Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2167/18.2T9FAR-A.E1
Relator: LAURA GOULART MAURÍCIO
Descritores: ELIMINAÇÃO DE SUPORTES INFORMÁTICOS
MINISTÉRIO PÚBLICO
COMPETÊNCIA
NULIDADES
Data do Acordão: 09/21/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 - A decisão de determinar a eliminação de imagens, vídeos e áudios contidos em suportes informáticos apreendidos, devido ao carácter intimo, privado e exibicionista, sem relevo para a investigação, sem dar a possibilidade de os arguidos se pronunciarem quanto ao teor dos mesmos, não viola qualquer preceito legal ou constitucional, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem ou da Declaração Universal dos Direitos Humanos, improcedendo o recurso neste particular.

2 - Gozando o Ministério Público da autonomia que lhe é conferida pelo disposto no artigo 219.°, n.° 2 da Constituição da República Portuguesa, a competência para, em sede de inquérito, com exceção de atos em que haja reserva de juiz, conhecer de nulidades ou invalidades é da competência de quem dirige essa fase processual.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

Relatório

No Tribunal Judicial da Comarca de Évora, Juízo de Instrução Criminal de Évora, foi, em 16 de dezembro de 2020, proferido despacho com o seguinte teor (transcrição):

“I. Pesquisas informáticas e diligências subsequentes:

Das buscas, apreensões e pesquisas informáticas autorizadas por despacho judicial, resultaram diversos suportes técnicos contendo dados ou documentos informáticos.

Ultimamente por despacho de 21-10-2020, foi prorrogado o prazo das pesquisas informáticas por mais 30 dias e que se realizaram em 19-10-2020.

- CDs referentes a (…): Os elementos recolhidos a fls. 1704, 1705, 1706, 1739, 1741, 1761, 1762, 1763, 1764, 1778, não foram obtidos na sequência de despacho judicial e nessa medida não tem o tribunal de tomar conhecimento em primeiro lugar, podendo posteriormente e após análise pelo órgão de polícia criminal/Ministério Público ser apresentados para efeitos do art.º 16.º, n.º3, da Lei do Cibercrime.

- CD a fls. 1806 - Residência de (…): Analisei o respectivo conteúdo, sem relevo para a investigação.

- CD a fls. 1612 - Residência de (…) (fls. 1592; pontos 3.d., 3.e. e 3.f): Analisei o respectivo conteúdo. Não se tratam de comunicações/correspondência e/ou ficheiros com dados pessoais ou íntimos. Sem relevo para a investigação.

- CDs a fls. 2292 e 2315 - Residência de (…) (fls. 1638):

Analisei o respectivo conteúdo. Os elementos recolhidos reportam-se a relação existente (…), ao licenciamento da praia dos (…), licença de utilização de moradias na Urbanização (…), das sociedades (…), com o visado enquanto presidente da Assembleia Municipal e na Câmara Municipal de (...), com o interesse para a investigação, bem assim, do acesso da bases de dados sem autorização. Os documentos/ficheiros em causa nos autos estão assim associados à prática de crimes no exercício das funções na Autarquia, nada obstando ao aproveitamento para o apuramento da responsabilidade jurídico criminal, porquanto o arguido (...), advogado e presidente da Assembleia Municipal de (...) tinha uma relação de interesse e participação informal em negócios do promotor e empresário (…) (do Grupo …), obtendo daí vantagens patrimoniais ocultadas através de sociedade registada a favor de (…); (...) prestou serviços como advogado à sociedade (…), do empresário (...), e também beneficiário de decisões da autarquia.

Os ficheiros cuja apreensão se determinará servem precisamente para comprovar/corroborar indiciariamente os crimes em investigação reunindo-se, assim, os indícios para a dedução de uma acusação, descrevendo com substância a relação existente entre o arguido e as sociedades mencionadas.

Contudo, foram ainda recolhidas imagens e vídeos de carácter íntimo, privado e exibicionista do visado e de terceiros com quem interage sem qualquer interesse para a investigação cuja destruição ordenarei.

São estes os pressupostos da análise.

Do relatório “Perícia Equipamento 1 – Equipamento 1”, num total de 2900 ficheiros, afigura-se-nos que as mensagens nele elencadas têm utilidade para estes autos e são apreendidas.

Porém, determino a destruição dos ficheiros em formato pdf. com os n.º 156, 219, 220, 287, 300, 301, 302, 393, 395, 441, 580, 582, 583, 585, 617, 3431, 3432 a 3436, 3447, 3456, 3461, 3462, 3469, 3479, 3885, 3586, 3593, 3596, 3601, 3603, 3658, 3678, 3724, 4117, 4171, 4178, 4179, 4365, 4556, 4563, 4578, 4579, 4979, 6035 e de todos os documentos em formato *.docx, por conterem dados pessoais e/ou sem relevo para os autos.

Do relatório “Perícia Equipamento 3 – Equipamento 3”, num total de 2974 ficheiros, afigura-se-nos que as mensagens nele elencadas têm utilidade para estes autos e são apreendidas.

Porém, determino a destruição dos ficheiros em formato pdf. com os n.º 10, 11 , 12, 68, 69, 199, 200, 223, 228, 230, 317, 380, 381, 704 a 716, e de todos os documentos em formato *.docx, e *.xls por conterem dados pessoais e/ou sem relevo para os autos.

Do relatório relativo ao Eq. 1, num total de 576 conversações e de 348 emails, todos abertos, não se afigura que tais mensagens tenham utilidade para estes autos.

Do relatório relativo ao Eq. 2, num total de 526 conversações e de 1057 mensagens instantâneas (iMessage), todas abertas, apenas determino a apreensão das seguintes mensagens:

(…)

Ao abrigo dos Artigos 17.º da Lei do Cibercrime e 179.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (devidamente adaptado), determino a apreensão dos ficheiros constantes dos suportes de fls. 2292 e 2315, nos termos supra determinados, em apenso a criar para o efeito para cada um dos equipamentos, devendo os ficheiros a suprimir ser efectivamente eliminados/ocultados por recorte.

Ordeno a eliminação das imagens, vídeos e áudios extraídos devido ao carácter intimo, privado e exibicionista sem relevo para a investigação, do cd de fls. 2315 e a respectiva regravação.

Cometo o encargo de cumprimento ao órgão de polícia criminal, após o trânsito em julgado deste despacho.


*

Nada a determinar por ora relativamente aos demais dados apreendidos na sequência de buscas não residenciais, sem prejuízo do oportuno conhecimento para efeitos do art.º 16.º, n.º3, da Lei do Cibercrime.

Notifique.


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1- Iphone Xs com o IMEI (…) Saco de Prova Serie B n.º 071630 - Residência de (…), sita na Rua (...) (fls. 1609)

2 - Suportes de armazenamento autónomo HDD 3,5 Saco de Prova Série B n.º 071640 - Residência de (…) (fls. 1787):

3 - Suportes de armazenamento autónomo HDD 3,5 saco de prova Série B n.º 055936 - Residência de (…) (fls. 1851):

Para além de não dispor de equipamento adequado, com uma previsibilidade segura os suportes supramencionados contêm um volume de informação que tornaria a diligência de análise de conteúdo bastante morosa, à semelhança de muitas diligências atinentes a pesquisas informáticas que terminam sempre com o recurso a Unidade de Telecomunicações e Informática da Polícia Judiciária que dispõe de equipamento capaz de selecionar dos dados sem violação de privacidade.

Pelas razões expostas, determino que a UTI da PJ proceda à pesquisa com a garantia de confidencialidade nos dados constantes dos sacos de prova supra identificados, de acordo com as seguintes palavras chave que se de seguida indico sem prejuízo de indicação complementar pelo Ministério Público:

Saco de Prova Serie B n.º 071630 (…)

conta, banco, transferência,

Saco de Prova Série B n.º 071640

conta, banco, transferência, espectáculo, artista, música, animação, banda, segurança, palcos, montagem de palcos, WEE, (…).

Saco de Prova Série B n.º 055936

conta, banco, transferência, (…) Prazo: 30 dias prorrogáveis.

Lavre termo de vista ao Ministério Público, para indicação complementar de palavras chaves.


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O saco de prova da Polícia Judiciária fechado e identificado como Série A 098916, com uma pen, bem como um envelope selado identificado com o n.º 000051015, foi entregue em 25-03-2020, na 1ª Secção - Évora - Crime Económico-Financeiro e Crime Violento - Departamento de Investigação e Ação Penal Regional de Évora, ao Sr.º Segurança (…) Castela da Diretoria do Sul da Policia Judiciária, cfr. Ref.ª Citius 29405316 e fls. 1923.

***

II. Requerimento de 14-12-2020:

Defiro.”


*

E, em 24 de fevereiro de 2021, foi proferido o seguinte despacho (transcrição):

“Fls. 2381 e seguintes: considerando no pedido de declaração de irregularidade do despacho proferido pelo Ministério Público em 09.02.2021, nos termos dos arts. 268.º e 269.º ambos do Cód. Processo Penal, e em conjugação com o art.º 17.º do mesmo diploma, não está em causa a reserva de jurisdição atribuída ao Juiz de Instrução na fase de inquérito, da qual é titular o Ministério Público, julgo este tribunal materialmente incompetente para apreciar a questão invocada pelo arguido (...).

Notifique e devolva os presentes autos ao DIAP.”


*

Não se conformando com tais decisões, o arguido (...) interpôs recurso extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:

A) O presente recurso tem por objeto as decisões judiciais contidas nos despachos proferidos pelo Tribunal a quo de 16.12.2020 e 24.02.2021, mais concretamente:

(iv) A decisão de destruição, sem possibilidade de contraditório pelo Arguido, de ficheiros contendo dados e documentos informáticos apreendidos no domicílio e escritório de advogados do Arguido Dr. (...) (contida no despacho de 16.12.2020);

(v) A decisão de declaração de incompetência do Mmo. JIC para o conhecimento das invalidades arguidas por referência à decisão do Ministério Público de recusa da consulta integral dos autos pelo Arguido, de mais a mais num processo submetido ao regime regra da publicidade, nos termos do disposto no artigo 86.º, n.º 1, do CPP (contida no despacho de 24.02.2021).

— DA DESTRUIÇÃO DE FICHEIROS INFORMÁTICOS APREENDIDOS NO DECORRER DAS BUSCAS SEM PRÉVIO CONHECIMENTO DO SEU TEOR POR PARTE DO RECORRENTE

B) No despacho proferido em 16.12.2020, determinou o Tribunal a quo a destruição dos ficheiros contidos nos suportes informáticos de fls. 2292 e 2315, apreendidos no decorrer das buscas realizadas no domicílio e escritório de advogados do Arguido Dr. (...), sem que os arguidos, incluindo o Recorrente, se pudessem pronunciar quanto ao teor dos mesmos, assim lhes vedando, também, e além do mais, a possibilidade de recorrer dessa mesma ordem de destruição.

C) Assim, violou o Tribunal a quo o princípio da publicidade do processo penal, ínsito no aludido artigo 86.º do CPP, bem como as garantias de defesa do arguido, consagradas no artigo 20.º, 32.º, n.os 1, 2 e 5 da Constituição, no artigo 6.º, n.º 1 e 3, alínea b), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (“CEDH”) e no artigo 11.º, n.º 1, da Declaração Universal dos Direitos Humanos (“DUDH”), padecendo o despacho recorrido de patente ilegalidade.

D) Não existe no CPP qualquer preceito de onde resulte possível a emissão de uma ordem de destruição de determinados suportes informáticos apreendidos no decurso de pesquisas informáticas sem que seja dada possibilidade de contraditório ao arguido, prévio à efetiva destruição dos ficheiros, por forma a que possa este, querendo, sindicar tal decisão.

E) Essa possibilidade apenas se encontra consagrada no Código a propósito do regime das escutas telefónicas (cfr. artigo 188.º, n.º 6), não podendo o mesmo ser aplicado analogicamente aos restantes meios de obtenção de prova.

F) Com efeito, tal aplicação analógica é proibida, porque em desfavor do Arguido, representando um enfraquecimento da sua posição, traduzida na diminuição das suas garantias de defesa, em virtude de não poder tomar conhecimento de elementos de prova potencialmente relevantes para a sua defesa.

G) Inexistindo base legal que legitime a destruição de ficheiros informáticos apreendidos sem que ao arguido seja dada possibilidade de conhecer o teor dos mesmos e exercer o seu direito ao contraditório relativamente a tal decisão – maxime, o seu direito ao recurso –, o aludido despacho padece de ilegalidade, devendo, por isso, ser revogado e substituído por douto Acórdão no qual se determine a apreensão/destruição dos documentos em causa, contidos nos suportes informáticos de fls. 2292 e 2315, apenas após efetiva notificação dos arguidos para, querendo, dentro dos prazos legais, procederem à sua consulta, sob pena, designadamente, de eliminação definitiva, e sem hipótese de contraditório, de meios de prova potencialmente relevantes e necessários para a prova da defesa do Arguido, com a inerente, grave e irreversível lesão dos seus direitos de defesa.

H) Por outro lado, o fundamento que motivou, em grande medida, a decisão do Tribunal a quo de destruição dos suportes informáticos apreendidos foi a ausência de relevo da informação em causa para a investigação, rectius, acusação.

I) Ora, a ausência de relevo de determinadas provas para a investigação não pressupõe a ausência de relevo para a defesa do arguido, na medida em que desses elementos pode resultar informação que fortaleça a sua posição processual e/ou informação que, ainda que numa fase preliminar da investigação pareça ser estranha ao processo, seja de elevada pertinência para a clarificação dos factos objeto de investigação ou para a descoberta de novos elementos que o arguido considere relevantes.

J) A decisão Tribunal a quo consubstancia, além do mais, um gritante desequilíbrio nos meios de prova de que dispõe o Ministério Público para fundamentar a acusação e aqueles que o Recorrente poderá utilizar para contrariar os argumentos e os meios de prova da acusação, na medida em que aquele poderá selecionar de entre os meios de prova recolhidos aqueles que considere relevantes, mas o Recorrente já não.

K) Aliás, a decisão do Tribunal a quo, ao impedir que o Recorrente se pronuncie quanto à concreta destruição de elementos potencialmente relevantes para a sua defesa, é tanto mais injusta quanto se considere que, fosse o Ministério Público a pretender reagir, poderia fazê-lo sem qualquer entrave, por conhecedor do conteúdo dos elementos em causa.

L) Os artigos 2.º e 32.º, n.os 1, 2 e 5 da Constituição, 6.º, n.º 1 e n.º 3, alínea b), da CEDH e 11.º, n.º 1, da DUDH consagram o dever de o Tribunal conceder ao arguido a oportunidade de conhecer todos os elementos de prova recolhidos no processo, incluindo aqueles que considere não terem interesse para a investigação, de forma a que este aprecie a sua relevância e prepare a sua defesa, requerendo, designadamente, a manutenção de certos elementos no processo.

M) Sendo inconstitucional a interpretação dos artigos 178.º e 179.º, n.º 3 do CPP, segundo a qual é admissível a destruição de elementos de prova obtidos mediante pesquisas informáticas autorizada pelo Mmo. JIC com fundamento na irrelevância dos mesmos, sem que o Arguido deles tenha conhecimento e sem que se possa pronunciar sobre a sua relevância, por violação dos artigos 2.º e 32.º, n.os 1, 2 e 5 da Constituição, 6.º, n.º 1 e n.º 3, alínea b), da CEDH e 11.º, n.º 1, da DUDH.

N) Também por este motivo, deve o despacho proferido pelo Tribunal a quo em 16.12.2020 ser revogado e substituído por douto Acórdão no qual se determine a apreensão/destruição dos documentos em causa, contidos nos suportes informáticos de fls. 2292 e 2315, apenas após efetiva notificação dos arguidos para, querendo, e dentro dos prazos legais, procederem à sua consulta, sob pena, designadamente, de eliminação definitiva, e sem hipótese de contraditório, de meios de prova potencialmente relevantes e necessários para a prova da defesa do Arguido, com a inerente, grave e irreversível lesão dos seus direitos de defesa.

O) Por fim, mesmo quanto à decisão de destruição de suportes informáticos com base na suscetibilidade de revelação de dados pessoais ou íntimos, nos termos do disposto no artigo 16.º, n.º 3, da Lei do Cibercrime, cumpre referir que a lei processual penal não veda ao arguido a possibilidade de tomar conhecimento do teor desses elementos.

P) Aliás, não só não existe qualquer previsão legal nesse sentido, como o disposto no artigo 86.º, n.º 7, do CPP, sobre a exclusão de publicidade dos dados relativos à reserva da vida privada que não constituam meios de prova refere-se apenas à publicidade externa do processo, não obstando ao conhecimento desses dados pelos sujeitos processuais, nos termos do disposto no artigo 89.º, n.º 1, do CPP.

Q) Resulta do disposto nos artigos 86.º, n.º 7 e 89.º, n.º 1 do CPP que o arguido, na qualidade de sujeito processual, pode consultar todos os elementos constantes do processo, ainda que respeitem à reserva da vida privada, não se lhe aplicando a exclusão de publicidade prevista no artigo 86.º, n.º 7, do CPP.

R) Com efeito, nunca poderia deixar de assim ser, atendendo desde logo à posição central do arguido no processo penal, que justifica que lhe sejam concedidas todas as garantias de defesa legalmente admissíveis (cfr. artigo 32.º, n.º 1, da Constituição).

S) Sendo inconstitucional a interpretação dos artigos 86.º, n.º 7, 89.º, n.º 1, 179.º, n.º 3 do CPP, e 16.º, n.º 3, da Lei do Cibercrime, segundo a qual é admissível a destruição de elementos de prova obtidos mediante pesquisas informáticas autorizada pelo Mmo. JIC com fundamento na suscetibilidade de revelação de dados pessoais, sem que o Arguido deles tenha conhecimento e sem que se possa pronunciar sobre a sua relevância, por violação dos artigos 2.º, 32.º, n.os 1, 2 e 5 da Constituição, 6.º, n.º 1 e n.º 3, alínea b), da CEDH e 11.º, n.º 1, da DUDH.

T) Termos em que, também com este fundamento, deve o despacho proferido pelo Tribunal a quo em 16.12.2020 ser revogado e substituído por douto Acórdão no qual se determine a apreensão/destruição dos documentos em causa, contidos nos suportes informáticos de fls. 2292 e 2315, apenas após efetiva notificação dos arguidos para, querendo, dentro dos prazos legais, procederem à sua consulta, sob pena, designadamente, de eliminação definitiva, e sem hipótese de contraditório, de meios de prova potencialmente relevantes e necessários para a prova da defesa do Arguido, com a inerente, grave e irreversível lesão dos seus direitos de defesa.

— DA INVOCADA INCOMPETÊNCIA DO JUIZ DE INSTRUÇÃO PARA O CONHECIMENTO DE INVALIDADES ARGUIDAS POR REFERÊNCIA AO DESPACHO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DE 09.02.2021

U) O Recorrente arguiu, no dia 16.02.2021, em requerimento dirigido ao Tribunal a quo, a irregularidade do despacho proferido pelo Ministério Público em 09.02.2021, com fundamento na violação dos direitos do Recorrente à consulta do processo e ao recurso de decisões que lhe sejam desfavoráveis, nos termos do disposto nos artigos 61.º, n.º 1, alínea j), 89.º, n.º 1, 118.º, n.º 2 e 123.º, n.º 1, do CPP, e 32.º, n.º 1, da Constituição.

V) Contudo, no despacho judicial datado de 24.02.2021, o Tribunal a quo pronunciou-se no sentido de não ser o juiz de instrução criminal a autoridade judiciária competente para o conhecimento de invalidades arguidas sobre atos praticados pelo Ministério Público durante a fase de inquérito, não conhecendo da invalidade arguida pelo ora Recorrente em requerimento datado de 16.02.2021, por invocada falta de jurisdição para o efeito.

W) Sucede, porém, que o Código de Processo Penal e a Constituição vedam tal entendimento, por frontalmente adverso aos princípios da reserva de juiz, da tutela judicial efetiva e da proteção dos direitos fundamentais dos particulares em caso de ingerência estadual ilegítima.

X) O conhecimento de invalidades dos atos praticados durante o inquérito – inclusivamente de atos do Ministério Público – é inquestionavelmente matéria de jurisdição.

Y) Tal resulta, com clareza, do disposto nos artigos 17.º, 122.º, n.º 3, e 268.º, n.º 1, alínea f), do CPP, bem como do artigo 119.º, n.º 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto).

Z) Efetivamente, «[m]uitos são os actos da competência do juiz de instrução no decurso do inquérito que não são nem actos de inquérito, nem sequer actos do inquérito em sentido lógico. É que lhe competem todos os actos que traduzam o exercício das funções jurisdicionais relativas ao inquérito (art.º 17.º CPP e 59.º da LOTJ). Assim, todas as questões que impliquem uma decisão jurisdicional relativa ao inquérito, hão-de ser decididas por acto do juiz de instrução» .

AA) Tais atos – que se multiplicam por todo o Código (recordem-se, sem pretensões de exaustividade, os artigos 68.º, n.º 3, 86.º, n.os 2 e ss. ou 89.º, n.º 2) – não são atribuídos ao Ministério Público, na medida em que constituem actos substancialmente jurisdicionais.

BB) Fazê-lo traduziria necessariamente uma violação da reserva da jurisdição aos Tribunais (artigo 202.º da Constituição), princípio fundamental e esteio do Estado de Direito, e uma violação da estrutura acusatória do processo (artigo 32.º, n.º 5, da Constituição), que proíbe a concentração, na mesma entidade, dos poderes de promover e decidir no processo, tanto importando para o efeito se essa mesma entidade é o Ministério Público ou o Tribunal.

CC) Conhecer de invalidades processuais durante o inquérito constitui matéria de jurisdição, sendo qualquer interpretação contrária dos artigos 17.º, 118.º a 123.º e 267.º a 269.º e seguintes, do CPP, segundo a qual o JIC, durante o inquérito, não tem competência para conhecer das invalidades processuais dos atos praticados pelo Ministério Público é inconstitucional, por violação do princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º da Constituição) e dos artigos 32.º, n.º 1, e 20.º da Constituição.

DD) O Tribunal a quo tinha, pois, jurisdição e competência para decidir sobre a invalidade oportunamente arguida pelo Recorrente.

EE) Mais: no caso concreto, não estão em causa quaisquer atos jurisdicionais, mas atos que se prendem diretamente com direitos fundamentais. O que está em causa, é, pois, a «intervenção do juiz das liberdades, enquanto entidade responsável pela resolução dos conflitos entre os interesses da investigação e os direitos individuais por ela afectados» (JOÃO CONDE CORREIA). Porque, nas palavras de FIGUEIREDO DIAS, inscrevem-se na competência do juiz, durante o inquérito, «os actos processuais singulares que, na sua pura objectividade externa, se traduzem em ataques a direitos, liberdades e garantias das pessoas constitucionalmente protegidos».

FF) Efetivamente, estava em causa na situação dos autos a violação, pelo Ministério Público, dos direitos do Recorrente à consulta do processo e ao recurso de decisões que lhe sejam desfavoráveis.

GG) Está em causa, portanto, a coerção do direito fundamental do arguido a exercer todas as garantias de defesa, incluindo o recurso, plasmado nos artigos 32.º, n.os 1 e 2, da Constituição, bem como o direito fundamental do arguido ao contraditório quanto aos atos instrutórios praticados, consagrado no artigo 32.º, n.º 4, da Constituição.

HH) A interpretação dos artigos 17.º, 118.º a 123.º e 267.ºa 269.º e seguintes, do CPP, segundo a qual o JIC, durante o inquérito, não tem competência para conhecer das invalidades processuais relativas a despacho proferido pelo Ministério Público na fase de inquérito, quando as mesmas colidam com direitos fundamentais é inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, 2, 4 e 5, da Constituição e do princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º da Constituição).

II) No presente caso, o Tribunal a quo tinha, pois, jurisdição e competência para decidir sobre as invalidades arguidas.

JJ) Deverá, por conseguinte, a decisão recorrida, contida no despacho de 24.02.2021, ser revogada e substituída por douto acórdão que determine a plena competência do Juiz de Instrução Criminal para o conhecimento das invalidades arguidas por referência ao despacho do Ministério Público de 09.02.2021, com as devidas e legais consequências.

NESTES TERMOS, E NOS MELHORES DE DIREITO QUE V. EX.AS DOUTAMENTE SUPRIRÃO, DEVERÁ O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE, POR PROVADO, E, EM CONSEQUÊNCIA, SEREM REVOGADAS AS DECISÕES RECORRIDAS, CONTIDAS NOS ALUDIDOS DESPACHOS DE 16.12.2020 E 24.02.2021, E AS MESMAS SUBSTITUÍDAS POR DOUTO ACÓRDÃO QUE:

(i) DETERMINE A INCORPORAÇÃO/DESTRUIÇÃO NOS AUTOS DOS FICHEIROS CONSTANTES DOS SUPORTES DE FLS. 2292 E 2315 SOMENTE APÓS NOTIFICAÇÃO DOS ARGUIDOS PARA, QUERENDO, E NOS PRAZOS LEGAIS, PROCEDEREM À RESPETIVA CONSULTA, NOS TERMOS EXPOSTOS, COM AS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS;

SEM PREJUÍZO,

(ii) DETERMINE A COMPETÊNCIA DO JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL PARA O CONHECIMENTO DAS INVALIDADES ARGUIDAS SOBRE O DESPACHO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DE 09.02.2021, NOS TERMOS EXPOSTOS E COM AS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS;

SÓ ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA!


*

O recurso foi admitido e fixado o respetivo regime de subida e efeito.

*

O Ministério Público respondeu ao recurso interposto, pugnando pela respetiva improcedência e formulando as seguintes conclusões:

1. Entende o Recorrente (…) que no despacho proferido em 16.12.2020, que determinou destruição dos ficheiros apreendidos ao arguido (...), sem que os outros arguidos, incluindo o Recorrente, se pudessem pronunciar quanto ao teor dos mesmos, foi vedado além do mais, a possibilidade de recorrer dessa mesma ordem de destruição.

2. Cremos não ser verdade o alegado, tanto mais que o presente recurso o desmente. A defesa tanto podia recorrer, como o fez efectivamente, no âmbito do requerimento que ora se aprecia.

3. Quando invoca que não existe nenhuma norma no Código de Processo Penal que permita ao Juiz de Instrução Criminal a destruição sem contraditório por forma sindicar a decisão, não assiste razão ao recorrente. Por um lado, porque tal norma vem prevista no Código de Processo Penal por remissão da Lei 109/2009 de 15 de Setembro (doravante Lei do Cibercrime). Por outro lado, a decisão é sempre passível de defesa, por meio do recurso, como ora se comprova.

4. No âmbito da busca, determinada e presidida por magistrado judicial, foi apreendida documentação/ficheiros informáticos relacionados com a prática dos factos estando sempre presente o visado arguido, advogado, cumprindo-se todas as formalidades legais e cuja legalidade o próprio, o seu advogado ou representante da Ordem nunca puseram em causa.

5. Após, não tendo sido invocado o sigilo profissional por parte do arguido/advogado, foram efectuadas pesquisas aos equipamentos do visado arguido e, através do despacho de que se recorre, foi decidida a apreensão de parte daqueles ficheiros (artigo 17º da Lei do Cibercrime) com o fundamento de que os mesmos “servem precisamente para comprovar/corroborar indiciariamente os crimes em investigação (…)”.

6. Resulta da conjugação dos artigos 179º nº 3 do Código de Processo Penal ex vi artigo 17º da LCC (parte final) que o juiz se a (referindo-se à correspondência) considerar relevante para a prova, fá-la juntar ao processo; caso contrário, restitui-a a quem de direito, não podendo ela ser utilizada como meio de prova, e fica ligado por dever de segredo relativamente àquilo de que tiver tomado conhecimento e não tiver interesse para a prova.

7. Determinou, então, o Mmo Juiz de Instrução Criminal, naquele mesmo despacho, a destruição de ficheiros daquele outro arguido (...), advogado, por terem carácter íntimo ou privado ou por não terem qualquer relevo para os autos e, ao invés do que se alega no recurso, tal decisão não é ilegal porque:

8. Em parte, foi determinada a destruição de ficheiros por terem carácter íntimo e privado, tendo sido efectuada a ponderação pelo Mmo Juiz de Instrução Criminal que entendeu não terem qualquer relevância probatória, pelo que, o destino teria, necessariamente, que passar pela sua destruição – artigo 16º nº 3, da LCC.

9. O arguido não tem nem deve ter acesso a tais conteúdos, por não lhe dizerem respeito, ainda que, segundo alega, seja figura central do processo com todos os direitos e garantias que o estatuto de arguido lhe confere.

10. Os direitos e garantias de que goza o ora Recorrente, são exactamente os mesmos de que goza o arguido (...) que veria a sua intimidade devassada para satisfação de um exercício de defesa do arguido (...) que, na sua perspectiva, não tem quaisquer limites legais. Nem mesmo o direito à reserva da vida privada dos demais!

11. Ora, se tais ficheiros não são prova, não tem de haver contraditório.

12. No que respeita aos demais ficheiros, determinou o Mmo Juiz de Instrução Criminal que, por não terem qualquer relevo probatório nos autos, não terem relevância e serem ficheiros alheios ou estranhos ao processo, fossem destruídos os demais ficheiros.

13. E fê-lo porque durante o inquérito, o juiz de instrução deve ser apenas juiz de liberdades e garantias: juiz de controlo.

14. E sem nunca se esquecer estarmos perante a apreensão de ficheiros, como é referido, em escritório de advogado, pelo que, poderia estar em causa a violação do segredo profissional o acesso de terceiros a tais ficheiros, com deseja o Recorrente.

15. Daí que a apreensão de qualquer ficheiro, deverá estar sempre subsumida ao controlo judicial que pondera e verifica previamente da necessidade para a prova que é o mesmo que dizer ter grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova – artigo 17º da LCC.

16. O ora Recorrente é um terceiro que tem interesse em ficheiros que não lhe foram apreendidos a si e cuja consulta que se possa vir a autorizar (após despacho judicial que considerou tais ficheiros como íntimos ou alheios ao processo) pode consubstanciar, cremos, uma intromissão ilegítima na correspondência de um outro arguido, o que se quer evitar.

17. Os dados informáticos a que se aplica o referido artigo 17.º são dados armazenados que poderiam ter sido interceptados, em tempo real, através dos meios de obtenção de prova previstos nos artigos 187.º e 188.º do CPP ou no artigo 18.º da LCC.

18. Assim, quanto ao regime da destruição/devolução, sendo o artigo 17.º omisso e não oferecendo o artigo 179.º do Código de Processo Penal resposta satisfatória, deve aplicar-se o regime apreensão de correio electrónico e registos de comunicações de natureza semelhante – artigo 188.º, n.º 6, ex vi do artigo 28.º da LCC.

19. E nos termos desta norma, deve o juiz determinar a destruição imediata dos suportes manifestamente estranhos ao processo. O que foi o caso.

20. Veja-se o mui actual Acórdão do Tribunal Constitucional -ACÓRDÃO Nº 147/2021 - de 19 de Março, quando refere:

Apesar de o regime-regra ser agora o da tendencial preservação da integralidade dos suportes das conversações e comunicações, responsabilizando-se os sujeitos processuais pelas valências probatórias que deles pretendam extrair, continua a prever-se um conjunto de casos em que o juiz deverá ordenar a destruição imediata e definitiva dos suportes dessas interceções efetuadas. Tal sucederá apenas, conforme se estabelece no n.º 6 do artigo 188.º do Código de Processo Penal, quando se esteja perante «suportes técnicos e relatórios manifestamente estranhos ao processo», situações tipificadas nas diversas alíneas desse número.

21. Em face do exposto, decidiu o Tribunal Constitucional:

22. a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 188.º, n.º 6, alínea a), do Código de Processo Penal, na redação dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, no sentido de que o juiz de instrução criminal determina a destruição imediata dos suportes técnicos e relatórios manifestamente estranhos ao processo, que digam respeito a conversações em que não intervenham pessoas referidas no n.º 4 do artigo 187.º do mesmo diploma, sem que antes o arguido deles tenha conhecimento e possa pronunciar-se sobre a sua relevância.

23. Ora, adaptando-se ao caso concreto dos autos, equivale a dizer, na nossa opinião, que devem ser destruídos de imediato todos os ficheiros que são considerados pelo Juiz de Instrução respeitantes ao foro íntimo do visado ou mesmo aqueles que são alheios à matéria em investigação e cujo detentor se trata de advogado – artigo 17º da LCC e 188º nº 6 do Código de Processo Penal, ex vi artigo 28º da LCC.

24. A apreensão de correio electrónico constitui uma forma intrusiva de obtenção de prova, lesiva do sigilo das comunicações.

25. Sendo considerados elementos de prova apenas aqueles ficheiros apreendidos ao arguido e advogado (...) cuja apreensão foi determinada pelo Juiz e que constam transcritos nos autos, são esses elementos que devem ser sujeitos ao contraditório.

26. A consulta do correio electrónico por outro arguido, como é o caso do Recorrente, poderia consubstanciar ingerência nas comunicações do primeiro e provável conhecimento de matérias alheias ao processo, com possibilidade de se encontrarem sujeitas, no caso dos autos, a segredo profissional de terceiros.

27. Por tudo o que ficou exposto, e por se concordar integralmente com a decisão, consideramos que aquela não nos merece qualquer reparo, pelo que, deverá manter-se na íntegra.

28. Insurgiu-se ainda o arguido (...), previamente ao presente recurso, contra o despacho do Ministério Público que lhe indeferiu a consulta de ficheiros de um outro arguido, (...), (os que tinham sido mandados destruir no despacho judicial), alegando querer ter conhecimento de todos os ficheiros informáticos relativos ao arguido (...) cuja destruição havia sido determinada por despacho judicial.

29. No mais, foi autorizada a consulta dos autos.

30. Contudo, o arguido invocou a irregularidade do despacho do Ministério Público por requerimento dirigido ao Juiz de Instrução Criminal que, por meio do despacho recorrido, julgou o tribunal materialmente incompetente por não estar em causa a reserva de jurisdição atribuída ao Juiz de Instrução na fase de inquérito, da qual é titular o Ministério Público.

31. Apreciado o requerimento pelo Ministério Público, entendeu-se não se verificar qualquer irregularidade na decisão e fundamentou-se a decisão com o facto de que o arguido, àquela data, não tinha recorrido da decisão judicial que havia determinado a destruição dos ficheiros que queria consultar, pelo que, se o Ministério Público permitisse tal consulta, por um lado, violaria o despacho judicial que determinou a destruição de tais ficheiros, com o qual concordou, esvaziando o conteúdo da decisão judicial proferida e por outro lado, poria em causa, cremos, os princípios da certeza e segurança jurídicas que tem o dever de proteger.

32. Notificado de tal despacho, o arguido aceitou a competência do Ministério Público para a decisão e requereu a intervenção hierárquica para alteração da decisão do magistrado do Ministério Público, contudo esta pretensão veio a ser rejeitada pelo superior hierárquico do magistrado titular, que decidiu manter a decisão já proferida.

33. Recorreu, então, o arguido, do despacho do Juiz de Instrução Criminal que não conheceu da invalidade e se declarou materialmente incompetente.

34. Também neste segmento, andou bem o Mmo Juiz de Instrução Criminal ao não apreciar questões cujo conhecimento lhe está vedado na fase de Inquérito, porquanto não se trata de matéria de reserva jurisdicional, ou seja, aquela que vem mencionada nos artigos 268º e 269º do Código de Processo Penal, como sendo da sua competência exclusiva.

35. Neste sentido e a propósito, veja-se o Acórdão da Relação de Lisboa de 27/06/2019 com o seguinte sumário:

1 -O Ministério Público goza de autonomia que lhe é conferida pelo disposto no artigo 219.°, n.° 2 da Constituição da República Portuguesa. Daqui resulta que, em sede de inquérito, salvo tratando-se de actos em que haja reserva de juiz — e sê-lo-ão os previstos no artigo 268.° e seguintes do Código de Processo Penal -, a competência para conhecer de nulidades ou invalidades é da competência de quem dirige essa fase processual.

2 - Em sede de inquérito o Senhor Juiz de Instrução Criminal proferiu decisão, julgando verificada a irregularidade do acto de constituição como arguido pelo que a mesma ficava sem efeito, assim como o TIR prestado. Tratando-se de acto praticado em fase de inquérito, cabia ao Ministério Público, que o dirige — vd. artigos 53.°, n.° 2, alínea b) e 263.°, n.° 1, ambos do Código de Processo Penal -, pronunciar-se sobre as invocadas invalidades/nulidades.

3 - O Senhor Juiz de Instrução Criminal proferiu, decisão sobre matéria que lhe estava subtraída, violando o disposto nos artigos 219.2, n.° 1 da Constituição da República Portuguesa, 17.º, 53.º, nº 2, al. b), e 269 n° 1 al. f) do Código de Processo Penal. Daqui decorre que o acto, não sendo inexistente — um acto proferido com violação de regras de competência não é, por isso, inexistente — é nulo, nos termos em que o dispõe o artigo 11.º, alínea e) do Código de Processo Penal, nulidade essa que é insanável.

4 - Por não traduzir afectação de um direito fundamental, o termo de identidade e residência é a única medida de coacção que pode ser aplicada por autoridade judiciária ou o órgão de polícia criminal sem intervenção judicial.

36. Assim, salvo o devido respeito, entendemos que era ao Ministério Público a quem cabia apreciar invocada irregularidade enquanto entidade a quem a lei confere a direcção da fase de inquérito, como aconteceu.

37. E o arguido até aceitou essa competência ao reclamar para o superior hierárquico.

38. Contudo, tendo-lhe sido desfavorável a decisão daquele magistrado do Ministério Público, decidiu retroceder e recorrer da decisão do juiz que se declarou incompetente.

39. Com os fundamentos expostos, entendemos que também esta decisão judicial não nos merece qualquer reparo, devendo manter-se na íntegra.

40. Por tudo o que ficou exposto, e por se concordar integralmente com ambas as decisões recorridas, consideramos que as mesmas não nos merecem qualquer reparo, pelo que, deverão manter-se na íntegra!

Termos em que deverá ser julgado totalmente improcedente o recurso, mantendo-se nos seus precisos termos os despachos recorridos.


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No Tribunal da Relação, o Exmº Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso.

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Cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do C.P.P., o recorrente respondeu, reiterando, em síntese, o já alegado nas motivações de recurso.

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Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

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Fundamentação

Delimitação do objeto do recurso

Nos termos do disposto no art.412º, nº1, do C.P.P., e conforme jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal de Justiça, o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes das motivações apresentadas, só sendo lícito ao Tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no art.410º, nº2, do C.P.P., mesmo que o recurso se encontre limitado a matéria de direito – cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, págs.74; Ac.STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, págs.96, e Ac. do STJ para fixação de jurisprudência de 19.10.1995, publicado no DR I-A Série de 28.12.1995.

São, pois, as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respetiva motivação que o Tribunal ad quem tem de apreciar.

No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recurso impõe-se decidir se deve ser determinada “ (...) A INCORPORAÇÃO/DESTRUIÇÃO NOS AUTOS DOS FICHEIROS CONSTANTES DOS SUPORTES DE FLS. 2292 E 2315 SOMENTE APÓS NOTIFICAÇÃO DOS ARGUIDOS PARA, QUERENDO, E NOS PRAZOS LEGAIS, PROCEDEREM À RESPETIVA CONSULTA, NOS TERMOS EXPOSTOS, COM AS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS”, bem como “ (…) A COMPETÊNCIA DO JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL PARA O CONHECIMENTO DAS INVALIDADES ARGUIDAS SOBRE O DESPACHO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DE 09.02.2021”.


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Apreciando

Alega o recorrente na parte do recurso que interpõe relativamente ao despacho proferido em-16-12-2020, em síntese, que com tal decisão foi violado o princípio do contraditório, pugnando pela revogação da decisão e substituição por decisão em que se “ (…) determine a apreensão/destruição dos documentos em causa, contidos nos suportes informáticos de fls. 2292 e 2315, apenas após efetiva notificação dos arguidos para, querendo, dentro dos prazos legais, procederem à sua consulta, sob pena, designadamente, de eliminação definitiva, e sem hipótese de contraditório, de meios de prova potencialmente relevantes e necessários para a prova da defesa do Arguido, com a inerente, grave e irreversível lesão dos seus direitos de defesa.”

A questão prende-se, em última análise, com as próprias finalidades do processo penal que se materializam com a realização da Justiça e a descoberta da verdade material.

As considerações inerentes à especificidade do estatuto do arguido estão presentes em vasta jurisprudência do Tribunal Constitucional no que concerne ao conjunto de direitos que a este assiste, entre os quais avulta o de exercício do contraditório.

Inquestionável na sua dignidade constitucional - artigo 20º da Constituição da República - o principio do contraditório está diretamente relacionado com o princípio da audiência, a oportunidade que é conferida a todo o participante no processo de influir, através da sua audição pelo tribunal, no decurso do processo.

O arguido, como qualquer outro sujeito processual, é um sujeito ativo, é um sujeito participativo em todo o processo. Por conseguinte, deve ser ouvido porque através das suas declarações ele contribui para a decisão do caso concreto.

Mas, no que concerne ao âmbito da incidência do princípio o mesmo terá uma maior ou menor amplitude de acordo com a própria fase processual em que se insere, isto é, a dimensão do princípio terá uma dimensão variável de acordo com a necessidade concreta de salvaguarda do direito de audição do interveniente processual.

Decidiu-se no Tribunal Constitucional, em Plenário, através do Acórdão n.º 70/2008, de 31 de Janeiro (disponível em www.dgsi.pt) «não julgar inconstitucional a norma do artigo 188.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, na redacção anterior à Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, quando interpretada no sentido de que o juiz de instrução pode destruir o material coligido através de escutas telefónicas, quando considerado não relevante, sem que antes o arguido dele tenha conhecimento e possa pronunciar-se sobre o eventual interesse para a sua defesa».

"[...]

.. é de considerar que não existe uma qualquer violação do princípio do contraditório, no âmbito do processo de inquérito, pelo facto de o juiz de instrução, no exercício do poder processual que lhe confere a citada norma do artigo 188.º, n.º 3, do CPP, vir a ordenar a eliminação dos conteúdos das comunicações interceptadas ou de uma parte deles sem prévia audição do arguido.

Face à própria natureza essencialmente investigatória do processo de inquérito - como há pouco se deixou explanado -, o arguido não tem de se pronunciar sobre a relevância dos registos das escutas telefónicas, como não tem de tomar posição sobre o modo e o lugar da intercepção ou o circunstancialismo temporal em que ela deve ocorrer, aspectos que naturalmente relevam de critérios de oportunidade que só ao Ministério Público, sob pena de frustrarem os objectivos da investigação, cabe definir. E o arguido não tem de se pronunciar sobre essa matéria como não tem de o fazer relativamente a qualquer outro resultado probatório que tenha sido obtido através de um outro meio de prova. As escutas telefónicas, nesse plano, distinguem-se de qualquer outro método de recolha de elementos de indiciação da prática de crime apenas pelo seu carácter restritivo, quer no que concerne ao âmbito de admissibilidade, quer ao respectivo formalismo procedimental, e que é justificado pela apontada circunstância de representar objectivamente uma forma de violação da intimidade da vida privada.

[...]

Em especial, a destruição de elementos recolhidos por irrelevância probatória não colide com o princípio do contraditório, que, tal como está constitucionalmente consagrado, apenas se torna aplicável nas fases subsequentes do processo penal, com excepção apenas de actos instrutórios que, praticados no âmbito do inquérito, possam pôr em causa directamente direitos do arguido, e cuja amplitude se circunscreve, como ficou dito, aos actos relativos à aplicação de medidas de coacção e às inquirições que devam ser feitas no inquérito para serem tomadas em conta no julgamento.

(…)

Já vimos que as garantias de defesa, reconhecidas no texto constitucional, não vão além, na parte que agora mais interessa considerar, da previsão de um processo criminal com estrutura acusatória em que apenas a audiência de julgamento e certos actos instrutórios especialmente previstos na lei é que estão subordinados ao princípio do contraditório.

O princípio acusatório e o reconhecimento do direito de contraditoriedade tem, pois - como já foi amplamente exposto -, um sentido inteiramente diverso, que é o de assegurar ao arguido a possibilidade de, nas fases ulteriores do processo, contrabater as razões e as provas que tenham sido contra ele coligidas e tomar também iniciativas instrutórias e de realização de prova que considerar pertinentes.

No entanto, como é bem de ver, esse direito de contraditório existe em relação às provas em que se funda a acusação, as mesmas que serão ponderadas pelo juiz de instrução, para efeito de emitir o despacho de pronúncia, e levadas a julgamento, para efeito a condenação do réu.

É só em relação a essas provas - e não a quaisquer outras que os investigadores tenham considerado irrelevantes ou tenham abandonado por considerarem (bem ou mal) imprestáveis para os fins de indiciação da prática de ilícito -, que o arguido poderá responder, alegando as razões que fragilizam os resultados probatórios ou indicando outras provas que possam pôr em dúvida ou infirmar esses resultados.

É o exercício desse direito, nas fases processuais subsequentes à investigação, que permite justamente equilibrar a posição jurídica da defesa em relação à acusação e dar cumprimento ao princípio da igualdade das armas. E é esse - e apenas esse - o sentido do princípio do acusatório que decorre do disposto no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição.

É essa também a essência do processo equitativo ou do due process of law, que justamente envolve como um dos seus aspectos fundamentais (para além da independência e imparcialidade do juiz e a lealdade do procedimento) a consideração do arguido como sujeito processual a quem devem ser asseguradas as possibilidades de contrariar a acusação.

Todavia, o arguido não tem o direito nem interesse processual a contraditar as provas produzidas no inquérito que foram consideradas irrelevantes (e que não servem de fundamento à acusação), como não tem direito nem interesse processual em conhecer todos os expedientes ou diligências de que os órgãos de polícia criminal se serviram, segundo as estratégias de investigação que consideraram em cada momento adequadas ao caso e que podem, entretanto, ter sido abandonadas.

[...]

Ou seja, tendo em conta o sentido jurídico-constitucional do princípio acusatório e a possibilidade de colisão entre o interesse processual em manter intactas as provas coligidas através de intercepção e gravação de comunicações e o correspondente risco de devassa da reserva de intimidade da vida privada, cabe na liberdade de conformação legislativa adoptar um critério mais ou menos restritivo no que se refere ao momento em que, no decurso do processo penal, deverá efectuar-se a destruição dos elementos de prova considerados irrelevantes.

o juiz de instrução pode destruir o material coligido através de escutas telefónicas, quando considerado não relevante, sem o prévio conhecimento do arguido ou sem que este possa sobre ele pronunciar-se.

E este princípio é aplicável por maioria de razão, quando as comunicações telefónicas interceptadas não dizem sequer respeito ao arguido ou qualquer intermediário ou interveniente processual, mas a pessoas inteiramente estranhas ao processo e cujas conversações (embora tenham sido objecto de gravação) não têm qualquer relevância para a investigação.

A aplicação da doutrina do acórdão n.º 70/2008 conduz-nos necessariamente à conclusão de que a norma do artigo 188.º, n.º 6, alínea a) do Código de Processo Penal, na redacção dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, não viola as garantias de defesa do arguido.

Acresce que, a destruição de suportes técnicos e relatórios manifestamente estranhos ao processo, ao abrigo do disposto no artigo 188.º, n.º 6, alínea a) do Código de Processo Penal, tem por base a protecção do direito ao sigilo das telecomunicações (n.º 4 do artigo 34.º da Constituição) e da reserva de intimidade da vida privada (n.º 1 do artigo 26.º da Constituição) de terceiros, em relação aos quais a lei de processo criminal não autoriza a intercepção e a gravação de conversações.

Assim, defender a destruição destes suportes técnicos e relatórios apenas depois do arguido deles ter conhecimento e de poder pronunciar-se sobre a sua relevância, comportaria uma desnecessária e inaceitável compressão daqueles direitos constitucionalmente consagrados.”

Ora, tais argumentos, que sufragamos na íntegra, transpostos para o plano das buscas, apreensões e pesquisas informáticas, que ora nos interessa, têm plena validade, acuidade e relevância, aplicando-se integralmente neste âmbito.

Com efeito, como bem refere o Ministério Público na resposta ao recurso “ 6. Resulta da conjugação dos artigos 179º nº 3 do Código de Processo Penal ex vi artigo 17º da LCC (parte final) que o juiz se a (referindo-se à correspondência) considerar relevante para a prova, fá-la juntar ao processo; caso contrário, restitui-a a quem de direito, não podendo ela ser utilizada como meio de prova, e fica ligado por dever de segredo relativamente àquilo de que tiver tomado conhecimento e não tiver interesse para a prova.

7. Determinou, então, o Mmo Juiz de Instrução Criminal, naquele mesmo despacho, a destruição de ficheiros daquele outro arguido (...), advogado, por terem carácter íntimo ou privado ou por não terem qualquer relevo para os autos e, ao invés do que se alega no recurso, tal decisão não é ilegal porque:

8. Em parte, foi determinada a destruição de ficheiros por terem carácter íntimo e privado, tendo sido efectuada a ponderação pelo Mmo Juiz de Instrução Criminal que entendeu não terem qualquer relevância probatória, pelo que, o destino teria, necessariamente, que passar pela sua destruição – artigo 16º nº 3, da LCC.

9. O arguido não tem nem deve ter acesso a tais conteúdos, por não lhe dizerem respeito, ainda que, segundo alega, seja figura central do processo com todos os direitos e garantias que o estatuto de arguido lhe confere.

10. Os direitos e garantias de que goza o ora Recorrente, são exactamente os mesmos de que goza o arguido (...) que veria a sua intimidade devassada para satisfação de um exercício de defesa do arguido (...) que, na sua perspectiva, não tem quaisquer limites legais. Nem mesmo o direito à reserva da vida privada dos demais!

11. Ora, se tais ficheiros não são prova, não tem de haver contraditório.

12. No que respeita aos demais ficheiros, determinou o Mmo Juiz de Instrução Criminal que, por não terem qualquer relevo probatório nos autos, não terem relevância e serem ficheiros alheios ou estranhos ao processo, fossem destruídos os demais ficheiros.

13. E fê-lo porque durante o inquérito, o juiz de instrução deve ser apenas juiz de liberdades e garantias: juiz de controlo.”

Termos em que não merece reparo a decisão proferida em 16-12-2020, que não viola qualquer preceito legal ou constitucional, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem ou da Declaração Universal dos Direitos Humanos, improcedendo o recurso neste particular.

O recurso interposto tem também por objeto o despacho proferido em 24-02-2021, a “ decisão de declaração de incompetência do Mmo. JIC para o conhecimento das invalidades arguidas por referência à decisão do Ministério Público de recusa da consulta integral dos autos pelo Arguido, de mais a mais num processo submetido ao regime regra da publicidade, nos termos do disposto no artigo 86.º, n.º 1, do CPP (contida no despacho de 24.02.2021).”

Vejamos

A discordância do recorrente recai em determinar qual a entidade competente para o conhecimento das invalidades arguidas por referência à decisão do Ministério Público de recusa da consulta integral dos autos pelo Arguido.

A questão que importa decidir é se o Mmo. Juiz (assumindo o papel de juiz de instrução) possuía competência funcional para proferir decisão sobre invalidades arguidas por referência a decisão do Ministério Público ou se tal competência cabia, em exclusivo, ao Ministério Público enquanto titular do inquérito e órgão jurisdicional que proferiu o despacho sobre o qual foi arguida irregularidade.

Vejamos

O artigo 202.º da CRP cuja epígrafe é "Função jurisdicional", consagra uma das modalidades de "separação dos órgãos de soberania estabelecidas na Constituição" mais significativas para caracterizarmos o Estado como um Estado de Direito. Segundo aquele, "os tribunais são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo", cabendo-lhes "assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados" (nºs 1 e 2 daquela disposição).

“A função jurisdicional consubstancia-se, assim, numa “composição de conflitos de interesses”, levada a cabo por um órgão independente e imparcial, de harmonia com a lei ou com critérios por ela definidos, tendo como fim específico a realização do direito ou da justiça (cfr. o Acórdão deste Tribunal n.º 182/90, publicado no Diário da República, II Série, de 11 de Setembro de 1990). Aquela função estadual diz respeito a matérias em relação às quais os tribunais têm de ter não apenas a última, mas logo a primeira palavra (cfr. os Acórdãos deste Tribunal nºs 98/88 e 211/90, o primeiro publicado no Diário da República, II Série, de 22 de Agosto de 1988, e o segundo nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 16.º Vol., p. 575 e segs.)” (cfr. Ac. do tribunal Constitucional de 19/1271995, acessível in www.dgsi.pt).

E no despacho sob recurso verificaram-se três momentos fundamentais de caracterização material da função jurisdicional: foi dirigido à resolução de uma questão jurídica pela via da extrinsecação e da declaração do direito que é; foi praticado segundo perspetiva estrita e exclusivamente jurídica; prosseguiu o interesse público da realização da justiça (cfr. Jorge Miranda, Funções, Órgãos e Atos do Estado, Lisboa, 1990, pág. 43).

Os atos cuja competência, na fase de inquérito, a lei defere em exclusividade ao juiz de instrução, são os previstos nos artºs. 268º nº 1 e 269º nº 1 do C.P.P, sendo certo que “o conhecimento das invalidades arguidas por referência à decisão do Ministério Público de recusa da consulta integral dos autos pelo Arguido” não se mostra abrangida por tais normativos, porquanto não se trata de matéria de reserva jurisdicional, ou seja, aquela que vem mencionada nos artigos 268º e 269º do Código de Processo Penal, como sendo da sua competência exclusiva.

Com efeito, gozando o Ministério Público da autonomia que lhe é conferida pelo disposto no artigo 219.°, n.° 2 da Constituição da República Portuguesa, a competência para, em sede de inquérito, com exceção de atos em que haja reserva de juiz, conhecer de nulidades ou invalidades é da competência de quem dirige essa fase processual.

Na verdade, competindo a direção do inquérito ao Ministério Público, não é curial que o juiz possa intrometer-se na atividade do mesmo, salvo se se tratar de atos necessários à salvaguarda de direitos fundamentais.” (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Editorial Verbo III vol., págs.79/80).

“I - Durante o inquérito, o Ministério Público e o juiz de instrução têm ambos competência para declarar um ato processual inexistente, nulo ou irregular ou uma prova proibida. Todavia, esta competência concorrente é balizada em função da estrutura acusatória do processo penal, que se estriba na separação orgânica e funcional entre as duas magistraturas e que se desenvolve mesmo na fase de inquérito.

II – Em conformidade, durante o inquérito, o juiz de instrução só pode conhecer da ilegalidade de atos da sua competência e o magistrado do Ministério Público só pode conhecer da invalidade de atos da sua competência, ou seja, de atos processuais por si presididos ou delegados a órgão de polícia criminal.

(…)

Como apoditicamente defende Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., pp. 300-301, anotação 5 ao art. 118º, “Durante o inquérito, o Ministério Público e o juiz de instrução têm ambos competência para declarar um ato processual inexistente, nulo ou irregular ou uma prova proibida. Esta solução é imposta pela conjugação de dois princípios estruturantes do processo penal: o princípio da legalidade implica aquela competência concorrente do Ministério Público e do juiz de instrução na fase de inquérito, pois também a magistratura do Ministério Público está vinculada ao princípio da legalidade e numa fase processual dirigida pelo Ministério Público essa vinculação há de traduzir-se precisamente no poder de controlar as invalidades nela cometidas. Outra solução que vedasse ao Ministério Público esta competência numa fase processual por si dirigida violaria a competência constitucional de fiscal da legalidade do Ministério Público.». E elucida ainda o autor: «Contudo, esta competência concorrente tem limites e eles resultam da estrutura acusatória do processo penal. Esta estrutura implica uma separação orgânica e funcional entre as duas magistraturas que se verifica mesmo na fase de inquérito. Assim, durante o inquérito, o juiz de instrução só pode conhecer da ilegalidade de atos da sua competência e o magistrado do Ministério Público só pode conhecer da ilegalidade de atos da sua competência, nestes se incluindo todos os atos investigatórios (também assim, COSTA PIMENTA, 1991: 390, MAIA GONÇALVES, 2005: 304, e DÁ MESQUITA, 2003: 96). A competência do juiz de instrução não deve constituir oportunidade para ele se alçar em senhor do inquérito, o que aconteceria se o juiz se colocasse numa posição de sindicante permanente da atividade do Ministério Público. Portanto, o juiz de instrução não pode declarar durante o inquérito a invalidade de atos processuais presididos pelo Ministério Público ou de atos processuais presididos pelo órgão de polícia criminal, por delegação do MP. Por outro lado, a competência do juiz de instrução seria igualmente subvertida se o Ministério Público pudesse declarar a nulidade de atos processuais presididos pelo juiz de instrução durante o inquérito.” ((cfr. Ac.TRG, de 25-05-2020, acessível in www.dgsi.pt).

A intervenção do juiz na fase do inquérito ocorre apenas, então, para acautelar a defesa dos direitos fundamentais dos sujeitos processuais ou de terceiros relativamente a atos processuais que a podem pôr em causa. Daí que não se vê que o juiz de instrução haja de interferir na realização dos atos do inquérito cuja direção está constitucionalmente cometida ao Ministério Público, fora do quadro de atos que são potencialmente lesivos de direitos fundamentais ou do controlo de atos cuja prática a lei processual preveja como obrigatória , pelo que só haverá lugar à intervenção do juiz de instrução criminal nos casos excecionais previstos na lei e que se prendam com a defesa dos direitos, liberdade e garantias dos cidadãos.

Termos em que não merece qualquer reparo a decisão proferida em 24-02-2021, improcedendo o recurso também neste particular.


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Decisão

Nos termos expostos, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso, mantendo-se, consequentemente, as decisões recorridas.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs.


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Elaborado e revisto pela primeira signatária

Évora, 21 de setembro de 2021

Laura Goulart Maurício

Maria Filomena Soares