Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
134/13.1TBSRP-E.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: ACTO PROCESSUAL
JUSTIFICAÇÃO DA FALTA
Data do Acordão: 03/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A justificação de falta a acto processual deve conter um motivo razoável que permita aferir do juízo de impossibilidade ou do grave inconveniente no comparecimento da pessoa convocada, não estando o julgador vinculado a qualquer automatismo justificativo que dispense a avaliação do fundamento que a determinou.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo nº 134/13.1TBSRP-E.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Beja – Juízo de Competência Genérica de Serpa – J1
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Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
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I – Relatório:
No presente inventário aberto por óbito de (…), o interessado (…) veio interpor recurso do despacho datado de 08/11/2017.
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O despacho recorrido julgou injustificada a falta do interessado (…) à diligência agendada para o dia 20 de Novembro de 2014 e condenou o recorrente como litigante de má-fé na multa de 3,5 UC´s e, bem assim, a pagar ao interessado (…) a quantia de € 182,55 (cento e oitenta e dois euros e cinquenta e cinco cêntimos).
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Inconformado com tal decisão, o recorrente (…) apresentou recurso e as suas alegações continham as seguintes conclusões:
«1. Sem prejuízo da falta dever ser dada como justificada, como pugnamos, o que de por si só, abala e põe em crise todo o despacho recorrido, afigura-se que o mesmo lavra, desde logo, num erro quando refere que o incidente em causa foi suscitado pelo Interessado/Requerente (…), e nessa medida, condenou inclusivamente o aqui recorrente a pagar a este a título de deslocação ao tribunal a quantia de € 182,55.
2. A verdade é que, quem suscitou o incidente e requereu a condenação do aqui recorrente foi o identificado (…), mas não por si e/ou a título pessoal, mas na qualidade de cabeça de casal da herança.
3. Assim sendo, como de facto é, não se afigura que o aqui recorrente pudesse ser condenado a pagar ao interessado (…), enquanto tal, os alegados custos da deslocação.
4. Ainda a este propósito não se olvide que o ex- cabeça de casal já havia apresentado o requerimento que faz fls. (Refª 18753657) acompanhado de 3 documentos, com vista a comprovar os custos das portagens, deslocações e outros custos, sendo que aí se incluía a deslocação (que se impugnou a fls.) do dito dia 20/11/2014, em que era acompanhado do Dr. (…), advogado, na sociedade de advogados “(…) e Associados”, que o ex-cabeça de casal referia, em certas alturas, como sendo seus advogados e noutras alturas, como sendo advogados da herança, o que diga-se, nunca foi aceite e/ou admitido, pelo menos, pelo recorrente, essa alegada qualidade de advogados da herança.
5. Assim, afigura-se, igualmente injustificável que se façam dois pedidos de pagamento a propósito das alegadas deslocações, quando é certo que a deslocação foi única, aliás, como a própria ex-cabeça de casal, (…), admite e confirma claramente com o documento da sua autoria que juntou como doc. 157 do apenso C destes autos.
6. Neste contexto, não se afigura que o aqui recorrente pudesse ou devesse ser alguma vez condenado a pagar ao interessado (…) os alegados custos da deslocação realizada no dia 20/11/2014 na companhia do identificado advogado, com quem se deslocou, como confessa e decorre do dito documento 157 do apenso C.
7. O recorrente não omitiu gravemente ou sob qualquer outra forma menos acentuada o dever de cooperação ou de lealdade processual, antes pelo contrário.
8. Como decorre à saciedade dos autos, o recorrente fez sempre um uso, claro, frontal, vertical e leal do exercício de direitos processuais, no âmbito de um processo judicial, por si aberto, com vista à partilha dos bens da inventariada.
9. Neste sentido, afigura-se que é de todo injustificável não só o vertido no despacho recorrido, bem como condenação do recorrente na multa com litigante de má-fé e na indemnização arbitrada, sem prejuízo do acima referido, a titulo de deslocação ao identificado interessado (…).
10. Assim, como pugnamos, afiguram-se injustificadas, injustas, infundadas, a multa e a indemnização.
11. Acresce que a documentação junta aos autos para justificar a falta, não permite, sem qualquer outro meio de prova bastante e atendível que a contrarie e neste caso, nem sequer foi produzida qualquer prova em sentido contrário, que permita concluir que a consulta médica do filho menor, que o recorrente, enquanto pai, acompanhou, teve como intenção justificar a ocorrida falta.
12. A questão e a própria documentação em última instância configurariam matéria controvertida, o que impediria "tout court" a apreciação que resulta do despacho recorrido.
13. Por outro lado, não se olvide toda a errada interpretação em que do tribunal "a quo" incorreu e que se afigura ter contribuído decisivamente para a condenação do recorrente, relacionada com a dita falta e a sua justificação, designadamente, quando refere que já antes o recorrente havia justificado a sua falta nesse dia 20/11/2014 com a sua presença na Comarca da Madeira – Funchal, nesse mesmo dia 20/11/2014.
14. Ora, decorre à saciedade dos autos, que isso não corresponde à verdade e que é um manifesto erro em que do tribunal "a quo" incorreu e que contribuiu decisivamente para a construção de todo um raciocínio "viciado" que acabou por condenar injustamente e injustificadamente o recorrente.
15. Bem distinta por sinal é a mentira consciente e processualmente dela se querer aproveitar e prevalecer de forma consciente que é o que aqui se nos afigura ocorrer por parte do ex-cabeça de casal.
Nestes termos e nos demais de direito que V. Exas doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho recorrido, dando-se a falta em causa como justificada, sem prejuízo de se ter até demonstrado, sem efeito útil, a necessidade da dita diligência, em virtude do ex-cabeça de casal ter cumprido com o douto despacho que já lhe fora anteriormente ordenado (Refª 642396) que faz fls., absolvendo-se o recorrente, com todas as demais consequências legais.
Assim fazendo, farão, V. Exªs Justiça».
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O interessado (…) contra-alegou e defende que a decisão em causa deve ser mantida.
Admitido o recurso, foram observados os vistos legais. *
II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigo 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do NCPC).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação da existência de fundamento legal para considerar injustificada a falta, ponderar a existência de má-fé processual do recorrido e arbitrar uma indemnização compensatória pelo custo da deslocação a Tribunal da parte contrária.
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III – Dos factos apurados:
Da documentação incorporada nos autos e do histórico do processo foi possível extractar os seguintes factos:
1) Por despacho datado de 28/01/2014, o cabeça de casal foi notificado para indicar o valor da verba nº 15 da relação de bens apresentada.
2) O cabeça de casal veio informar que não podia dar cumprimento àquela determinação porque o interessado (…) não lhe facultava o acesso a tais bens.
3) Nessa sequência, por despacho datado de 09/10/2014, o Tribunal determinou que o acesso à verba nº 15 seria realizado na Secção de Competência Genérica de Serpa no dia 30/10/2014, pelas 09h30m.
4) No dia 30/10/2014, o interessado (…) não compareceu à aludida conferência e foi multado no pagamento de uma multa de 2 UC´s.
5) Por despacho datado de 06/11/2014, para realização da referida diligência foi designado o dia 20/11/2014.
6) Em 17/11/2014, o interessado (…) veio solicitar a desmarcação da referida diligência.
7) Por despacho de 18/11/2014, o Tribunal «a quo» manteve a data designada.
8) Por despacho de 20/11/2014, confrontado com a falta do aludido interessado, o Tribunal «a quo» condenou o recorrente (…) na multa processual de 3 UC´s e notificou-o para indicar o valor estimado que atribui a cada um dos bens que compõem a verba nº 15.
9) No dia 24/11/2014 o interessado (…) apresentou declaração de presença em consulta de psicologia clínica de (…), seu filho, na Clínica CUF Alvalade, das 08h25m às 09h20m.
10) (…) veio requerer a condenação como litigante de má-fé de (…), solicitando o reembolso das despesas de transporte realizadas e o pagamento de uma indemnização a fixar pelo Tribunal, de valor não inferior a € 750,00.
11) O Tribunal solicitou então à Clínica CUF Alvalade que informasse em que data foi marcada a consulta ao utente (…), que idade tinha o mesmo e se a situação clínica deste utente requeria o acompanhamento do seu pai.
12) A instituição hospitalar informou o Tribunal «a quo» que o menor tinha 7 (sete) anos e 10 (dez) meses, que a consulta foi marcada no dia 19/11/2014 e que a «necessidade na situação clínica de ser especificamente acompanhado pelo pai não existe. Bastará apenas um progenitor».
13) Com base nesta informação, o Tribunal «a quo» prolatou o despacho recorrido.
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IV – Fundamentação:
4.1 – Da falta ao julgamento:
A falta de qualquer pessoa que deva comparecer é justificada na própria audiência ou nos cinco dias imediatos, salvo tratando-se de pessoa cuja audição prescinda a parte que a indicou, conforme decorre do nº 3 do artigo 603º do Código de Processo Civil.
Após fazer a interpretação do historial processual e de analisar a declaração junta pelo interessado recorrente, o Tribunal «a quo» entendeu que «nas circunstâncias supra descritas, a conclusão que se impõe, com efeito, a mais plausível das conclusões que se impõe, é a de que o Interessado/Requerido marcou a consulta no dia anterior para justificar a sua ausência a uma diligência processual relativamente à qual não teve intenção de comparecer».
E como base nesse pressuposto factual o decisor «a quo» entendeu que deveria ser considerada injustificada a falta do interessado (…) à diligência do dia 20 de Novembro de 2014.
Apesar do regime de justificação de faltas no processo civil não ter a dimensão que lhe é emprestada na lei adjectiva penal, não basta qualquer razão para isentar o faltoso do pagamento da sanção devida pela ausência a diligência regularmente convocada. Na verdade, a justificação de falta a acto processual deve conter um motivo razoável que permita aferir do juízo de impossibilidade ou do grave inconveniente no comparecimento da pessoa convocada. Ela tem de ser séria e impeditiva não estando o julgador vinculado a qualquer automatismo justificativo que dispense a avaliação do fundamento que a determinou.
E, na situação vertente, não obstante não ser viável fazer uma associação de premeditação entre a falta e a instrumentalização da necessidade de acompanhar de familiar a uma consulta, aquilo que ressalta da explicação fornecida pela Clínica CUF Alvalade é que a presença do interessado naquela unidade médica era dispensável e assim a sua falta à diligência processual agendada resulta de uma opção pessoal, a qual não pode ser dissociada do seu comportamento processual pretérito.
Deste modo, mantém-se a condenação em multa aplicada pela primeira Instância.
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4.2 – Litigância de má-fé:
«Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão», face ao postulado normativo do artigo 542º do Código de Processo Civil.
No Código de Processo Civil de 1967, era pacífico que só quem agisse com dolo poderia ser condenado como litigante de má-fé, não se sancionando a lide temerária, entendida como a litigância violadora com culpa grave ou erro grosseiro das regras de conduta conformes com a boa-fé.
Todavia, atentas as alterações introduzidas ao artigo 456º do Código de Processo Civil, operadas pelos Decreto-Lei nºs 329-A/95, de 12/12 e 180/96, de 25/09, deve entender-se que a punição como litigante de má-fé abrange quer as condutas dolosas, quer as condutas gravemente negligentes, numa patente tentativa de maior responsabilização das partes. Esta disciplina mantém exactamente os mesmos traços no Novo Código de Processo Civil.
Como diz Planiol[1] o direito cessa onde começa o abuso.
No preenchimento do conceito Menezes Cordeiro qualifica a negligência grave como sendo uma «"imprudência grosseira", sem aquele mínimo de diligência que lhe teria permitido facilmente dar-se conta da desrazão do seu comportamento, que é manifesta aos olhos de cada um»[2].
A inobservância desses deveres (transparência, lealdade, informação, protecção e confiança) acarreta, entre outras consequências, sanções processuais de tipo repressivo.
Na perspectiva do Tribunal recorrido «evidencia-se uma omissão grave, e voluntária, do dever de cooperação que ao Interessado/Requerido se impunha, concretamente, o dever de comparecer à diligência em causa, não persistindo na conduta não colaborante que, aliás, já havia sido sancionada com multa processual, cf., o douto acórdão proferido no âmbito do Apenso A».
Para além disso, o Tribunal considera que a situação se inscreve na esfera de protecção da alínea d) do preceito acima transcrito, dado que corporiza um uso reprovável dos meios processuais, por a consulta ter sido agendada para efeitos de justificação de falta.
Independentemente da falta ser ou não justificada (que não é pressuposto constitutivo da condenação imposta), o conhecimento prévio de uma impossibilidade de comparência não comunicada ao processo e à parte contrária é susceptível de constituir uma violação do princípio da boa-fé, quando isso determina uma deslocação de outro interessado ao Tribunal que mantém residência a distância considerável com dispêndio de tempo e recursos económicos e se verifica que esse comportamento já foi repetido nos autos e é potencialmente entorpecedor da acção da Justiça.
E, face à natureza do processo e à relação existente entre as partes, o agora recorrente não podia desconhecer o local da residência do outro convocado para comparecer à diligência agendada e sabia que a não comunicação da sua ausência levaria a que outra parte comparecesse infrutiferamente no Tribunal.
E é claro que toda esta falta teve repercussões no regular andamento do processo, pois inviabilizou que fosse facultado o acesso a determinados bens móveis e a consequente elaboração tempestiva da relação de bens no inventário aberto por óbito de (…).
Tal omissão grave do dever de cooperação justifica a condenação do recorrente (…) como litigante de má-fé, nos termos do artigo 542º, nº 2, alínea c), do Código de Processo Civil, tal como havia decidido a Primeira Instância.
É assim perfeitamente adequado arbitrar uma indemnização pelos custos da deslocação realizada pela parte contrária com aplicação dos valores previstos na Portaria nº 1553-D/2008, de 31/12, com referência à redução efectuada pelo Decreto-Lei nº 137/2010, de 28/12.
Aliás, por via da aplicação dos normativos relacionados com o regime de custas previsto no Regulamento das Custas Processuais, este tipo de despesas de transporte poderia ser englobado nas custas de parte. E a eventual duplicação de despesa do mesmo tipo terá de ser avaliada em momento processual posterior de acordo com os procedimentos de controlo processualmente previstos e não se pode presumir que a final a condenação sub judice conduzirá a um duplo ressarcimento do mesmo gasto.
Menezes Cordeiro salienta que «o acto abusivo só formalmente pode parecer como praticado no âmbito do direito: uma vez que extravasa o sentido axiologicamente fixado para o direito em causa, é um acto “extradireito”, logo ilegítimo»[3].
Mostra-se bem estruturada a decisão recorrida, está assente em pressupostos jurídicos que não merecem reparo e a dosimetria das sanções aplicadas ao nível da multa como litigante de má-fé e da fixação da indemnizatória compensatória é perfeitamente adequada ao comportamento do faltoso. E, por conseguinte, mantém-se a decisão recorrida.
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V – Sumário:
1. A justificação de falta a acto processual deve conter um motivo razoável que permita aferir do juízo de impossibilidade ou do grave inconveniente no comparecimento da pessoa convocada, não estando o julgador vinculado a qualquer automatismo justificativo que dispense a avaliação do fundamento que a determinou.

2. O conhecimento prévio de uma impossibilidade de comparência não comunicada ao processo e à parte contrária é susceptível de constituir uma violação do princípio da boa-fé quando isso determina uma deslocação de outro interessado ao Tribunal que mantém residência a distância considerável com dispêndio de tempo e recursos económicos e se verifica que esse comportamento já foi repetido nos autos e é potencialmente entorpecedor da acção da Justiça.

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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar improcedente o recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas do recurso a cargo do recorrente, atento o disposto no artigo 527º do Código de Processo Civil.
Notifique.
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(acto processado e revisto pelo signatário nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 138º, nº 5, do Código de Processo Civil).
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Évora, 22/03/2018
José Manuel Galo Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho
Isabel Maria Peixoto Imaginário
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[1] Traité Élémentaire de Droit Civil, 3ª Ed.:, 1903, pág. 284.
[2] Litigância de Má-Fé, Abuso do Direito de Acção e Culpa "In Agendo", 2006, páginas 26 e 27.
[3] Direitos Reais, Reprint, Lex Edições Jurídicas, Lisboa 1993, pág. 414.