fundamento técnico que permita alcançar a prova desse mesmo nexo causal sem ser através da impugnação da própria matéria de facto, em ordem a obter a alteração da decisão de facto. Não tendo havido tal impugnação por parte da recorrente, formalmente sustentada no cumprimento dos ónus impostos pelo artº 640º, nº 1, do NCPC, ficou definitivamente resolvida a questão do nexo causal – e aqui em sentido negativo, o que tem como efeito a não aplicação da cláusula contratual excludente da cobertura do seguro relativamente à morte do segurado e a consequente claudicação da pretensão da R. de exclusão da sua responsabilidade perante a A..

Pelo que vimos de expor, afigura-se-nos, pois, serem de acolher os fundamentos da sentença recorrida e a respectiva conclusão quanto à cobertura do evento morte do marido da A. pelo contrato de seguro em apreço, depois transposta para o segmento sob a al. a) do dispositivo da sentença recorrida. Note-se que, por efeito desse contrato, assumiu a R. a obrigação de, em caso de morte daquele segurado, suportar o pagamento à «Caixa Geral de Depósitos» do que estivesse em dívida à data do sinistro, no âmbito do contrato de mútuo celebrado pela «Caixa» com a A. e seu falecido marido – o que fundamentou, por sua vez, o que veio a ser inscrito pelo tribunal a quo nos segmentos sob as als. b) e c) do dispositivo da sentença recorrida.

2. Posto isto, colocar-se-á então a questão subsidiária suscitada pela apelante.

Tendo em conta a não exclusão da responsabilidade da R. apelante (que se acaba de confirmar no presente recurso) – e verificado que a sua recusa em assumir essa responsabilidade determinou que não fosse paga à «Caixa» a quantia devida à data da morte do segurado e que a A. continuasse a pagar as prestações que deveriam ter sido suspensas naquela data –, decidiu o tribunal a quo que deveria ser reposta a situação como se a R. tivesse assumido a sua responsabilidade na data da morte do segurado. E, nessa base, formulou um juízo de plena procedência do pedido da A. formulado na petição inicial, com as seguintes consequências condenatórias em relação à R. (inscritas nos segmentos sob as als. b) e c) do dispositivo da sentença recorrida): sua condenação a pagar à «Caixa Geral de Depósitos» o valor em dívida do referido contrato de empréstimo celebrado por A. e falecido marido com a «Caixa»; e sua condenação a pagar à A. as quantias a esta cobradas como capital e prémio de seguro desde a data da morte do segurado (e até à suspensão dessas cobranças).

Vem agora a R. apelante, já em sede de recurso, e perante essa sua condenação, alegar que tal condenação se traduzirá numa duplicação de pagamentos a seu cargo – com o que pretende dever este Tribunal de recurso reparar esse imputado erro (e apresentando até uma alternativa condenatória a este Tribunal, que se encontra registada nas conclusões 15ª e 16ª das suas alegações de recurso).

Ora, não obstante o pedido da A. estar formulado, com essa configuração, desde a petição inicial, o certo é que não teve a R. a preocupação de suscitar logo perante o tribunal de 1ª instância a questão da suposta «duplicação de pagamentos» que resultaria da eventual procedência integral do pedido da A. Ou seja: nunca a R. suscitou perante o tribunal a quo essa questão, que poderia ter logo aí suscitado; e pretende agora que o tribunal ad quem se pronuncie sobre tal questão, depois de confrontada com a procedência plena daquele pedido, com consequências que poderia ter logo antecipado.

Estamos, pois, confrontados com uma questão que é suscitada pela primeira vez perante este Tribunal de recurso, quando já poderia ter sido suscitada anteriormente perante o tribunal de 1ª instância. E se uma questão não foi apreciada pelo tribunal a quo, então também não se pode pronunciar sobre ela o tribunal de recurso.

Como é sabido, os recursos, no nosso sistema processual, têm uma finalidade de reapreciação pelo tribunal superior de matéria ponderada na decisão recorrida, e não de apreciação de todas e quaisquer questões que os recorrentes entendam submeter-lhe, mesmo que não colocadas perante o tribunal recorrido (sobre esta matéria, cfr. Código de Processo Civil Anotado, vol. 3º, tomo I, 2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pp. 7-8; MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., Lex, Lisboa, 1997, p. 395; e, entre outros, Acs. RG de 3/11/2003, Proc. 1573/03-1, RE de 27/11/2003, Proc. 1640/03-3, e RL de 25/6/2008, Proc. 3668/2008-4, in www.dgsi.pt). Como sublinham LEBRE DE FREITAS et alii, «os recursos ordinários são, entre nós, recursos de reponderação e não de reexame», pelo que aos tribunais de recurso cabe «controlar a correcção da decisão proferida pelo tribunal recorrido, face aos elementos averiguados por este último», ou seja, «não [lhes] cabe conhecer de questões novas (o chamado ius novorum), mas apenas reapreciar a decisão do tribunal a quo, com vista a confirmá-la ou revogá-la» (ibidem), apenas sendo ressalvadas questões novas que sejam de conhecimento oficioso, como questões de inconstitucionalidade ou de caducidade em matéria excluída da disponibilidade das partes, suscitadas em alegações de recurso (neste sentido, ainda LEBRE DE FREITAS et alii, ob. e loc. cits.).

Isto significa que não pode este Tribunal apreciar a questão ora suscitada ex novo em sede de recurso: só poderia ser objecto do recurso se se tratasse de questão de conhecimento oficioso – o que não é o caso. E, na medida em que a apreciação dessa questão se projectaria sobre os segmentos sob as als. b) e c) do dispositivo da sentença recorrida, está consequentemente vedado a este Tribunal alterar o decidido pelo tribunal a quo em termos de procedência do pedido da A. quanto a esses precisos segmentos.

3. Não se vislumbra, pois, fundamento para alterar ou revogar o que foi decidido na 1ª instância – e assim deverá improceder integralmente a presente apelação.

Em suma: pelas razões aduzidas, a presente apelação não merece provimento, pelo que se confirma o juízo decisório formulado na sentença recorrida.

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III – DECISÃO:

Pelo exposto, decide-se julgar improcedente o presente recurso, confirmando a sentença recorrida.

Custas pela apelante (artº 527º do NCPC).

Évora, 09 / Julho / 2015
Mário António Mendes Serrano
Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes (dispensei o visto)
Mário João Canelas Brás (dispensei o visto)