Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3080/15.0T8PTM.E1
Relator: MOISÉS SILVA
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
ACIDENTE EXCLUÍDO
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
REPARAÇÃO DO DANO
Data do Acordão: 02/14/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
Sumário: i) não existe na lei uma definição de acidente de trabalho. O acidente de trabalho há de descortinar-se a partir das normas jurídicas que afirmam o que é e o que não é acidente de trabalho, das suas consequências e dos danos reparáveis de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades.
ii) a agressão mútua entre dois colegas de trabalho no local e tempo de trabalho por causa da execução do serviço de que resultaram lesões para um deles, constitui acidente de trabalho reparável pela empregadora e/ou seguradora (elaborado pelo relator).
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO

Apelante: Z... (ré seguradora).
Apelada: M... (autora sinistrada).

Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo do Trabalho de Portimão, J2.

1. A autora instaurou ação com processo especial emergente de acidente de trabalho contra a seguradora aqui apelante e S..., pedindo que, pela procedência da ação, se reconheça que:
a) O acidente sofrido pela autora em 18.09.2015 é um acidente de trabalho;
b) Em consequência desse acidente a autora sofreu lesões que implicaram incapacidade temporária absoluta (ITA), pelo menos, no período de 60 dias após aquela data;
c) Após aquele período de ITA subsistiram sequelas impeditivas do normal desempenho da atividade profissional da autora, ficando a mesma afetada de uma incapacidade permanente (cujo grau deve ser determinado em exame por junta médica, que também requereu);
d) Em consequência, que as rés sejam condenadas no pagamento do montante de € 1 086,59, a título de indemnização legal devida por incapacidade temporária, da quantia de € 796,91, a título de despesas suportadas pela autora, relacionadas com consultas médicas, tratamentos, medicamentos, exames e deslocações.
Alega, em síntese, que no dia 18 de setembro de 2015, pelas 09h30, enquanto prestava a sua atividade ao serviço da ré “S..., onde fora colocada pelo seu empregador, foi agredida por um colega de trabalho, por razões relacionadas com o serviço. Em consequências de tal agressão, sofreu lesões que lhe determinaram um período de incapacidade temporária absoluta, subsistindo depois disso sequelas que configuram incapacidade permanente parcial – e, por isso, reclama o pagamento das prestações acima referidas.
As rés foram regularmente citadas, tendo ambas apresentado contestação.
Em resumo, rejeitam as rés que o evento descrito pela autora possa ser caracterizado como acidente de trabalho, pelo que não há lugar ao ressarcimento dos eventuais danos decorrentes do mesmo.
Concluem, por isso, pela total improcedência dos pedidos formulados.
Foi proferido despacho saneador a fls. 370 e seguintes, tendo-se procedido ao desdobramento do processo e abertura de incidente para fixação da incapacidade, no qual já foi proferida decisão.
Foi realizada a audiência de discussão e julgamento, tendo-se respondido à matéria de facto contemplada na base instrutória nos termos que constam da ata de fls. 417 e seguintes.
Foi proferida sentença com a decisão seguinte:
Nos termos expostos e em conformidade com as disposições legais citadas, julga-se a ação parcialmente procedente e, em consequência, julga-se a sinistrada M..., por via do acidente de trabalho de que foi vítima a 18.09.2015, afetada de 19.09.2015 até 17.11.2015 de uma ITA (incapacidade temporária absoluta), encontrando-se curada, sem desvalorização, desde 17.11.2015, e, por via disso:
a) Condenam-se as rés Z...e S..., a pagar à sinistrada M... a quantia de € 1 086,59 (mil e oitenta e seis euros e cinquenta e nove cêntimos) a título de indemnização devida pelo período de incapacidade temporária absoluta, acrescida de juros contados sobre cada importância diária desde o dia respetivo em que é devida, sendo € 957,07 (novecentos e cinquenta e sete euros e sete cêntimos) da responsabilidade da entidade seguradora e € 129,52 (cento e vinte e nove euros e cinquenta e dois cêntimos) da responsabilidade do empregador;
b) Condenam-se as rés Z... e S... a pagar à sinistrada M... a quantia de € 127,27 (cento e vinte sete euros e vinte e sete cêntimos) a título de despesas suportadas pela sinistrada, na proporção da respetiva responsabilidade, sendo € 112,10 (cento e doze euros e dez cêntimos) a cargo da entidade seguradora, e € 15,17 (quinze euros e dezassete cêntimos) da responsabilidade da entidade empregadora; sobre estas quantias acrescem juros de mora, à taxa legal, contados desde a data da citação.
Fixa-se à ação o valor de € 1 213,86 (mil duzentos e treze euros e oitenta e seis cêntimos) - cf. artigo 120.º n.º 2 do Código de Processo do Trabalho.
Custas pelas entidades responsáveis, que deram causa à ação e ficaram vencidas, na proporção da respetiva responsabilidade, 88,08% para a entidade seguradora, 11,92% para a entidade empregadora (cf. artigo 527.º do Código de Processo Civil).
As entidades responsáveis respondem pelo pagamento da remuneração dos peritos e das despesas realizadas com as diligências necessárias ao diagnóstico clínico do sinistro (cf. artigo 17.º n.º 8, do Regulamento das Custas Processuais).

2. Inconformada, veio a seguradora interpor recurso de apelação motivado com as conclusões seguintes:
3. A – A recorrente não se conforma com a douta sentença proferida nos autos, uma vez que, no seu entender, atentos os factos provados o evento a que respeitam os autos não é qualificado como acidente de trabalho.
4. B – Resultou provado que quando se encontrava no seu local de trabalho, no exercício das suas funções enquanto empregada de mesa, a sinistrada envolveu-se num confronto físico com um colega de trabalho, tendo ocorrido agressões mútuas, sendo que quer em ocasiões anteriores, quer no dia dos acontecimentos em causa, a sinistrada dirigiu expressões de caráter racista a esse colega.
5. C – Estas agressões mútuas não são, pois, qualificáveis como um acontecimento súbito e inesperado.
6. D – Pelo que para a qualificação do evento como acidente de trabalho falta, desde logo, o primeiro dos requisitos: a ocorrência de um evento naturalístico.
7. E – Para lá de que os factos em causa, tal como resultaram provados, demonstram, claramente, que o evento ocorreu à margem da autoridade patronal.
8. F – Como se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-09-2015, no proc. 112/09.5TBVP.L2.S1, disponível em www.dgsi.pt “O acidente ocorrido no tempo e no local de trabalho é considerado como de trabalho, seja qual for a causa, a menos que se demonstrem factos que claramente demonstrem que o acidente ocorreu à margem da autoridade patronal, ónus que pertence à entidade responsável.” (sublinhado nosso).
9. G – E foi precisamente o que aconteceu no caso sub judicio.
10. H – Em suma, nem a agressão mútua se pode considerar um evento naturalístico, nem a mesma se pode qualificar como relacionada, com nexo causal, com a situação de subordinação à autoridade patronal em que a sinistrada se encontrava.
11. I – Os acontecimentos que deram lugar ao dano físico sofrido pela A. não são pois, aptos, a integrar o conceito de acidente de trabalho.
12. J – Ao decidir de modo diverso, a meritíssima juiz a quo fez uma incorreta aplicação da lei aos factos provados e violou o disposto no art.º 8.º n.º 1 da Lei n,.º 98/2009, de 04 de Setembro.
13. K – A douta sentença recorrida deve, pois, ser inteiramente revogada e substituída por outra que julgue não estarem verificados os requisitos para a qualificação dos factos como acidente de trabalho e, nessa sequência, absolva a ré da totalidade do pedido.

3. A sinistrada respondeu e apresentou as conclusões seguintes:
1. Por não se conformar com a douta sentença proferida nos autos, a ré “Z...”, interpôs recurso, requerendo a revogação da douta sentença e a sua substituição por outra que julgue não estarem verificados os requisitos para a qualificação como acidente de trabalho dos factos que envolveram a autora M... e o seu colega de trabalho T... quando no dia 18 de setembro de 2015, cerca das 09h30, se envolveram-se em confronto físico, agredindo-se mutuamente, na sequência de um desentendimento a propósito do transporte da loiça, quando ambos se encontravam a desempenhar funções, como empregados de mesa, no Hotel ....
2. A recorrente sustenta que os factos provados não permitem qualificar o evento como um acidente de trabalho, pois não se tratou de um acontecimento súbito e inesperado, e como tal falham os pressupostos para a sua qualificação como acidente de trabalho, concluiu que, ao decidir de modo diverso, a Mma. juíza a quo fez uma incorreta aplicação da lei aos factos provados e violou o disposto no art.º 8.º n.º 1, da Lei nº 98/2009, de 4 de setembro.
3. Ficou provado que a sinistrada se envolveu em confronto físico com o colega de trabalho na sequência de um desentendimento a propósito do transporte da loiça, quando ambos se encontravam a desempenhar funções, como empregados de mesa, no Hotel ....
4. Portanto, a discussão que motivou as agressões foi relacionada com o trabalho e por causa dele.
5. A lei define no art.º 8.º da LAT que «é acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza direta ou indiretamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte».
6. Ora, o nosso ordenamento não exige que o acidente de trabalho tenha que ser um evento ocorrido na execução do trabalho, não havendo sequer que exigir uma relação causal entre o acidente e essa mesma execução do trabalho. Para que um trabalhador seja vítima de um acidente de trabalho, basta que sofra um evento danoso no local e tempo de trabalho.
7. A Autora envolveu-se numa discussão com um colega de trabalho por causa da loiça suja amontoada no seu local de trabalho e acabou a ser agredida (e a agredir?) disso lhe tendo resultado lesões pelo que, embora a lei não exija conexão entre o acidente e a relação laboral, até esta se verificou no caso dos autos, sendo, por isso manifesto que a autora foi vítima de um acidente de trabalho.
8. Independentemente de a autora também ter discutido e eventualmente agredido o seu colega de trabalho, essa discussão foi relacionada com o trabalho que ambos estavam, ou deviam estar, a realizar, sendo assim evidente a relação ou conexão do evento com o trabalho.
9. Ficaram, por isso, demonstrados todos os pressupostos para se concluir que a autora foi vítima de um acidente de trabalho, tal como bem concluiu o Tribunal.
A autora era trabalhadora e estava no seu local de trabalho. Quando sofreu a agressão encontrava-se no seu horário de trabalho, no exercício das suas funções e, como tal, na dependência funcional da sua entidade empregadora. Sofreu danos e consequentes prejuízos e existiu um nexo de causalidade entre o facto e o dano.
10. Conclui-se assim, que não assiste razão à recorrente e que o Tribunal não violou qualquer norma jurídica, não fez deficiente interpretação e aplicação do direito, nem procedeu a incorreta apreciação da prova recolhida em sede de audiência de julgamento, razão pela qual se entende que a douta sentença objeto do presente recurso não merece qualquer reparo ou censura.
Nestes termos deverá ser negado provimento ao recurso interposto pela recorrente “Z...”, confirmando-se a douta sentença recorrida nos seus precisos termos.

4. Colhidos os vistos, em conferência, cumpre apreciar e decidir.

5. Objeto do recurso

O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões das alegações formuladas, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso.
A questão a decidir consiste em apurar se existe acidente de trabalho.

II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A) A sentença recorrida considerou provada a matéria de facto seguinte:
1. Em 05 de agosto de 2015 a autora M... celebrou contrato de trabalho com a ré S..., para desempenhar, sob autoridade, gestão e orientação da empresa R..., funções inerentes à categoria profissional de empregada de mesa no Hotel ..., auferindo uma retribuição anual de € 9 443,01 [(€ 589,40 × 14) + (€ 93,94 × 11) + € 158,07]. (alínea A) da matéria assente)
2. Em 18 de setembro de 2015, a ré S... tinha a sua responsabilidade infortunística por acidentes de trabalho ocorridos com a autora transferida para a ré Z..., através de contrato de seguro titulado pela apólice n.º 006768793, mas pelo montante da retribuição anual de € 8.317,41 [(€ 509,00×14) + (€ 93,94×11) + € 158,07]. (alínea B) da matéria assente)
3. No dia 18 de setembro de 2015, cerca das 09h30, a autora e o seu colega de trabalho T... envolveram-se em confronto físico, agredindo-se mutuamente, na sequência de um desentendimento a propósito do transporte da loiça, quando ambos se encontravam a desempenhar funções, como empregados de mesa, no Hotel .... (1º, 2º e 5º da base instrutória)
4. Em ocasiões anteriores e também no dia dos acontecimentos em causa nos autos, a autora dirigiu expressões de caráter racista ao seu colega T..., designadamente, referindo-se a ele como “preto” e manifestando a opinião de que pessoas como ele não deveriam trabalhar naquele local. (3º da base instrutória)
5. Em consequência das lesões sofridas por força dos factos supradescritos, a autora esteve totalmente incapacitada para o exercício de qualquer atividade profissional, desde 19.09.2015 até 17.11.2015. (6º da base instrutória)
6. Na sequência dos acontecimentos referidos em 3., a autora foi assistida, no dia seguinte, no CHBA e no Centro de Saúde de Portimão, tendo sido medicada com analgésicos. (7º da base instrutória)
7. Para tratamento das lesões sofridas, a autora gastou € 68,27 em medicamentos e € 59,00 em consultas e meios complementares de diagnóstico. (9º e 10º da base instrutória)
8. Em 19.09.2015, pelas 12h54, a sinistrada recorreu ao serviço de urgência do CHBA, onde foi observada, referindo “dor de garganta e cefaleias, ainda dores generalizadas” e apresentando “escoriação pescoço lateral”, sendo-lhe diagnosticada “cervicalgia” e administrados medicamentos analgésicos.
9. A autora sofreu cervicalgia pós-traumática, que constitui consequência adequada dos eventos descritos nos autos como tendo ocorrido no dia 18.09.2015.
10. As lesões de origem traumática sofridas pela autora não deixaram sequelas.
11. A sinistrada, em consequência das lesões sofridas, sofreu um período de Incapacidade Temporária Absoluta (ITA) de 60 dias, desde 19.09.2015 até 17.11.2015.
12. Desde 17.11.2015, encontra-se curada das aludidas lesões, sem quaisquer sequelas que possam ser relacionadas com o evento descrito nos autos.
13. A autora M... nasceu a 07.09.1953.

B) APRECIAÇÃO

Apurar se existe acidente de trabalho.

O ordenamento jurídico, nomeadamente a Lei n.º 98/2009, de 04.09, não nos fornece uma noção de acidente de trabalho. O acidente de trabalho há de descortinar-se a partir das normas jurídicas que afirmam o que é e o que não é acidente de trabalho, das suas consequências (artigo 8.º do diploma legal citado) e dos danos reparáveis de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades (Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23.10) Martinez, Pedro Romano, Direito do Trabalho, 3.ª edição, Edições Almedina, SA, Coimbra, 2006, pp. 816 e ss..
A doutrina e a jurisprudência apontam determinadas caraterísticas essenciais para a sua qualificação como tal. Deve ser imprevisto ou súbito o seu aparecimento, de forma não previsível quanto à sua ocorrência e devido a fatores externos ao trabalhador Martinez, Pedro Romano, Direito do Trabalho, …, pp. 798 e 799 e Alegre, Carlos, Acidentes de Trabalho, Livraria Almedina, Coimbra, p. 27 e ss.; Ac. RL, de 04.06.2003, CJ, t, III, p. 151., em contraponto às doenças profissionais que decorrem de um processo lento, progressivo e surgem, em geral, de modo impercetível Martinez, Pedro Romano, Direito do Trabalho, …, p. e 798 e Ac. STJ, de 21.11.2001, Revista n.º 1591/01, 4.ª Secção..
Para Adrien Sachet Citado por Carvalho, José Augusto Cruz, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, p. 25. acidente de trabalho é o acontecimento anormal, em geral súbito, ou pelo menos de uma duração curta e limitada, que acarreta uma lesão à integridade ou à saúde do corpo humano.
Porém, esta sua definição não foi acolhida pela doutrina e pela jurisprudência, em virtude de não abranger todas as contingências da vida e prestar-se a dúvidas sobre a interpretação dos pressupostos em que assentava Para uma visão crítica sobre esta definição, Alegre, Carlos, Acidentes de Trabalho, …pp. 28 e ss. .
Pensamos que uma noção legal de acidente de trabalho, como a que existe para o contrato de trabalho, dada a sua dificuldade em abarcar todas as situações da vida real, poderia trazer problemas interpretativos de difícil resolução, pondo em causa a certeza e a segurança do direito, bem como o princípio da igualdade material ao resolver casos semelhantes de forma diversa. Além de desprestigiar a justiça, não constituiria qualquer mais-valia ao sistema vigente.
Nos termos do artigo art.º 8.º da Lei n.º 98/2009, de 04.09 (LAT), é acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza direta ou indiretamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
De igual modo, considera-se acidente de trabalho o que resultar da execução de serviços espontaneamente prestados e de que possa resultar proveito económico para a entidade empregadora.
O local de trabalho é todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e em que esteja, direta ou indiretamente, sujeito ao controlo do empregador Baptista, Albino Mendes, Notas Sobre a Mobilidade Geográfica dos Trabalhadores, pp. 26 e ss. e Catarina Carvalho, A mobilidade Geográfica dos Trabalhadores no Código do Trabalho, pp. 43 e ss., ambos, in, VII Congresso Nacional de Direito do Trabalho, Memórias, Coordenação do Prof. Doutor António Moreira e colaboração da Mestre Teresa Coelho Moreira, Livraria Almedina, Coimbra, 2004. , Cordeiro, Menezes, Manual de Direito do Trabalho, 6.ª edição, Livraria Almedina, Coimbra, 1994, pp. 685 e 686..
Há casos em que se suscitam dúvidas quanto à sua caraterização como acidente de trabalho. Entendemos que existe sempre acidente de trabalho, independentemente do local onde ocorre, desde que o trabalhador esteja aí por causa ou por ocasião das suas funções, a mando da empresa, sujeito ao controlo direto ou indireto do empregador, nos termos do n.º 2, alínea a) do artigo 8.º da LAT.
O art.º 17.º n.º 1 da Lei n.º 98/2009, de 04.09, prescreve que quando o acidente for causado por outro trabalhador ou por terceiro, o direito à reparação devida pelo empregador não prejudica o direito de ação contra aqueles, nos termos gerais.
Está provado, além do mais, que: “No dia 18 de setembro de 2015, cerca das 09h30, a autora e o seu colega de trabalho T... envolveram-se em confronto físico, agredindo-se mutuamente, na sequência de um desentendimento a propósito do transporte da loiça, quando ambos se encontravam a desempenhar funções, como empregados de mesa, no Hotel ...;
Em ocasiões anteriores e também no dia dos acontecimentos em causa nos autos, a autora dirigiu expressões de caráter racista ao seu colega T..., designadamente, referindo-se a ele como “preto” e manifestando a opinião de que pessoas como ele não deveriam trabalhar naquele local;
Em consequência das lesões sofridas por força dos factos supradescritos, a autora esteve totalmente incapacitada para o exercício de qualquer atividade profissional, desde 19.09.2015 até 17.11.2015;
A autora sofreu cervicalgia pós-traumática, que constitui consequência adequada dos eventos descritos nos autos como tendo ocorrido no dia 18.09.2015”.
Estes factos provados evidenciam que o evento ocorreu no local, no tempo de trabalho e pro causa da execução do trabalho.
Os factos provados mostram que a trabalhadora sinistrada havia dirigido palavras racistas ao colega de trabalho em momento anterior às agressões mútuas. As expressões racistas proferidas pela trabalhadora sinistrada não eram novidade. Não ocorreram apenas no dia do evento, mas também em dias anteriores.
Por um lado, a conduta da trabalhadora sinistrada mostra-se totalmente revel ao dever ser pressuposto pela ordem jurídica portuguesa e mundial, que rejeita de forma veemente todos os comportamentos racistas.
Por outro lado, no caso da reação do colega de trabalho ter sido em consequência das expressões racistas, a ordem jurídica apenas permitiria a ação direta ou a legítima defesa em casos excecionais para afastar uma agressão atual, ilícita, que não pudesse ser afastada de outro modo, fosse idónea a afastar o perigo da ameaça e não fosse desproporcionada.
Ora, se a reação do colega de trabalho fosse motivada por aquelas expressões, tal não preencheria estes requisitos. A reação do visado não seria idónea a afastar a ameaça de concretização da ofensa, seria manifestamente desproporcionada.
Contudo, não está provado que tenha ocorrido por causa das expressões racistas, embora não custe a acreditar que podem ter ajudado a alimentar e a agravar o conflito entre ambos.
A trabalhadora foi agredida no seu local e tempo de trabalho por um colega quando os dois estavam em funções e por causa da execução do trabalho.
Desconhece-se se a sinistrada provocou lesões ao colega de trabalho.
Em qualquer caso, o colega da sinistrada praticou um ato ilícito em resposta à prática igualmente por aquela de um ato ilícito, donde resultou incapacidade para a primeira.
Uma vez que as lesões foram provocadas por um colega de trabalho quando ambos estavam no exercício das funções, por causa delas, e a trabalhadora aqui sinistrada sofreu incapacidade para o trabalho, entendemos que estamos perante um acidente de trabalho. A empregadora (e a seguradora, nos termos da apólice) responde objetivamente pela reparação dos danos sofridos pela trabalhadora, embora haja culpa desta, mas não exclusiva.
Eventuais outras responsabilidades, a apurar nos termos do art.º 17.º n.º 1 da Lei n.º 98/2009, de 04.09, não são para apreciar na ação emergente de acidente de trabalho nem, aliás, foram colocadas.
Em resumo: ambos os trabalhadores praticaram atos ilícitos. A única diferença é que em relação à aqui autora provou-se que em consequência do evento sofreu incapacidade temporária e teve que recorrer a apoio médico, ou seja, sofreu danos.
Assim, concluímos que o acidente sofrido pela trabalhadora constitui um acidente de trabalho, de acordo com os parâmetros legais acima referidos.
Nesta conformidade, julgamos a apelação improcedente e confirmamos a sentença recorrida.

III - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar a apelação improcedente e confirmar a sentença recorrida.
Custas pela apelante seguradora.
Notifique.
(Acórdão elaborado e integralmente revisto pelo relator).
Évora, 14 de fevereiro de 2019.
Relator: Moisés Silva
Mário Branco Coelho
Paula do Paço (vota a decisão)