Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
10/19.4GAODM.E1
Relator: MARIA CLARA FIGUEIREDO
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
ELEMENTO NEGATIVO DO TIPO
INTERESSE DO ARGUIDO NA APRECIAÇÃO DO RECURSO
Data do Acordão: 09/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I - As exigências estabelecida pelo artigo 21º do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de janeiro correspondem a elementos negativos do tipo, restritivas do âmbito de aplicação da referida norma penal, pelo que a simples detenção do estupefaciente, só será proibida e punível como crime de tráfico – seja o do artigo 21.º, seja o do artigo 25.º – se não estiver autorizada e se não se encontrar abrangida pela previsão do artigo 40.º.

II - Por outro lado, a detenção, só por si, e desacompanhada do facto relativo à destinação da droga ao consumo exclusivo do seu detentor, não permite igualmente a sua integração no crime de consumo p. e p. no artigo 40º do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, conquanto também este reclama a prova de tal facto.

III - Não cumpre ao julgador aditar ao objeto do processo fixado na acusação os factos essenciais sem os quais a conduta aí descrita não constituirá crime. Fazê-lo, traduzir-se-ia numa flagrante violação do princípio do acusatório e da vinculação temática estrutural ao nosso direito processual penal.

IV - Os princípios gerais do processo penal português não comportam a atribuição de quaisquer ónus de prova ao arguido, ou sequer, a utilização de tal conceito civilista no âmbito do processo penal, ao qual, manifestamente se sobrepõem os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo.

V - Em nome do respeito absoluto pelas garantias de defesa do arguido, entendemos que o interesse do mesmo no recurso deverá aferir-se apenas em função do fim visado, ou seja, terá interesse em recorrer o arguido que com a interposição do recurso vise alcançar uma decisão que lhe seja mais favorável, independentemente da posição que tenha assumido no decurso do processo, nomeadamente nas alegações orais produzidas pela sua defensora na audiência de julgamento.

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório.

Nos presentes autos de processo comum com intervenção do tribunal singular que correm termos no Juízo de Competência Genérica de … - Juiz …, do Tribunal Judicial da Comarca de …, com o n.º 10/19.4GAODM, foi o arguido AA, nascido a …1987, natural da Alemanha, filho de BB e de CC, solteiro, residente em … – .., …, condenado pela prática em autoria material e na forma consumada de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelos artigos 21.º n.º 1 e 25.º alínea a), do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, com referência à tabela II-A anexa a tal diploma, na pena de 1 anos e 6 meses de prisão suspensa na sua execução.

***

Inconformado com tal decisão, veio o arguido interpor recurso da mesma, tendo apresentado, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever:

“1. O presente Recurso incide sobre Sentença proferida nos presentes Autos de Processo 10/19.4GAODM, Processo Comum (Tribunal Singular), com depósito em Secretaria Judicial em 23 de Fevereiro de 2022 e notificada ao Arguido, através de carta rogatória no passado dia 20 de Abril de 2022, nos termos do qual foi o Arguido AA condenado:

a)“(...) pela prática em autoria material e na forma consumada de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelos artigos 21º nº 1 e 25º, alínea a), do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela II-A anexa a tal diploma, na pena de 1 anos e 6 meses de prisão;

b) Suspender a execução da pena de prisão aplicada ao Arguido AA pelo período de 1 e 6 meses, a contar do trânsito em julgado da presente sentença;

c)Condenar o arguido AA no pagamento das custas do processo, fixando#se a taxa de justiça em 2 UC, e nos demais encargos do processo;

d) Declarar perdida a favor do Estado a substância estupefaciente apreendida nos autos;

e) Determinar a destruição da substância estupefaciente apreendida nos autos

2. Porém não pode o arguido conformar-se com a matéria de facto dada como provada, mais concretamente os pontos 1, 2, 4 e 5, pois que a mesma corresponde a uma visão dos factos não correspondente com a realidade, conforme adiante se procurará demonstrar.

3. O Recorrente que se fazia transportar numa autocaravana com mais três indivíduos, foi abordado, na sequência de uma acção de fiscalização, por dois militares da GNR, enquanto se encontrava numa carrinha autocaravana, a caminho de um festival de música.

4. Em momento algum se encontra descrito nos Autos em que língua abordaram os militares da GNR os ocupantes da carrinha autocaravana referida nos autos, sendo que, pelo menos o arguido só fala alemão e não diz nem sabe dizer qualquer palavra em Português.

5. Os senhores militares da GNR, aquando das suas declarações em sede de julgamento, não especificaram nem as perguntas efectuadas, nem tão pouco as respostas obtidas por parte dos ocupantes da autocaravana.

6. Em momento algum do depoimento das duas testemunhas ouvidas se percebe de que forma as referidas testemunhas se convenceram que a mochila por eles inspecionada, era pertença exclusiva do arguido AA.

7. Mesmo que por absurdo se acredite que foi o arguido quem entregou a mochila aos militares da GNR, esse facto, por si só, não determina que a mochila seja exclusivamente sua, nem exclusivamente seu o respectivo conteúdo.

8. Não se pode o arguido conformar com o teor do facto dado como provado sob o n.º 1 da matéria provada onde se afirma que “no dia 27.09.2019, pelas 16h00, na Estrada Municipal, km 11,300, tinha na sua posse o total de 2,205g de MDMA que, com um grau de pureza de 77,3%, correspondia a 17 doses diárias”.

9. Já que não só não há prova de que fosse sua a posse do produto estupefaciente, como inexiste prova de que tal quantidade correspondesse a “17 doses diárias”.

10. Tal produto na posse de 4 indivíduos, que o destinavam ao respectivo consumo, seria suficiente apenas para 4 dias, que era exactamente a duração do festival a que os 4 indivíduos se dirigiam.

11. Da mesma forma, relativamente ao ponto 2 da matéria de facto dada como provada, não se pode o arguido conformar que o tribunal afirme que era o arguido quem tinha consigo o recipiente em causa, pois que, mais uma vez, resulta do depoimento das duas testemunhas ouvidas, que tal recipiente estava numa mochila, e não com o arguido.

12. No que toca ao ponto 4 da matéria dada como provada, relativo ao conhecimento do arguido de que não podia ser possuídor de uma tal quantidade de estupefaciente, não se pode o arguido conformar com esse entendimento, na medida em que, tal quantidade de estupefaciente se destinava ao consumo dos 4 ocupantes da autocaravana, pelo que, imputar apenas a um deles a posse do estupefaciente, é desvirtuar a realidade e traduz uma visão distorcida do realmente sucedido.

13. Por fim, no ponto 5 da matéria de facto, relativamente ao elemento subjectivo do crime, não se pode o arguido conformar que o tribunal aprecie o mesmo, relativamente aos factos como o tribunal o s entende, e não como o arguido os percecionou e vivenciou.

14. não se percebe como o Tribunal logrou, dos dois parcos depoimentos dos militares da GNR, chegar à conclusão que era o arguido quem detinha a posse do estupefaciente.

15. Não basta fixar os factos, dando-os como provados ou não provados, é preciso explicar e dizer o porquê de tal opção.

16. Assim, embora a quantidade de produto aprendido seja já relevante, não só não é possível associar todo esse produto estupefaciente à exclusiva posse do arguido, como ficam sérias dúvidas de qual o seu destino, atento o n.º de ocupantes do veículo e potenciais consumidores do mesmo.

17. Neste contexto teria de se ter invocado, ao contrário do que foi feito na decisão recorrida, em sede de aplicação do direito, o princípio in dubio pro reo, pois a descrita situação, não se apurando a finalidade de tráfico, cai inapelavelmente na previsão do consumo.

18. Sobre o arguido não impende um ónus de provar o consumo.

19. Coisa diversa é, não se apurando o consumo, verificar-se o tráfico.

20. Impõe-se a correcção da matéria de facto para que passe a constar que se procedeu à apreensão de 2.205 gramas de MDMA sem que se conseguisse apurar nem a sua posse nem tão pouco o seu destino mas que, atendendo ao número de pessoas que se faziam transportar na autocaravana, tal quantidade se destinava ao seu consumo.

21. Só assim poderá o Recorrente ver feita justiça, nos termos do artigo 40º n.º 2 do DL 15/93 de 22/01.

22. E, na situação à saciedade descrita, sendo o MDMA encontrado pertença de todos os ocupantes da autocaravana, a quantidade em causa daria, - de acordo com as tabelas do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, que estabelecem como consumo médio – seria quantidade suficiente para 4 dias de consumo.

23. Mesmo que se entendesse que seria o MDMA apenas propriedade do Recorrente, é aceite a interpretação que na vigência da Lei n.º 30/2000, o art.º 40º do Decreto-lei n.º 15/93, de 20 de Janeiro, se aplica às situações de detenção para consumo, cuja quantidade exceda o consumo médio individual durante o período de dez dias.

24. O entendimento de que após a entrada em vigor da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, a detenção de produtos estupefacientes para consumo, em quantidade superior à necessária para consumo médio individual durante 10 dias, constitui contra-ordenação, deveria ter sido considerada pelo Tribunal ad quo, o que não aconteceu.

25. Assim, deverá considerar-se ser o produto estupefaciente ser declarado como produto claramente destinado a consumo e, bem ainda, ser o mesmo considerado pertença dos quatro passageiros da autocaravana.”

Termina pedindo se determine a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que absolva o recorrente da prática do crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelos artigos 21º e 26º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro pelo qual foi condenado.

*

O recurso foi admitido.

Na 1.ª instância, o Ministério Público pugnou pela improcedência do recurso e pela consequente manutenção da decisão recorrida, tendo apresentado as seguintes conclusões:

“1º. O arguido AA interpôs recurso da sentença proferida nos presentes autos, na qual foi condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelos artigos 21º nº 1 e 25º, alínea a), do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela II-A anexa a tal diploma, na pena de 1 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período.

2º. Entende o arguido que o Tribunal não andou bem, em dar como provados os seguintes pontos da matéria de facto:

“1. Que no dia 27 de Setembro de 2019, pelas 16:00 horas, na Estrada Municipal, Km …, o Recorrente tinha na sua posse o total de 2.205 gramas de MDMA que, com um grau de pureza de 77,3% correspondia a 17 doses diárias; 2. O MDMA encontrava-se dentro de um recipiente redondo em plástico, que o Arguido tinha consigo; 4. Sabia igualmente que a compra e detenção, especialmente pelas quantidades de produto estupefaciente que detinha, são proibidas por lei, mas, ainda assim, não se absteve de levar a cabo tal conduta; 5. O Arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.”.

3º. Não assiste razão ao recorrente, o Tribunal a quo apreciou de forma correcta e precisa o comportamento do recorrente, de acordo com a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento.

4º. Em suma, das alegações da recorrente apenas é possível apreender o seu inconformismo quanto à apreciação da matéria de facto.

5º. O recorrente insurge-se quanto ao facto de o Tribunal a quo ter valorado os depoimentos prestados pelas testemunhas, que salvo melhor opinião, não mereceram qualquer dúvida ou suspeita.

6º. Conforme resulta do teor da sentença, para a formação da sua convicção, o Tribunal procedeu ao exame crítico e conexo da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, nos termos dos artigos 97.º, n.º 5 e 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

7º. O Tribunal ponderou os juízos retirados da experiência comum e aplicou critérios de razoabilidade, em consonância com os depoimentos prestados em audiência de julgamento e prova documental.

8º. O Tribunal a quo fundamentou devidamente os motivos pelos quais as declarações das testemunhas militares da GNR mereceram credibilidade, nomeadamente pelo facto de terem estado presentes no momento dos factos e de serem condicentes quanto ao relato dos acontecimentos.

9º. Relativamente, à factualidade descrita n matéria de facto provada, nomeadamente no ponto 1., a testemunha DD, militar da GNR (Sessão 11-02-2022), foi peremptório, quando questionado se tinha produto estupefaciente: DD 01:21: ... No caso do Sr. AA, o mesmo disse que tinha dentro da sua mochila, pude verificar a mochila do Sr. AA, que indicou como sendo a sua, foi detectado 2,15g de MDMA.

10º.Quando inquirido EE, militar da GNR (Sessão 11-02-2022), o mesmo corroborou o depoimento da testemunha anterior: EE 00:53: Esta situação ocorreu no âmbito de uma operação inopinada de fiscalização, havia uma “rave” ali naquela zona e nós montámos uma operação na estrada, como é normal e o Sr. AA foi uma das pessoas que foi interceptada nessa altura, ele ia numa caravana, acho eu, nós perguntámos quem é que tinha estupefaciente e ele disse “eu tenho””. (…) MP 01:30: onde é que se encontrava o estupefaciente? EE 01:32:dentro de uma mochila.

11º.Os depoimentos prestados pelas testemunhas foram condicentes, relatando factos que presenciaram, descrevendo de forma pormenorizada os acontecimentos.

12º.Não se percebem as suspeitas levantadas pelo recorrente quanto à honestidade dos depoimentos, sendo certo que, não existe qualquer outra versão dos factos.

13º.Ainda que o silêncio do arguido não possa ser valorado contra si, a realidade é que também não aproveita a sua defesa, inexistindo quaisquer elementos que suportem a tese do arguido. Também não é possível retirar dos autos qualquer elemento que permita afirmar que o arguido é consumidor de produto estupefaciente.

14º.Apesar de inquestionável que não caberá ao arguido, ora recorrente fazer prova dos factos da acusação, é igualmente inquestionável que lhe cabe infirmar a prova da acusação e a prova produzida em julgamento.

15º.No caso dos autos, o recorrente não logrou, nem sequer minimamente, abalar o valor da prova produzida, sendo certo que a versão dos factos apresentada pelo recorrente, surge agora em sede de recurso.

16º.Analisando, na sua globalidade, a motivação de recurso apresentada pela recorrente, afigura-se-nos que a sua discordância assenta na valoração da prova efectuada pelo Tribunal a quo, valoração essa, livremente formada e fundamentada, a qual é a convicção lógica em face da prova produzida, pelo que deve ser acolhida a opção do julgador que beneficiou da oralidade e da imediação na recolha da prova.

17º.Como fica patente da análise da motivação de facto supra transcrita, o tribunal a quo recorreu às regras de experiência e apreciou a prova de forma objectiva e motivada, e os raciocínios aí expendidos merecem a concordância deste tribunal. Na realidade, o tribunal superior pode verificar se na sentença se seguiu um processo lógico e racional de apreciação da prova, ou seja, se a decisão recorrida não se mostra ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, mas, face aos princípios da oralidade e da imediação, é o tribunal de 1.ª instância que está em melhores condições para fazer um adequado uso do princípio de livre apreciação da prova.

18º.O recorrente entende que, pela aplicação do princípio in dúbio pro reo, não permite chegar às conclusões a que chegou o Tribunal, no que concerne à verificação da capacidade da recorrente para entender a ilicitude da sua conduta, no momento da prática dos factos.

19º.Na verdade, da análise da sentença recorrida não resulta que aí se tenha decidido, no que tange à matéria de facto, nomeadamente, no que respeita ao julgamento dos factos dados como provados, perante uma qualquer situação de dúvida, de factos incertos ou de non liquet.

20º.Não se impunha, assim, aplicar o aludido princípio na justa medida em que o Tribunal a quo proferiu a sentença no pleno convencimento de que os factos ocorreram e de que o recorrente foi seu autor, por força das provas devidamente valoradas e submetidas ao respectivo exame crítico.

21º.Não tinha, pois, o Tribunal que aplicar o princípio em apreço, não tendo, por isso, violado o artigo 32.º, n. º2, da Constituição da República Portuguesa.”

*

O Exmº. Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação, manifestando a sua concordância com a perspetiva jurídica e com as conclusões apresentadas na resposta do Ministério Público da primeira instância, emitiu parecer no qual se pronunciou igualmente no sentido da improcedência do recurso.

*

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP, não tendo sido apresentada qualquer resposta.

Procedeu-se a exame preliminar.

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

***

II – Fundamentação.

II.I Delimitação do objeto do recurso.

Nos termos consignados no artigo 412º nº 1 do CPP e atendendo à Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28/12/95, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sua motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, sem prejuízo de poderem ser apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

Em obediência a tal preceito legal, a motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida.

No presente recurso e considerando as conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, são as seguintes as questões a apreciar e a decidir, a saber:

A) Apreciar se na sentença recorrida ocorreu erro de julgamento da matéria de facto, por errada valoração da prova produzida nos autos, com desrespeito do princípio da livre apreciação da prova consagrado no art.º 127º do CPP e do princípio do in dubio pro reo.

B) Determinar se ocorreu erro de julgamento em matéria de direito por subsunção dos factos provados indicados no recurso ao tipo legal de crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelos artigos 21.º n.º 1 e 25.º alínea a) do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de janeiro.

*** II.II - A decisão recorrida.

Realizada a audiência final, foi proferido acórdão que deu como provados e não provados os seguintes factos:

“(…)2.1. Factos provados

Com relevo para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:

1. No dia 27.09.2019, pelas 16h00, na Estrada Municipal, km …, o Arguido tinha na sua posse o total de 2,205g de MDMA que, com um grau de pureza de 77,3%, correspondia a 17 doses diárias.

2. O MDMA encontrava-se dentro de um recipiente redondo em plástico, que o Arguido tinha consigo.

3. O Arguido conhecia perfeitamente as características estupefacientes e psicotrópicas da substância que detinha.

4. Sabia igualmente que a compra e detenção, especialmente pelas quantidades de produto estupefaciente que detinha, são proibidas por lei, mas, ainda assim, não se absteve de levar a cabo tal conduta.

5. O Arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

6. O arguido não tem antecedentes criminais.

2.2 Factos não provados

Com relevância para a decisão da causa, não ficaram por demonstrar quaisquer factos. (…)»

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II.III - Apreciação do mérito do recurso.

A) Do invocado erro de julgamento quanto à matéria de facto.

Os poderes de cognição dos Tribunais da Relação encontram-se expressamente consignados no artigo 428.º do CPP, dispondo o mesmo que “As Relações conhecem de facto e de direito”. Sabendo-se que os recursos são soluções de natureza jurídico processual, que se encontram vocacionados para verificar a existência e, sendo caso disso, para corrigir erros de julgamento – quer os que resultam da violação de normas direito processual, quer os emergentes da não aplicação ou da aplicação incorreta de normas de direito substantivo – importa ter presente que no caso dos recursos sobre a matéria de facto, ao tribunal de recurso não cabe julgar novamente, devendo respeitar a liberdade de apreciação da prova que o legislador concedeu ao “juiz a quo”.

No presente recurso encontra-se impugnada a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida, invocando-se, assim, a existência de um erro de julgamento. O erro de julgamento – que deverá ser invocado através da impugnação da matéria de facto em sentido amplo, com observância dos ónus impostos pelo artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 (1)– ocorre quando o tribunal considera provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova bastante, pelo que deveria ter sido considerado não provado; ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.

Para a arguição de um erro de julgamento não é suficiente a invocação de mera divergência de entendimento do recorrente relativamente à convicção formada pelo julgador, uma vez que é a este que a lei atribui o poder de apreciar livremente as provas, o que deverá fazer de acordo com o disposto no artigo 127.º CPP, ou seja, com respeito pelo princípio da livre apreciação da prova, mas segundo parâmetros racionais controláveis.

Assim, sempre que seja impugnada a matéria de facto, por se entender que determinado aspeto da mesma foi incorretamente julgado, o recorrente deverá indicar expressamente: tal aspeto; a prova em que apoia o seu entendimento; e, tratando-se de depoimento gravado, o segmento do suporte técnico em que se encontram os elementos que impõem decisão diversa da recorrida. Tais indicações constarão, pois, da motivação do recurso, que deverá ser elaborada de forma a permitir apontar ao Tribunal ad quem o que, na perspetiva do recorrente, foi mal julgado, oferecendo uma proposta de correção que possa ser avaliada pelo tribunal de recurso. (2)

E foi isso que o recorrente fez nos presentes autos, tendo assinalado os factos que considera erradamente julgados e tendo apresentado as provas em que sustenta o seu entendimento, quer transcrevendo parte dos depoimentos que entendeu relevantes, quer indicando as passagens da gravação que registam tais depoimentos. Em breve nota sobre o princípio da livre apreciação da prova, que encontra consagração legal no artigo 127.º CPP, fazemos notar que, segundo tal princípio processual penal, «a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente». Tal liberdade de apreciação da prova assenta em pressupostos valorativos e obedece aos critérios da razão, da lógica, da experiência comum e dos conhecimentos científicos disponíveis, tendo por referência a pessoa média suposta pela ordem jurídica, pelo que, de forma alguma, poderá confundir-se com arbítrio. Assentamos, pois, em que o princípio da livre apreciação da prova consignado no artigo 127.º, do Código de Processo Penal, não representa a possibilidade de uma apreciação puramente subjetiva, arbitrária, baseada em meras impressões ou conjeturas de difícil ou impossível objetivação, antes pressupõe uma cuidada valoração objetiva e crítica e, em boa medida, objetivamente motivável, pelo que a formação da convicção do julgador só será válida se for fundamentada e, desse modo, tiver a capacidade de se impor aos seus destinatários através da demonstração do processo intelectual e lógico seguido para a afirmação da verdade dos factos, para além de dúvida razoável.

Pretendendo impugnar a matéria de facto considerada provada pelo tribunal a quo, e em observância das exigências legais necessárias à impugnação da matéria de facto constantes do artigo 412º, n.ºs 3 e 4 do CPP acima explicitadas, o recorrente:

- Indicou os pontos concretos da sua discordância, que no caso do presente recurso, são todos os factos imputados ao arguido, ou seja, os constantes dos pontos 1, 2, 4 e 5 dos factos provados.

- Especificou os pontos do suporte informático em que se encontram as passagens dos depoimentos gravados de que se socorreu, passagens que transcreveu parcialmente na sua motivação de recurso;

- E explicou as razões pelas quais, no seu entendimento, tal prova levaria a decisão diversa da recorrida.

As questões colocadas pelo recorrente reportam-se à alegada falta de sustentabilidade e de credibilidade dos depoimentos das testemunhas nos quais se arrimou a decisão sindicada. Mais alega que o tribunal deveria ter aplicado o princípio do in dubio pro reo e ter considerado os factos como não provados.

Mas, a nosso ver, não tem razão relativamente ao que alega quanto à falta de credibilidade das testemunhas, nem no que tange à prova dos factos de cariz objetivo constantes dos pontos 1. e 2.. Na sentença encontra-se explicado por que razão o tribunal recorrido, por referência à lógica e por apelo racional às regras de experiência comum, entendeu que a prova produzida em julgamento se revelou suficiente para firmar convicção relativamente aos aludidos factos. E ouvidos os depoimentos das testemunhas produzidos em audiência, nenhuma censura nos merece o juízo probatório realizado na sentença recorrida e consignado na motivação da convicção probatória que passamos a transcrever: “(…)2.3. Motivação de facto No caso em apreço, a convicção do tribunal assentou nas declarações das testemunhas, conjugadas com a prova documental junta aos autos, nomeadamente o auto de notícia (fls. 3 e 4) e o auto de apreensão (fls. 5 e 6). Efetivamente, foi ouvida a testemunha DD, militar da GNR, que explicou que no dia em causa efetuavam uma operação rodoviária nas imediações de um festival, tendo sido parada uma autocaravana com matrícula alemã onde seguia o arguido e outros indivíduos. Explicou que após terem sido parados, perguntou se tinham estupefacientes e o arguido entregou-lhes uma mochila onde, após revista, foi detetado o MDMA dentro de um recipiente de plástico. Foi ainda ouvida a testemunha EE, militar da GNR que também participou na operação, tendo esta testemunha corroborado as declarações da testemunha DD. Assim, referiu que o veículo foi mandado parar e o arguido foi uma das pessoas intercetadas nessa altura, tendo sido detetado MDMA na sua mochila, que o próprio entregou após lhe ter sido perguntado se tinha estupefaciente. Esclareceu que, ao que recordava, se tratava de cerca de 2 gramas de MDMA acondicionadas numa embalagem de plástico. Ambas as testemunhas prestaram declarações de forma sincera, isenta e objetiva, tendo os seus depoimentos sido coerentes entre si e, ainda, mostrando-se em consonância com o teor do auto de notícia e o auto de apreensão elaborados pela testemunha DD e juntos aos autos, de onde decorre de forma mais concreta a data e hora dos factos, bem como o peso e as características do estupefaciente. (…) Assim, sopesando a prova produzida em audiência de julgamento, que se revelou credível e não foi infirmada por qualquer outro elemento de prova, o tribunal ficou convencido de que o arguido praticou os factos constantes da acusação. Quanto à ausência de antecedentes criminais, a mesma resulta do Certificado de Registo Criminal junto aos autos.(…)”

Subscrevemos integralmente tal linha argumentativa. Assim, ao contrário do que refere o recorrente, verificamos que os depoimentos dos militares da GNR ouvidos em audiência na qualidade de testemunhas se revelam sustentados e não enfermam de contradições, mostrando-se, ao invés, coerentes e consentâneas no que à essencialidade dos factos diz respeito, nenhuma razão válida se vislumbrando para pôr em causa a seriedade e a credibilidade dos mesmos. Registamos que o facto alegado pelo recorrente consubstanciado na circunstância de o mesmo só falar alemão – visando por em causa a credibilidade dos depoimentos do militares da GNR na parte em que relataram as respostas que aquele terá dado aquando da interceção – não consta do elenco dos factos provados, nem tão pouco as testemunhas mencionaram em que língua comunicaram com o arguido e com os restantes ocupantes do veículo, pelo que nenhuma relevância será de atribuir a tal argumentação. De igual modo não corresponde à verdade a alegação do recorrente no sentido de que “quer na matéria dada como provada, quer na respetiva motivação da matéria de facto, foi totalmente ignorado pelo Tribunal a quo a circunstância de na caravana se encontrarem a viajar, quatro pessoas e não apenas o arguido”. O Tribunal não ignorou tal facto, simplesmente não o considerou relevante para a imputação ao arguido da factualidade que sustentou a sua condenação, pelo que não o incluiu no acervo factológico. Nem a circunstância de se encontrarem quatro pessoas dentro da autocarava condicionou a formação da convicção probatória no que tange à posse do produto estupefaciente pelo recorrente, conquanto, segundo as testemunhas, terá sido este a assumir tal facto.

Por outro lado, e ao contrário do que se alega no recurso, os militares da GNR, nos seus depoimentos, não transmitiram as suas “convicções” relativamente aos factos, tendo, outrossim, relatado os acontecimentos que presenciaram no exercício das suas funções. Acresce que o arguido, regularmente notificado na morada do TIR, não compareceu na audiência de julgamento, não tendo sido produzida qualquer outra prova que lograsse contrariar o teor dos aludidos depoimentos, tendo o tribunal sustentado a sua convicção probatória quanto aos factos objetivos constantes dos pontos 1. e 2 na conjugação dos mesmos com a prova documental junta aos autos, concretamente o auto de notícia (constante de fls. 3 e 4) e o auto de apreensão (exarado a fls. 5 e 6). No que tange ao número de doses diárias (17) às quais correspondia a quantidade de estupefaciente encontrado na posse do recorrente, referidas no ponto 1. dos factos provados, a sua determinação encontra suporte bastante na prova pericial, concretamente no relatório da Polícia Científica da Polícia Judiciária junto aos autos em 11.12.2020, cujo teor não foi posto em causa nos termos previstos no artigo 163º do CPP. Verificamos, pois, que, a mais de valorizarmos a importância da imediação na apreciação da prova, que, incontornavelmente, coloca o juiz de julgamento numa posição privilegiada para proceder à sua apreciação – conquanto o mesmo tem acesso não só à expressão verbal, escrutinada pelo tribunal de recurso através da audição das gravações, mas também às expressões não verbais a que aquele não tem acesso – e de nenhuma razão válida existir para descredibilizar os depoimentos dos militares da GNR que intercetaram o recorrente, foi da conjugação de todas as provas que se inferiram os factos dados como provados nos pontos 1. e 2..

Vale o mesmo por dizer que não concordamos com a alegação da recorrente no sentido de que a prova constante dos autos não permite formular um juízo probatório positivo sobre os factos objetivos tidos por provados e impugnados no recurso. Afigura-se-nos, ao invés, que o que legitimamente fez o tribunal “a quo” foi analisar a prova produzida de acordo com um critério lógico e, com auxílio das regras da experiência comum, realizar as devidas inferências, sendo que estas lhe permitiram chegar à autoria de tais factos por parte do arguido. Em rigor, em nenhum passo do recurso é apresentada qualquer prova ou conjunto de provas que possa consistentemente contrariar aquelas em que o tribunal a quo firmou a sua convicção. O mesmo sucedendo relativamente às operações de valoração das provas expostas na motivação respetiva. Em suma, analisados ambos os depoimentos, em conjunto com a restante prova produzida nos autos, a julgadora fundadamente decidiu que, com apoio racional nas regras da experiência comum, não se verificaram incongruências ou contradições determinantes da criação de qualquer dúvida sobre a veracidade dos factos objetivos imputados ao arguido, pelo que, ao contrário do propugnado no recurso, inexistiu fundamento para convocar, quanto aos mesmos, o princípio do in dubio pro reo.

Quanto a tal princípio, invocando o arguido que a sentença recorrida o desrespeitou, deixamos uma breve nota. O princípio da livre apreciação da prova, a que se refere o artigo 127.º CPP, constitui uma concretização do princípio da presunção de inocência – maxime na sua dimensão in dubio por reo – que encontra referência normativa expressa nos artigos 32.º, nº 2 e 27.º, nº 1 da CRP, no artigo 6.º, nº 2.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e no artigo 14.º, nº 2.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos. Retenhamos, porém, que «o princípio da presunção de inocência excede em significado e consequências o princípio in dubio pro reo, constituindo este apenas um critério de decisão em caso de dúvida quanto à verificação dos factos. (3)» ou seja, uma «regra de decisão na falta de uma convicção para além da dúvida razoável sobre os factos» (4). De acordo com tal regra, que inevitavelmente se conexiona com o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, determina-se que a dúvida seja resolvida a favor do réu. O seu âmbito reconduz-se, pois, à valoração pelo julgador de toda a prova produzida. Se o resultado desse processo de valoração for uma dúvida – uma dúvida razoável e insuperável sobre a realidade dos factos – o juiz terá que decidir a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável.

Voltando ao caso em apreciação nos presentes autos, verificamos que os princípios explanados se mostram devidamente observados no que tange à prova dos factos constantes dos pontos 1. e 2 do elenco dos factos provados. Efetivamente, analisada a sentença recorrida, constata-se que, após o processo de valoração da prova não subsistiu ao julgador qualquer dúvida razoável que impusesse a aplicação do princípio do in dubio pro reo quanto a tal factualidade. Levando em conta as razões descritas na motivação da decisão recorrida e as considerações que deixámos expostas, somos, pois, a concluir que da valoração da prova produzida não surgiu o non liquet relativamente aos factos objetivos imputados ao arguido, que, por aplicação do aludido princípio, determinaria que devessem ser julgados não provados. Deverão, pois, manter-se nos factos provados os factos constantes dos pontos 1. E 2. impugnados no recurso, nenhuma censura nos merecendo o juízo probatório realizado pelo tribunal “a quo” a tal respeito.

* Outra análise merece, a nosso ver, a impugnação da matéria de facto atinente aos elementos subjetivos do tipo e à consciência da ilicitude constantes dos pontos 4. e 5 dos factos provados. É certo que, na normalidade dos caos, tais factos se inferem naturalmente dos factos objetivos, analisados de acordo com as regras da lógica e da experiência comum, conforme, aliás, se encontra explicitado na sentença recorrida. Porém, a situação que nos ocupa não se insere na normalidade dos casos, revestindo, de outra sorte, contornos muito particulares que põem em causa a sua relevância criminal, nos termos melhores explicitados no item subsequente. E, por tal razão, se nos afigura não se encontrarem reunidas as condições legitimadoras das inferências que poderiam sustentar a convicção probatória relativamente a tais factos, os quais, em nome do princípio do “in dubio pro reo” a que acima nos reportámos, deverão, por isso, ser conduzidos aos factos não provados.

***

B) Do alegado erro de subsunção dos factos provados ao crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelos artigos 21.º n.º 1 e 25.º alínea a), do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de janeiro.

Alega o recorrente a este propósito que: “(…) a descrita situação, não se apurando a finalidade de tráfico, cai inapelavelmente na previsão do consumo. Vejamos: Fazendo o confronto entre os artºs 21º e 40º (na parte relativa ao cultivo ainda indiscutivelmente em vigor cfr. art.º 28º da Lei n.º 30/2000 ) do Decreto Lei n.º 15/93 e o actual regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, artºs 1º e 2º da Lei n.º 30/2000, entendemos que o destino da droga ao exclusivo consumo do próprio agente, constitui um elemento típico do ilícito – penal ou contra ordenacional - de consumo de droga, previsto nos artºs 40º O propósito de destinar as substâncias ao consumo do agente preenche o elemento subjectivo do tipo. De facto, cfr. Eduardo Lobo (in Decisões de Tribunais de 1ª Instância 1993 pág. 33) afirma textualmente: «a formulação do tipo do art.º 21 nesses termos induz-nos a ver aí um elemento positivo formulado negativamente, cuja pertinência fáctica, nesta perspectiva, deverá ser investigada, alegada, e provada, que a droga não se destina a exclusivo consumo do agente”. O que claramente não se fez na sentença recorrida. O acabado de referir não obsta a que, em sede de decisão da matéria de facto, se considere – caso se verifiquem os respectivos pressupostos - o princípio in dubio pro reo, para concluir pelo consumo. Sobre o arguido não impende um ónus de provar o consumo. Coisa diversa é, não se apurando o consumo, verificar-se o tráfico. Essa circunstância não invalida, porém, que em sede de decisão de matéria de facto o juiz faça apelo e correcto uso do in dubio pro reo mesmo para concluir pelo consumo.

“Um non liquet na questão da prova, tem de ser sempre valorado a favor do arguido”, cfr. F. Dias, Direito Processual Penal, 1974, 213.

Por outro lado o princípio in dubio pro reo, vale só em relação à prova da questão de facto, mas aplica-se aqui sem qualquer limitação.

As dúvidas do julgador neste concreto tipo de crime, respeitantes ao destino da droga, têm que ser logo resolvidas em sede de decisão de matéria de facto.

Impõe-se a correcção da matéria de facto para que passe a constar que se procedeu à apreensão de 2.205 gramas de MDMA sem que se conseguisse apurar nem a sua posse nem tão pouco o seu destino mas que, atendendo ao número de pessoas que se faziam transportar na autocaravana, tal quantidade se destinava ao seu consumo.

Só assim poderá o Recorrente ver feita justiça, nos termos do artigo 40º n.º 2 do DL 15/93 de 22/01.

Isto porque, com a entrada em vigor da Lei n° 30/2000, de 29 de Novembro, veio o artigo 2º, no seu número 2 que a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.

E, na situação à saciedade descrita, sendo o MDMA encontrado pertença de todos os ocupantes da autocaravana, a quantidade em causa daria, - de acordo com as tabelas do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, que estabelecem como consumo médio – seria quantidade suficiente para 4 dias de consumo.

Mesmo que se entendesse que seria o MDMA apenas propriedade do Recorrente, é aceite a interpretação que na vigência da Lei n.º 30/2000, o art.º 40º do Decreto-lei n.º 15/93, de 20 de Janeiro, se aplica às situações de detenção para consumo, cuja quantidade exceda o consumo médio individual durante o período de dez diasi.

O entendimento de que após a entrada em vigor da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, a detenção de produtos estupefacientes para consumo, em quantidade superior à necessária para consumo médio individual durante 10 dias, constitui contra-ordenação, deveria ter sido considerada pelo Tribunal ad quo, o que não aconteceu.(…)”

*

Começamos por relembrar que, no que diz respeito ao acervo factológico a subsumir, o mesmo se cristalizou no elenco dos factos provados fixado no item anterior, mantendo-se nos factos provados apenas o que se incluiu decisão recorrida nos números 1. a 3., pelas razões acima explanadas.

Importa, pois, apreciar se a matéria de facto provada é suficiente para integrar o crime de tráfico de menor gravidade pelo qual o recorrente foi condenado.

A conduta típica do crime de tráfico de estupefacientes encontra-se prevista no artigo 21.º do D.L. n.º 15/93, de 22 de janeiro, norma que constitui o que se pode designar de tipo legal de base. Estabelece tal preceito que comete o crime de tráfico, “1 - Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.”

O artigo 25.º do citado diploma constitui um tipo legal privilegiado, aplicável em função da diminuição da intensidade da ilicitude, e dispõe da seguinte forma: “Se, nos casos dos artigos 21.º e 22.º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de:

a) Prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI;

b) Prisão até 2 anos ou multa até 240 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV.”.

Com vista à sua melhor apreensão e aplicação ao caso concreto, detenhamo-nos um pouco na apreciação dos crimes de tráfico de estupefacientes previstos e punidos nos artigos 21.º e 25.º do D.L. n.º 15/93, de 22 de janeiro.

No que tange ao bem jurídico protegido pelas incriminações, visa-se essencialmente a proteção da saúde pública, conclusão que retiramos de vários indicadores. Com efeito, desde logo no preâmbulo do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, que define o regime jurídico aplicável ao tráfico e ao consumo de estupefacientes, se consigna que um dos objetivos do legislador é o de contribuir “para que o toxicodependente ou consumidor habitual se liberte da escravidão que o domina, mediante os incentivos adequados ao tratamento médico e à reabilitação, que o tragam de volta para o cotejo da vida útil, se possível feliz, no seio da comunidade”, aí se explicitando o claro propósito de combater os efeitos perversos da toxicodependência conducentes à degradação e à destruição dos seres humanos.

No mesmo sentido, reportando-se ao bem jurídico protegido pela incriminação aqui em análise, se pronunciou Lourenço Martins, referindo que “o bem jurídico primordialmente protegido pelas previsões do tráfico é o da saúde e integridade física dos cidadãos vivendo em sociedade, mais sinteticamente, a saúde pública.” (5)

De igual modo, o Tribunal Constitucional, decidiu que “o tráfico de estupefacientes põe em causa uma pluralidade de bens jurídicos: a vida, a integridade física e a liberdade dos virtuais consumidores; e, ademais, afeta a vida em sociedade, dificultando a inserção social dos consumidores, possuindo também comprovados efeitos criminógenos”(6).

Constituindo um crime de perigo comum, o crime de tráfico de estupefacientes não requer a verificação, em concreto, de um dano aos bens jurídicos protegidos. Sendo que, conforme evidencia o acórdão do Tribunal Constitucional acima referido, se trata de um crime de perigo abstrato, que não pressupõe nem o dano, nem o perigo de um concreto bem jurídico protegido pela incriminação, “mas apenas a perigosidade da ação para uma ou mais espécies de bens jurídicos protegidos, abstraindo de algumas das outras circunstâncias necessárias para causar um perigo a um desses bens jurídicos”.(7)

O crime de tráfico de estupefacientes surge assim imbuído destas preocupações legislativas, podendo, em suma, ser caracterizado como um tipo legal que visa a proteção de uma multiplicidade de bens jurídicos, e, que reveste a natureza de um crime de perigo abstrato, que não exige o dano ou, sequer, o perigo efetivo de violação dos bens jurídicos protegidos.

No artigo 25.º do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de janeiro encontram-se previstos os casos de tráfico de «menor gravidade», aqui se pretendendo incluir as situações em que o tráfico de substâncias estupefacientes se realiza em termos que tornam a ilicitude dos factos consideravelmente diminuída. O preceito em causa indica como critérios orientadores algumas circunstâncias suscetíveis de revelarem a diminuição acentuada da ilicitude prevista na norma. São elas: “os meios utilizados”, “a modalidade ou as circunstâncias da ação”, “a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações” objeto do tráfico. Na hermenêutica do tipo legal tem a jurisprudência delineado, de forma praticamente unânime, um critério norteador da aferição do que deverá entender-se por ilicitude “consideravelmente diminuída”, nos termos do qual deverá ponderar-se globalmente o facto por forma a concluir-se se a ilicitude da conduta fica aquém da gravidade pressuposta na previsão legal do tipo base consagrado no artigo 21º do citado diploma legal, uma vez que no artigo 25.º se encerra um tipo legal privilegiado daquele.

Na situação dos autos, o Tribunal recorrido entendeu que os factos considerados provados integrariam o tipo privilegiado de tráfico de estupefacientes de menor gravidade do artigo 25.º do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, tendo considerado que:

“(…) Ficou provado que o arguido, nas circunstâncias de tempo e lugar descritas na acusação, detinha na sua posse substância estupefaciente, mais concretamente MDMA. Esta substância está incluída na Tabela II-A, anexa ao Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de janeiro. Ficou ainda provado que o arguido conhecia perfeitamente as características estupefacientes e psicotrópicas da substância que detinha e que a compra e detenção, especialmente pelas quantidades de produto estupefaciente que detinha, são proibidas por lei, mas, ainda assim, não se absteve de levar a cabo tal conduta. Mais ficou provado que o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Estão, assim, preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo fundamental e tráfico de estupefacientes previsto no art. 21.º do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de janeiro.

Por outro lado, a quantidade de MDMA detido pelo arguido era de 2,205 gramas. Trata-se, de forma patente, de uma quantidade diminuta. Deste modo, a conduta do arguido é subsumível ao tráfico de menor gravidade previsto no art. 25.º do Decreto-lei n.º 15/93. (…).”

Como está bom de ver, do cotejo dos factos provados delimitado no item precedente, decorre, desde logo que, atendendo à falta dos elementos subjetivos do tipo, sempre a conduta do arguido se encontraria fora da previsão do tipo penal previsto no artigo 25º do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de janeiro. Porém, caberá enfrentar a questão fulcral com a qual nos confronta o recurso e que, conforme acima referimos, se encontra intrinsecamente relacionada com a não prova dos elementos subjetivos do tipo.

A objeção do recorrente à subsunção da sua conduta ao crime de tráfico de estupefacientes, para além de se estruturar na alteração da matéria de facto provada de cariz objetivo propugnada no recurso – no sentido de que, estando quatro pessoas dentro da carrinha, o estupefaciente seria pertença dos quatro ou, pelo menos, destinar-se-ia ao consumo dos quatro (o que no entender do recorrente faria alterar o número de doses diárias correspondente à quantidade de produto aprendido (8)) – alteração que, como vimos já, foi votada ao insucesso, reporta-se à circunstância de não se ter apurado que o estupefaciente detido não se destinava ao consumo, defendendo que tal elemento negativo é constitutivo do tipo legal de tráfico de estupefacientes.

Analisemos se lhe assiste razão.

Nos presentes autos foi o arguido acusado e condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelos artigos 21.º, n.º 1 e 25.º, al. a), ambos do DL n.º 15/93 de 22.01. Para sustentar tal acusação e condenação foram enunciados na acusação e tidos por provados na sentença os seguintes factos:

“1. No dia 27.09.2019, pelas 16h00, na Estrada Municipal, km …, o Arguido tinha na sua posse o total de 2,205g de MDMA que, com um grau de pureza de 77,3%, correspondia a 17 doses diárias.

2. O MDMA encontrava-se dentro de um recipiente redondo em plástico, que o Arguido tinha consigo.

3. O Arguido conhecia perfeitamente as características estupefacientes e psicotrópicas da substância que detinha.

4. Sabia igualmente que a compra e detenção, especialmente pelas quantidades de produto estupefaciente que detinha, são proibidas por lei, mas, ainda assim, não se absteve de levar a cabo tal conduta.

5. O Arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.”

Tal como decorre do preceituado no artigo 21.º, n.º 1 do DL n.º 15/93 de 22.01, que consagra o tipo criminal base, pratica o crime de tráfico de estupefacientes: “quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no art.º 40.º (9), plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos”.

Por seu turno o artigo 25.º, que, como acima explanámos, consagra o tipo privilegiado, pressupõe que se verifiquem os elementos constitutivos do tipo base, ou seja, no que aos presentes autos releva, do artigo 21º do DL n.º 15/93 de 22.01. Ora, tal norma proíbe e pune uma série de condutas relacionadas com as plantas, substâncias e preparações, que correspondem a estupefacientes, e que estão compreendidas nas tabelas I a III, anexas ao referido diploma legal. Na situação que nos ocupa, trata-se de MDMA, substância que se encontra prevista na tabela II-A anexa àquele diploma.

A questão que no presente recurso se nos coloca é precisamente a de saber que condutas quis o legislador proibir e punir na referida norma penal. Tendo querido abranger na sua previsão todas as modalidades de ação que, por referência àquelas substâncias, pudessem colocar em perigo o bem jurídico tutelado, o legislador previu várias condutas, nas quais se incluem, entre muitas outras, e com relevo para a situação dos autos, o transportar, o fazer transitar e a detenção. Porém, tais ações só são proibidas e puníveis se:

- O agente que as praticar não estiver para tanto autorizado e

- Desde que estejamos fora do âmbito de aplicação do art.º 40.º.

Parece-nos incontornável que tais exigências correspondem a elementos negativos do tipo, restritivas do âmbito de aplicação da norma penal em análise, pelo que a simples detenção do estupefaciente, verificada in casu, só será proibida e punível como crime de tráfico – seja o do artigo 21.º, seja o do artigo 25.º – se não estiver autorizada e se não se encontrar abrangida pela previsão do artigo 40.º.

Ora, nos termos do disposto no aludido art.º 40.º, e em conformidade com o definido no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 8/2008, do Supremo Tribunal de Justiça, pune-se, entre o mais, a detenção para consumo das plantas, substâncias e preparações compreendidas nas tabelas I a IV, desde que a quantidade em causa exceda a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias. Da análise das previsões dos artigos 21.º e 40.º ressalta que os respetivos campos de aplicação têm uma zona de sobreposição, quer no que tange tipo de estupefacientes objeto da conduta – os previstos nas tabelas I a III – quer quanto à modalidade da ação – a detenção. (10)

Assim, do confronto dos regimes legais aplicáveis, decorre que, consubstanciando-se a conduta do agente na detenção de estupefacientes, a imputação de cada um daqueles ilícitos criminais dependerá, não apenas da concreta modalidade da ação, como ainda do destino do estupefaciente, ou seja, da finalidade dessa detenção, facto sem o qual não será possível determinar a norma aplicável e, portanto, o crime a imputar ao agente.

No caso que nos ocupa, encontra-se provado que o arguido, no dia 27.09.2019, pelas 16h00, na Estrada Municipal, km …, tinha na sua posse o total de 2,205g de MDMA que, com um grau de pureza de 77,3%, correspondia a 17 doses diárias, factos que constituem alguns dos elementos objetivos do tipo previsto no artigo 21.º. (11) Porém, nada se apurou relativamente à finalidade da detenção de tal produto. Na verdade, desconhecemos em absoluto se o estupefaciente encontrado na posse do arguido era para seu consumo exclusivo, para consumo partilhado com outras pessoas, para ceder, para vender ou para qualquer outro fim. Desconhecemos tal facto porquanto o mesmo não constava da acusação, nem foi trazido aos autos pelo arguido em sede de contestação, pelo que não foi apurado em julgamento.

Acontece que, como vimos já, a factualidade omitida constitui um elemento essencial para o preenchimento do tipo, sendo que a conduta do arguido só se subsumiria ao tipo legal que lhe vem imputado – o do artigo 25º – se se provasse que a detenção da droga não se enquadrava no âmbito de aplicação do artigo 40.º, ou seja, que não se destinava ao consumo próprio e exclusivo do detentor.

Em consequência, haverá que concluir que a factualidade provada nos autos, só por si, e desacompanhada do facto negativo relativo à não destinação da droga ao consumo exclusivo do seu detentor, não permite a sua subsunção ao crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. no artigo 25º do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de janeiro pelo qual o arguido foi acusado e condenado. Nem permitirá, de outra sorte a sua integração no crime de consumo p. e p. no artigo 40º do mesmo Decreto-lei, conquanto também este reclama a prova de que o estupefaciente detido se destinava ao consumo próprio do agente.

Do exposto ressalta a essencialidade da descrição, no plano fáctico, da finalidade da detenção.

Retomamos aqui o que, a propósito da apreciação da impugnação da matéria de facto, deixámos já explanado relativamente aos elementos subjetivos do tipo e à consciência da ilicitude, precisamente para dizer que, não tendo sido apurada a finalidade da detenção, ou seja, não se sabendo se o arguido destinava o produto estupefaciente ao seu consumo exclusivo, e consequentemente, faltando um dos elementos do tipo objetivo, não é possível inferir da restante factualidade objetiva tida por provada que aquele “4. Sabia igualmente que a compra e detenção, especialmente pelas quantidades de produto estupefaciente que detinha, são proibidas por lei, mas, ainda assim, não se absteve de levar a cabo tal conduta” ou que “5.O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.”. Com efeito, desconhecendo-se se os factos imputados ao arguido são objetivamente ilícitos e penalmente desvaliosos, inexiste qualquer base de sustentação para se concluir e se ter por provado que o arguido, ele próprio, sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Somos, assim, a concluir que, no caso vertente, a mais de se não terem provado os elementos subjetivos do tipo e a consciência da ilicitude, sempre faltaria um facto essencial ao preenchimento do crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelos artigos 21.º n.º 1 e 25.º alínea a) do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de janeiro imputado ao arguido, qual seja o facto de o arguido não destinar o produto estupefaciente ao seu consumo exclusivo, do qual resultaria não estarmos no campo de aplicação do crime de consumo de estupefacientes p. e p. pelo artigo 40.º do mesmo diploma legal.

Refira-se ainda que não cumpre ao julgador aditar ao objeto do processo fixado na acusação os factos essenciais sem os quais a conduta aí descrita não constituirá crime. Fazê-lo traduzir-se-ia numa flagrante violação do princípio do acusatório e da vinculação temática estrutural ao nosso direito processual penal, tal como expressivamente foi reconhecido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no seu Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 1/2015, de 20.11.2015, cuja doutrina, embora referindo-se à incompletude da descrição dos elementos subjetivos do tipo, atendendo à similitude da fundamentação, tem plena aplicação às situações, como a dos autos, de falta dos respetivos elementos objetivos.

E nem se diga que ao arguido caberia invocar que o destino da droga era o seu consumo pessoal e não o de tráfico. Com efeito, pese embora encontremos na doutrina e na jurisprudência dos nossos tribunais superiores uma linha de entendimento que sustenta a atribuição de tal ónus probatório ao arguido (12), não nos revemos em tal posição. Ao contrário, pensamos que os princípios gerais do processo penal português não comportam a atribuição de quaisquer ónus de prova ao arguido, ou sequer, a utilização de tal conceito civilista no âmbito do processo penal, ao qual, manifestamente se sobrepõem os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo, dos quais resulta que os arguidos se presumem inocentes até prova em contrário e que se o tribunal permanecer na dúvida após a realização da atividade probatória na audiência de julgamento, deverá sempre resolvê-la em sentido favorável ao arguido, decidindo considerar não provados os factos relativamente aos quais não foi possível formar certeza jurídica e, sendo caso disso, devendo absolver o arguido por falta de provas (13).

Citamos a este propósito o Conselheiro Maia Costa, que, no seu artigo “Consumo de estupefacientes: evolução e tensões no direito português”, assertivamente refere que:

“Não tendo o STJ reexaminado esta jurisprudência até hoje, nem sendo previsível que venha a fazer esse reexame a curto prazo, será indispensável a intervenção do legislador. E essa intervenção só poderá ser obviamente no sentido de considerar toda a detenção/aquisição de estupefacientes descriminalizada, desde que se prove evidentemente que se destina a consumo pessoal. O modelo do limite quantitativo para distinguir entre tráfico e consumo redunda na violação do princípio da presunção de inocência (e consequentemente da proibição da inversão do ónus da prova), ao estabelecer a presunção de destinação da droga ao tráfico a partir de certa quantidade, obrigando o agente a provar que a partir dessa quantidade a droga se destina a consumo pessoal, e dispensando correlativamente o Ministério Público da prova do contrário. É aliás uma opção que ignora as condições em que se processa o abastecimento dos consumidores no mercado clandestino, que impõe normalmente ao comprador que se “abasteça”, quando surge a oportunidade, para um período razoável de tempo…

O limite quantitativo das dez doses diárias apenas poderá funcionar como mero indício de tráfico, devendo o Ministério Público remeter o processo à CDT quando, sendo embora a quantidade superior, se indiciar uma situação de detenção para consumo, ou inversamente o processo ser remetido pela CDT ao Ministério Público quando a quantidade for inferior mas se concluir pela indiciação de tráfico (Assim, José de Faria Costa, “Algumas breves notas sobre o regime jurídico do consumo e do tráfico de droga”, Revista de Legislação e de Jurisprudência, nº 3930, pp. 277-278.)

Esta é uma clarificação urgente.”(14)

Não será ainda despiciendo relembrar que a enorme diferença de tratamento, em termos de punição, que a lei confere aos crimes de tráfico e de consumo de estupefacientes, analisada em conjugação com a necessidade de efetiva salvaguarda das garantias de defesa do arguido, impõe um particular cuidado na enunciação pelo acusador e na subsequente prova em julgamento de todos os elementos destes tipos de ilícitos criminais, nos quais a intenção do agente ao deter o estupefaciente, para eventual funcionamento do elemento negativo do tipo do artigo 21º – “fora das condições do artigo 40º” – assume um relevo determinante.

Estas as razões pelas quais, os factos enunciados na acusação e tidos por provados na sentença se revelam insuficientes para integrarem o crime de tráfico de menor gravidade pelo qual o recorrente foi condenado em primeira instância.

Do que vai dito, resulta que acompanhamos apenas parcialmente a análise fáctico-jurídica apresentada pelo arguido no recurso. Acompanhamo-la concretamente no que diz respeito à alegação da falta de prova do elemento negativo do tipo de tráfico de estupefacientes, mas não lhe reconhecemos razão no que tange à argumentação ali expendida atinente à alegada “posse comum” do produto estupefaciente apreendido e ao destino do mesmo ao consumo do recorrente e dos restantes ocupantes do veículo (15).

*

Por último, relativamente aos fundamentos expostos na motivação do recurso, não podemos deixar de registar a nossa perplexidade e incompreensão face à manifesta contradição entre os mesmos e o teor das alegações orais produzidas em sede de audiência final pela defensora do arguido, agora recorrente, que, por clareza de exposição, passamos a transcrever parcialmente:

“(…) De facto, a prova é indubitável (…) toda a circunstância deve ser entendida como atenuante pelo facto de o arguido deter 17 doses diárias, conforme vem na acusação, que eventualmente se destinariam para o próprio consumo. No entanto, obviamente, não poderá deixar de ser condenado pelo crime pelo qual vem acusado, devendo, ainda assim, a pena aplicada ser a mínima prevista legalmente (…)”.

Mais clarificamos que, malgrado a assunção nos autos de posições manifestamente contraditórias que, numa primeira análise, poderiam pôr em causa o dever de lealdade processual, entendemos que, ainda assim, se mantém o interesse em agir do recorrente, como pressuposto de admissibilidade do recurso que acresce ao pressuposto da legitimidade. Na verdade, em nome do respeito absoluto pelas garantias de defesa do arguido, entendemos que o interesse do mesmo no recurso deverá aferir-se apenas em função do fim visado, ou seja, terá interesse em recorrer o arguido que com a interposição do recurso vise alcançar uma decisão que lhe seja mais favorável, independentemente da posição que tenha assumido no decurso do processo (16), nomeadamente nas alegações orais produzidas pela sua defensora na audiência de julgamento.(17)

Nesta conformidade, somos a concluir pela procedência da objeção feita no recurso à qualificação jurídica dos factos que se imputaram ao arguido e que sustentaram a decisão recorrida, decidindo-se pela revogação da mesma e pela absolvição do recorrente do crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade p. e p. no artigo 25.º do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro que lhe vinha imputado.

***

III- Dispositivo.

Por tudo o exposto e considerando a fundamentação acima consignada, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso e, consequentemente, em revogar a sentença recorrida, absolvendo-se o recorrente do crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade p. e p. no artigo 25.º do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro que lhe vinha imputado.

Sem custas.

(Processado em computador pela relatora e revisto integralmente pelos signatários)

Évora, 12 de setembro de 2022

Maria Clara Figueiredo

Artur Vargues

Maria Filomena Soares

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1 preceitua o art.º 412.º do CPP, com referência à motivação e às conclusões do recurso:

“(…) 3 – Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a ) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b ) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c ) As provas que devem ser renovadas.

4 – Quando as provas tenham sido gravadas , as especificações previstas nas alíneas b ) e c ) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do art.º 364.º devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”

2 Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques in Recursos em Processo Penal, Rei dos Livros, 9.ª edição, 2020, página 109.

3 Helena Bolina, Razão de Ser, Significado e Consequências do Princípio da Presunção de inocência, Boletim da Faculdade de Direito, 70, 1994, pp. 433.

4 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, pp. 215.

5 Lourenço Martins in “Droga e Direito, Legislação, Jurisprudência, Direito Comparado, Comentários”, Aequitas, Editorial Notícias.

6 Acórdão do TC 441/94, de 7 de junho, in www.tribunalconstitucional.pt.

7 Idem.

8 Raciocínio que não acompanhamos, pois que ainda que se tivesse apurado que o produto estupefaciente apreendido, pertença do arguido, se destinava ao consumo dos quatro ocupantes do veículo, o número de doses diárias mencionado no ponto 1. dos factos provados manter-se-ia inalterado, uma vez que, consabidamente, tal número tem por referência as doses diárias consumidas por cada pessoa, revelando-se indiferente que o arguido as cedesse aos restantes ocupantes da autocaravana ou a quaisquer outras pessoas.

Tal linha argumentativa do recorrente apenas faria sentido caso estivéssemos perante o que se vem denominando de “autoconsumo em grupo”, “consumo em grupo” ou “consumo partilhado”, sendo certo, porém, que tal situação pressuporia que a compra da droga tivesse sido realizada por todos os membros do grupo, ou com dinheiro de todos, detendo todos a substância em conjunto com o propósito de a consumirem juntos ou de a dividirem entre eles, o que como vimos já, não se encontra provado na situação dos autos.

9 Negrito acrescentado.

10 Em sumária nota relativamente ao atual regime punitivo da detenção de estupefaciente, temos que:

- A detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias e preparações compreendidas naquelas tabelas, em quantidade inferior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, integra a prática de mera contraordenação, nos termos do artigo 2.º da Lei n.º 30/2000, de 29.11;

- A detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias e preparações compreendidas nas tabelas I a III, desde que em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, integra o crime de consumo, previsto no art.º 40.º do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de janeiro;

- A detenção, para qualquer outra finalidade que não o consumo próprio exclusivo, integra, por exclusão das restantes possibilidades, o crime de tráfico de estupefacientes previsto no artigo 21.º ou o crime de tráfico de menor gravidade previsto no art.º 25.º, se a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída.

11 O facto de o arguido ter na sua posse 2,205g de MDMA que, com um grau de pureza de 77,3%, correspondia a 17 doses diárias, desde logo determinaria a exclusão da integração da sua conduta na contraordenação prevista no artigo 2º da Lei nº30/2000.

12 Defendendo tal linha de entendimento encontramos, entre outros, os acórdãos da Relação de Lisboa de 07.02.2002, relatado pela Desembargadora Margarida Blasco e de 03.05.2022, relatado pela Desembargadora Sandra Pinto, disponíveis em www.dgsi.pt.

13 Neste sentido, na doutrina, cfr. Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, Coimbra Editora, 1981, Vol. I, pág. 212 e Pedro Vaz Patto, in “Comentário das Leis Penais Extravagantes”, vol. 2, UCE, pág. 489.

Decidindo no sentido em que agora decidimos relativamente à exigência de prova do elemento negativo do tipo atinente à finalidade da detenção e, bem assim, quanto à inexistência de qualquer ónus probatório a cargo do arguido, decidiram também os acórdãos da Relação e Lisboa de 25.10.2017, relatado pela Desembargadora Maria José Nogueira e de 26.09.2018, relatado pelo Desembargador João Lee Ferreira e ainda o acórdão desta Relação, datado de 23.03.2021 e relatado pelo Desembargador João Amaro, disponíveis em www.dgsi.pt.

14 Maia Costa, “Consumo de estupefacientes: evolução e tensões no direito português”, in Revista Julgar, nº 32, 2017, página 174.

15 O que, aliás, não encontra respaldo na matéria de facto provada.

16 Tal posição encontra sustentação na doutrina exposta por Germano Marques da Silva, no seu Curso de Processo Penal, Verbo, página 331, quando aí refere: “Decisão proferida contra o arguido não é, pois, a que é contrária à posição que defendeu no decurso do processo mas qualquer decisão que lhe seja objetivamente desfavorável (...) Basta, pois, que através do recurso o arguido vise obter uma decisão concretamente mais vantajosa que aquela de que recorre (...)”.

17 Ao contrário do que sucede com o MP, relativamente ao qual entendemos não se revelar processualmente admissível que, em função dos elementos constantes dos autos, realize a sua avaliação, se pronuncie num determinado sentido, e, tendo sido tal pronúncia acolhida por decisão judicial, venha a recorrer da mesma com o propósito de alcançar um resultado exatamente oposto à posição que anteriormente assumira. Tal recurso, apresentado em manifesto abuso de direito, na sua vertente de venire contra factum proprium, traduzir-se-ia na aceitação de uma clara vulneração do princípio da lealdade processual, violadora das garantias de defesa do arguido, pelo que deverá ser rejeitado por falta de interesse em agir, nos termos do artigo 401º, nº 2 do CPP, conforme tivemos já ocasião de decidir na decisão sumária datada de 02.04.2023 e proferida no processo nº 54/22.9PEBRR-G.E1, disponível em www.dgsi.pt.