Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3869/13.5TBSTB.E1
Relator: VÍTOR SEQUINHO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANOS FUTUROS
Data do Acordão: 03/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Actualmente, dada a inexistência, no sistema bancário, de produtos financeiros sem risco associado cujas taxas de juro proporcionem rendimento líquido, não há fundamento para considerar que a antecipação do pagamento da indemnização correspondente ao dano futuro relativamente à produção deste proporciona algum benefício ao lesado, nem, logicamente, para a dedução de qualquer parcela da indemnização a esse título.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 3869/13.5TBSTB.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal – Juízo Central Cível de Setúbal

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
Relatório

(…) propôs a presente acção declarativa comum contra (…), Companhia de Seguros, SA, pedindo a condenação desta nos seguintes pedidos:
A) Tudo o que for médica e cientificamente adequado para que a autora retome a sua vida e estado de saúde anterior ao acidente de viação dos autos, por forma a ser reconstituída à situação anterior, incluindo, designadamente, todos os tratamentos, internamentos, operações, aparelhos, calçado, peças, artefactos, instrumentos, próteses, materiais e mão-de-obra, tudo por livre escolha da autora, designadamente hospitais, médicos e enfermeiros, devendo a ré ser condenada a pagar todos os valores no prazo máximo de 10 dias após a apresentação da factura de terceiro ou recibo;
B) Indemnização correspondente aos danos não patrimoniais já sofridos, no valor de € 85.000,00;
C) A quantia adequada para ressarcir os danos não patrimoniais futuros que irá sofrer, advenientes dos tratamentos, internamentos, dores, afastamento da família e demais consequências do pedido formulada na alínea a), compensar as limitações definitivas que irão resultar do final de todos os actos médicos e outros que venham a ser praticados para reconstituição da situação anterior da autora, em valor a liquidar em execução de sentença;
D) Indemnização por ter perdido a capacidade de ganho para o desempenho de qualquer profissão, a qual a autora ainda poderia, se não tivesse ocorrido o acidente, vir a desempenhar no futuro, quer na vertente não patrimonial, no valor de € 15.000,00, quer na vertente patrimonial, no valor de € 60.000,00;
E) A quantia de € 334,24 de despesas em tratamentos, deslocações, taxas e outras emergentes do acidente;
F) As despesas congéneres às da alínea e) que ainda se venham a dar no futuro ou que, passadas, ainda venham a determinar-se;
G) O valor de 90 pares de sapatos e 30 pares de botas que, por serem de salto alto, a autora não mais vai poder usar por causa do acidente, no valor de € 9.000,00;
H) O valor das roupas, sapatos e adereços que trazia no momento do acidente e que foram destruídos, no valor de € 770,00;
I) A quantia de € 9.200,00 de serviços domésticos a que teve de recorrer por causa do acidente, bem como todos, domésticos ou outros, de que vier a necessitar até ao final da sua vida.
A ré contestou, aceitando a responsabilidade pelo ressarcimento dos danos resultantes do acidente, mas impugnando os danos alegados pela autora e a sua avaliação, concluindo pela fixação de uma indemnização de valor inferior ao peticionado.
Findos os articulados, foi realizada a audiência prévia, sendo proferido despacho saneador, seguido da identificação do objecto do litígio e dos temas de prova.
A autora ampliou o pedido no valor de € 63.143,54, para ressarcimento do dano biológico que lhe foi e ainda vai ser provocado pelo acidente dos autos, ampliação essa admitida.
Realizou-se a audiência final, na sequência da qual foi proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, condenou a ré a pagar à autora:
A) A quantia de € 60.000,00 por danos não patrimoniais;
B) A quantia de € 80.000,00 pelo dano biológico;
C) A quantia de € 30.000,00 por danos patrimoniais com a contratação de terceira pessoa;
D) A quantia de € 609,29 por danos patrimoniais (sendo € 300,00 pela roupa inutilizada e € 309,29 por despesas de deslocações, médicas e medicamentosas e taxas moderadoras);
E) O que se vier a apurar em ulterior incidente de liquidação, no que respeita às despesas futuras decorrentes de deslocações, consultas de ortopedia, fisiatria e psiquiatria, despesas médicas e medicamentosas, tratamentos de fisioterapia, que se revelarem necessários, sempre mediante apreciação clínica de tal necessidade;
F) O que se vier a apurar em ulterior incidente de liquidação, no que respeita às despesas de adaptação do calçado, com uma palmilha compensadora.

A ré recorreu da sentença, formulando as seguintes conclusões:
1 – O presente recurso vem da decisão proferida nos autos que julgou a presente acção parcialmente procedente e, em consequência, condenou a ré ao pagamento da quantia de € 170.609,29, acrescida de montantes a apurar em incidente de liquidação;
2 – A recorrente impugna a fundamentação e a decisão da matéria de facto proferida, nos termos do disposto no art. 640.º do CPC;
3 – A decisão enferma das nulidades previstas no art. 615.º, n.º 1, alíneas c) e d), do CPC, porque há contradição entre pontos da matéria de facto provada, que motivam oposição com a decisão e a juiz a quo conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento;
4 – Houve erro de julgamento;
5 – Houve erro na apreciação da prova, porque o tribunal a quo considerou provados certos factos sobre os quais não foi feita prova cabal e necessária;
6 – A fundamentação da decisão de facto de que se recorre não é apoiada pela prova produzida;
7 – A decisão violou os artigos 414.º, 466.º, 607.º, n.º 5, e 609.º do Cód. Processo Civil e os artigos 342.º e 396.º do Cód. Civil;
8 – A decisão violou os artigos 494.º, 496.º, 562.º, 564.º e 566.º, n.ºs 2 e 3, do Cód. Civil;
9 – A fundamentação do tribunal a quo sobre os factos provados com os n.ºs 37 a 60 teve na sua base as declarações de parte que a recorrida prestou no dia 02/03/2017 no âmbito do artigo 466.º do CPC e o Tribunal a quo consentiu que estas declarações fossem prestadas de forma ilegal;
10 – O seu depoimento não foi espontâneo e ainda contribuiu para o vício da fundamentação da matéria de facto relativa aos pontos 54 e 60 dos factos assentes, porque a recorrida não peticionou quantia relativa a adaptação do calçado, mas sim quantia correspondente às despesas com aquisição de uma palmilha;
11 – Devia ter sido tomado em consideração o depoimento do Senhor Dr. (…) que, além de concluir que não é de perspectivar a necessidade de nova intervenção cirúrgica para recuperação das lesões, defendeu que a pontuação arbitrada no relatório pericial foi excessiva;
12 – Houve sobrevalorização da incapacidade, porque em vez de atribuir pontuação pelo código Mf 1305 no máximo da pontuação da TAIPDC (Anexo II ao DL 352/2007, de 23/10), devia ter sido atribuído pelo código Mf 1307 respeitante a consolidação viciosa, cuja pontuação situa-se entre 4 a 8 pontos;
13 – O ponto 31 deverá passar a ter a seguinte redacção: O Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica, foi fixado em 31 pontos, mas deve ser actualizado na presente data para 8 pontos por existir consolidação viciosa da fractura (Mf 1307 da TAIPDC (Anexo II ao DL 352/2007, de 23/10);
14 – O tribunal a quo mistura diferentes conceitos e reproduz a mesma fundamentação sobre diferentes questões, para arbitrar diferentes indemnizações sobre os mesmos factos. Esta orientação conduz a uma duplicação de indemnizações sobre as mesmas lesões e sequelas;
15 – Sem prejuízo da denunciada duplicação de valores, os montantes arbitrados a título de danos não patrimoniais são, por si só, excessivos e por isso vão impugnados;
16 – Ao contrário do sentido atribuído na sentença recorrida, a indemnização de € 60.000,00 a título de danos não patrimoniais não é adequada, não é proporcional, não é justa, não respeita a previsibilidade, não assegura a ideia de segurança, mas sim a ideia que o sinistrado será premiado com quantias que não seguem outras decisões e haverá sempre a tendência para inflacionar o valor final;
17 – Por violar o disposto nos artigos 496.º, n.º 4, 494.º e 566.º, n.º 3, do CC, e porque houve erro de julgamento, vai impugnada a condenação no pagamento da identificada quantia;
18 – Deve ser revogada a quantia arbitrada a título de dano não patrimonial porque os pressupostos usados na decisão a quo estão errados, e substituída por outra fixando o montante de € 40.000,00, que se apresenta mais adequado, justo, respeita a equidade e os danos que devem ser tutelados pelo Direito;
19 – A incapacidade da recorrente não teve qualquer reflexo na actividade profissional nem na sua capacidade de ganho, porque não trabalhava e nunca desempenhou qualquer actividade remunerada;
20 – Para sustentar o direito a suposta indemnização a título de dano biológico, o tribunal a quo reproduz as mesmas consequências e as mesmas lesões sofridas pela recorrida que já tinha usado para sustentar indemnização a título de danos não patrimoniais;
21 – A indemnização a título de danos não patrimoniais, já incluiu a indemnização por perda de capacidade de ganho (que no caso não existe), pela incapacidade permanente e pelo dano biológico;
22 – Face a esta circunstância, afigura-se que estamos perante a duplicação de valores, a decisão enferma de nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC porque a juiz a quo conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento;
23 – Deve ser revogada a decisão na parte que condena a recorrente a pagar a quantia arbitrada a título de dano biológico, e substituída por outra que a absolva do pagamento;
24 – O valor atribuído pelo tribunal a quo a título de dano biológico seria sempre excessivo, não procedeu ao necessário desconto de 1/3 de modo a evitar vantagem patrimoniais ilícitas da sinistrada e não respeitou a equidade;
25 – Tudo isto, com violação dos artigos 494.º, 496.º, 562.º, 564.º e 566.º, n.ºs 2 e 3, do Cód. Civil;
26 – Como a recorrida formulou pedido genérico para obter a condenação em indemnização fixa, tinha que proceder previamente à liquidação. É isso que resulta do n.º 2 do artigo 556.º CPC, e que também foi violado. O que não pode é formular-se, simplesmente, um pedido genérico. Se assim fosse, formular-se-ia um pedido genérico e depois o tribunal poderia condenar em qualquer valor, o que não é permitido pelo artigo 609.º do CPC;
27 – Não obstante, o tribunal a quo arbitrou indemnização a propósito da invocada necessidade de terceira pessoa que é exorbitante, que não demonstra de que forma efectuou desconto de 1/3 porque afigura-se que essa operação não foi concretizada, nem o especial abatimento decorrente da necessidade de contratar serviços quando as pessoas atingem certa idade;
28 – Face à falta de prova, por violação do artigo 342.º do Cód. Civil e do artigo 414.º do C.P.C., deve ser revogada a decisão na parte que condena a recorrente a pagar a quantia arbitrada a título de dano futuro com contratação de terceira pessoa, e substituída por outra que a absolva do pagamento;
29 – Face à falta de prova, por violação do artigo 342.º do Cód. Civil e do artigo 414.º do C.P.C., deve ser revogada a decisão na parte que condena a recorrente a pagar a quantia que se vier a apurar em ulterior incidente de liquidação no que respeita a despesas futuras com deslocações, consultas de ortopedia, fisiatria e psiquiatria, despesas médicas e medicamentosas, constantes da alínea e) da decisão;
30 – Em função da impugnação dos factos, os pontos 54 e 60 da fundamentação de facto deverão ser declarados não provados pelo tribunal ad quem por força da violação dos artigos 342.º do CC e 414.º e 607.º, n.º 5, do CPC;
31 – Em caso de entendimento diferente, por não ter sido pedida, por corresponder a condenação em quantidade superior e em objecto diverso do se pediu, perante a violação do artigo 609.º, n.º 1, do CPC, deve ser revogada e substituída por outra que absolva a recorrente do pagamento do que se vier a apurar em ulterior incidente de liquidação no que respeita às despesas de adaptação do calçado com palmilha compensadora, previstas na al. f) da decisão.

A autora contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.
O recurso foi admitido.
Objecto do recurso

É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o objecto deste último e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal de recurso (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi artigo 663.º, n.º 2, do CPC). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
As questões a resolver são as seguintes:
1 – Nulidade da sentença;
2 – Admissibilidade da prestação de declarações de parte pela recorrida;
3 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
4 – Qualificação dos danos sofridos pela recorrida;
5 – Determinação e avaliação dos danos não patrimoniais;
6 – Determinação e avaliação dos danos patrimoniais.
Factualidade apurada

Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:
1 – No dia 19 de Julho de 2010, pelas 9.35 horas, na Estrada Nacional n.º 10, ao Km 44.600, no sentido de marcha Pontes/Setúbal, ocorreu uma colisão.
2 – Na referida colisão foram intervenientes o veículo automóvel de matrícula QS-(…)-(…), conduzido pela autora, e o veículo automóvel de matrícula (…)-(…)-EU, conduzido por (…).
3 – Tal colisão foi provocada pelo condutor do veículo automóvel de matrícula matricula (…)-(…)-EU, o qual saiu da sua hemi-faixa de rodagem, invadiu a hemi-faixa de rodagem contrária e foi embater no veículo QS-(…)-(…).
4 – À data do acidente, encontrava-se transferida para a ré seguradora a responsabilidade civil decorrente de acidentes de viação provocados pelo veículo de matrícula (…)-(…)-EU, através de contrato de seguro titulado pela apólice n.º (…).
5 – Após o sinistro, a autora foi conduzida aos serviços de urgência do Hospital de S. Bernardo de Setúbal, onde lhe foi prestada assistência médica e medicamentosa.
6 – Em face da gravidade das lesões, a autora foi, nesse mesmo dia, submetida a uma intervenção cirúrgica ao abdómen, tenho sido efectuada laparotomia, com redução de hérnia diafragmática traumática, por contusão pulmonar e hemotórax.
7 – Esteve internada durante duas semanas na Unidade de Cuidados Intensivos.
8 – No dia 23 de Julho de 2010, foi submetida a nova intervenção cirúrgica para encavilhamento do fémur e redução de fractura com fixador externo.
9 – Esteve com drenagem torácica durante 8 dias.
10 – Sofreu pequeno derrame pleural à esquerda.
11 – Em consequência directa da colisão, a autora sofreu as seguintes lesões: trauma toráco-abdominal com hemotórax e hérnia diafragmática; fractura segmentar do fémur esquerdo, transtrocantérica e diafisiária; fractura do pé esquerdo; fractura do maxilar esquerdo com perda de 3 peças dentárias; traumatismo crânio-encefálico com perda de consciência.
12 – No dia 3 de Agosto de 2010, após estabilização clínica, foi transferida para o Hospital Ortopédico do Outão, onde permaneceu internada por um período de 6 semanas.
13 – No dia 10 de Agosto de 2010, no Hospital Ortopédico do Outão, foi submetida a outra intervenção cirúrgica para remoção do fixador externo e osteossíntese do escafóide társico esquerdo com placa em ponte e parafusos.
14 – Posteriormente, foi transferida para o Hospital CUF de Belém.
15 – No mês de Fevereiro de 2011, já no Hospital CUF de Belém, foi submetida a uma intervenção cirúrgica por se terem partido os parafusos que haviam sido colocados.
16 – Nessa altura, os médicos aproveitaram para remover a placa de osteossíntese do pé esquerdo.
17 – No mês de Junho de 2011, foi submetida a uma quinta intervenção cirúrgica por apresentar atraso na consolidação da fractura da diáfise do fémur, tendo sido colocado enxerto, cerclages e factores de crescimento no foco fracturário.
18 – A autora manteve tratamento de recuperação fisiátrica, em sessões diárias, por um período de 2 anos.
19 – Após a alta hospitalar, manteve seguimento nos serviços clínicos da ré Companhia de Seguros, onde foi assistida e tratada e continuou em consultas periódicas.
20 – A data da consolidação médico-legal das lesões sofridas pela autora em resultado do acidente foi fixada em 19/07/2012.
21 – Em avaliação médico-legal do dano corporal, realizado no dia 9/12/2015, resulta que a autora apresenta marcha claudicante, sem recurso a ajudas técnicas.
22 – A autora, em consequência das lesões, apresenta as seguintes sequelas:
- Abdómen: Cicatriz de ferida cirúrgica, mediana, vertical, com 20 cm de comprimento, hiperpigmentada, visível;
- Membro inferior direito: Região da crista ilíaca superior com cicatriz de ferida cirúrgica, horizontal, com 6 cm de comprimento, hipopigmentada, visível;
- Perímetro da coxa direita: 55 cm;
- Perímetro do tornozelo: 26 cm;
- Membro inferior esquerdo: Perímetro da coxa esquerda: 58 cm;
- Região trocantérica com cicatriz vertical, com 7 cm de comprimento, de ferida cirúrgica, horizontal, hipopigmentada, visível;
- Terço médio da face lateral externa da coxa, com cicatriz linear com 4 cm de comprimento, vertical, hipopigmentada, visível;
- Terço inferior da face lateral interna da coxa esquerda com cicatriz vertical com 13 cm de comprimento, de ferida cirúrgica, horizontal, hipopigmentada, visível;
- Terço inferior da face lateral externa da coxa esquerda com cicatriz, de ferida cirúrgica, com 3 cm de comprimento;
- Terço inferior da face lateral interna da coxa esquerda com cicatriz de ferida cirúrgica, com 6 cm de comprimento, visível;
- Rigidez da coxo-femoral na abdução e rotação externa a 30°;
- Perímetro do tornozelo: 25 cm;
- Face interna do pé com cicatriz de ferida cirúrgica, oblíqua para a frente e para baixo, com 6 cm de comprimento, linear, visível; Com alterações tróficas hiperpigmentadas na sua periferia;
- Face interna da perna esquerda, terço inferior, com 3 vestígios cicatriciais, hiperpigmentados;
- Rigidez do tornozelo com 20° de dorsiflexão e de 35° na flexão plantar; Anquilose do pé;
- Membro em rotação externa, com encurtamento.
23 – O Défice Funcional Temporário Total (correspondente ao período de internamento e/ou de repouso absoluto) foi fixado em 347 dias.
24 – O Défice Funcional Temporário Parcial (correspondente ao período que se iniciou logo que a evolução das lesões passou a consentir algum grau de autonomia, ainda que com limitações) foi fixado em 385 dias.
25 – A Repercussão Temporária na Actividade Doméstica (correspondente ao período em que a vítima, em virtude do processo evolutivo das lesões no sentido da cura ou da consolidação, viu condicionada a sua autonomia na realização dos autos inerentes à sua actividade doméstica habitual) foi fixada em 732 dias.
26 – A autora sofreu dores, sendo o quantum doloris fixável no grau 5 numa escala de 7 graus de gravidade crescente.
27 – Em termos de repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer, o dano foi fixável no grau 3 numa escala de 7 graus de gravidade crescente.
28 – O dano estético permanente fixável no grau 4 numa escala de 7 graus de gravidade crescente devido à claudicação da marcha e às cicatrizes visíveis.
29 – Em termos de repercussão permanente na actividade sexual, o dano foi fixável no grau 3 numa escala de 7 graus de gravidade crescente, atendendo à limitação da anca e membro inferior esquerdo, com limitações no posicionamento.
30 – A autora apresenta humor deprimido, elevados níveis de ansiedade e tristeza, choro fácil, insegurança, ideação suicida, pesadelos, medo, pânico, anedonia, esquecimentos, baixa autoestima, tendência para o isolamento, vergonha do seu corpo, afectação da sua própria imagem quer para si quer perante os outros, quadro caracterizado por sintomas depressivo de perturbação crónica de stress pós traumático.
31 – O Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica fixável em 31 pontos, considerando o valor global da perda funcional decorrente das sequelas e o facto destas serem causa de limitações funcionais importantes com repercussões na independência da autora.
32 – As sequelas descritas, em termos de Repercussão Permanente na Actividade Doméstica, são impeditivas do exercício da actividade doméstica.
33 – A patologia sequelar decorrente das lesões que ficou a padecer necessita, no futuro, de supervisão clínica de modo a assegurar a qualidade de vida da autora e para evitar um retrocesso ou agravamento das sequelas.
34 – Essa patologia sequelar implica as seguintes dependências permanentes de ajudas:
a) Ajudas medicamentosas (correspondem à necessidade permanente de recurso a medicação regular – ex: analgésicos, antiespasmódicos ou antiepilépticos, sem a qual a vitima não conseguirá ultrapassar as suas dificuldades em termos de termos funcionais e nas situações da vida diária). Neste caso, terapêutica medica analgésica regular.
b) Tratamentos médicos regulares (correspondem à necessidade permanente de recurso a tratamentos médicos para evitar um retrocesso ou agravamento das sequelas – ex: fisioterapia). Neste caso, vigilância em Ortopedia, Fisiatria e Psiquiatria.
35 – Após o acidente, a autora e devido ao forte abalo psíquico de que acometida, careceu de acompanhamento e medicação do foro psiquiátrico.
36 – A autora esteve sem força no membro esquerdo e sem possibilidade de se mexer.
37 – A autora teve dores na altura do acidente, no período pós-operatório e durante os tratamentos a que foi sujeita.
38 – A autora sofre e continuará a sofrer dores físicas.
39 - A autora tropeça e perde com facilidade o equilíbrio.
40 – A autora não consegue permanecer muito tempo em pé.
41 – A autora deixou de se sentir atraente e bonita.
42 – Sente desgosto em consequência das diversas cicatrizes e mazelas no corpo.
43 – Tais cicatrizes e mazelas que ostenta são geradores de um sentimento de vergonha e complexo em expor-se em público e mesmo na intimidade.
44 – Por causa disso, deixou de ir à praia.
45 – A autora saía com o marido e com amigos para conviver e divertir-se, o que deixou de fazer por se sentir desanimada e desmotivada.
46 – Como consequência das lesões sofridas aquando do acidente, a autora não consegue: usar sapatos de salto alto, como antes fazia, dançar, correr, subir e descer escadas, sem apoio, vestir-se sem estar apoiada ou sentada, subir a um escadote, fazer ginástica, aceder a sítios altos, como armários e roupeiros, dormir para o lado esquerdo, fazer caminhadas.
47 – Em resultado das lesões sofridas no acidente tem dificuldade em se baixar ou ajoelhar, mudar de posição de sentada para se colocar de pé, tem dificuldade em sair do duche.
48 – A autora era uma pessoa sem defeitos físicos, bem disposta, confiante, generosa, dinâmica e trabalhadora.
49 – Após o acidente, tornou-se uma pessoa triste, amargurada, angustiada, desanimada e insegura.
50 – A situação em que se encontra causa-lhe perturbação e receia que o seu estado de saúde piore.
51 – Após o acidente, por força dele e das sequelas que dele resultaram para ela, deixou de viajar de mota, nomeadamente para o estrangeiro, de ir para a neve e fazer ski.
52 – Antes do acidente, a autora dava catequese, fazia quermesses, envolvia-se em projectos sócio-caritativos da Caritas Diocesana e da Igreja, o que abandonou após o sinistro por se sentir desmotivada física e psiquicamente.
53 – A autora nasceu no dia 24/03/1953 e é casada.
54 – A autora necessita de usar uma palmilha compensatória no calçado para a dismetria dos membros inferiores.
55 – A autora tem dificuldade em entrar no carro, primeiro tem de sentar-se no banco e só depois recolher as pernas.
56 – A autora era doméstica e, antes do acidente, executava todos os trabalhos da lide doméstica da sua casa.
57 – Após o sinistro, passou a precisar de ajuda de terceira pessoa, para a realização das tarefas domésticas que exigem esforço, que foi prestada por amigas.
58 – A autora suportou despesas com deslocações, médicas, medicamentosas e taxas moderadoras no valor de € 609,29.
59 – Como consequência directa e necessária do acidente, as peças de vestuário que a autora trazia, no valor que não se logrou concretamente apurar, ficaram inutilizadas.
60 – Com a aquisição da palmilha compensatória, a autora suportou uma despesa que não se logrou concretamente apurar.
61 – À data do acidente, a autora tinha vários pares de sapatos e botas de salto alto de valor que não se logrou concretamente apurar.

A sentença recorrida julgou não provados os seguintes factos:
A) A autora ficou a padecer de uma incapacidade superior a 60%.
B) A autora vai necessitar de se submeter a intervenção cirúrgica para recuperar das lesões.
C) A hérnia impede a autora de deglutir, sentindo muitas dores.
D) A autora perdeu o gosto de comer bem, o que constituía um prazer.
E) A autora não consegue, sem auxílio, deslocar-se e satisfazer as suas necessidades básicas.
F) A autora gastou a quantia de € 96,00 por semana em serviços domésticos.
G) Tendo até a data da entrada em juízo da acção despendido a quantia de € 9.200,00 por tais serviços.
H) A sogra da autora teve de ir para o centro de dia e a mãe da autora teve de regressar ao Canadá.
I) Fora de casa, era a autora quem tudo administrava, desde bancos, finanças e o consultório médico do marido.
J) Autora dava aulas de moral na escola.
K) A autora viajava para o estrangeiro três a quatro vezes por ano.
L) A autora gasta em cada palmilha compensatória € 13,00.

Fundamentação

1 – Nulidade da sentença:
A recorrente afirma que a sentença é nula, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alíneas c), d) e e), do CPC, porquanto há contradição entre pontos da matéria de facto provada, que motivam oposição com a decisão, e o tribunal recorrido conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento.
Segundo a recorrente, a referida contradição verifica-se entre os pontos 54 e 60 dos factos provados, pois a recorrida não peticionou quantia relativa a adaptação do calçado, mas sim quantia correspondente às despesas com aquisição de uma palmilha, três vezes por ano. Há oposição com a decisão porque a condenação da recorrente a pagar o que se vier a liquidar em incidente de liquidação no que respeita às despesas com adaptação do calçado não está pedida. Não se trata de adaptação, mas de eventual aquisição de palmilha, considera a recorrente. Logo, houve condenação em quantidade superior e em objecto diverso do pedido.
Outro aspecto em que, segundo a recorrente, a sentença é nula por o tribunal recorrido ter conhecido de questões de que não podia tomar conhecimento, é o da alegada duplicação de indemnizações atribuídas por danos não patrimoniais e dano biológico.
É manifesta a falta de razão da recorrente.
No ponto 54, julgou-se provado que a recorrida necessita de usar uma palmilha compensatória no calçado para a dismetria dos membros inferiores e, no ponto 60, que, com a aquisição dessa palmilha, a recorrida suportou uma despesa que não se logrou concretamente apurar. É evidente a inexistência de contradição entre estes pontos da matéria de facto.
Por outro lado, o ponto F) do dispositivo da sentença recorrida, que condenou a recorrente a pagar à recorrida o que se vier a apurar em ulterior incidente de liquidação, no que respeita às despesas de adaptação do calçado, com uma palmilha compensadora, não excedeu o pedido constante da alínea A) da parte conclusiva da petição inicial. Inexistiu, pois, condenação em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.
Finalmente, ainda que se tivesse verificado uma duplicação de indemnizações por danos não patrimoniais e dano biológico, a consequência não seria a nulidade da sentença, como claramente decorre do artigo 615.º do CPC. Estaríamos, antes, perante um erro de julgamento.
Conclui-se, assim, que a sentença não é nula.

2 – Admissibilidade da prestação de declarações de parte pela autora:
A recorrente sustenta que as declarações de parte da recorrida foram prestadas de forma ilegal. Tal ilegalidade decorreria da circunstância de tais declarações de parte deverem ter lugar antes da restante prova produzida na audiência final, o que não aconteceu, e de a recorrida ter assistido à prestação dos depoimentos de todas as testemunhas e peritos antes de depor.
Resulta da acta da sessão da audiência final que teve lugar no dia 02.03.2017 que, na sequência de requerimento da própria, a que a recorrente se opôs, o tribunal a quo decidiu tomar declarações de parte à recorrida. A recorrente não interpôs recurso desta decisão, pelo que a questão se encontra definitivamente resolvida. Independentemente deste último aspecto, a recorrente carece de razão, pois o n.º 1 do artigo 466.º do CPC permite a prestação de declarações de parte até ao início das alegações orais em 1.ª instância. A circunstância de a recorrida ter assistido à prestação dos depoimentos de todas as testemunhas e peritos antes de depor não obsta à admissibilidade das declarações de parte, apenas devendo relevar em sede de valoração destas pelo julgador, nos termos da 1.ª parte do n.º 3 do mesmo artigo.
Em conclusão, o meio de prova em questão foi validamente produzido.

3 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
A recorrente começa por afirmar, nas suas alegações, que foram incorrectamente julgados os pontos 19 a 35, 54, 56, 57 e 60, transcrevendo-os. Todavia, apenas relativamente ao ponto 31 a recorrente cumpre totalmente os ónus que o artigo 640.º do CPC põe a cargo do impugnante da decisão sobre a matéria de facto. No que concerne aos restantes pontos que referimos, faltam a identificação dos concretos meios probatórios que, no entendimento da recorrente, impunham decisão diversa, com a indicação exigida pelo n.º 2, al. a), e a decisão que deveria ser proferida sobre os mesmos pontos. Consequentemente, a reapreciação da decisão sobre a matéria de facto terá por objecto apenas o conteúdo do ponto 31.
Julgou-se provado, neste ponto 31, que “O Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica fixável em 31 pontos, considerando o valor global da perda funcional decorrente das sequelas e o facto destas serem causa de limitações funcionais importantes com repercussões na independência da autora”. De acordo com a sentença, o tribunal recorrido formou a sua convicção sobre esta matéria com base no relatório de avaliação médico-legal do dano corporal efectuado pelo Gabinete Médico-Legal de Setúbal, completado pelos esclarecimentos prestados pelo perito que o elaborou. A recorrente censura a sentença recorrida por ter, nas suas palavras, desprezado o depoimento do médico (…), que depôs na qualidade de testemunha e expressou opinião diversa da do perito, defendendo que a pontuação arbitrada no relatório pericial foi excessiva.
O artigo 662.º, n.º 1, do CPC, estabelece que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. Escreve, a propósito, António Abrantes Geraldes, que “a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia” (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4.ª edição, p. 274). Prossegue o mesmo Autor: “sem embargo das modificações que podem ser oficiosamente operadas relativamente a determinados factos cuja decisão esteja eivada de erro de direito, por violação de normas imperativas, à Relação não é exigido, nem lhe é permitido que, de motu próprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos a livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio foram valorados pelo tribunal de 1.ª instância, para deles extrair, como se se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova. Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar o que o recorrente, no exercício do seu direito de impugnação da decisão da matéria de facto, indicou nas respectivas alegações que circunscrevem o objecto do recurso” (p. 279-280). À objecção de que a Relação, por apenas ter ao seu dispor, além do conteúdo material dos autos, a gravação das provas prestadas oralmente, assim ficando impedida de percepcionar a totalidade dos elementos de comunicação não verbais que possam ter sido relevantes para a formação da convicção do juiz da primeira instância, responde o Autor que vimos citando que tais circunstâncias “deverão ser ponderadas na ocasião em que a Relação procede à reapreciação dos meios de prova, evitando a introdução de alterações quando, fazendo actuar o princípio da livre apreciação das provas, não seja possível concluir, com a necessária segurança, pela existência de erro de apreciação relativamente aos concretos pontos de facto impugnados. (…) se a Relação, procedendo à reapreciação dos meios de prova postos à disposição do tribunal a quo, conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, a convicção acerca da existência de erro deve proceder à correspondente modificação da decisão” (p. 287-288).
Revertendo ao caso dos autos, os meios de prova relevantes para a apreciação da matéria constante do ponto 31 não impõem decisão diversa daquela que o tribunal recorrido proferiu. O referido ponto 31 espelha as conclusões do relatório pericial, complementado pelos esclarecimentos prestados pelo seu autor na audiência final. O depoimento do médico (…), embora divergente, não permite, por si só, concluir que o relatório esteja errado e que, em consequência disso, a decisão sobre o ponto 31 também o esteja.
Os esclarecimentos prestados pelo perito foram, inclusivamente, mais convincentes que o depoimento da testemunha (…). Assim, inquirido sobre a sua opção de qualificar a sequela em questão como pseudoartrose em vez de consolidação viciosa, a sua resposta não podia ser mais clara: a qualificação como consolidação viciosa não é possível porque é fora de dúvida que a fractura não está consolidada; mais, é sua convicção que tal consolidação nunca virá a ocorrer, enfatizando a gravidade da referida fractura. Às reservas colocadas pela recorrente sobre o facto de ter feito a perícia com base em exames médicos realizados em 2013, também respondeu de forma convincente, afirmando que, dada a grande lentidão da evolução do processo de consolidação óssea, não havia qualquer utilidade em pedir novos exames. Portanto, a sentença recorrida baseou-se, no ponto em questão, numa perícia médico-legal tecnicamente bem sustentada.
Já o depoimento da testemunha (…) suscita algumas reservas. Desde logo, importa ter em consideração que se trata de um médico que trabalha para a recorrente, oferecendo, consequentemente, menores garantias de isenção que o perito médico-legal. Acresce que a sua especialidade não é a ortopedia, mas sim a cirurgia plástica e reconstrutiva, sendo certo que a matéria de facto que estava em discussão pertence à primeira especialidade. No que concerne ao conteúdo do depoimento, o mesmo não foi inteiramente convincente. A testemunha (…) criticou a realização da perícia com base em exames realizados dois anos antes, mas não explicou devidamente porquê, já que ele próprio descreveu a consolidação óssea como “um processo muito lento”. Por outro lado, referiu meros “indícios de consolidação parcial” e admitiu uma evolução futura, a um ritmo muito lento, dessa consolidação, o que inculca que, na realidade e tal como referiu o perito médico, a fractura não está consolidada.
Seja como for, é seguro que não ficou demonstrada a existência de um erro de julgamento do tribunal recorrido sobre a matéria constante do ponto 31, que imponha decisão diversa, razão pela qual, considerando o disposto no artigo 662.º, n.º 1, do CPC, é de concluir pela inexistência de fundamento para alterar a decisão sobre a matéria de facto.

4 – Qualificação dos danos sofridos pela recorrida:
A sentença recorrida adoptou uma forma de qualificação dos danos que vem fazendo caminho na nossa jurisprudência desde o final da década passada, qual seja a de autonomizar o denominado dano biológico dos danos patrimoniais e dos danos não patrimoniais, atribuindo uma indemnização a esse título.
A recorrente insurge-se contra tal autonomização do dano biológico, nos termos em que foi feita pela sentença recorrida, sustentando que a mesma redundou numa duplicação de indemnizações – a título de danos não patrimoniais e de dano biológico – pelos mesmos factos, nomeadamente pelas mesmas lesões e sequelas.
Em face da argumentação da recorrente, a primeira observação a fazer sobre esta matéria e é a de que um mesmo facto, nomeadamente uma mesma lesão ou uma mesma sequela, pode gerar um direito a indemnização a títulos diversos, em função da perspectiva sob a qual seja encarado. Mesmo antes do surgimento, na jurisprudência portuguesa, do conceito de dano biológico, isso já acontecia, por referência às categorias legais do dano patrimonial e do dano não patrimonial. Por exemplo, se o lesado ficar paraplégico, terá seguramente direito a uma indemnização pelo dano patrimonial que daí decorra (e, mesmo dentro dessa categoria de dano, em função de várias subcategorias) e a uma indemnização por danos não patrimoniais. A primeira parcela indemnizatória terá a sua justificação na diminuição do património do lesado ou na frustração do seu aumento em consequência da lesão e a segunda tê-la-á, nomeadamente, no sofrimento físico e no desgosto que o lesado sentirá devido à grave situação de incapacidade em que caiu.
A decisão judicial que atribua indemnização a títulos diversos pelo mesmo facto terá de especificar claramente qual a perspectiva sob a qual atribui cada parcela indemnizatória. Ora, é isso que a sentença recorrida não fez inteiramente, pois incluiu, naquilo a que chamou “danos não patrimoniais stricto sensu”, “a natureza e elevada gravidade das lesões e as sequelas que ficou a padecer (…), as limitações da locomoção (…), o quadro clínico de foro psiquiátrico, com síndrome ansioso depressivo compatível com o diagnóstico de perturbação de stress pós traumático, e recurso necessário a medicação adequada (…)”, a “dificuldade em subir e descer escadas”, a incapacidade para “correr, saltar, andar de saltos altos, fazer caminhadas, efectuar viagens e passear de mota, praticar ski”, “o período de incapacidade temporária total de 347 dias, o período de incapacidade temporária parcial de 385 dias, a repercussão temporária na actividade doméstica total de 732 dias (…), a marcha claudicante (…), a repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer fixável em 3/7, a afectação do seu desempenho sexual com repercussão permanente ao nível da actividade sexual no grau 3/7”, e, mais adiante, justificou a parcela indemnizatória que atribuiu a título de “dano biológico” com o facto de a recorrida ter visto “a sua integridade física atingida de forma irreversível, ficando com 31 pontos de Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica, com diminuição da qualidade de vida em geral, afectada na sua autonomia física e psíquica” e ter ficado “permanentemente afectada na actividade sexual”, ter “um encurtamento do membro inferior”, apresentar “marcha claudicante”, ter “perda de mobilidade, sem conseguir fazer inúmeras tarefas comuns, acrescendo que ficou a sofrer de uma incapacidade absoluta para o trabalho doméstico”. São evidentes as zonas de sobreposição das duas categorias de danos, tal como a recorrente afirma.
A consequência dessa sobreposição não é, como a recorrente sustenta nas suas alegações de recurso, a pura e simples revogação da sentença recorrida na parte que a condena em indemnização por dano biológico e a sua substituição por outra que a absolva desse pedido. Está provado que a recorrida sofreu os danos que, na sentença recorrida, mereceram dupla menção sem a necessária diferenciação de perspectivas, o que, independentemente da questão formal da sua correcta qualificação jurídica, impõe a sua indemnização. Para tanto, teremos de precisar a qualificação dos mesmos danos e, feito isso, de os avaliar.
Os problemas que a sentença recorrida suscita em sede de qualificação dos danos não decorrem unicamente da apontada inclusão de factos descritos de forma semelhante em duas categorias de danos diferentes e que deram origem a duas parcelas indemnizatórias também distintas. Verifica-se um outro problema, a montante, que poderá explicar, ao menos em parte, a referida sobreposição: o dos termos da classificação dos danos adoptada na sentença recorrida. Esta distingue os danos em “danos não patrimoniais stricto sensu”, “dano biológico” e “danos patrimoniais”, afirmando que é “entendimento pacífico na nossa jurisprudência que o dano biológico ou corporal, perspectivado como diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com substancial e notória repercussão na vida pessoal e profissional de quem o sofre, é sempre ressarcível, como dano autónomo, independentemente do seu específico e concreto enquadramento nas categorias normativas do dano patrimonial, dano não patrimonial ou de um tertium genus que não se esgota num qualquer dano patrimonial em sentido estrito (incapacidade permanente ou temporária com reflexos laborais) nem num simples dano moral (bastante restritivo nos seus pressupostos de admissibilidade).”
A jurisprudência, nomeadamente do Supremo Tribunal de Justiça, admite, de um modo geral, a categoria do dano biológico, embora com divergências sobre o seu conteúdo e a sua própria autonomia. Se encontramos decisões que aderem, sem reservas, à tese da autonomia do dano biológico, como é o caso dos acórdãos do STJ de 20.05.2010, proferido no processo n.º 103/2002.L1.S1 (relator: Lopes do Rego), de 20.01.2011, proferido no processo n.º 520/04.8GAVNF.P2.S1 (relator: Souto de Moura) e de 17.05.2011, proferido no processo n.º 7449/05.0TBVFR.P1.S1 (relator: Gregório Silva Jesus), outras há que, no fundo, põem em causa a própria utilidade do conceito, como categoria de danos a indemnizar, como é o caso do acórdão do STJ de 26.01.2012, proferido no processo n.º 220/2001.L1.S1 (relator: João Bernardo), segundo o qual “a conceptualização do dano biológico não veio “tirar nem pôr” ao que, em termos práticos, já vinha sendo decidido pelos tribunais, quanto a indemnização pelos danos patrimoniais de carácter pessoal ou compensação pelos danos não patrimoniais.” No que toca, especificamente, ao conteúdo do dano biológico, o mesmo é concebido, geralmente, como tendo natureza mista, patrimonial e não patrimonial – cfr., entre outros, os já referidos acórdãos do STJ de 20.05.2010, proferido no processo n.º 103/2002.L1.S1 (relator: Lopes do Rego) e de 20.01.2011, proferido no processo n.º 520/04.8GAVNF.P2.S1 (relator: Souto de Moura) –, mas em termos nem sempre concordantes.
Porém, parece-nos que a introdução da categoria do dano biológico no domínio da responsabilidade civil extraobrigacional não trouxe vantagens relevantes e é geradora de confusões dispensáveis.
Não trouxe vantagens porque, ao contrário do que acontece no Direito Italiano, de onde a categoria do dano biológico foi importada, o regime da responsabilidade civil extraobrigacional constante do nosso Código Civil, ao consagrar amplamente a indemnizabilidade, quer do dano patrimonial, nas suas diversas vertentes, quer do dano não patrimonial, proporciona soluções adequadas à necessidade de ressarcimento da lesão de bens que é reclamada pelas novas exigências de tutela da personalidade[1]. Mais, além de o Direito Português permitir tais soluções, a jurisprudência vinha dando resposta satisfatória às necessidades de evolução do direito da responsabilidade civil, no sentido do reforço da referida tutela, dentro do quadro legal existente, assente no binómio dano patrimonial/dano não patrimonial.
As confusões que a recepção acrítica da categoria do dano biológico e da sua colocação no mesmo plano das de dano patrimonial e dano não patrimonial estão à vista. Sendo o dano biológico um dano-evento ou dano real, não pode ser considerado como uma categoria jurídica situada no mesmo plano dos danos patrimoniais e dos danos não patrimoniais, que se reportam aos danos-consequência[2]. O resultado dessa consideração, com a consequente tripartição que acima referimos, só podia ser aquele que efectivamente vem sendo: a transição, das categorias do dano patrimonial e do dano não patrimonial para a do dano biológico, dos danos patrimoniais e não patrimoniais com origem neste último. Essa migração, cuja utilidade está por demonstrar, vem causando as dificuldades e perplexidades que a leitura da jurisprudência sobre o tema evidencia[3]. “O dano biológico, sendo um dano real ou dano-evento, não deve, em princípio, ser qualificado como dano patrimonial ou não patrimonial, mas antes como tendo consequências de um e/ou outro tipo; e também por isso, em nosso entender, o dano biológico não deve ser tido como um dano autónomo em relação à dicotomia danos patrimoniais/danos não patrimoniais”[4].
Entendemos, pois, que deve prevalecer a classificação dos danos estabelecida no Código Civil, assente na dicotomia danos patrimoniais/danos não patrimoniais. É certo que a categoria do dano biológico encontrou acolhimento normativo na Portaria n.º 377/2008, de 26.05, alterada pela Portaria n.º 679/2009, de 25.06. Todavia, estamos, aí, a um nível infra-legal e perante um instrumento normativo que não tem – nem aliás podia ter, face ao disposto no Código Civil, fonte hierarquicamente superior – por objecto o estabelecimento de critérios de fixação judicial de indemnizações por responsabilidade civil.
Concluindo, a avaliação dos danos sofridos pela recorrida, a que teremos de proceder nos números seguintes devido, por um lado, à adopção, pela sentença recorrida, do critério tripartido que refutamos e, por outro lado, à dupla menção de factos descritos de forma idêntica nas categorias do dano não patrimonial e do dano biológico, será feita à luz do critério estabelecido no Código Civil, ou seja, em função da dicotomia danos patrimoniais/danos não patrimoniais.

5 – Determinação e avaliação dos danos não patrimoniais:
Pelas razões referidas no ponto anterior, teremos de proceder à identificação dos danos sofridos pela recorrida que merecem a qualificação de não patrimoniais, seguindo-se a sua avaliação.
Os danos não patrimoniais que se provaram são os seguintes:
A) Em consequência da colisão, a recorrida sofreu as lesões descritas no ponto 11 da matéria de facto provada, que necessariamente lhe provocaram grande sofrimento físico e psíquico, conforme resulta dos pontos 26 e 37;
B) A recorrida teve de se submeter a 5 intervenções cirúrgicas, descritas nos pontos 6, 8, 13, 15, 16 e 17, o que necessariamente lhe causou, além de sofrimento físico, preocupação e ansiedade, antes e depois de cada uma delas;
C) A recorrida esteve com drenagem torácica durante 8 dias (ponto 9), o que também não pode ter deixado de lhe causar sofrimento físico;
D) A recorrida esteve internada durante 2 semanas numa unidade de cuidados intensivos e, posteriormente, mais 6 semanas (pontos 7 e 13); os períodos de internamento hospitalar, sobretudo se, como foi o caso, a pessoa estiver confinada a uma cama, em repouso absoluto (pontos 23 e 36), são especialmente penosos devido, nomeadamente, ao afastamento de casa e da família e à perda da privacidade;
E) A recorrida esteve quase 1 ano sujeita a internamento e/ou a repouso absoluto (ponto 23), o que não pode ter deixado de lhe provocar enorme sofrimento e ansiedade; foi, além do mais, quase 1 ano de vida perdido;
F) A recorrida esteve em tratamento de recuperação fisiátrica, com sessões diárias, durante um período de 2 anos, com os inerentes sacrifício físico e dispêndio de muito tempo, que certamente passaria de forma mais agradável para si não fora o acidente dos autos;
G) As sequelas com que a recorrida ficou, descritas nos pontos 22, 39, 40 e 55, pela sua gravidade, causaram e continuarão a causar-lhe, durante o resto da vida, grande sofrimento físico – decorrente, nomeadamente, da penosidade acrescida que a execução das tarefas do dia-a-dia ainda ao seu alcance implicará – e psíquico, como resulta, nomeadamente, dos pontos 30, 35, 38, 41, 42, 43, 49 e 50;
H) O dano estético foi de grau 4 numa escala de 7 graus de gravidade crescente devido à claudicação da marcha e às cicatrizes visíveis;
I) Em consequência das sequelas com que ficou, a recorrida deixou de fazer várias coisas que lhe davam prazer, como ir à praia, sair com o marido e com amigos para conviver e divertir-se, usar sapatos de salto alto, dançar, viajar de mota, ir para a neve e fazer ski (pontos 44, 45, 46, 51;
J) Em termos de repercussão permanente na actividade sexual, o dano foi fixável no grau 3 numa escala de 7 graus de gravidade crescente (ponto 29), facto que também constitui uma das causas do sofrimento psíquico da recorrida (cfr., nomeadamente, o ponto 30);
K) Devido ao estado psíquico em que caiu por causa do acidente, a recorrida deixou de sentir motivação para participar em actividades comunitárias com que anteriormente preenchia parte do seu tempo (ponto 52).
A recorrente considera excessiva a indemnização atribuída por danos não patrimoniais, no montante de € 60.000,00, pugnando pela sua redução para o montante de € 40.000,00.
O artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil estabelece que, na fixação da indemnização, deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do Direito. A primeira parte do n.º 4 do mesmo artigo dispõe que o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º, a saber, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso. A indemnização por danos não patrimoniais visa compensar o lesado do sofrimento em que aqueles se traduzem. Como o dano não pode ser suprimido, procura-se aquela compensação através da atribuição de uma quantia em dinheiro que, em toda a medida do possível, proporcione ao lesado um benefício proporcional ao seu sofrimento.
O sofrimento físico e psíquico causado à recorrida pelo acidente de viação dos autos foi imenso e prolongar-se-á, seguramente, até à morte daquela. O valor de € 40.000, proposto pela recorrente, é exíguo, tendo em conta a gravidade dos danos não patrimoniais.
O argumento, a que a recorrente lança mão, de que a indemnização fixada pela sentença recorrida, de € 60.000,00, é excessiva por ultrapassar os valores habitualmente atribuídos pela jurisprudência para ressarcir o dano morte, que consubstancia a violação do bem supremo que é a vida, além de não ter suporte factual, é dogmático e superficial, não atentando devidamente naquilo que é a realidade da vida.
Não tem suporte factual porque os valores atribuídos pela jurisprudência para ressarcir o dano morte excedem normalmente os € 50.000,00 referidos pela recorrente. Veja-se, a título de exemplo, a seguinte jurisprudência do STJ:
- Acórdão de 05.02.2009, proferido no processo n.º 08B4093 (relator: Oliveira Rocha): € 60.000,00;
- Acórdão de 31.01.2012, proferido no processo 875/05.7TBILH. C1.S1 (relator: Nuno Cameira): € 75.000,00;
- Acórdão de 23.02.2011, proferido no processo 395/03.4GTSTB. L1.S1 (relator: Pires da Graça): € 80.000,00;
- Acórdão de 18.06.2015, proferido no processo 2567/09.9TBABF.E1.S1 (relatora: Fernanda Isabel Pereira): € 80.000,00.
É dogmático porque se baseia exclusivamente numa hierarquia abstracta de bens jurídicos, encimada, sem dúvida alguma, pelo bem vida, quando há que atentar noutros factores mais importantes em sede de indemnização por danos não patrimoniais, como a intensidade e a duração do sofrimento da vítima, bem como o de ser esta última a beneficiária da indemnização. Por isso mesmo, trata-se de uma abordagem superficial, mesmo simplista, da problemática de que nos ocupamos, devendo ser rejeitada.
No sentido, que vimos defendendo, da não limitação do montante da indemnização por danos não patrimoniais graves – como o são os sofridos pela recorrida – pelos valores habitualmente fixados para a indemnização do dano morte, decidiram, por exemplo, os acórdãos do STJ de 19.06.2014, proferido no processo n.º 1679/10.0TBVCT.G1 (relator: Sérgio Poças) e de 08.06.2017, proferido no processo n.º 2104/05.4TBPVZ.P1.S1 (relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza).
A indemnização a fixar para compensação dos danos não patrimoniais sofridos pela recorrida não pode, por outro lado, ser limitada pelo valor a esse título atribuído pela sentença recorrida. Como vimos anteriormente, a sentença adoptou uma classificação tripartida dos danos sofridos pela recorrida e atribuiu a maior parcela indemnizatória, de € 80.000,00, pelo dano biológico. Com a supressão desta última categoria e a consequente redistribuição dos danos nela englobados pelas duas restantes – danos não patrimoniais e danos patrimoniais –, é natural a fixação de parcelas indemnizatórias superiores àquelas que a sentença recorrida fixou a qualquer desses títulos. Por outras palavras, as categorias “danos não patrimoniais” e “danos patrimoniais” são mais amplas nesta decisão que na sentença recorrida, pelo que se justifica, aqui, a atribuição de parcelas indemnizatórias superiores às correspondentes a essas mesmas categorias de danos na sentença, desde que não se ultrapasse, obviamente, o valor global da condenação.
Como acima enfatizámos, o sofrimento físico e psíquico da recorrida em consequência do acidente foi imenso e prolongar-se-á, seguramente, até à morte desta, reclamando, por isso, a atribuição de uma indemnização elevada.
Só o facto de a recorrida ter sido submetida a 5 intervenções cirúrgicas, com o inerente sofrimento físico e psíquico, reclama uma indemnização não inferior a € 10.000,00.
O sofrimento decorrente do facto de a recorrida ter estado sujeita a um período de internamento e/ou repouso absoluto durante 347 dias, dos quais 8 semanas foram de efectivo internamento, também reclama, por si só, uma indemnização significativa. À razão de € 75 por dia – tenha-se em mente que não estamos a falar de jornadas laborais de 7 ou 8 horas, mas de períodos de 24 sobre 24 horas, períodos esses de sofrimento em vez de tudo aquilo que a vida tem de bom para ser vivida, pelo que aquele valor diário é razoável –, teremos, apenas a este título, uma indemnização de € 26.025,00.
O sofrimento físico e psíquico decorrente das sequelas também foi grande e compreende-se porquê.
A recorrida, com 57 anos à data do acidente, não tinha defeitos físicos. Em consequência do acidente, ficou com uma perna mais curta que a outra e marcha claudicante para o resto da vida. Só isto, é suficiente para alterar profundamente a vida de uma pessoa, a imagem que de si dá aos outros e que de si mesma tem. Para mais sendo a recorrida uma pessoa que gostava de viver bem a vida, pois era bem disposta, confiante, dinâmica, trabalhadora, saía com o marido e com amigos, convivia, divertia-se, gostava de viajar de mota, de ir para a neve, de fazer ski. Como compensar um dano não patrimonial com a gravidade deste, que diminui muito efectivamente a qualidade de vida da recorrida e fará sentir a sua presença em cada passo que esta der até morrer? Nunca com uma indemnização inferior a € 50.000,00, no nosso entendimento.
Acrescem os restantes danos não patrimoniais acima referidos, como são as numerosas cicatrizes com que a recorrida ficou, bem como as restantes limitações físicas que passaram a afectá-la. Indemnização inferior a € 110.000,00 será insuficiente para compensar tais danos.

6 – Determinação e avaliação dos danos patrimoniais:
A sentença recorrida incluiu na categoria do dano biológico o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 31 pontos, por constituir uma lesão do direito fundamental à saúde e integridade física. No nosso entendimento, além da sua vertente não patrimonial decorrente do sofrimento psíquico que as limitações físicas em questão causam à recorrida e da maior penosidade que as mesmas limitações implicam no dia-a-dia desta última, trata-se de um dano patrimonial, a dois níveis.
Por um lado, antes do acidente, a recorrida executava todos os trabalhos da lida doméstica da sua casa. Cuidar da casa de morada da família é um trabalho avaliável em dinheiro. Tanto assim é que, quando nenhum membro da família o pode fazer, tem de se pagar a terceiro para realizar tal tarefa. Não pode, pois, como a recorrente faz, dizer-se que recorrida não trabalhava. Esta não recebia remuneração, uma vez que trabalhava em proveito do seu próprio agregado familiar, mas evitava a realização da despesa que implicaria a realização das tarefas em causa por terceiro.
Provou-se que as sequelas decorrentes do acidente são impeditivas do exercício da actividade doméstica, donde resulta que a recorrida terá de pagar a terceira pessoa para a ajudar a cuidar de sua casa. A sentença considerou, bem, que isto constitui um dano patrimonial e, com base no critério de equidade estabelecido no artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil, atribuiu uma indemnização de € 30.000,00 a este título.
A isso não obsta, do ponto de vista processual, a circunstância de a recorrida, na petição inicial, não ter quantificado este dano na parte em que o perspectivou como futuro. Nomeadamente, os artigos 609.º do CPC e 556.º, n.º 2, do Código Civil, invocados pela recorrente, não impedem o tribunal de, ao abrigo do n.º 3 deste último artigo, atribuir quantia determinada com base na equidade.
Quanto à quantia em si mesma, que a recorrente considera exorbitante, parece-nos, ao invés, que prima pela moderação. Ainda que a recorrida consiga assegurar a prestação de serviços domésticos por terceiro mediante um custo mensal de apenas € 250, correspondente a menos de metade do actual salário mínimo nacional, gastará, anualmente, € 3.000,00, pelo que a quantia arbitrada, de € 30.000,00, só será suficiente para 10 anos, quando a esperança de vida de uma mulher com a idade da recorrida (64 anos) é de cerca de 19 anos. No que concerne ao abatimento que, no entendimento da recorrente, deveria fazer-se tendo em consideração a “necessidade de contratar serviços quando as pessoas atingem certa idade”, não tem razão de ser. Ainda que, com o avançar da idade, a recorrida viesse a necessitar de contratar alguém para a auxiliar nas tarefas domésticas independentemente do acidente dos autos, certo é que as limitações funcionais com que ficou em consequência deste último constituirão sempre um acréscimo àquelas que decorreriam da velhice, reclamando, portanto, o correspondente acréscimo do tempo da prestação dos serviços e do respectivo custo.
Deverá, portanto, manter-se a condenação da recorrente no pagamento de uma indemnização no montante de € 30.000,00 pelo dano patrimonial decorrente da necessidade de contratação de terceiro para executar serviço doméstico.
O referido défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 31 pontos, aliado aos períodos de défice funcional temporário total (347 dias) e de défice funcional temporário parcial (385 dias), implica um dano patrimonial a um segundo nível. Provou-se que, à data do acidente, a recorrida era doméstica (ponto 56). Com esse fundamento, a recorrente afirma que as sequelas físicas não tiveram qualquer implicação ao nível da capacidade de ganho da recorrida. Ou seja, de acordo com este entendimento, quando o lesado não exerça uma actividade geradora de rendimento à data da ocorrência do facto lesivo, a sua capacidade de ganho não tem qualquer valor patrimonial cuja perda ou diminuição seja susceptível de indemnização.
Discordamos. A perda, total ou parcial, de capacidade para o trabalho, constitui, em si mesma, um dano patrimonial futuro e, como tal, indemnizável. Exerça ou não uma actividade geradora de rendimento à data da lesão, o lesado sofrerá sempre uma diminuição da sua capacidade para trabalhar, por conta própria ou alheia, e de obter rendimentos por essa via. Uma pessoa pode não trabalhar em determinado momento da sua vida, contra a sua vontade ou por opção própria, mas passar a fazê-lo posteriormente. Se essa pessoa sofrer uma incapacidade para trabalhar, pode a oportunidade de iniciar uma actividade geradora de rendimento não surgir, ou surgir em condições menos favoráveis que aquelas que se verificariam sem aquele défice. Tal diminuição da capacidade de trabalho, com reflexos patrimoniais negativos para o lesado, não pode deixar de ser indemnizada.
A dificuldade que se levanta é ao nível do cálculo da indemnização. Num caso, como o dos autos, em que a lesada não exercia qualquer actividade geradora de rendimento à data do acidente, falta-nos um ponto de referência como seria o montante do salário caso trabalhasse por conta de outrem. Ainda assim, terá de se proporcionar à recorrida um valor que a compense do prejuízo resultante da diminuição da capacidade para trabalhar até à data em que atingiria a idade da reforma (67 anos). Uma vez que não é possível o recurso ao critério estabelecido no artigo 566.º, n.º 2, do Código Civil, face à impossibilidade de averiguar o valor exacto do dano, resta o recurso ao critério de equidade estabelecido no n.º 3 do mesmo artigo.
A recorrida tinha 57 anos à data do acidente. Desconhecem-se as suas habilitações profissionais, pelo que deveremos ter como referência o montante correspondente ao salário mínimo nacional. Considerando os períodos de défice funcional temporário total (347 dias) e de défice funcional temporário parcial (385 dias), bem como o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 31 pontos com que a recorrida ficou, deverá, de acordo com o referido critério de equidade, ser atribuída, a este título, uma indemnização no montante de € 25.000,00.
Ainda em sede de danos patrimoniais, a recorrente sustenta que, por falta de prova, a sentença recorrida deve ser revogada na parte em que a condenou a pagar a quantia que se vier a apurar em ulterior incidente de liquidação no que respeita a despesas futuras com deslocações, consultas de ortopedia, fisiatria e psiquiatria, despesas médicas e medicamentosas. Porém, é evidente a sua falta de razão, pois os factos descritos nos n.ºs 33 e 34 da sentença recorrida constituem fundamento suficiente para a referida condenação.
Finalmente, reportando-se à indemnização atribuída na sentença recorrida pelo dano biológico, a recorrente sustenta que o tribunal devia ter procedido ao desconto de 1/3 de modo a evitar vantagens patrimoniais ilícitas da sinistrada. Uma vez que, apesar da refutação, neste acórdão, da categoria do dano biológico, a questão se suscita, em idêntica medida, relativamente à indemnização por dano patrimonial, passamos a analisá-la.
A pretensão da recorrente tem como pressuposto que o capital produza rendimento líquido, ou seja, superior à taxa de inflação após o pagamento de impostos e comissões bancárias. Apenas nesta hipótese a antecipação do pagamento da indemnização relativamente ao momento da produção do dano futuro implicaria um benefício ilegítimo para o lesado, que receberia, além da indemnização, o referido rendimento líquido sem causa justificativa. A recorrente menciona, a propósito, nas suas alegações de recurso, uma “taxa de juro nominal líquida das aplicações financeiras de 4% (valor de referência praticado, exemplificadamente, pela CGD e pelo Millenniumbcp)”.
Porém, a realidade que se nos apresenta é completamente diferente da descrita. Que saibamos, nenhum banco a operar em Portugal oferece, há já algum tempo, produtos financeiros sem risco associado cujas taxas de juro proporcionem rendimento líquido, no sentido acima referido. Basta a taxa de inflação que se vem verificando para impedir uma apreciação efectiva do capital depositado. Mais, a instabilidade que nos anos mais recentes se tem verificado no sistema bancário nem sequer garante a absoluta segurança do próprio capital depositado. Nestas circunstâncias, não há fundamento para entender que a antecipação do pagamento da indemnização correspondente ao dano futuro relativamente à produção deste proporciona algum benefício ao lesado nem, logicamente, para a dedução de qualquer parcela da indemnização a esse título.

Recapitulando:
- Apurámos as seguintes parcelas indemnizatórias:
- Danos não patrimoniais: € 110.000,00;
- Dano patrimonial futuro decorrente da diminuição da capacidade para o trabalho: € 25.000,00;
- Dano patrimonial futuro decorrente da necessidade de contratação de terceiro para executar serviço doméstico: € 30.000,00;
- A condenação constante da alínea d) do dispositivo da sentença recorrida (€ 609,29 a título de danos patrimoniais) não foi objecto de recurso, pelo que se mantém;
- Não há razão para revogar ou alterar a condenação constante das alíneas e) e f) do dispositivo da sentença recorrida;
- Pelo que o recurso procede parcialmente, devendo a sentença recorrida ser alterada em conformidade com o exposto.
Sumário


1 – É admissível a prestação de declarações de parte até ao início das alegações orais em 1.ª instância, a tal não obstando a circunstância de o declarante ter assistido à prestação dos depoimentos de todas as testemunhas e peritos antes de depor, circunstância essa que, porém, deve relevar em sede de valoração das declarações pelo julgador.
2 – A introdução da categoria do dano biológico no domínio da responsabilidade civil extraobrigacional não trouxe vantagens relevantes, pois, ao contrário do que acontece no Direito Italiano, de onde foi importada, o regime da responsabilidade civil extraobrigacional constante do nosso Código Civil, ao consagrar amplamente a indemnizabilidade, quer do dano patrimonial, nas suas diversas vertentes, quer do dano não patrimonial, proporciona soluções adequadas à necessidade de ressarcimento da lesão de bens que é reclamada pelas novas exigências de tutela da personalidade.
3 – Sendo o dano biológico um dano-evento ou dano real, não pode ser considerado como uma categoria jurídica situada no mesmo plano dos danos patrimoniais e dos danos não patrimoniais, que se reportam aos danos-consequência.
4 – O montante da indemnização por danos não patrimoniais graves pode ultrapassar os valores habitualmente fixados para a indemnização do dano morte.
5 – A perda, total ou parcial, de capacidade para o trabalho, constitui, em si mesma, um dano patrimonial futuro e, como tal, indemnizável, independentemente da circunstância de, à data da lesão, o lesado exercer, ou não, uma actividade geradora de rendimento, por conta própria ou alheia.
6 – Actualmente, dada a inexistência, no sistema bancário, de produtos financeiros sem risco associado cujas taxas de juro proporcionem rendimento líquido, não há fundamento para considerar que a antecipação do pagamento da indemnização correspondente ao dano futuro relativamente à produção deste proporciona algum benefício ao lesado, nem, logicamente, para a dedução de qualquer parcela da indemnização a esse título.

Decisão


Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso parcialmente procedente, alterando a sentença recorrida nos seguintes termos:
- Condena-se a recorrente a pagar à recorrida uma indemnização de € 110.000,00 por danos não patrimoniais;
- Condena-se a recorrente a pagar à recorrida uma indemnização de € 25.000,00 pelo dano patrimonial futuro decorrente da diminuição da capacidade para o trabalho:
- Mantém-se a condenação da recorrente a pagar à recorrida uma indemnização de € 30.000,00 pelo dano patrimonial decorrente da necessidade de contratação de terceiro para executar serviço doméstico;
- Mantém-se a condenação da recorrente a pagar à recorrida a quantia de € 609,29, pelos danos descritos na alínea d) do dispositivo da sentença recorrida;
- Mantém-se a condenação da recorrente nos exactos termos constantes das alíneas e) e f) do dispositivo da sentença recorrida.
Custas por recorrente e recorrida na proporção do decaimento.
Notifique.

Évora, 22 de Março de 2018

Vítor Sequinho dos Santos (Relator)

Conceição Ferreira

Rui Machado e Moura

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[1] MARIA DA GRAÇA TRIGO, Adopção do Conceito de “Dano Biológico” pelo Direito Português, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 72, Vol. I – Janeiro-Março 2012, pp. 149-151, 164 e 167.

[2] MARIA DA GRAÇA TRIGO, cit., p. 166.

[3] MARIA DA GRAÇA TRIGO, cit., pp. 148 e 177.

[4] MARIA DA GRAÇA TRIGO, cit., p. 177.