Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
165696/13.1YIPRT.E1
Relator: MÁRIO SERRANO
Descritores: DÍVIDA DE CÔNJUGES
Data do Acordão: 12/15/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: Quando a dívida é contraída por ambos os membros do casal (já que se declarou como provado que o contrato que lhe subjaz foi assinado por ambos), a questão da averiguação do proveito comum do casal não se coloca.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:


I – RELATÓRIO:

Na presente acção – iniciada como processo de injunção, e que passou a ser tramitada como acção especial para cumprimento de obrigação pecuniária emergente de contrato, ao abrigo do Decreto-Lei nº 269/98, de 1/9 –, que «AA S.A » intentou contra BB e CC, foi pela A. (após aperfeiçoamento) invocada a celebração com os RR. de um contrato de abertura de crédito em conta corrente e, alegando incumprimento do contrato, por não pagamento pontual de prestações acordadas, o que determinou a resolução do contrato por iniciativa da A., pedida a condenação dos RR. a pagar-lhe a quantia global de 8.695,75 €, correspondente a dívida de capital, no montante de 8.561,58 €, e juros de mora vencidos sobre essa dívida de capital, à taxa legal, desde a resolução até à instauração da injunção (em 18/11/2013), no valor de 134,17 €, e vincendos até integral pagamento.

Contestando, a R. suscitou a excepção da sua ilegitimidade, por alegadamente não ter sido parte contratante no contrato invocado pela A.. O R. não contestou.

Na sequência da normal tramitação processual, foi realizado o julgamento (em 19/10/2015, conforme acta de fls. 91-93), após o qual foi lavrada sentença, datada de 4/11/2015 (em acta de fls. 94-102), em que se decidiu julgar improcedente a excepção de ilegitimidade suscitada e procedente a acção, condenando os RR. no pagamento à A. da quantia de 8.695,75 €, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos sobre a dívida de capital de 8.561,58 €, à taxa legal de 4%, desde a instauração da injunção (em 18/11/2013) até integral pagamento.

Para fundamentar a sua decisão, argumentou o Tribunal, essencialmente, o seguinte: quanto à excepção de ilegitimidade, a definição desta, constante do artº 30º do NCPC, determina a sua manifesta improcedência; resultou provado que a R. subscreveu o contrato em causa, já que, não obstante haver negado tê-lo assinado, o certo é que reconheceu a semelhança da sua assinatura com a aposta no contrato, não sendo credível a sua versão de que poderia ter sido o seu marido a subscrever o contrato em seu nome; ficou também provado que os RR. não efectuaram o pagamento a que se comprometeram através desse contrato; o incumprimento do contrato pelos RR. determina a sua responsabilidade pelo respectivo pagamento, a que acresce indemnização pela mora, tudo nos termos dos artos 406º, 798º, 799º, 804º, 805º e 806º do C.Civil.

Inconformada com tal decisão, dela apelou a R., formulando as seguintes conclusões:

«1. Sempre com o devido respeito, a douta sentença não se encontra devidamente fundamentada quanto à matéria de facto considerada provada e não provada.

2. Sendo certo que de todo o texto da sentença ressalta a ausência de fundamentação que determinou a decisão de considerar provados os fundamentos da acção.

3. Da decisão recorrida não consta qualquer exame às provas produzidas pela Ré/apelante, nomeadamente, não consta da decisão qualquer referência positiva ou negativa ao depoimento de parte da Ré, no que se refere da responsabilidade da apelante/Ré (mulher) pelas dívidas contraídas pelo Réu (ex-marido) com a outorga do contrato.

4. Na motivação da douta sentença o Tribunal “a quo” veio concluir que a Ré/apelante assinou o referido documento juntamente com o Réu, seu então marido, conforme alegado pela autora, apenas por mera semelhança entre a assinatura aposta no contrato e a sua assinatura constante nos documentos juntos aos autos e dos quais resulta serem iguais.

5. Mas o tribunal “a quo” não poderia ter chegado a essa conclusão, por mera semelhança, como não podia ter ficado por aí, deveria vir provar a responsabilidade da apelante/Ré (mulher) pelas dívidas contraídas pelo Réu (ex-marido) com a outorga do contrato com o autor, para vir considerar procedente na totalidade o pedido da Autora e condenar a Ré no pedido de pagamento à Autora.

6. Como o tribunal “a quo”, na apreciação do depoimento escrito da testemunha da autora, considera a veracidade dos factos alegados pela autora, quando a testemunha não poderia ter conhecido os factos referentes a este contrato, pois a data da outorga e do primeiro financiamento e restantes esta era desconhecedora das condições e termos deste contrato, uma vez que declarou ser apenas trabalhadora da empresa no ano 2004.

7. Deste modo, e sempre com o devido respeito, entendemos que a sentença não contém os fundamentos de facto e de direito que justificam a sua decisão, pelo que nos termos do artigo 615º, n.º 1, al. b), do CPC a mesma é nula, nulidade esta que aqui se invoca para os devidos e legais efeitos.

8. Como a Ré/apelante invoca para todos os efeitos legais a nulidade da sentença, por alegada violação do disposto no artº 615, nº 1, al. d), do CPC.

9. Nulidade essa que fundamenta no facto de a Exma Srª Juiz “a quo” ter, por sua vez, fundamentado a sua condenação sem ter dito qualquer entendimento do como é que a dívida foi contraída e se foi em proveito comum do casal.

10. Ao que, com o devido respeito, a Srª Juiz “a quo” não se pronunciou sobre questões que devia ter apreciado, ao que se invoca aqui a omissão de pronúncia por parte do tribunal “a quo”.

11. No que concerne à condenação da Ré – aquela que neste recurso apenas se discute –, basta compulsar a sentença para verificar que ela foi ali fundamentada no facto do sobredito financiamento ser responsabilidade da Ré sem ter provado se foi em proveito comum do casal, ou seja, por se não ter concluído que a referida dívida contraída pelo R. o foi em proveito comum do casal.

12. É assim, manifesto que houve omissão de pronúncia, e nomeadamente no que concerne à condenação final da Ré.

13. O Tribunal “a quo” não conheceu das questões que devia apreciar, à luz do pedido e da causa de pedir que sustentaram a tutela judiciária pedida pela Autora através desta acção.

14. Aí que contender com um alegado erro de julgamento (de direito) sobre a questão sub judice (da condenação da Ré), o que é patente que ocorre aquele apontado vício, capaz de conduzir à nulidade da sentença.

15. Ao que não estão verificados os requisitos ou pressupostos substanciais para que a Ré/apelante um possa ser responsabilizado pelas dívidas contraídas pelo seu ex-marido.

16. Ao que o principal requisito pressupõe que a dívida tenha sido contraída em proveito comum do casal, e existe proveito comum do casal sempre que a dívida tiver sido contraída tendo em vista os interesses comuns do casal, ou seja, o interesse da sociedade familiar.

17. Ao que Tribunal “a quo” andou mal ao não ter provado se aquela dívida foi contraída em proveito comum do casal, ou seja, averiguar se o dinheiro se destinou a satisfazer interesses comuns do casal.

18. O “tribunal” a quo” errou na aplicação do direito à matéria de facto dada como provada, porquanto, nunca podia a Ré/apelante, ser condenada.

19. Ao que a Ré/apelante considera que a acção foi mal julgada, pondo o acento tónico na (má) “apreciação da prova”, o certo é que, também, se insurge contra o facto do tribunal “formular um juízo com base em factos que não resultam provados”.

20. A Ré apelante também não se conforma com a subsunção que é feita dos factos apurados ao direito, ou seja, com o raciocínio que o Tribunal “a quo” fez, a partir do quadro factual que deu como apurado, a assinatura do contrato pela Ré, por semelhança face a um dos documentos juntos aos autos.

21. A recorrente entende ainda que a acção foi mal julgada, até pelos dispositivos citados, cuja violação invocou, na deficiente “apreciação dos factos provados”, que em seu entender devia levar à conclusão de não ter existido proveito comum do casal no que ao financiamento em apreço respeita, tendo sido a apreciação da prova efectuada de “modo arbitrário”, uma vez que não teve em consideração o depoimento de parte da Ré.

22. E tal tanto basta para se concluir pelo provimento do presente recurso nos termos peticionados.»


A apelado contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

Como é sabido, é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (cfr. artos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (cfr. artº 608º, nº 2, ex vi do artº 663º, nº 2, do NCPC).

Do teor das alegações de recurso da R. resulta que a matéria a decidir se resume a apurar: a) se ocorre qualquer das arguidas nulidades da sentença recorrida, por alegadas falta de fundamentação e omissão de pronúncia (com referência ao artº 615º, nº 1, als. b) e d), do NCPC), a primeira, por essa sentença não conter fundamentos de facto e de direito para justificar o seu sentido, e a segunda, por o tribunal a quo não se ter pronunciado na sentença sobre a questão do proveito comum do casal na contracção da dívida (que a apelante considera ter sido assumida apenas pelo co-R., seu ex-marido); e b) se ocorreu erro na apreciação da prova, determinante de eventual alteração da factualidade provada – cabendo ainda aferir das consequências do que for decidido quanto a essas questões em relação à decisão de integral procedência do pedido da A. apelada.

Cumpre apreciar e decidir.

*

II – FUNDAMENTAÇÃO:
A) DE FACTO:

O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, que se passam a reproduzir:

«1. A autora é uma sucursal de uma instituição de crédito francesa, cujo objecto social são, por um lado, todas as operações de financiamento por conta de terceiros, com excepção das operações de carácter puramente bancário, e por outro lado a corretagem de seguros, bem como todas as operações directamente ou indirectamente ligadas às actividades acima definidas;

2. Foi celebrado entre autora e réus – e a solicitação destes – um contrato de crédito em conta corrente VIDA LIVRE, ao qual foi atribuído o n.º 42035535750100, conforme documento junto aos autos sob o número 1 e constante de fls. 41 a 42, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;

3. Por força do contrato objecto dos presentes autos, a autora disponibilizou aos réus, em conta indicada pelos mesmos para esse efeito, em 19 de Março de 1999, um primeiro financiamento no montante de 250.000$00 (duzentos e cinquenta mil escudos);

4. No âmbito do contrato celebrado, e nas mesmas condições, a autora disponibilizou aos réus novos financiamentos com os valores e nas datas que ora se enunciam, conforme documento junto aos autos sob o número 2 e constante de fls. 43 a 46, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais:

a. 17.200$00 (dezassete mil e duzentos escudos) em 01/06/1999;

b. 68.200$00 (sessenta e oito mil e duzentos escudos) em 28/08/2000;

c. 60.000$00 (sessenta mil escudos) em 06/09/2000;

d. 147.900$00 (cento e quarenta e sete mil e novecentos escudos) em 24/08/2001; e. €2.000,00 (dois mil euros) em 26/07/2004;

f. €570,00 (quinhentos e setenta euros) em 20/12/2004;

g. €745,00 (setecentos e quarenta e cinco euros) em 28/06/2005;

h. €1.058,00 (mil e cinquenta e oito euros) em 14/12/2006;

i. €1.085,00 (mil e oitenta e cinco euros) em 11/04/2007;

j. €1.473,00 (mil quatrocentos e setenta e três euros) em 13/04/2012;

k. €500,00 (quinhentos euros) em 23/04/2012; e

l. €1.033,00 (mil e trinta e três euros) em 14/06/2012;

5. No âmbito do contrato aludido em 2, foi pela autora analisada a documentação pessoal disponibilizada pelos réus para efeitos de aferição da sua capacidade financeira para reembolso dos financiamentos solicitados conforme documento junto aos autos sob o número 3 e constante de fls. 47 a 56, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais: a) Cópia dos Bilhetes de Identidade e Número de Identificação Fiscal; b) Cópia dos recibos de vencimento; c) Cópia de última declaração de IRS entregue; e d) Cópia de cheque e de extracto bancário onde consta Número de Identificação Bancária (NIB);

6. Vincularam-se os réus ao reembolso do crédito concedido pela autora em prestações mensais e sucessivas de 10.000$00 (dez mil escudos), através de débito em conta indicada pelos réus para esse efeito, conforme documento junto aos autos sob o número 1 e constante de fls. 41 a 42, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;

7. Não obstante os valores de reembolso se encontrarem estipulados na proposta de contrato de crédito, a verdade é que os mesmos são meramente indicativos porque válidos apenas para a primeira utilização do financiamento concedido pela autora;

8. Assim, as prestações mensais de reembolso nunca poderiam ser de valor inferior a uma parte fixa e pré-estabelecida de valor igual a 4% do limite máximo de crédito autorizado (conforme cláusula 9.2. das Condições Gerais associadas ao contrato de crédito em conta corrente);

9. As quantias pagas por força do contrato de crédito eram imputadas ao valor em dívida pela seguinte ordem: a) juros vencidos; b) prémio de seguro (se houvesse); c) impostos e encargos vencidos; d) remanescente do capital em débito;

10. In casu, os réus aderiram ao seguro facultativo de protecção ao crédito, o qual foi activado a 4 de Setembro de 2000, conforme documento junto aos autos sob o número 4 e constante de fls. 57, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;

11. Obrigaram-se os réus a manter a sua conta bancária devidamente provisionada, ao dia 1 de cada mês, em montante suficiente para permitir o débito das prestações acordadas de reembolso;

12. Ocorre que os réus não cumpriram com as obrigações a que se encontravam adstritos por força do contrato de crédito celebrado com a autora, não procedendo, como era exigível, ao pagamento dos valores mensais acordados;

13. Com efeito, limitaram-se a efectuar os pagamentos com os valores e datas constantes do documento junto aos autos sob o número 2 na coluna intitulada “Prestação ou pagamentos” e constante de fls. 43 a 46, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;

14. Pese embora interpelados para esse efeito, os réus não procederam à regularização das prestações em falta desde Dezembro de 2012, conforme documento junto aos autos sob o número 2 e constante de fls. 43 a 46, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;

15. Pelo que procedeu a autora à resolução do contrato de crédito em causa nos presentes autos em 28 de Junho de 2013;

16. Conforme dispõem as cláusulas 11.1. e 11.2. das Condições Gerais, a autora – ao proceder à resolução do contrato de crédito – poderia exigir dos réus, para além do pagamento integral das prestações vencidas acrescidas dos respectivos juros, uma indemnização equivalente a 8% do montante das prestações vencidas e não pagas e das prestações vincendas;

17. Pelo que, à quantia total de € 7.991,33 (sete mil novecentos e noventa e um euros e trinta e três cêntimos) foi deduzido o valor de € 87,36 (oitenta e sete euros e trinta e seis cêntimos), relativo a comissões por mora objecto de anulação;

18. E acresceu uma comissão por incumprimento definitivo no montante de € 632,32 (seiscentos e trinta e dois euros e trinta e dois cêntimos), bem como o respectivo imposto de selo no montante de € 25,29 (vinte e cinco euros e vinte e nove cêntimos);

19. O valor total em dívida à data da resolução ascendia a € 8.561,58 (oito mil quinhentos e sessenta e um euros e cinquenta e oito cêntimos);

20. Sobre o valor do capital peticionado acrescem juros de mora, calculados à taxa supletiva legal de 4%, prevista na Portaria nº 291/2003, de 8 de Abril, que ascendem a € 134,17 (cento e trinta e quatro euros e dezassete cêntimos) até à data de entrada do requerimento de injunção.»


B) DE DIREITO:

1. Comece-se por apreciar, até pela sua precedência lógica, a suscitação pela recorrente da questão das nulidades da sentença, com referência ao artº 615º, nº 1, als. b) e d), do NCPC.

Importa fazer um breve enquadramento doutrinário das pretensas nulidades da decisão recorrida por falta de fundamentação e omissão de pronúncia, no âmbito das denominadas nulidades de sentença. Diga-se desde já, e genericamente, que é de muito difícil verificação o preenchimento dos pressupostos de aplicação do instituto das nulidades de sentença, havendo uma recorrente confusão entre a invocação dessas nulidades e a mera discordância substantiva quanto às decisões judiciais, de que decorre um frequente uso errado desse instituto nos recursos interpostos nos tribunais portugueses, com a consequência de inúteis retardamentos processuais.

Sobre a nulidade por falta de fundamentação, dizia ALBERTO DOS REIS, perante norma de teor idêntico ao actual artº 615º, nº 1, al. b), do NCPC, que «o que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade» (Código de Processo Civil Anotado, vol. V, reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 1981, p. 140).

Quanto à omissão de pronúncia, refira-se que o conceito se refere a questões, como resulta expressamente da lei. E «questões» são todos os pedidos, causas de pedir e excepções de que se deva conhecer (assim, LEBRE DE FREITAS et alii, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 704): não inclui considerações, argumentos ou razões produzidos pelas partes (neste sentido, ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, Coimbra Editora, Coimbra, 1981, p. 143).

Deve igualmente ter-se em conta que também não há uma verdadeira e própria omissão de pronúncia, quando a configuração do específico meio processual não comporta a análise de uma determinada questão substantiva por força da sua irrelevância nesse contexto (i.e., só se colocará a hipótese de omissão se a questão suscitada pelos sujeitos processuais tiver efectiva relevância no quadro do meio processual em causa e essa questão não for apreciada pelo tribunal), ou quando a lógica argumentativa da fundamentação de uma decisão determinar que fique necessariamente prejudicada a discussão de uma particular questão substantiva (i.e., também não haverá omissão se a linha argumentativa seguida pelo tribunal exclui, por oposição, a consideração de outras vias de argumentação que pressuporiam a análise de certo tópico substantivo).

Dito isto, vejamos em concreto as nulidades arguidas.

a) Uma primeira nulidade consistiria em o tribunal a quo não ter efectuado um «exame às provas produzidas pela Ré/apelante», tecendo a apelante, nesse contexto, considerações sobre a forma como esse tribunal apreciou o depoimento de parte da própria R. e o depoimento escrito da testemunha da A., e sobre a forma como o mesmo entendeu ter sido o contrato em causa assinado pela R. – e daí a alegação de falta de fundamentação.

Duas observações suscita, de imediato, essa argumentação da apelante.

Em primeiro lugar, que o questionamento da forma como a prova é apreciada apenas pode ter lugar por via do instituto da impugnação da matéria de facto, o qual exige uma invocação processualmente adequada, com cumprimento de específicos ónus, impostos pelo artº 640º do NCPC (como melhor se explicitará infra, a propósito da questão do alegado erro na apreciação da prova) – e não através da arguição de uma qualquer nulidade.

E, em segundo lugar, que a nulidade por falta de fundamentação de facto existirá seguramente quando ocorra uma total ausência de motivação da matéria de facto, ou seja, quando a declaração da factualidade provada não seja acompanhada da análise crítica das provas («indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção», segundo a fórmula legal do artº 607º, nº 4, do NCPC) – e já não quando exista essa motivação e esta satisfaça minimamente a mencionada configuração legalmente definida.

Ora, no presente caso, evidencia-se, por um lado, que houve uma efectiva declaração de factos provados, e, por outro lado, que houve uma razoavelmente desenvolvida explicitação das razões que levaram o tribunal a quo à afirmação da verificação dessa factualidade, seja por referência a depoimentos ou documentos, seja por referência a juízos de experiência comum ou de verosimilhança, que permitiram chegar à conclusão de que o contrato em causa nos autos foi efectivamente subscrito pela R. apelante.

Especificamente, sobre essa questão essencial para a decisão de condenação da R., explicitou a M.ma Juiz a quo as razões da sua convicção, designadamente, nestes termos: «A ré prestou depoimento de parte, referindo desconhecer o contrato em causa, negou ter assinado o referido contrato e ter qualquer conhecimento do mesmo. Confrontada com o contrato subscrito por si e seu marido, reconheceu a sua assinatura, negando ter sido a mesma a assinar. (…) Confrontada por fim com a semelhança entre a assinatura aposta no contrato que funda a presente acção e a sua assinatura constante dos documentos juntos aos autos e dos quais resulta serem iguais, reconheceu a semelhança, mas negou ser da sua autoria, o que não se afigurou credível ao Tribunal, razão pela qual concluiu-se ter a mesma assinado o referido contrato juntamente com o réu, seu então marido, conforme alegado pela autora.»

Esta transcrição demonstra claramente que não corresponde à realidade a afirmação da apelante de que «da decisão recorrida não consta qualquer exame às provas produzidas pela Ré/apelante, nomeadamente, não consta da decisão qualquer referência positiva ou negativa ao depoimento de parte da Ré». Com efeito, houve motivação e nela procedeu-se à apreciação das provas e, em particular, ao depoimento de parte da R..

Ou seja: é evidente que não ocorre uma absoluta omissão de motivação, sendo manifesta a existência de um elenco de factos provados e a apresentação, com base neles, de uma perceptível argumentação, de que a recorrente pode discordar, mas que foi produzida – pelo que estará arredada a arguida nulidade por falta de fundamentação.

Como se afirmou supra, a discordância quanto aos fundamentos enunciados já não se resolve no plano da nulidade da sentença, mas no do eventual erro de julgamento inscrito na decisão recorrida, o que coloca a questão no plano da sua eventual revogação por ilegalidade – mas aí já estamos no domínio da discussão substantiva da decisão.

b) Uma segunda nulidade consistiria em o tribunal a quo não ter apreciado questão que a R. apelante considera essencial para a procedência da acção contra si: a da necessidade de demonstração do proveito comum do casal na contracção da dívida em causa – e daí a alegação de omissão de pronúncia.

Este juízo da R. apelante parte do pressuposto de que a dívida foi contraída exclusivamente pelo co-R. e seu ex-marido (e não pela R.) e que a responsabilidade da R. pela dívida só poderia decorrer da aplicação do regime do artº 1691º do C.Civil (tendo em atenção, em particular o disposto no seu nº 1, al. c)). Porém, tal entendimento encerra uma óbvia petição de princípio: está por demonstrar que a dívida foi contraída apenas pelo seu ex-marido.

Aliás, perante a factualidade provada (e respectiva motivação) demonstrou-se exactamente o contrário: a dívida foi contraída por ambos os RR. (já que se declarou como provado que o contrato que lhe subjaz foi assinado por ambos), pelo que a questão da averiguação do proveito comum do casal nem sequer se colocaria. Se o contrato vincula ambos, então a dívida é dos dois e ambos respondem pelo seu incumprimento.

Ou seja: estamos perante uma das mencionadas situações em que é de excluir a ocorrência de omissão de pronúncia, na medida em que o sentido da fundamentação (de facto e/ou de direito) de uma decisão determina que fique necessariamente prejudicada a discussão de uma particular questão substantiva (neste caso, a discussão do proveito comum do casal, que no referido contexto não tem qualquer cabimento) – pelo que estará arredada a arguida nulidade por omissão de pronúncia.

Resta, pois, concluir pela improcedência da arguição das nulidades de sentença em apreço.

2. Quanto à questão do invocado erro na apreciação da prova, há que retomar a observação supra formulada no sentido de que o questionamento da apreciação da prova apenas pode ter lugar por via do instituto da impugnação da matéria de facto, que convoca a aplicação do artº 640º do NCPC.

Com efeito, uma verdadeira e própria impugnação da matéria de facto, para poder ser operante, exige, desde logo, a ocorrência de dois pressupostos essenciais: por um lado, que seja levada às conclusões das alegações de recurso a formulação da pretensão de pôr em crise a matéria de facto, na forma adequada; por outro lado, que essa formulação integre um pleno cumprimento dos ónus impostos pelo artº 640º do NCPC ao recorrente, o que implica a indicação concreta dos pontos de facto a alterar e dos meios probatórios relevantes para tal alteração, com o estabelecimento de uma correlação entre cada um desses factos e específicos meios probatórios relevantes.

No caso presente, se atentarmos no teor das conclusões das alegações de recurso, podemos afirmar que não se verifica nelas uma clara expressão dessa intenção de impugnação. Apesar de nessas alegações (e nas suas conclusões acima transcritas) se usar mesmo a expressão «erro na apreciação da prova» (ponto III do corpo das alegações), se sugerir que o tribunal a quo não poderia ter formulado determinados juízos de facto (cfr. conclusões 4ª a 6ª) e se dizer expressamente que houve uma «má apreciação da prova» ou «deficiente apreciação dos factos provados» (cfr. conclusões 19ª e 21ª) – e até se transcreverem certos trechos do depoimento de parte da R. (no corpo das alegações) –, o certo é que em momento algum podemos considerar que se está perante um recurso sobre a matéria de facto. Há apenas uma genérica discordância quanto à matéria de facto, não devidamente formulada e concretizada.

Porém, ainda que se pudesse conceder que aquela intenção de impugnação aflora, mesmo que imperfeitamente, nessas conclusões, sempre se teria de constatar a ocorrência de uma situação de incumprimento, por parte da R. apelante, dos ónus impostos pelo artº 640º do NCPC – o que nos levaria a concluir no sentido da consequente rejeição do recurso quanto ao segmento da presumida pretensão de alteração da matéria de facto.

Com efeito, e quanto a este último ponto, é entendimento dominantemente aceite que não basta a mera transcrição de depoimentos e a alegação genérica de que estes devem ser atendidos no elenco dos factos provados para fundar uma pretensão de impugnação da matéria de facto (cfr. LEBRE DE FREITAS et alii, Código de Processo Civil Anotado, vol. 3º, tomo I, 2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pp. 61-64, em anotação ao artº 685º-B do anterior CPC, com correspondência, sem diferenças significativas nessa parte, no actual artº 640º do NCPC). É necessário que haja uma indicação especificada dos pontos de facto a alterar – i.e., tem de haver uma indicação ponto por ponto (facto a facto) do que deve ser alterado, em que sentido e com que particular fundamento, com referência a concretos trechos de depoimentos (ou outros meios probatórios). Em particular, quanto à concreta indicação dos factos que devem ser dados ou deixar de ser dados como provados, a respectiva exigência saiu, aliás, reforçada com a versão conferida ao artº 640º do NCPC, na medida em que nele foi introduzida uma nova al. c) que expressamente impõe ao recorrente a indicação da «decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas».

Por sua vez, o incumprimento dos ónus impostos pelo artº 640º do NCPC tem como inelutável consequência a rejeição do recurso, no segmento respeitante à impugnação da matéria de facto, ao abrigo do proémio do nº 1 desse artº 640º (reiterado, quanto à indicação exacta dos trechos relevantes da prova gravada, na al. a) do nº 2 da mesma disposição legal), e sem possibilidade de despacho de aperfeiçoamento (neste sentido, em anotações ao artº 685º-B do anterior CPC, LEBRE DE FREITAS et alii, ob. cit., pp. 61-62, embora criticamente de iure condendo, e ABRANTES GERALDES, Recursos em Processo Civil – Novo Regime, Almedina, Coimbra, 2007, p. 138; e, já à luz do actual artº 640º, igualmente ABRANTES GERALDES, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, pp. 127-128) – mas sem prejuízo do prosseguimento do recurso quanto a outros fundamentos alegados pelo apelante, já no âmbito da impugnação de direito.

Como sublinha ABRANTES GERALDES, a apreciação do cumprimento desses ónus deve ser feita segundo «um critério de rigor» – e esclarece: «Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo» (Recursos no Novo Código…, cit., p. 129).

No caso dos autos, tendo presente estas considerações e o teor das conclusões das alegações de recurso, afigura-se notório que a R. apelante não indicou os concretos factos (e em que exactos termos) que pretendia ver declarados provados, nem procedeu à devida correlação entre cada um desses factos e específicos meios probatórios relevantes, de modo a imporem decisão de facto diversa: apenas é possível inferir que visava sustentar uma outra realidade factual, que parece querer construir-se nas próprias alegações.

Ou seja: ainda que se considerasse ter sido deduzida pela R. apelante uma efectiva impugnação da matéria de facto, evidenciar-se-ia não ter havido um pleno e integral cumprimento dos ónus impostos pelo artº 640º do NCPC. E, como tal, é de concluir pela improcedência dessa presumível pretensão de impugnação da matéria de facto.

Em conformidade, declara-se intocada a decisão de facto, tal como foi proferida no julgamento efectuado em 1ª instância (e para a qual se remete, nos termos do artº 663º, nº 6, do NCPC).

3. Posto isto, e perante a inalterabilidade dos factos apurados em sede de julgamento de 1ª instância, forçoso é concluir que, no plano jurídico, se deve ter por fundada a pretensão da A., nos termos em que a mesma foi reconhecida pelo tribunal recorrido – ou seja, mesmo em relação à R. apelante (já que quanto ao co-R., por não ter interposto recurso, a sentença recorrida já se consolidou definitivamente no processo).

Com efeito, afigura-se correcto o percurso argumentativo, do ponto de vista jurídico, sustentado pelo tribunal recorrido. Provado que ficou que o contrato de abertura de crédito invocado pela A. foi celebrado, do lado passivo, por ambos os RR., e que não houve pontual cumprimento do mesmo, estando em dívida a quantia peticionada, não poderia deixar de se concluir pela procedência da acção, condenando ambos os RR. no respectivo pagamento, na exacta medida do quantitativo devido, com juros de mora legais nos termos referidos na decisão recorrida.

Acolhem-se, assim, os fundamentos da decisão sob recurso e não se vislumbra, pois, qualquer razão para alterar o que foi decidido na 1ª instância. E, como tal, deverá improceder integralmente a presente apelação.

4. Em suma: o tribunal a quo não violou qualquer disposição legal, pelo que não merece censura o juízo decisório de procedência da pretensão da A., por aquele formulado, em relação a ambos os RR. (i.e., também em relação à R. apelante), assim devendo improceder o presente recurso.

*

III – DECISÃO:

Pelo exposto, decide-se julgar improcedente o presente recurso, confirmando a sentença recorrida.

Custas pela R. apelante (artº 527º do NCPC), sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido (v. fls. 22-24).


Évora, 15 /12/2016


(Mário António Mendes Serrano)


(Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes)


(Mário João Canelas Brás)