Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
10/14.0T8LLE-A.E1
Relator: VÍTOR SEQUINHO
Descritores: CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
CUSTAS DE PARTE
Data do Acordão: 02/28/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O disposto na alínea c) do artigo 19.º do Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais não obsta à inclusão, num contrato de locação financeira, de uma cláusula com a seguinte redacção: “O locatário autoriza o locador a preencher a livrança de caução subscrita como garantia do presente contrato, nomeadamente no que se refere à data do vencimento, ao local do pagamento e aos valores, até ao limite das obrigações assumidas pelo locatário nos termos do presente contrato, actualizados à data do seu vencimento, acrescido dos respectivos encargos com a selagem dos títulos, bem como com as despesas de cobrança extrajudicial e judicial que, desde já, se fixam em 10% do valor em causa, com o limite mínimo de € 500,00 e o limite máximo de € 2.500,00”.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 10/14.0T8LLE-A.E1

Relatório


(…) deduziu os presentes embargos de executado contra Banco (…), SA.

Os embargos foram recebidos.

O embargado contestou, pugnando pela improcedência dos embargos.

Em seguida, foi proferido saneador-sentença, julgando os embargos improcedentes.

A embargante recorreu do saneador-sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:

A) É proibida, segundo o DL n.º 446/85, de 25 de Outubro, que institui o regime jurídico das cláusulas contratuais gerais, a cláusula constante do artigo 24.º das condições gerais do contrato de locação financeira mobiliário sob a designação "Pacto de Preenchimento" do Banco (…) – Instituição Financeira de Crédito, que refere: "O Locatário autoriza o locador a preencher a livrança de caução subscrita como garantia do presente contrato, nomeadamente no que se refere à data de vencimento, ao local de pagamento e aos valores, até ao limite das obrigações assumidas pelo locatário, nos termos do presente contrato, atualizados à data do seu vencimento, acrescidos dos respetivos encargos com a selagem dos títulos, bem como das despesas de cobrança extrajudicial e judicial que, desde já, se fixam em 10% do valor em causa, com o limite mínimo de € 500,00 e o limite máximo de € 2.500,00."

B) A referida cláusula, ao estipular uma indemnização equivalente a 10% dos valores, até ao limite das obrigações assumidas pelo locatário atualizados à data do seu vencimento, acrescidos dos respetivos encargos com a selagem dos títulos, bem como das despesas de cobrança extrajudicial e judicial, não permite verificar se existe alguma proporção com o valor efectivo das despesas de cobrança.

C) Não é adequado fazer uma predeterminação do valor da compensação por despesas de cobrança, pois pode não existir qualquer correspondência entre esse valor pré-fixado e as despesas que concretamente venham a ser realizadas, não sendo difícil de conceber múltiplas situações em que as despesas sejam ínfimas, relativamente ao montante estipulado.

D) Relativamente às despesas com honorários de advogado ou de solicitadores, pese embora se possam reconhecer argumentos a favor da sua elegibilidade como uma despesa a ser suportada integralmente pelo devedor, que a elas dá causa com a sua conduta inadimplente, certo é que a configuração legal das custas de parte, previstas nas leis de processo, compreende a taxa de justiça e os encargos, nestes se englobando a procuradoria cuja função tradicional é a de indemnização à parte vencedora pelas despesas com o patrocínio judiciário.

E) Desta sorte, poderia aqui existir uma duplicação de indemnizações, o que reforça a desproporção da cláusula penal.

F) A cláusula em questão foi declarada proibida pelos tribunais, não podendo ser incluídas em contratos celebrados com o Banco (…), S.A. e consta do registo das cláusulas contratuais gerais declaradas nulas pelos tribunais, que pode ser acedido através http://www.dgsi.pt/jdgpj.nsf?Open Database, e que resulta da conjugação dos artigos 34.º e 35.º do RJCCG, e da Portaria n.º 1093/95, de 6 de Setembro, que atribuiu ao Gabinete de Direito Europeu do Ministério da Justiça a organização e a manutenção atualizada daquele registo o qual foi substituído nas suas competências pelo Gabinete para as Relações Internacionais, Europeias e de Cooperação, em 2001, e, posteriormente, pelo Gabinete de Relações Internacionais da DGPJ, em 2007.

G- Assim, e em conclusão, deve ser julgada proibida esta cláusula, como aliás tem vindo a ser entendido pela jurisprudência relativamente a cláusulas de sentido idêntico (cfr. os Acórdãos da Relação de Lisboa de 16/01/2007, P. 8518/2006-1; 15/01/2009, P. 9574/2008-8; 12/11/2009, P. 3197/06-2 e 18/01/2011, P. 1228/09.TJLSB.LI-I e 03/01/2012, P. 2842/08.0YXLSB, todos em www.dgsi.pt.).

Termos em que, procedendo os fundamentos aduzidos nestas alegações, deve-se dar provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida com as legais consequências, assim se fazendo a habitual e tão necessária Justiça.

Não foram oferecidas contra-alegações.

O recurso foi admitido.


Objecto do recurso


Tendo em conta as conclusões das alegações de recurso, que definem o objecto deste e delimitam o âmbito da intervenção do tribunal de recurso, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, a única questão a resolver consiste em saber se a cláusula 24.ª dos contratos celebrados entre a recorrente e o recorrido é nula por via do disposto nos artigos 12.º e 19.º, al. c), do Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais (RJCCG), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 446/85, de 25.10.



Factualidade apurada


No saneador-sentença recorrido, foram julgados provados os seguintes factos:

1 – A exequente interpôs a acção executiva principal contra a executada para pagamento da quantia certa de € 8.532,55, dando à execução duas livranças, subscritas pela embargante, documentos juntos com o requerimento executivo e cujo teor se dá por reproduzido na íntegra.

2 – A exequente celebrou com a executada dois acordos intitulados “contrato de locação financeira”, com os n.os (…) e (…) respectivamente, documentos juntos com a contestação e cujo teor se dá por reproduzido na íntegra.

3 – Para garantia do cumprimento das obrigações assumidas nesses acordos, a executada subscreveu as livranças dadas à execução, em branco, que entregou à exequente.

4 – Nas cláusulas 20.ª de tais acordos, as partes estabeleceram que: “Quando o Locador resolver o contrato nos termos do artigo anterior terá direito

a) A fazer suas definitivamente as rendas vencidas e pagas pelo Locatário;

b) À restituição imediata do equipamento;

c) Ao pagamento, à data da resolução, das rendas vencidas e não pagas, acrescido dos respectivos juros de mora, encargos e portes de acordo com o preçário em vigor, do montante do capital financeiro em dívida e de uma indemnização igual a 20% deste, sem prejuízo do disposto no artigo seguinte”.

5 – Nas cláusulas 24.ª de tais acordos, as partes estabeleceram que: “O Locatário autoriza o Locador a preencher a livrança de caução subscrita como garantia do presente contrato, nomeadamente no que se refere à data do vencimento, ao local do pagamento e aos valores, até ao limite das obrigações assumidas pelo Locatário nos termos do presente contrato, actualizados à data do seu vencimento, acrescido dos respectivos encargos com a selagem dos títulos, bem como com as despesas de cobrança extra judicial e judicial que, desde já, se fixam em 10% do valor em causa, com o limite mínimo de € 500,00 e o limite máximo de € 2.500,00”.

6 – A exequente remeteu à embargante as cartas datadas de 05.04.2013 e 17.02.2011, documentos juntos com a contestação e cujo teor se dá por reproduzido na íntegra.


Fundamentação


Como acima referimos, está unicamente em causa saber se a cláusula 24.ª dos contratos de locação financeira celebrados entre a recorrente e o recorrido é nula por via do disposto nos artigos 12.º e 19.º, alínea c), do RJCCG. A recorrente sustenta que tal cláusula é proibida na medida em que permite o preenchimento da livrança com inclusão “das despesas de cobrança extrajudicial e judicial que, desde já, se fixam em 10% do valor em causa, com o limite mínimo de € 500,00 e o limite máximo de € 2.500,00”. Argumenta a recorrente, em síntese, que:

1 – Não é adequado fazer uma predeterminação do valor da compensação pelas despesas de cobrança do crédito, pois pode não existir qualquer correspondência entre aquele valor e estas despesas;

2 – A cláusula em questão não permite verificar se existe alguma proporção com o valor efectivo das despesas de cobrança;

3 – Relativamente às despesas com honorários de advogado ou de solicitador, a configuração legal das custas de parte pode gerar uma duplicação de indemnizações.

Analisemos estes argumentos.

1.º argumento:

O n.º 1 do artigo 810.º do Código Civil estabelece que as partes podem fixar por acordo o montante da indemnização exigível, tendo tal estipulação a designação de cláusula penal. Consistindo esta na “convenção através da qual as partes fixam o montante da indemnização a satisfazer em caso de eventual inexecução do contrato”[1], é, mais que meramente admissível, normal que o montante da indemnização não coincida com o do concreto prejuízo a cujo ressarcimento esta última se destina. Ora, inexiste norma legal que vede a estipulação de uma cláusula penal que tenha por objecto os prejuízos que o locador venha a sofrer em consequência da cobrança judicial ou extrajudicial da quantia relativamente à qual o locatário se encontre em incumprimento, mediante a qual se fixe antecipadamente o valor da indemnização devida a esse título. Nada obsta a tal estipulação, nos termos da norma citada, admitindo, portanto, a lei, a existência de divergência entre o valor previamente estipulado para a indemnização do prejuízo resultante das despesas de cobrança do crédito e o concreto montante desse mesmo prejuízo.

2.º argumento:

Não é exacto que, como a recorrente afirma, a cláusula sub judice impeça a verificação da existência de alguma proporção com o valor efectivo das despesas de cobrança, pois a percentagem nela estipulada tem por referência o valor a cobrar, embora com limites mínimo e máximo, e não algum outro que possa ser considerado arbitrário, como acontece nas situações decididas por dois dos acórdãos referenciados pela recorrente.

Assim, o Acórdão da Relação de Lisboa de 15.01.2009, proferido no processo n.º 9574/2008-8 (relator: António Valente), tem em vista uma cláusula contratual geral segundo a qual o locatário seria responsável pelas despesas do locador visando a garantia e a cobrança dos seus créditos, nomeadamente honorários de advogados, solicitadores ou procuradores, fixando, desde logo, tais despesas em 10% do valor do bem à data da celebração do contrato. Aqui sim, estava-se perante um critério que impedia um juízo de proporcionalidade entre os valores do prejuízo e da indemnização, pois não existia relação alguma entre os mesmos valores. Basta imaginar a hipótese de o valor do bem à data da celebração do contrato ser de € 10.000 e de o valor a cobrar ser de € 800. O valor da indemnização resultante daquela cláusula penal seria superior ao valor do crédito a cobrar, o que, por razões óbvias, seria excessivo. Tal cláusula é, por isso, proibida pela al. c) do artigo 19.º do RJCCG.

O Acórdão da Relação de Lisboa de 18.01.2011, proferido no processo n.º 1228/09.3TJLSB.L1-1 (relator: António Santos), também invocado pela recorrente, tem em vista uma cláusula contratual geral, constante de um contrato de concessão de crédito, segundo a qual “Serão da conta do titular todas as despesas judiciais e extrajudiciais, incluindo honorários de advogado e solicitador, que o banco venha a incorrer para garantia e cobrança do seu crédito, as quais se fixam desde já em 4% do valor do capital creditado". Também aqui, o montante da indemnização é fixado através de percentagem de um valor que nada tem a ver com o do prejuízo e, por isso, estamos perante uma cláusula penal passível das mesmas críticas que a anteriormente analisada.

Ao ter como referência o próprio valor a cobrar, a cláusula sub judice distingue-se claramente daquelas que acabámos de referir e, consequentemente, merece tratamento diverso. A variação do montante da indemnização em função do valor a cobrar encontra correspondência na realidade empírica de o custo que a cobrança de um crédito acarreta para o respectivo titular ser, ao menos tendencialmente, tanto maior quanto mais elevado for o montante desse mesmo crédito. Não pode, por isso, considerar-se, como a recorrente sustenta, que a mesma cláusula impede a verificação da existência de alguma proporção com o valor efectivo das despesas de cobrança.

3.º argumento:

O n.º 1 do artigo 529.º do CPC estabelece que as custas processuais abrangem a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte. O n.º 4 do mesmo artigo dispõe que as custas de parte compreendem o que cada parte haja despendido com o processo e tenha direito a ser compensada em virtude da condenação da parte contrária, nos termos do Regulamento das Custas Processuais (RCP). O n.º 1 do artigo 533.º do CPC estabelece que, sem prejuízo do disposto no n.º 4, as custas da parte vencedora são suportadas pela parte vencida, na proporção do seu decaimento e nos termos previstos no RCP. O n.º 2 do mesmo artigo estatui que se compreendem nas custas de parte, designadamente, as taxas de justiça pagas, os encargos efectivamente suportados pela parte, as remunerações pagas ao agente de execução, as despesas por este efectuadas, os honorários do mandatário e as despesas por este efectuadas. Atento este regime, a recorrente sustenta que, relativamente às despesas com honorários de advogado ou de solicitador, a cláusula sub judice pode gerar uma duplicação de indemnizações.

Discordamos desta conclusão. A fixação antecipada, através da estipulação de uma cláusula penal, do montante da indemnização devida pelo locatário pelo prejuízo que o locador venha a sofrer em consequência da cobrança judicial da quantia relativamente à qual o primeiro se encontre em incumprimento, e o regime legal das custas de parte, constituem vias alternativas para o ressarcimento do referido prejuízo. Apenas se verificaria a duplicação de indemnizações referida pela recorrente na hipótese de o recorrido, após cobrar a totalidade das quantias com as quais as livranças foram preenchidas, que incluem a indemnização antecipadamente fixada, obtivesse o pagamento de custas de parte, com referência ao prejuízo efectivamente sofrido. Ora, a forma de evitar que isso aconteça não pode consistir na proibição, sem sustentação legal, de estipulação de uma cláusula penal como aquela que vimos analisando. A referida duplicação de indemnizações deverá, antes, ser evitada através da negação de uma eventual pretensão do recorrido a receber custas de parte, com o óbvio fundamento de que se trata de um prejuízo já ressarcido.

Em conclusão:

Inexiste fundamento para concluir que a cláusula sub judice constitui uma cláusula penal desproporcionada aos danos a ressarcir, pelo que a mesma não pode ser julgada nula nos termos dos artigos 12.º e 19.º, al. c), do RJCCG. Improcede, assim, o recurso.


Sumário


O disposto na alínea c) do artigo 19.º do Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais não obsta à inclusão, num contrato de locação financeira, de uma cláusula com a seguinte redacção: “O locatário autoriza o locador a preencher a livrança de caução subscrita como garantia do presente contrato, nomeadamente no que se refere à data do vencimento, ao local do pagamento e aos valores, até ao limite das obrigações assumidas pelo locatário nos termos do presente contrato, actualizados à data do seu vencimento, acrescido dos respectivos encargos com a selagem dos títulos, bem como com as despesas de cobrança extrajudicial e judicial que, desde já, se fixam em 10% do valor em causa, com o limite mínimo de € 500,00 e o limite máximo de € 2.500,00”.

Decisão


Acordam os juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, confirmando o saneador-sentença recorrido.

Custas pela recorrente.

Notifique.

Évora, 28 de Fevereiro de 2019

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

José Manuel Barata

Conceição Ferreira

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[1] INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, Direito das Obrigações, 3.ª edição, p. 399.