Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
215/04.2IDLSB.E1
Relator: FÁTIMA BERNARDES
Descritores: INFRAÇÕES TRIBUTÁRIAS
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
CONDIÇÃO
OBRIGATORIEDADE
PAGAMENTO
MODIFICAÇÃO
Data do Acordão: 05/25/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - Tendo o ora recorrente sido condenado, por sentença transitada em julgado, em pena de prisão, cuja respetiva execução foi suspensa pelo período de quatro anos, subordinada ao dever de pagamento da prestação tributária em falta e acréscimos legais, nos termos do disposto no artigo 14º do RGIT, estando a decorrer o prazo de suspensão da execução da pena, não é legalmente admissível a modificação/alteração daquele dever pelo de prestação de trabalho a favor da comunidade.
II - Desde logo por que tal violaria o caso julgado.
III - Por outro lado, se é certo que as regras de conduta e os deveres a que se encontra subordinada a suspensão da execução da pena de prisão podem ser modificados até ao termo do período de suspensão, sempre que ocorrerem circunstâncias relevantes supervenientes ou de que o tribunal só posteriormente tenha tido conhecimento (cf. artigos 51º, n.º 3 e 52º, n.º 4, do Código Penal), nunca poderá perder-se de vista o regime especial consagrado no artigo 14º do RGIT, que impõe a obrigatoriedade do condicionamento da suspensão da execução da pena de prisão ao dever de pagamento das prestações tributárias não entregues e legais acréscimos.
IV - Perfilhando-se o entendimento maioritariamente defendido na doutrina e jurisprudência, de que é legalmente inadmissível subordinar a suspensão da execução da pena de prisão à prestação de trabalho a favor da comunidade, mesmo com o consentimento do condenado, necessariamente, não poderá, por via da modificação dos deveres a que foi subordinada a suspensão da execução da pena, ao abrigo do disposto no artigo 51º, n.º 3, do CPP, decidir-se substituir aqueles deveres, pelo de prestação de trabalho a favor da comunidade.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. RELATÓRIO
1.1. No âmbito do processo comum n.º 215/04.2IDLSB, do Tribunal Judicial de Faro, 2º Juízo Criminal, foi o arguido AA condenado, por sentença proferida em 07/05/2012, transitada em julgado a 17/11/2019, pela prática, de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelo artigo 103º, n.º 1, alíneas a) e b), do RGIT, na redação originária, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na respetiva execução, pelo período de 4 (quatro) anos, sendo a suspensão subordinada ao pagamento, nesse prazo, da prestação tributária em falta, no montante de €296.132,94 (duzentos e noventa e seis mil, cento e trinta e dois euros e noventa e quatro cêntimos) e acréscimos legais.
1.2. Por requerimento apresentado em 21/10/2022, com a Ref.ª Citius 41836871, o arguido/condenado requereu a modificação do dever de pagamento da prestação tributária, no valor de €296.132,94 e acréscimos legais, a que foi subordinada a suspensão da execução da pena em que foi condenado, por trabalho a favor da comunidade. Mais requereu o condenado a elaboração de relatório social nos termos do artigo 370º do CPP, sobre a situação pessoal, familiar, económica e financeira, com vista ao apuramento da factualidade alegada para fundamentar a requerida modificação da condição a que foi subordinada a suspensão da execução da pena de prisão aplicada.
1.3. Por despacho judicial proferido em 08/11/2022, com a Ref.ª Citius 126035915 foi indeferido o requerido pelo condenado, por inadmissibilidade legal.
1.4. Inconformado com o assim decidido, o arguido/condenado interpôs recurso para esta Relação, apresentado a respetiva motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões:
«I – O recurso interposto põe em crise a decisão da 1ª instância que indeferiu o pedido de substituição da condição suspensiva da pena de prisão e que considerou que o Arguido se encontra em incumprimento da condição.
II – A decisão recorrida considera como penas de substituição da pena de prisão as penas de suspensão de execução da prisão e as penas de prestação de trabalho a favor da comunidade, considerando-as autónomas e entendendo que não podem substituir-se uma à outra sob pena de termos “uma mistura atrabiliária – e violadora, por conseguinte, do princípio da legalidade da pena – de duas diferentes penas de substituição, cada qual com o sentido e os seus pressupostos próprios
III – Indeferindo a substituição da pena, indeferiu o pedido de elaboração de relatório social que o Arguido entender sustentá-lo.
IV – Considerou a decisão recorrida que o Arguido ao não estar a efetuar pagamentos das dividas em execução fiscal, conforme informação da Autoridade Tributária, se encontra em incumprimento da condição a que foi sujeita a suspensão da sua pena de prisão.
V – A condição de pagamento do valor em divida fiscal determina que o mesmo seja realizado no prazo de 4 anos a contar do transito em julgado da decisão. Não condiciona a que o pagamento seja feito parcelarmente pelo decurso do tempo, permitindo, até, o seu pagamento integral no fim do prazo.
VI – O Arguido ainda tem 2 anos para completar os 4 anos da condição, pelo que o tribunal recorrido mal aplicou o direito ao considerar que o Arguido está em incumprimento, pelo que se requer a revogação da decisão nessa matéria.
VII – Quanto respeita à possibilidade legal da substituição da condição de suspensão, ao tribunal recorrido também mal interpretou a lei, utilizando uma base doutrinal não aplicável ao caso.
VIII – Contrariamente ao perfilhado pela decisão recorrida, o que o Prof. Dr. Figueiredo Dias considera inadmissível e uma mistura atrabiliária é a cumulação da condição de pagamento e de trabalho a favor da comunicada na mesma pena de suspensão da pena de prisão.
VIX – E tal entendimento é vertido pela jurisprudência nos Acórdãos citados do Tribunal da Relação do Porto.
VX – Demonstrativo de que o Arguido crê na legalidade do seu pedido e não é movido por nenhuma ideia temerária, é o acolhimento no entendimento pela legalidade da substituição perfilhada nas diversas decisões judiciais supra mencionadas e em concreto:
“Sendo a suspensão da execução da pena sujeita ao cumprimento de deveres ou regras de conduta estas podem ser modificados até ao termo do período de suspensão, sempre que ocorrerem circunstâncias relevantes supervenientes ou de que o tribunal só posteriormente tenha tido conhecimento, o que significa que o conteúdo da pena de suspensão da execução da prisão está sujeito, dentro dos limites legais, mesmo independentemente de incumprimento do condenado, a uma cláusula rebus sic stantibus (artigos 51.º, n.º 3, 52.º, n.º 3 e 54.º, n.º2, do C. P, na redacção em vigor na data da decisão condenatória).” (Ac. TRC de 04 de Junho de 2008 )
“Sendo o trabalho a favor da comunidade uma pena de substituição em sentido próprio, entendemos que, em princípio, será de aplicar a crimes de pouca gravidade, especialmente quando estamos perante jovens e pessoas idosas, mas não quando o agente vem reiteradamente praticando crimes, designadamente da mesma natureza, e o crime em apreciação é praticado com grande frequência” (Ac TRC de 03 de Outubro de 2018 ).
VX – Mais se tendo entendido que se o Arguido revela incapacidade financeira para cumprir a condição de pagamento, deve a mesma ser substituída sob pena de se determinar a sua extinção por incapacidade de pagamento não culposo do Arguido.
VXI – A esse título veja-se a doutrina e jurisprudência: “se recolhe a ideia de que o arguido deve proceder ao pagamento segundo aquilo que puder de acordo com as suas forças.” No que foi depois secundado pelo Sr. Procurador-Geral da República, a propósito da previsão da possibilidade de pagamento em prestações: “se o arguido não pode indemnizar, o juiz não deve fixar essa obrigação condicionante.” (Ac. TRP de 26.10.2016 e Ac. TRP de 24.10.2018)
“caberá ao Tribunal recorrido apreciar tal pretensão nessa exata perspetiva, ou seja, se se justificará ou não tal prorrogação tendo em vista o cumprimento da obrigação imposta ou se deverá desde já “queimar” essa fase e julgar extinta a pena pelo decurso do prazo da suspensão, uma vez que o incumprimento da condição não se deve a qualquer tipo de culpa grosseira, sempre no pressuposto de inexistir outra causa ou razão que impeça tal decisão”. (Ac. TRC de 11.10.17)
VXII – O Recorrente demonstrou nos autos os motivos da sua incapacidade de pagamento da condição e manifestou nos autos a sua disponibilidade e capacidade para de forma útil e proveitosa à comunidade poder prestar trabalho a favor da comunidade , em vez de esperar pelo decurso dos 4 anos a invocar a extinção da condição por impossibilidade não culposa.
VXIII – Encontram-se reunidos os pressupostos legais para que o tribunal recorrido tivesse deferido a substituição da condição da suspensão da pena de prisão por trabalho a favor da comunidade, pelo que essa devia ter sido a decisão.
TERMOS EM QUE SE REQUER A V.EXAS. A REVOGAÇÃO DA DECISÃO PROFERIDA POR ERRÓNEA APLICAÇÃO DO DIREITO , NOS TERMOS DO ART.410º DO CPP, E A SUA SUBSTITUIÇÃO POR OUTRA QUE DEFIRA O PEDIDO DE SUBSTITUIÇÃO DA CONDIÇÃO DE SUSPENSÃO DA PENA DE PRISÃO POR PRESTAÇÃO DE TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE, DETERMINANDO-SE A REALIZAÇÃO DO RELATÓRIO SOCIAL, CONSIDERANDO-SE QUE O ARGUIDO ESTÁ EM PLENO CUMPRIMENTO DA CONDIÇÃO APLICADA.
O que se requer a V. Exas., fazendo-se assim a tão costuma justiça».
1.5. O recurso foi regularmente admitido.
1.6. O Ministério Público, junto da 1.ª instância, apresentou resposta ao recurso, pronunciando-se no sentido de dever ser rejeitado, mantendo-se a decisão recorrida, formulando as seguintes conclusões:
«A.- O recorrente veio interpor recurso do douto despacho proferido pelo Tribunal a quo a 8/11/2022, referência CITIUS 126035915 que indeferiu a substituição da condição de suspensão da pena de prisão aplicada ao condenado de proceder ao pagamento de € 296.132,94, por uma condição de suspensão de prestação de trabalho a favor da comunidade.
B.- A pretensão do recorrente não tem qualquer fundamento legal ou fáctico.
C.- A pena de prestação de trabalho a favor da comunidade e a suspensão da pena de prisão, são penas autónomas da pena de prisão, substituindo-a, como bem salienta o recorrente.
D.- Ora, é precisamente por não serem penas principais e por serem penas autónomas da pena de prisão que elas não se podem cumular entre si, porque o incumprimento de uma pena de substituição pressupõe o cumprimento da pena substituída, o que seria inviável no caso do pretendido pelo recorrente. Qual seria a pena a cumprir pelo condenado em caso de incumprimento, a pena substitutiva de suspensão da execução da pena de prisão?
E.- A pena de substituição já foi fixada aquando da prolação da sentença que foi confirmada pelo Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Évora, isto é, a pena de prisão foi suspensa na sua execução pelo período de 4 anos, pena autónoma aplicada, já transitou em julgado e não pode ser modificada.
F.- O artigo 14.º, do Regime Geral das Infrações Tributárias, é claro e expresso: a suspensão da execução a pena de prisão é sempre condicionada ao pagamento da prestação tributária.
G.- Sobre a razoabilidade da imposição do pagamento dos valores referidos no artigo 14.º, do RGIT, nas situações de incapacidade financeira do condenado, muitas têm sido as decisões dos tribunais das instâncias superiores que sobre aquela norma se vêm pronunciando, sendo unânime que a mesma não padece de inconstitucionalidade, por um lado, e que exige da parte do julgador um juízo sobre a razoabilidade da condição, conforme superiormente decidido pelo AUJ do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 8/2012 (in DR, I série, n.º 206, de 24/10/2012), por outro.
H.- Aliás, outra não podia ser a opção do legislador, caso contrário a mensagem que perpassaria é que o crime compensa, isto é, que os sujeitos passivos de imposto poder-se-iam locupletar do valor de impostos que tinham de entregar e que a consequência legal para esse comportamento era manterem uma situação patrimonial confortável.
I.- Concluímos, assim, que o recurso apresentado deve ser julgado totalmente improcedente por falta de fundamento legal e porque o acolhimento da sua pretensão violaria, além do caso julgado, o disposto no artigo 14.º, do Regime Geral das Infrações Tributárias.
Termos em que, deve ser rejeitado o recurso apresentado pelo recorrente e, consequentemente, ser mantida a douta sentença nos seus precisos termos
DECIDINDO NESTA CONFORMIDADE SERÁ FEITA JUSTIÇA!.»

1.7. Subidos os autos a este Tribunal, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de o recurso dever ser julgado improcedente, por falta de fundamento legal e porque o acolhimento da pretensão do recorrente violaria, além do caso julgado, o disposto no artigo 14º do Regime Geral das Infrações Tributárias.
1.8. Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, não tendo sido exercido o direito de resposta.
1.9. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Delimitação do objeto do recurso
Constitui jurisprudência uniforme que os poderes de cognição do tribunal de recurso são delimitados pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação de recurso (cf. artigos 403º, nº 1 e 412º, nºs 1, 2 e 3, do Código de Processo Penal), sem prejuízo, da apreciação das questões de conhecimento oficioso, como sejam as nulidades que não devam considerar-se sanadas (cf. artigos 410º, n.º 3 e 119º, nº 1, do Código de Processo Penal).
Assim, no caso em análise, considerando as conclusões do recurso, a questão suscitada é a de saber se pode ser modificada a condição a que ficou subordinada a suspensão da execução da pena de prisão aplicada, por sentença transitada em julgado, do pagamento da prestação tributária em falta, nos termos previstos no artigo 14º do RGIT, por prestação de trabalho a favor da comunidade.

2.2. Despacho recorrido
É o seguinte o teor do despacho recorrido:
«Referência eletrónica CITIUS n.º 9953326 e 9953339
Veio o arguido AA, aos autos, requerer a modificação do dever de pagamento da prestação tributária em falta no valor de €296.132,94 e acréscimos legais, a que se encontra subordinada a suspensão da execução pena de prisão que lhe foi aplicada, por trabalho a favor da comunidade.
Para o devido efeito, alega, sinteticamente, possuir dificuldades económicas, por força das despesas mensais em que incorre, e que tem disponibilidade de tempo e vontade para contribuir para a comunidade de forma tão proveitosa como aquela que poderia ter contribuído com o tributo dos autos. Acrescenta, ainda, que a pena de suspensão da execução da pena de prisão reveste a natureza de pena autónoma e, por isso, é passível de ser substituída.
Com vista nos autos, o Ministério Público promoveu o indeferimento do requerido por falta de fundamento legal.
Cumpre decidir.
O nosso sistema apenas conhece duas espécies de penas principais, sendo a pena de multa a única alternativa à pena de prisão. No entanto, sendo aplicada uma pena de prisão, o arguido não tem necessariamente de cumprir, entre muros, a pena privativa da liberdade, podendo ser esta objeto de substituição.
As penas de substituição devem corresponder a um duplo requisito: (i) terem caráter não institucional ou não detentivo e, como tal, serem cumpridas em liberdade, e (ii) pressuporem a prévia determinação da medida da pena de prisão, para serem aplicadas em detrimento desta. Entre as penas de substituição encontramos as penas de suspensão de execução da prisão e as penas de prestação de trabalho a favor da comunidade.
Nos termos do preceituado no artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Ademais, se o tribunal julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova (artigo 50.º, n.º 2, do Código Penal).
A ideia político-criminal fundamental subjacente ao instituto acabado de mencionar é a de que, em muitos casos, a simples ameaça da prisão basta para o pleno cumprimento das finalidades da punição, servindo os deveres e regras de conduta impostos ao arguido para reforçar os vetores da reparação do mal do crime e das suas consequências, e da socialização do delinquente.
A suspensão da execução da pena de prisão não representa um simples incidente, ou mesmo uma modificação, da execução da pena, mas, sim, uma verdadeira pena autónoma e, portanto, uma pena de substituição.
Por seu turno, se ao agente dever ser aplicada pena de prisão não superior a dois anos, o tribunal substitui-a por prestação de trabalho a favor da comunidade sempre que concluir, nomeadamente em razão da idade do condenado, que se realizam, por este meio, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição (artigo 58.º, n.º 1, do Código Penal).
A pena de prestação de trabalho a favor da comunidade assume-se como uma pena autónoma, não constituindo elemento do conteúdo executivo de outra pena, sendo ela, em si e por si mesma, uma pena. A pena de prestação de trabalho a favor da comunidade surge, ainda, como uma pena de substituição de caráter não detentivo, destinada a evitar a execução de penas de prisão de curta duração, quando se mostre adequada e suficiente à realização das finalidades da punição. Encontra-se inerente a esta pena “[…] por um lado, a ideia de centrar o conteúdo punitivo na perda, para o condenado, de uma parte substancial dos seus tempos livres, sem por isso o privar de liberdade e permitindo-lhe consequentemente a manutenção integra das suas ligações familiares, profissionais e económicas, numa palavra, a manutenção do contacto com o seu ambiente e a integração social; por outro lado, com não menor importância, o conteúdo socialmente positivo que a esta pena (e só a ela!) assiste, enquanto se traduz numa prestação activa […] a favor a comunidade” – cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Tomo II, As Consequências Jurídicas do Crime. Coimbra, Coimbra Editora, 2009, página 372.
Como tudo isto, é notório que a suspensão da execução da pena de prisão e a prestação de trabalho a favor da comunidade são duas penas de substituição distintas.
É certo que as regras de conduta e os deveres a que se encontra subordinada a suspensão da execução da pena de prisão podem ser modificados até ao termo do período de suspensão, sempre que ocorrerem circunstâncias relevantes supervenientes ou de que o tribunal só posteriormente tenha tido conhecimento (artigos 51.º, n.º 3, e 52.º, n.º 4, do Código Penal, e 498.º, n.º 1, do Código de Processo Penal). Porém, é inadmissível condicionar a suspensão da execução da pena de prisão à prestação de trabalho, mesmo com o consentimento do condenado: “[…] tal significaria uma mistura atrabiliária – e violadora, por conseguinte, do princípio da legalidade da pena – de duas diferentes penas de substituição, cada qual com o sentido e os seus pressupostos próprios” – também aqui, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Tomo II cit., p. 354.
Pelo exposto, indefere-se o requerido.
Notifique.

*
Referência eletrónica CITIUS n.º 10584567
Nos presentes autos, por acórdão proferido em 11.07.2019, pelo Tribunal da Relação de Évora, foi confirmada a sentença proferida em 07.05.2012, pelo Juízo Criminal de Faro, que condenou o Arguido AA a uma pena de prisão de 1 (um) ano e 6 (seis) meses, determinando a suspensão da sua execução por 4 (quatro) anos, subordinada ao pagamento da prestação tributária em falta no valor de €296.132,94 e acréscimos legais.
Em conformidade com o promovido pelo Ministério Público, com cópia do ofício da Autoridade Tributária de 02.08.2022 (referência eletrónica CITIUS n.º 10375017), foi o arguido notificado para, querendo, justificar porque ainda não pagou as quantias em dívida e condição para a suspensão da pena de prisão que lhe foi aplicada.
Mediante o requerimento de 21.10.2022, veio o Arguido solicitar a realização de relatório social.
Com vista nos autos, o Ministério Público pugnou pelo indeferimento do requerido e que seja o condenado advertido para a falta de cumprimento da condição de suspensão da execução da pena de prisão que lhe foi aplicada.
Cumpre decidir.
Nos termos do preceituado no artigo 370.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o tribunal pode em qualquer altura do julgamento, logo que, em função da prova para o efeito produzida em audiência de julgamento, o considerar necessário à correta determinação da sanção que eventualmente possa vir a ser aplicada, solicitar a elaboração de relatório social ou de informação dos serviços de reinserção social, ou a respetiva atualização quando aqueles já se encontrem no processo.
Para mais, se durante o período da suspensão o condenado deixar de cumprir qualquer dever ou regras de conduta impostas, deverá providenciar-se, seja através da elaboração de relatório social, seja por quaisquer outras diligências, no sentido de apurar os reais motivos que estiveram na base do incumprimento do arguido, para depois, com os elementos recolhidos, decidir em conformidade e, eventualmente, pela revogação da suspensão da execução da pena, se, de tais elementos resultar uma culpa grosseira do arguido nesse incumprimento (artigo 56.º, n.º 1, al. a), do Código Penal) – cfr. Ac. do TRE de 22/09/2020 (Renato Barroso), proc. n.º 54/14.2PBPTM.E2.
Posto isto, por um lado, foi já aplicada, nos presentes autos, ao arguido a concreta sanção determinada, e, por outro, ainda não é este o momento próprio para analisar a segunda circunstância – revogação da suspensão da execução da pena –, mostrando-se, assim, a realização de relatório social sem qualquer utilidade, neste momento.
Por ora, cabe tão-só advertir o arguido, ao abrigo do preceituado no artigo 55.º, al. a), do Código Penal, de que não se encontra cumprida a condição a que se mostra subordinada a suspensão da pena de prisão e que, nos termos do disposto artigo 56.º, n.º 2, al. a), do Código Penal, a suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado, infringir grosseiramente ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos.
Pelo exposto, indefere-se o requerido.
Notifique, sendo o arguido com a advertência de que não se encontra cumprida a condição a que se mostra subordinada a suspensão da execução da pena de prisão e que, nos termos do disposto artigo 56.º, n.º 2, al. a), do Código Penal, a suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado, infringir grosseiramente ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos.».

2.3. Apreciação do mérito do recurso

Conforme supra referimos, a questão suscitada é a de saber se pode ser modificada a condição a que ficou subordinada a suspensão da execução da pena de prisão aplicada, por sentença transitada em julgado, do pagamento da prestação tributária em falta, nos termos previstos no artigo 14º do RGIT, por prestação de trabalho a favor da comunidade.
A resposta a tal questão é necessariamente negativa.
Tendo o ora recorrente sido condenado, por sentença transitada em julgado, a 17/11/2019, em pena de prisão, cuja respetiva execução foi suspensa pelo período de 4 (quatro) anos, subordinada ao dever de pagamento da prestação tributária em falta (€296.132,94) e acréscimos legais, nos termos do disposto no artigo 14º do RGIT, estando a decorrer o prazo de suspensão da execução da pena, não é legalmente admissível a modificação daquele dever, nos termos pretendidos pelo recorrente.
Desde logo por que tal violaria o caso julgado.
Por outro lado, como se refere no despacho recorrido, se é certo que as regras de conduta e os deveres a que se encontra subordinada a suspensão da execução da pena de prisão podem ser modificados até ao termo do período de suspensão, sempre que ocorrerem circunstâncias relevantes supervenientes ou de que o tribunal só posteriormente tenha tido conhecimento (cf. artigos 51º, n.º 3 e 52º, n.º 4, do Código Penal), nunca poderá perder-se de vista o regime especial consagrado no artigo 14º do RGIT, que impõe a obrigatoriedade do condicionamento da suspensão da execução da pena de prisão ao dever de pagamento das prestações tributárias não entregues e legais acréscimos.
A modificação do dever de pagamento da prestação tributária em falta e legais acréscimos a que foi subordinada a suspensão da execução da pena de prisão em que o ora recorrente foi condenado, ao abrigo do disposto no artigo 14º, n.º 1, do RGIT, no âmbito do processo em referência, nunca poderá fazer-se em termos desse dever ser alterado/substituído pelo de prestação de trabalho a favor da comunidade.
Perfilhando-se o entendimento maioritariamente defendido na doutrina e jurisprudência[1], de que é legalmente inadmissível subordinar a suspensão da execução da pena de prisão à prestação de trabalho a favor da comunidade, mesmo com o consentimento do condenado, necessariamente, não poderá, por via da modificação dos deveres a que foi subordinada a suspensão da execução da pena, ao abrigo do disposto no artigo 51º, n.º 3, do CPP, decidir-se substituir aqueles deveres, pelo de prestação de trabalho a favor da comunidade.
Por conseguinte, no caso vertente, a suspensão da execução da pena de prisão em que o ora recorrente foi condenado, deve manter-se subordinada ao dever de pagamento da prestação tributária em falta e acréscimos legais. Sendo de 4 anos, contados do trânsito em julgado da sentença condenatória, o prazo fixado para o cumprimento de tal dever, esse prazo terminará em 17/11/2023.
Se no decurso desse prazo e findo o mesmo, o condenado, ora recorrente, não tiver cumprido o dever de entrega/pagamento a que se encontra subordinada a suspensão da execução da pena, o tribunal deve equacionar e decidir sobre se é de prorrogar o prazo da suspensão (cf. artigo 55º, al. d), do CP), ou se é de revogar a suspensão da execução da pena de prisão, determinando o cumprimento desta última (cf. artigo 56º do CP).
Somente, após o terminus do prazo da suspensão da execução da pena de prisão aplicada, caso o condenado, ora recorrente, não tenha cumprido o dever de entrega da prestação tributária em falta e legais acréscimos, terá pertinência a recolha de prova (cf. artigo 495º, n.º 2 do CPP), com vista a aferir da capacidade económico-financeira do condenado, para cumprir aquele dever, por forma a habilitar o tribunal a decidir sobre a revogação, ou não, da suspensão da pena de prisão por incumprimento culposo daquele dever (cf. artigo 56º, n.º 1, al. a), do Código Penal).
Carece, pois, de fundamento válido a solicitação, neste momento, da elaboração de relatório social requerida pelo ora recorrente.
Por último, relativamente à advertência feita ao arguido/condenado/recorrente, na parte final do despacho recorrido, conquanto se reconheça assistir-lhe razão ao sustentar não estar ainda em incumprimento do dever a que ficou subordinada a suspensão da execução da pena de prisão aplicada, dado não ter terminado o prazo fixado para cumprir essa condição, não podendo, por isso, ser solenemente advertido, nos termos do disposto no artigo 55º, alínea a), do Código Penal, nada obsta, no entanto, a que o Tribunal a quo lhe possa fazer a advertência do estatuído no artigo 56º, n.º 1, al. a), do Código Penal, de que a suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado, infringir grosseiramente ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos.
Termos em que não merece censura a decisão recorrida.
Consequentemente, improcede o recurso.

3. DECISÃO
Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido/condenado AA, confirmando-se o despacho recorrido.

Custas pelo arguido/recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC (cf. artigos 513º, nºs 1 e 3 e 514º, nº. 1, ambos do CPP e art. 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III, anexa).

Notifique.

Évora, 25 de maio de 2023
Fátima Bernardes (Relatora)
Fernando Pina
Beatriz Marques Borges

_______________________________________
[1] Neste sentido cf., por todos, na doutrina, Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas Editorial Notícias, pág. 354 e, na jurisprudência, Acórdãos desta RE de 03/02/2015, proc. 42/11.0GDSTC.E1 e de 24/01/2017, proc. 300/12.7GBODM.E1 e Ac. da RC de 17/05/207, proc. 149/15.5PFCBR.C1, todos acessíveis in www.dgsi.pt.