Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
90/17.7T8PSR.E1
Relator: FRANCISCO MATOS
Descritores: PLANO DE REVITALIZAÇÃO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Data do Acordão: 10/12/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A diferença substancial (pagamento total do capital em dívida, no caso da Caixa e perdão de 90% do capital em dívida, no caso dos Recorrentes) estabelecida pelo Plano entre credores da mesma classe, sem qualquer justificação e sem o consentimento dos Recorrentes, expresso no seu voto contra a aprovação do Plano, viola o princípio da igualdade dos credores.
Decisão Texto Integral: Proc. nº 90/17.7T8PSR.E1

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório
1. (…) e marido, (…), residentes na Rua Dr. (…), nº 18, Gavião, instauraram processo especial de revitalização.

2. Concluídas as negociações com a aprovação do plano de recuperação (votaram a favor da aprovação do plano 64,46% da totalidade dos créditos relacionados com direito de voto), foi proferida decisão que homologou o plano de recuperação.

3. É desta decisão que os credores (…) e (…) recorrem formulando as seguintes conclusões que se reproduzem:

“A) O Plano de Revitalização apresentado não contém – ao contrário do que deveria – expressa e cabal explicação para as clamorosas diferenças de tratamento entre os créditos das instituições financeiras, um deles comum sob condição (CCAM), e os dos demais credores comuns, mormente dos Recorrentes que representam 34,39% do total dos créditos reconhecidos.

B) Não oferece qualquer dúvida de que o Plano de Recuperação viola e ofende de forma grave, ostensiva e clamorosa o Princípio da Igualdade entre credores (artigo 194º do CIRE).

C) De um lado, o credor CGD (garantido) e o credor CCAM (credor comum sob condição) recebem tudo, todo o capital e juros, não se fixando qualquer carência para o primeiro e fixando-se uma carência de apenas 6 meses para o último.

D) De outro lado, os Recorrentes, com um peso de mais de 1/3 na totalidade dos créditos (de 34,79%), recebem apenas 10% do capital, sem quaisquer juros, vencidos ou vincendos e, ainda assim, com um período de carência de 24 meses.

E) Ou seja, a revitalização dos devedores é, sem sombra de dúvida, feita à custa do sacrifício dos Recorrentes.

F) Sendo notório o tratamento privilegiado e injustificado que é feito ao credor garantido e, sobretudo e de forma chocante, ao credor CCAM, credor comum, como os Recorrentes, e ainda por cima condicional.

G) Analisando o plano, não é possível vislumbrar no mesmo um fundamento plausível, razoável, racional e objectivo que justifique a diferenciação dos credores, notória e patente no plano de recuperação homologado.

H) Sem esquecer que é indubitável que, na ausência de plano os Recorrentes ficam objectivamente em situação mais favorável, pois, no mínimo, ficam em situação mais beneficiada do que o credor CCAM.

I) Sendo certo que, como resulta dos documentos juntos ao Requerimento Inicial, os devedores têm património, nomeadamente predial (o valor tributário do imóvel é superior ao valor da dívida ao credor hipotecário CGD), automóvel (dois veículos automóveis) e uma quota, cada um, numa sociedade, pelo que a liquidação deste património asseguraria um benefício maior aos Recorrentes do que o que resulta da execução do plano.

J) Conclui-se assim que o plano de recuperação apresentado viola o princípio da igualdade previsto no art.º 194º do CIRE, aplicável ao presente processo de revitalização por força do disposto no n.º 5 do art.º 17.º -F do CIRE, o que configura violação não negligenciável das normas aplicáveis ao conteúdo do plano de recuperação em apreciação nos presentes autos de revitalização e impõe a recusa da sua homologação.

K) Decidindo, como decidiu, violou o Exmo. Juiz, designadamente, o disposto nos artigos 17-F/5 e 194.º, n.º1, do CIRE.

NESTES TERMOS, e porque só assim se fará justiça, deve ser dado provimento ao recurso e, em consequência, ser revogada douta sentença recorrida, sendo substituída por outra que recuse a homologação do plano de recuperação apresentado pelos devedores”.

Responderam os credores Caixa Geral de Depósitos e os Requerentes, arguindo a sanação da nulidade que motiva a pretensão dos Recorrentes e, em qualquer caso, a confirmação da decisão recorrida.

Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Objeto do recurso.
As conclusões da motivação do recurso suscitam duas questões: (i) o plano de recuperação viola o princípio da igualdade dos credores, (ii) a ausência de plano é objetivamente mais favorável aos Recorrentes.
Estas questões não foram suscitadas pelos Recorrentes na 1ª instância, nem constituíram objeto de pronúncia pela decisão recorrida e os Recorridos respondentes sustentam que não podem agora ser conhecidas no recurso por se mostrarem sanadas.
As questões suscitadas pelos Recorrentes, não são questões de procedimento ou de forma, são questões que reportam a violação de regras aplicáveis ao conteúdo do plano e, assim, ao seu mérito.
A violação de normas substantivas não pode haver-se por sanada com recurso ao regime, inaplicável, que disciplina a nulidade dos atos processuais (artºs 186º a 202º, do CPC) e, assim, a circunstância dos Recorrentes não haverem suscitados na 1ª instância as questões que agora colocam no recurso não constitui impedimento – enquanto nulidades sanadas – à sua apreciação.
Dizer isto não esgota o universo das questões que, por razões preclusivas, se mostram excluídas do objeto de pronúncia nos recursos.
Como é pacífico para a doutrina e para a jurisprudência, no nosso sistema, os recursos ordinários, como é o presente recurso de apelação, destinam-se à reponderação da decisão recorrida, o que significa que, em regra, “o tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que nela não foram formulados”[1], e isto porque os recursos visam modificar ou anular as decisões recorridas[2] e “não criar decisões sobre matéria nova não sendo lícito invocar e conhecer nos mesmos questões que as partes não tenham suscitado perante o tribunal recorrido”[3].
O conhecimento de questões de conhecimento oficioso constitui exceção a esta regra (artº 608º, nº 2, última parte, aplicável ex vi do disposto no artº 663º, nº 2, ambos do CPC).
Sendo a questão de conhecimento oficioso, o tribunal de recurso pode ocupar-se dela ainda que não haja sido suscitada no tribunal a quo, nem este a tenha resolvido.
Disciplina que revertida para o caso dos autos significa que não tendo a decisão sob recurso resolvido qualquer questão relacionada com a ilicitude do plano decorrente de se revelar previsivelmente menos favorável para os Recorrentes do que a ausência de qualquer plano, por não lhe haver sido colocada, não pode o recurso, neste particular, apreciar seja o que for, por se tratar de uma questão que nem os Recorrentes suscitaram perante o tribunal recorrido, nem este resolveu.
Diferentemente, a inobservância, pelo plano, do princípio da igualdade entre os credores a qual, por suscetível de comportar uma violação não negligenciável de normas aplicáveis ao conteúdo do plano, é de conhecimento oficioso (artº 215º, do CIRE) e, como tal, pode ser conhecida no recurso uma vez que não constituiu objeto de pronúncia da decisão recorrida.
Assim, não se conhece das conclusões H) e I) e o recurso tem por objeto apreciar se o plano de recuperação viola o princípio da igualdade dos credores.

III. Fundamentação.
1. Factos.
Para além das ocorrências processuais referidas no relatório supra, importa ainda considerar, que o plano de recuperação prevê a seguinte forma de regularização do passivo:

I. Regularização da dívida ao credor garantido

- Pagamento de 100% do valor em dívida à data do Trânsito em Julgado, em 288 prestações mensais iguais e sucessivas, vencendo-se a primeira prestação 30 (trinta) dias após trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano.

- A taxa de juro a aplicar será a taxa correspondente à média aritmética simples das taxas Euribor a 12 meses, apurada com referência ao mês imediatamente anterior ao do inicio de cada período de contagem de juros, arredondada para a milésima de ponto percentual mais próxima e acrescida de um "spread" de 2,5% sobre o capital em dívida.

- Caso a componente variável da taxa de juro (o indexante) seja inferior a zero, considera-se, para determinação da taxa nominal aplicável, que o valor do indexante corresponde a zero

- Manutenção das garantias prestadas

II. Regularização da dívida aos credores comuns

- Perdão de 90% do capital em dívida

- Perdão integral de juros vencidos e vincendos

- Perdão dos juros de mora

- Fixação de um período de carência de amortização de capital de 24 (vinte e quatro) meses, iniciando-se a contagem do período a partir do trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano.

- Amortização de 10% do capital será em 180 (cento e oitenta) prestações mensais, sucessivas, cada uma de igual valor, vencendo-se a primeira prestação 30 (trinta) dias após o términus do período de carência

III - Regularização da dívida aos credores Sob Condição (Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do …, CRL)

- Fixação de um período de carência de 6 meses após data de vencimento da primeira prestação a vencer

- Pagamento de 100% do valor em dívida em 240 prestações mensais iguais e sucessivas que corresponde ao número de prestações contratualizadas

- A revisão da taxa de juro (Spread) apenas poderá produzir efeito a partir da próxima revisão de taxa em função do indexante contratado, e que se encontra agendado para o dia 13/09/2017

- Caso a componente variável da taxa de juro (o indexante) seja inferior a zero, considera-se, para determinação da taxa nominal aplicável, que o valor do indexante corresponde a zero

- Manutenção das garantias prestadas

- As presentes alterações terão de ser formalizadas por aditamento ao contrato

2. Se o plano o plano de recuperação viola o princípio da igualdade dos credores.
A lei reconhece aos credores amplas liberdades de estipulação na definição do conteúdo do plano de insolvência, aplicáveis ao plano de recuperação ex vi do nº 7 do artº 17-F, do CIRE, admitindo que o pagamento dos créditos sobre a insolvência, a liquidação da massa insolvente, a sua repartição pelos titulares daqueles créditos e pelo devedor depois de findo o processo de insolvência possa ser regulado em derrogação de normas do CIRE (artº 192º, nº 1).
Em termos de conteúdo, o plano de insolvência é, no dizer de Menezes Leitão, um negócio atípico[4]. Mas tem limites; “o plano só pode afectar por forma diversa a esfera jurídica dos interessados, ou interferir com direitos de terceiros, na medida em que tal seja expressamente autorizado neste título ou consentido pelos visados (artº 192º, nº 3) e “obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objetivas”, dependendo a validade do “tratamento mais desfavorável relativamente a outros credores em idêntica situação (…) do consentimento do credor afetado, o qual se considera tacitamente prestado em caso de voto favorável” (artº 194º, nºs 1 e 2).
O princípio é o da igualdade de tratamento dos credores na definição do plano de pagamento dos créditos sobre a insolvência e da sua repartição pelos respetivos titulares; as diferenciações entre credores só são admissíveis por razões objetivas e, na ausência destas, a validade do tratamento mais desfavorável relativamente a credores em idêntica situação depende do consentimento, expresso ou tácito, do credor afetado.
Nos termos do artigo 47º do CIRE, os créditos sobre a insolvência são:
- «garantidos» e «privilegiados» quando beneficiem, respetivamente, de garantias reais, incluindo os privilégios creditórios especiais e de privilégios creditórios gerais sobre bens integrantes da massa insolvente;
- «subordinados» os enumerados no artº 48º exceto quando beneficiem de privilégios creditórios, gerais ou especiais, ou de hipotecas legais, que não se extingam por efeito da declaração de insolvência;
- «comuns» os demais créditos.
A esta classificação corresponde uma ordem ou preferência que, deliberadamente simplificada, se traduz em dar pagamento em primeiro lugar aos créditos garantidos e privilegiados, em segundo lugar aos créditos comuns e finalmente aos créditos subordinados (artºs 174º a 177º).
Entre estas classes de créditos pode haver diferenciação. “A razão objetiva porventura mais clara que fundamenta a diferença de tratamento assenta na distinta classificação dos créditos (…) O que está vedado é, na falta de acordo dos lesados, sujeitar a regimes diferentes credores em circunstâncias idênticas.”[5]
A sujeição, pelo plano, a regimes diferentes de credores que se encontram em circunstâncias idênticas, carece de nota justificativa no próprio plano que permita aferir se trata de modo igual o que é igual e diferente o que é diferente ou se, pelo contrário, trata de modo diferente o que é igual, caso em que não merece homologação, por violação do princípio da igualdade.
Voltando aos autos, o plano, sem qualquer justificação, estabelece uma diferenciação entre credores que se encontram em circunstâncias idênticas; prevê grosso modo um perdão de 90% do capital em dívida para os credores comuns e o pagamento a 100% do capital em dívida à Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…), CRL, também ela credora comum.
A individualização desta credora no plano como credora sob condição, não releva para diferenciar o seu crédito dos créditos comuns. Os créditos sob condição, suspensiva ou resolutiva, são respetivamente, aqueles cuja constituição ou subsistência se encontrem sujeitos à verificação ou à não verificação de um acontecimento futuro e incerto, por força da lei, de decisão judicial ou de negócio jurídico (artº 50º, nº 1, do CIRE); a condição reporta-se, assim, à constituição ou subsistência do crédito, não à sua preferência ou ordem de graduação, ou seja, os créditos sob condição, enquanto tal, não exprimem aos olhos da lei nenhuma razão objectiva justificativa de diferenciação.
Não beneficiando o crédito da CCAM de garantias reais sobre bens integrantes da massa insolvente, como é o caso, nem se inserindo no âmbito dos créditos subordinados, para efeitos do CIRE, o seu crédito é comum [artº 47º, nº 4, al. c)].
A diferença substancial (pagamento total do capital em dívida, no caso da CCAM e perdão de 90% do capital em dívida, no caso dos Recorrentes) estabelecida pelo plano entre credores da mesma classe, sem qualquer justificação e sem o consentimento dos Recorrentes expresso no seu voto contra a aprovação do plano[6] viola, a nosso ver, o princípio da igualdade dos credores.
Sujeitando a regimes diferentes credores que se encontram em circunstâncias idênticas, sem o consentimento dos credores lesados, o plano viola o princípio da igualdade dos credores.
A violação do princípio da igualdade dos credores constitui uma violação não negligenciável das normas aplicáveis ao conteúdo do plano de recuperação[7] que impõe a recusa da sua homologação (artº 215º ex vi do artº 17º-F, nº 7, do CIRE).

IV. Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto, na procedência do recurso, em revogar a decisão recorrida com a consequente não homologação do plano de recuperação.
Custas pelos Recorridos.
Évora, 12/10/2017
Francisco Matos
José Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho

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[1] Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos, pág. 395 e Jurisprudência aí indicada; no mesmo sentido, Lebre de Freitas, CPC anotado, 2ª ed., 3º vol. Tomo I, pág. 5 e Abrantes Geraldes, Recursos, novo regime, pág. 23.
[2] É o que decorre, entre outros, dos artºs 627º, nº1, 631º e 639º, nº1, todos do C.P.C.
[3] Cfr., entre outros, Ac. STJ de 6/2/1987, BMJ, 364º - 714.
[4] Direito da Insolvência, 4ª ed., pág. 285.
[5] Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, pág. 641.
[6] Cfr. fls. 160.
[7] Neste sentido, v.g. Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 642.