Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1423/15.6T8STR.E1
Relator: BERNARDO DOMINGOS
Descritores: ARROLAMENTO COMO PRELIMINAR DE DIVÓRCIO
COMPETÊNCIA
Data do Acordão: 11/19/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: As secções de família e menores são competentes, em razão da matéria, para apreciar e decidir os procedimentos cautelares que sejam preliminares ou incidentes das acções, para as quais são materialmente competentes.
Sumário do Relator
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

Proc.º N.º 1423/15.6T8STR.E1 – Apelação – 1ª Secção

Recorrente: (…).

Recorrido: (…).
Relatório


Vem o presente recurso interposto da seguinte decisão que indeferiu liminarmente o procedimento cautelar de Arrolamento, preliminar de acção de divórcio, com fundamento em que a Instância Central de Família e Menores é materialmente incompetente para conhecer de procedimentos cautelares. O teor de tal despacho é o seguinte:
«(…) intentou o presente procedimento cautelar de arrolamento contra (…).
Nos termos do disposto no art.° 122, n.º 1 da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, compete às secções de família e menores preparar e julgar:
a) Processos de jurisdição voluntária relativos a cônjuges;
b) Processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum;
c) Acções de separação de bens e de divórcio;
d) Acções de declaração de inexistência ou de anulação do casamento civil;
e) Acções intentadas com base no artigo 1647.0 e no n.º 2 do artigo 1648.0 do Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de Novembro de 1966;
f) Acções e execuções por alimentos entre cônjuges e entre ex-cônjuges;
g) Outras acções relativas ao estado civil das pessoas e família.
De acordo com o n.º 2 do mesmo artigo, as secções de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos.
Os artigos 123.º e 124.º da mesma Lei reportam-se à competência das secções de família e menores relativas a menores e filhos maiores e em matéria tutelar educativa e de protecção ­que, como é por demais evidente, em nada se reportam ao caso dos presentes autos.
Da leitura daquele artigo 122.º resulta assim que as secções de família e menores não são actualmente competentes, em razão da matéria, para o julgamento de quaisquer procedimentos cautelares - situação que se evidencia, desde logo, se se comparar a redacção de tal preceito com o anterior artigo 81.º da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, que expressamente referia a competência dos então tribunais de família e menores para os procedimentos cautelares relacionados com inventários requeridos na sequência de acções de separação de pessoas e bens e de divórcio. Alteração que tem tanto ou mais significado quanto, actualmente, as secções de família e menores já não tramitam inventários nos moldes em que o faziam antes da entrada em vigor da Lei n.º 23/2013, de 5 de Março, pelo que os aspectos patrimoniais das relações entre os cônjuges parecem ter sido retirados do âmbito da sua competência.
A norma ínsita no artigo 78.º do Código de Processo Civil, por seu turno, não se reporta a competência material mas apenas a competência territorial e, por isso, não logra atribuir a esta secção uma competência que esta, materialmente, não possui.
Assim sendo, atenta a disposição invocada, será competente para o presente procedimento cautelar a Secção Local de Almeirim, por ser a territorialmente e materialmente competente, atento o local onde os bens se encontram e o disposto no artigo 130º, n.º 1, al. a), da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto.
Ora, resulta do disposto no art.° 96.º do Código de Processo Civil que a infracção das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal, devendo ser suscitada oficiosamente pelo Tribunal, nos termos do art.° 97.º, n.º 1 do Código de Processo Civil e acarreta a absolvição do réu da instância ou o indeferimento em despacho liminar, quando o processo o comporte – cfr. art.º 99.º e 278.º, al. a), ambos do Código de Processo Civil.
Ora, de acordo com o disposto no art.° 226.º, n.º 4, al. b), do Código de Processo Civil, o presente processo comporta despacho liminar. Pelo exposto, indefiro liminarmente o presente procedimento cautelar, face à incompetência desta secção de Família e Menores para a sua tramitação, em razão da matéria.
Custas pela requerente».
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Inconformado com o decidido, veio a requerente interpor recurso de apelação, tendo rematado as suas alegações com as seguintes
Conclusões:

«1. Vem o presente recurso interposto do douto despacho que indeferiu liminarmente o procedimento cautelar com fundamento na incompetência material da Secção de Família e Menores para a sua tramitação.
2. Fundamenta ainda a decisão no facto de as secções de família e menores já não tramitarem os inventários nos moldes em que o faziam antes da entrada em vigor da Lei nº 23/2013, de 5 de Março.
3. No que respeita aos processos de inventário a Lei nº 23/2013, de 5 de Março, Regime Jurídico do Processo de Inventário, veio atribuir a competência para a sua tramitação aos Cartórios Notariais.
4. Esta lei continua a atribuir ao juiz a prática de certos actos do inventário.
5. O tribunal da comarca do cartório notarial onde o inventário corre termos é o tribunal territorialmente competente para a prática dos actos da competência do juiz.
6. E a competência material para a prática dos actos no inventário continua a caber às secções de família e menores no que respeita aos inventários subsequentes às acções de divórcio, como decorre do artº 122º, nº 2, da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto.
7. Assim, salvo o devido respeito pela posição tomada no despacho recorrido, as secções de família e menores continuam a ter competência para tramitar os aspectos patrimoniais das relações entre cônjuges na sequência de divórcio.
8. A questão em apreço não se prende com o processo de inventário intentado na sequência de divórcio, senão tão só com o procedimento cautelar instrumental da acção de divórcio.
9. A diferente redacção do artº 122º da Lei nº 62/2013, quando confrontada com a redacção do artº 81º, alª c), da Lei nº 3/99 que revogou, também não constitui razão válida para se concluir que as secções de família e menores não têm competência para a tramitação de quaisquer procedimentos cautelares.
10. O procedimento cautelar em causa nestes autos foi intentado como preliminar de acção de divórcio.
11. Trata-se de um arrolamento especial, com características próprias e por isso mesmo com uma tramitação específica, e que tem em vista acautelar o perigo de extravio de bens pelo cônjuge que tem a administração dos bens comuns ou de bens próprios do outro cônjuge.
12. Quer se trate de procedimento cautelar intentado antes de intentada a acção de que depende, quer se trate de procedimento intentado no decurso da acção, sempre o procedimento cautelar é dependente de uma acção e a ela deve ser apensado.
13. O juiz que tem a seu cargo o procedimento cautelar intentado preliminarmente, deve, oficiosamente ou a requerimento dos interessados, remetê-lo para apensação à acção principal, do mesmo modo que o juiz da acção principal deve solicitar a apensação se tomar conhecimento de que corre termos o procedimento cautelar.
14. Quando o procedimento cautelar é interposto na pendência de uma causa, deve ser instaurado no tribunal onde esta corre e processado por apenso.
15. Ao juiz que tem competência para julgar a acção é atribuída competência para julgar a providência cautelar dependente dela.
16. A competência material para a acção determina assim a competência material para o procedimento cautelar instrumental dela, nisto consiste o princípio da coincidência espelhado no nº 2 do artº 364º do C.P.C..
17. No caso em apreço não restam dúvidas que o tribunal competente para julgar a acção de divórcio é a Secção de Família e Menores da Comarca de Santarém.
18. O tribunal com competência material para julgar e decidir a providência cautelar, arrolamento especial preliminar da acção de divórcio – artº 409º do C.P.C. – é também a Secção de Família e Menores da Comarca de Santarém.
19. Ao declarar-se incompetente em razão da matéria para julgar o procedimento cautelar preliminar de acção de divórcio, o douto despacho recorrido violou o disposto nos artºs 64º, 65º, 409º e 364º, todos do C.P.C., e o artº 122º da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto.
20. Deve por isso ser revogado e substituído por outro que declare a competência material da Secção de Família e Menores da Comarca de Santarém para tramitar e julgar o arrolamento especial na sequência de divórcio».
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O requerido foi citado para os termos do procedimento e do recurso e apenas deduziu oposição.
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Na perspectiva da delimitação pelo recorrente [1], os recursos têm como âmbito as questões suscitadas pelos recorrentes nas conclusões das alegações (art.ºs 635º, nº 4 e 639º do novo Cód. Proc. Civil) [2], salvo as questões de conhecimento oficioso (n.º 2, in fine, do art.º 608º do novo Cód. Proc. Civil).
Das conclusões acabadas de transcrever, decorre que a questão decidenda consiste em saber se, face à LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto e à nova orgânica judiciária, as Instâncias Centrais de Família e Menores, são ou não competentes para apreciar e decidir um procedimento cautelar de arrolamento como preliminar de uma acção de divórcio.
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Antes de entrar na apreciação da questão da competência material da Instância Central de Família e Menores em matéria de procedimentos cautelares, importa clarificar o objecto, função e finalidade do Procedimento cautelar de Arrolamento, previsto nos art.ºs 403º e seg. do CPC.
O arrolamento consiste numa descrição, avaliação e depósito de bens (litigiosos) e visa assegurar a sua permanência (ou o não extravio, ocultação ou dissipação), em ordem a fazer valer a titularidade de direitos sobre esses bens na acção «à qual interessa a especificação dos bens ou a prova da titularidade dos direitos relativos às coisas arroladas» – Art.º 403º, nº 2, do CPC. Como enunciava ALBERTO DOS REIS, «se uma pessoa pretende ter direito a determinados bens e mostra que certos factos ou circunstâncias fazem nascer o justo receio de que o detentor ou possuidor deles os extravie ou dissipe antes de estar judicialmente reconhecido, de forma definitiva, o seu direito aos mesmos bens, estamos perante a ocorrência que justifica o uso (…) do arrolamento» (Código de Processo Civil Anotado, vol. II, reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 1981, p. 105). Em caso de divórcio, separação judicial de pessoas e bens, declaração de nulidade ou anulação de casamento, a lei prevê que, como preliminar ou incidente da respectiva acção, «qualquer dos cônjuges pode requerer o arrolamento de bens comuns, ou de bens próprios que estejam sob a administração do outro» (artº 409º, nº 1, do CPC), sem que seja necessário sequer demonstrar o justo receio de extravio, ocultação ou dissipação (artº 409º, nº 3, do CPC), por se presumir iuris et de iure que a rotura da sociedade conjugal é propiciadora de actuações ilícitas sobre o património dos cônjuges. Nesse contexto, o arrolamento tem ainda como objectivo acautelar a justa partilha dos bens após a dissolução do casamento, designadamente no eventual processo de inventário subsequente, em vista do qual se estabelece que «o auto de arrolamento serve de descrição no inventário a que haja de proceder-se» (artº 408º, nº 2, do CPC) [3]. Embora o legislador tenha concebido os arrolamentos especiais previstos no art.º 409º, nº 1, do CPC, como preliminares ou incidentes das acções aí referidas, não pode deixar de se reconhecer que a finalidade última deste tipo de arrolamentos não é tanto o desfecho da acção, mas os actos subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, onde sobressai a partilha do património comum. O arrolamento não se esgota na acção de divórcio, separação ou anulação, mas mantém-se e subsiste até se mostrar efectuada a partilha, uma vez que, até lá, não obstante o divórcio decretado, permanece o perigo de dissipação e extravio dos bens. E por isso já se entendeu que nos arrolamentos previstos no art.º 409º, nº 1, do CPC, cabe também o arrolamento requerido após o divórcio, separação de bens ou declaração de nulidade ou anulação de casamento, desde que não tenha sido realizada a partilha, ou seja como preliminar ou incidente, já não daquelas acções, mas sim do inventário para partilha de meações [4].

Vejamos agora a questão da competência material da Instância Central de Família e Menores, quanto ao procedimento cautelar de arrolamento, como preliminar ou incidente de acção de separação judicial de pessoas e bens, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento.
Segundo Abrantes Geraldes [5], «os procedimentos cau­telares constituem mecanismos jurisdicionalizados expeditos e efica­zes que permitem assegurar os resultados práticos da acção, evitar prejuízos graves ou antecipar a realização do direito (instrumentali­dade hipotética), de forma a obter-se, na medida do possível, a conci­liação dos interesses da celeridade e da segurança jurídica.
No dizer de Calamandrei, «a actividade cautelar preanuncia e prepara a realização das outras garantias jurisdicionais, propondo-se assegurar antecipadamente o rendimento prático, mais eficaz, dessas garantias» [6].
Os procedimentos cautelares servem para transportar providênci­as que, de acordo com as suas características, são orgânica e material­mente judiciais, têm natureza preventiva e urgente, tendo em vista evitar o periculum in mora. São instrumentais e dependentes, uma vez que estão necessariamente ligadas a uma acção da qual constituem preliminar ou incidente (art.º 364º, nº 1, do CPC), são provisórias, cessando com a decisão final ou com a sua execução, e apresentam-se com uma estrutura simpli­ficada [7].
A competência em razão da matéria para as providências cautelares, instauradas como incidente, como a generalidade das questões processuais que lhes digam respeito, não tem autonomia porquanto o procedimento cautelar está na dependência da acção principal [8]. Assim e por força do disposto no art.º 91º, nº 1 e 364º, nº 3, do CPC, o tribunal que for materialmente competente para conhecer da acção é também competente para conhecer dos seus incidentes, independentemente de serem processados por apenso ou nos próprios autos. Esta regra é também válida para os procedimentos cautelares que sejam preliminares à propositura da acção de que dependam.
Na verdade, é isso que decorre do disposto no art.º 364º, nº 2, do CPC, quando aí se estabelece que o procedimento (antecipado), «requerido antes de proposta a acção… é apensado aos autos desta, logo que a acção seja instaurada e se a acção vier a correr noutro tribunal, para aí é remetido o apenso, ficando o juiz da acção com exclusiva competência para os termos subsequentes à remessa». Significa isto que o juiz que tem a seu cargo a providência cautelar logo que tenha conhecimento da pendência da acção principal deve, oficiosamente, ou a requerimento dos interessados, remete-la para apensação àquela, assim como o juiz da acção deverá solicitar a sua apensação.
Mas se a providência for intentada no decurso da acção, estatui o nº 3 daquele normativo, que «… deve o procedimento ser instaurado no tribunal onde esta corre e processado por apenso, a não ser que a acção esteja pendente de recurso; neste caso a apensação só se faz quanto o procedimento cautelar estiver findo ou quando os autos da acção principal baixem à 1ª instância». O que quer dizer que, requerida a providência depois de instaurada a causa principal, ela deve correr necessariamente por apenso ao processo dessa causa, motivo por que será logo instaurada no tribunal onde esta o foi.
Consagra-se nestes incisos do art.º 364º do CPC, o princípio da coincidência em matéria de competência do Tribunal (seja absoluta, seja relativa). A este propósito, comentava Abrantes Geraldes [9] (a propósito do art.. 383º do CPC antigo e cuja redacção era idêntica à do nº 2 e 3 do actual art.º 364) que «nestes casos, a competência por conexão sobrepõe-se aos restantes critérios».
A ideia subjacente a este especial regime de afectação dos autos do procedimento cautelar, é a de se atribuir ao juiz da acção a competência para os termos da providência. Ou seja fazer coincidir no mesmo juiz a competência para decidir quer a acção quer o procedimento cautelar. Como salienta Cura Mariano, a tramitação do procedimento cautelar dever ser efectuada por apenso ao processo principal, «o que não só significa que os respectivos autos devem estar ligados por linha, como o tribunal competente para este último processo define também o tribunal competente para o procedimento cautelar, logo que aquele seja instaurado». O princípio da coincidência acima referido - ser competente para o julgamento da providência cautelar, o tribunal que é competente para o julgamento da acção – não é senão um dos meios de melhor concretizar a instrumentalidade e dependência da providência cautelar em relação à acção, dependência de que as soluções constantes das várias alíneas do art.º 373º do CPC, constituem consequência [10].

De acordo com o despacho recorrido, da redacção do artº 122º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto, resulta que as secções da Instância Central de Família e Menores não são actualmente competentes em razão da matéria para o julgamento de qualquer procedimento cautelar em face da diferente redacção do anterior artº 81º da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro, que aquela lei revogou.
Fundamenta ainda a decisão no facto de as secções de família e menores já não tramitarem os inventários nos moldes em que o faziam antes da entrada em vigor da Lei nº 23/2013, de 5 de Março.
Salvo o devido respeito o Tribunal “ a quo” não tem razão.
Desde logo porque da alteração da redacção não resulta, de forma inequívoca, que tivesse sido essa a intenção do legislador.
Ao invés, tudo aponta no sentido inverso. Na verdade, conhecendo o legislador (como não pode deixar de conhecer…!), o regime legal e a regulamentação do processado relativo aos procedimentos cautelares designadamente no tocante à atribuição da competência em razão da matéria e ciente de que, por força do princípio da coincidência, decorrente dos art.ºs 91º, nº 1 e 364º, nº 2 e 3, do novo CPC, o tribunal competente para conhecer da acção é também o competente para conhecer do procedimento cautelar, seja ele incidental (instaurado no decurso da acção) ou preliminar (instaurado antes da propositura da acção de que depende), manter na LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO, uma referência expressa aos procedimentos cautelares que são dependência de acções da competência das Secções da Família e Menores, seria no mínimo tautológico e como tal inútil.

Acresce que, quanto ao argumento de que as Instância de Família e Menores já não são materialmente competentes para tramitar os inventários para partilha de meações na sequência da dissolução do casamento por divórcio ou nos casos de separação de bens ou declaração de nulidade ou anulação de casamento, o mesmo também não é verdadeiro. É certo que a Lei nº 23/2013, de 5 de Março, veio instituir o novo Regime Jurídico do Processo de Inventário e, no seu artº 3º, nº 6, a citada Lei estabelece que: «Em caso de inventário em consequência de separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento, é competente o cartório notarial sediado no município do lugar da casa de morada de família ou, na falta desta, o cartório notarial competente nos termos da al. A) do número anterior». Com este novo regime a tramitação dos processos de inventário passou a ser, em primeira linha, da competência dos cartórios notariais. Porém, os Tribunais judiciais continuam a ter competência para a prática de certos actos. É isso que resulta do nº 7 do citado artigo 3º, onde se determina que: «Compete ao tribunal da comarca do cartório notarial onde o processo foi apresentado praticar os actos que, nos termos da presente lei, sejam da competência do juiz». Esta norma define a competência territorial.
Quanto à competência material para a prática dos actos no inventário subsequentes às acções de divórcio, separação de bens ou declaração de nulidade ou anulação de casamento, tal como sucedia no domínio da organização judiciária anterior, continua a caber às secções de família e menores e essa competência até foi estendida a situações que não estavam contempladas no anterior regime, como sejam as decorrentes de separação de bens na sequência de execuções ou de insolvência de um dos cônjuges. É isso que decorre do artº 122º, nº 2, da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto, ao estabelecer que: “As secções de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos».
Assim, e ao contrário do que resulta do despacho recorrido, é absolutamente seguro que as secções de família e menores continuam a ter competência para praticar os actos jurisdicionais relativos aos inventários «instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos».

A recorrente requereu o arrolamento, como preliminar da acção de divórcio que afirma pretender intentar (cf. Art.º 21 da PI). Requerente e requerido residem no lugar de (…), em Benfica do Ribatejo, concelho de Almeirim e pertencente à área de jurisdição do Tribunal judicial da Comarca de Santarém. Em matéria de assuntos de família e menores o concelho de Almeirim está integrado na competência territorial da 1ª Secção de Família e Menores, da Instância Central da Comarca de Santarém (cfr. Mapa anexo ao DL n.º 49/2014, de 27 de Março). É, pois, esta a secção competente para apreciar e decidir a acção de divórcio que a requerente pretende intentar contra o requerido. Consequentemente, pelo que se deixou exposto, será também esta a secção territorial e materialmente competente para apreciar e decidir o procedimento de arrolamento instaurado pela recorrente.
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Em síntese:
- As secções de família e menores, são competentes, em razão da matéria, para apreciar e decidir os procedimentos cautelares que sejam preliminares ou incidentes das acções, para as quais são materialmente competentes.
- O facto de tais procedimentos não fazerem parte do elenco de processos referidos no art.º 122º, nº 1, da NLOFTJ, não significa que tais secções não sejam materialmente competentes. A extensão da competência material das secções de Família e Menores a tais procedimentos, decorre do princípio da coincidência, consagrado nos art.ºs 91º, nº 1 e 364º, nº 2 e 3, do novo CPC.
- Por força do disposto no nº 2 do art.º 122º da Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto (Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais – NLOFTJ), são, igualmente competentes para praticar os actos jurisdicionais, previstos no novo regime jurídico do processo de inventário, aprovado pela Lei nº 23/2013, de 5 de Março, «nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos»
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Concluindo

Pelo exposto, acorda-se na procedência da apelação, revoga-se o despacho recorrido e ordena-se o normal prosseguimento dos autos.
Sem custas.
Notifique.
Évora, 19 de Novembro de 2015
Bernardo Domingos
Silva Rato
Assunção Raimundo

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[1] O âmbito do recurso é triplamente delimitado. Primeiro é delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na 1.ª instância recorrida. Segundo é delimitado objectivamente pela parte dispositiva da sentença que for desfavorável ao recorrente (art.º 684º, n.º 2, 2ª parte, do Cód. Proc. Civil) ou pelo fundamento ou facto em que a parte vencedora decaiu (art.º 684º-A, n.ºs 1 e 2, do Cód. Proc. Civil). Terceiro, o âmbito do recurso pode ser limitado pelo recorrente. Vd. Sobre esta matéria Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa - 1997, págs. 460-461. Sobre isto, cfr. ainda, v. g., Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos, Liv. Almedina, Coimbra – 2000, págs. 103 e segs..
[2] Vd. J. A. Reis, Cód. Proc. Civil Anot., Vol. V, pág. 56.
[3] Cfr. Ac. da RE de 20/10/2010, Processo n.º 13/08.4TMFAR-A.E1, disponível in http://www.dgsi.pt/.
[4] Cfr. Ac. da RL de 18/09/2014, processo nº 2170/14.1TBSXL.L1-8, disponível in http://www.dgsi.pt/.
[5] Temas da Reforma do Processo Civil, III Vol. 2ª Ed., pág. 42.
[6] Cit. por Alberto dos Reis, in BM.J, n° 3, pág. 31.
[7] Maria dos Prazeres Beleza em parecer publicado na Rev. Direito e Justi­ça, vol. Xl, J 997, tomo I, pág. 342.
[8] Salvo algumas excepções, a regra é a da inexistência de providências cautelares “autónomas”, quer dizer, desligadas da necessária instrumentalidade formal, de tal forma que se mostra necessário confirmar pela acção principal o deferimento da providência, só podendo prescindir-se dessa acção em casos expressamente referidos na lei.
[9] Cfr. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma de Processo Civil, III, vol. 2ª ed., Pág. 134.
[10] Ac. da RL, de 30/05/2013, processo nº 1100/12.0TBSCR-A.L1-2, disponível in http://www.dgsi.pt/.