Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
293/09.8TBORQ-B.E1
Relator: VÍTOR SEQUINHO
Descritores: SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
EXECUÇÃO
Data do Acordão: 07/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A acção executiva não pode ser suspensa com fundamento na pendência de causa prejudicial.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 293/09.8TBORQ-B.E1

Relatório


(…) deduziu embargos de executado, com pedido de suspensão do prosseguimento da execução, ao abrigo do disposto nos artigos 728.º, n.º 1, 729.º e 733.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Civil, e oposição à penhora ao abrigo do disposto no artigo 784.º, n.º 1, al. c), do mesmo Código. Na parte referente aos embargos de executado, a embargante alegou factos que, no seu entendimento, demonstram a inexigibilidade e a iliquidez do crédito exequendo, concluindo que, por essa razão, a instância executiva deverá ser suspensa, sem prestação de caução, até ao trânsito em julgado da sentença a proferir no apenso de prestação de contas, que considera, assim, ter natureza prejudicial relativamente à execução.

Quer os embargos, quer a oposição à penhora, foram liminarmente admitidos.

A embargada contestou, pugnando pela improcedência dos embargos e da oposição à penhora.

Teve lugar audiência prévia.

Em seguida, foi proferido saneador-sentença, julgando procedentes os embargos de executado e a oposição à penhora e determinando a suspensão da instância executiva até ao trânsito em julgado da sentença a proferir no apenso de prestação de contas e o levantamento da penhora dos depósitos bancários.

A embargada recorreu do saneador-sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:

1 – Foi tido por provado, entre outros, o seguinte facto:

5 - Relativamente a esta dívida da herança à exequente, no valor de € 41.162,22, e conforme as contas apresentadas nos autos do processo n.º 293/09.8TBORQ-A pelo cabeça de casal, a mesma tem vindo a ser paga à exequente através das receitas da herança.

2 – Tido por não provado, foi apenas o seguinte facto:

Único - As receitas obtidas após a sentença homologatória da partilha no inventário e na pendência da prestação de contas têm exclusivamente se destinado ao pagamento de outras obrigações distintas do passivo da herança.

3 – Da fundamentação de facto consta que “o facto provado 5 decorre da consulta do processo de Prestação de Contas que constitui o apenso A-) do Inventário, nomeadamente do acordo das Partes entre o requerimento e a resposta, respectivamente de 07.12.2017 e de 14.12.2018. As partes concordam que € 5.400,00, das contas apresentadas pelo cabeça-de-casal, (…), constitui crédito da herança. Daí que exista crédito, nas contas da herança dividida/partilhada, que possibilita pagar parcialmente o passivo da herança cujo pagamento é peticionado na ação executiva a que os presente embargos de executado correm por apenso. Já há receitas da herança para o pagamento desse passivo cuja obrigação de pagamento é da embargante, da herdeira (…) e do cabeça-de-casal (…), conforme sentença homologatória do mapa da partilha proferida no Inventário. Donde decorre que nem todas as receitas da herança se destinaram ao pagamento de outros encargos diferentes do passivo da herança que constitui obrigação dos herdeiros na proporção do seu quinhão (facto não provado).”

4 – O facto 5 respeita a uma afirmação proferida pela embargante em 6 do requerimento inicial, relativamente à qual, não produziu qualquer meio de prova nem concretizou, nas rubricas das contas da herança apresentadas, a realização dos alegados pagamentos, a forma utilizada de pagamento ou a data em que os mesmos terão ocorrido, conforme estatuído no artigo 342.º do C.C., porquanto se trata de factos extintivos do direito invocado.

5 – Tal afirmação impulsionou o tribunal a consultar os autos de prestação de contas que constitui o apenso A) do inventário, nomeadamente do acordo das partes entre o requerimento e a resposta, respectivamente de 07.12.2017. e de 14.12.2018.

6 – Onde terá verificado que as partes nesse processo concordaram que € 5.400,00, das contas apresentadas pelo cabeça-de-casal, (…), constitui crédito da herança.

7 – Concluiu assim o tribunal a quo que, verificada a existência de crédito nas contas da herança dividida/partilhada, o mesmo possibilita pagar parcialmente o passivo da herança cujo pagamento é peticionado na acção executiva.

8 – À semelhança da executada, a quem incumbia o ónus da prova dos factos extintivos da sua obrigação, neste caso, o pagamento da dívida, também o tribunal não concretiza, nas rubricas das contas da herança consultadas, a realização de quaisquer pagamentos à exequente, não os quantifica, não indica o modo de pagamento utilizado nem a data em que os mesmos terão ocorrido, nem tão pouco refere se, relativamente a esses pagamentos, foi dada a devida quitação, declarando apenas a mera existência de condições, ou seja a existência de crédito nas contas da herança, que possibilitariam pagar parcialmente o passivo da herança, desde logo a dívida à exequente.

9 – Deste modo, não foi produzida qualquer prova quanto ao pagamento efectivo da dívida em causa, tendo sido somente aflorada a possibilidade desse pagamento, uma vez encontrado nos autos e prestação de contas, um crédito da herança sem que tenha demonstrado que o mesmo, efectivamente, tenha sido utilizado para pagar ainda que parcialmente a dívida exequenda, em estrita violação da já citada norma legal, artigo 342.º, n.º 2, do C.C..

10 – Deveria o tribunal a quo, na sentença proferida, ter dado por não provado o facto 5: “Relativamente a esta dívida da herança à exequente, no valor de € 41.162,22, e conforme as contas apresentadas nos autos do processo n.º 293/09.8TBORQ-A pelo cabeça de casal, a mesma tem vindo a ser paga à exequente através das receitas da herança”, já que não foi apresentada qualquer prova da existência do pagamento desta dívida, além da estrita afirmação ou da mera possibilidade de tal poder ter ocorrido.

11 – E em sua decorrência ter dado por provado o facto: “As receitas obtidas após a sentença homologatória da partilha no inventário e na pendência da prestação de contas têm exclusivamente se destinado ao pagamento de outras obrigações distintas do passivo da herança.”

12 – Em “Enquadramento Jurídico” da sentença ora recorrida consta “A exequente (…), não é Parte na Prestação de Contas, mas é terceira interessada.”

13 – Contrariamente à infundamentada declaração de que a exequente é, na prestação de contas, terceira interessada, à exequente pouco ou nada lhe interessa o desfecho da prestação de contas e o teor da decisão a ser proferida nesses autos.

14 – Isto porque, uma vez terminado o processo de inventário e proferida que foi a sentença homologatória do mapa de partilha, que transitou em julgado a 30 de Janeiro de 2017, da qual, em conformidade com a forma da partilha (cfr. despacho de 04/07/2016), respectiva relação de bens (cfr. requerimento de 22/11/2013) e acta de conferência de interessados (cfr. despacho de 10/02/2016), consta a existência dessas dívidas, quer à ora exequente, quer aos demais credores, aprovadas por todos os interessados herdeiros, bem como a responsabilidade de cada herdeiro na sua efectiva liquidação.

15 – A lei é explícita ao estabelecer regimes diferentes para a liquidação dos encargos da herança conforme esta se mantenha ainda indivisa ou tenha sido já partilhada.

16 – Razão pela qual a credora/exequente (…), ao demandar judicialmente a herdeira ora executada relativamente à sua quota parte da supra mencionada dívida, pretendendo afectar o seu património à satisfação do seu crédito, caso a executada não proceda ao pagamento da dívida, fê-lo em estrito cumprimento das referidas normas legais, artigos 2068.º, 2097.º, 2098.º, 513.º e 524.º, todos do Código Civil.

17 – Uma vez que a dívida exequenda não foi paga com o património autónomo constitutivo da herança, e por via da realização da partilha, operou-se a transmissão para cada um dos herdeiros, na proporção da sua quota, a responsabilidade pelo pagamento da dívida, afasta a possibilidade da prestação de contas poder constituir uma questão prejudicial à demanda executiva.

18 – Pelo que, o resultado contas apresentadas pelo cabeça de casal e contestadas pelas demais herdeiras e o eventual saldo que das mesmas resultar, apenas respeitará aos herdeiros e o modo como cada herdeiro actuará na salvaguarda dos seus interesses é de todo alheio à exequente.

19 – É inequívoco que todo o enquadramento jurídico efectuado na sentença ora recorrida assenta exclusivamente no pressuposto de que a dívida exequenda ter sido paga, carecendo tal facto de efectiva comprovação.

20 – A suspensão da acção executiva consubstancia a denegação do direito da exequente a cobrar uma dívida, que à presente se encontra líquida e exigível, porquanto se trata do direito de exigir aos herdeiros a quota-parte que a cada um deles tenha cabido na responsabilidade relativa ao pagamento da dívida em causa.

21 – O título apresentando a esta execução é uma sentença judicial que transitou em julgado e que afirma a existência de uma dívida da executada para com a exequente, ora embargante, do qual resulta a exigibilidade e a liquidez da obrigação exequenda.

22 – Deve por isso, a sentença ser revogada, atenta a violação do disposto no artigo 342.º do C.C., prosseguindo os autos da acção executiva os seus trâmites legais.

O recorrido contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:

1 – A questão fundamental que deverá ser apreciada não são os factos considerados provados ou não provados, mas sim a existência de uma causa prejudicial.

2 – “I – Para efeitos do disposto no art. 279º, nº 1, do CPC, uma causa está dependente do julgamento de outra já proposta, quando a decisão desta pode afectar e prejudicar o julgamento da primeira, retirando-lhe o fundamento ou a sua razão de ser, o que acontece, designadamente, quando, na causa prejudicial, esteja a apreciar-se uma questão cuja resolução possa modificar uma situação jurídica que tem que ser considerada para a decisão do outro pleito. II – Entende-se, assim, por causa prejudicial aquela onde se discute e pretende apurar um facto ou situação que é elemento ou pressuposto da pretensão formulada na causa dependente, de tal forma que a resolução da questão que está a ser apreciada e discutida na causa prejudicial irá interferir e influenciar a causa dependente, destruindo ou modificando os fundamentos em que esta se baseia. III – Existindo entre duas acções esse nexo de prejudicialidade, deverá ser suspensa a instância na causa dependente, até à decisão da causa prejudicial” (cfr. Ac. TRP, de 07-01-2010, Relator Maria Catarina).

3 – “Uma causa é prejudicial em relação a outra quando o julgamento ou decisão da questão a apreciar na primeira possa influir ou afectar o julgamento ou decisão da segunda, nomeadamente modificando ou inutilizando os seus efeitos ou mesmo tirando razão de ser a esta última. A lei não estabelece qualquer ordem temporal no que concerne à instauração de duas acções e nem mesmo nenhum limite temporal rígido para o referido efeito” (cfr. Ac. TRC, Relator Isaías Pádua, de 15-02-2005).

4 – Essa causa prejudicial trata-se precisamente de decorrer, em simultâneo, um processo de prestação de contas, que comprovou que a quantia exequenda está paga integralmente.

5 – Ora defende a recorrente que o facto 5 respeita a uma afirmação proferida pela embargante em 6 do requerimento inicial, relativamente à qual não produziu qualquer meio de prova nem concretizou!

6 – Se dúvidas existissem, neste momento então estariam dissipadas, com o proferimento de sentença no processo de prestação de contas.

7 – Sentença essa que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, decidiu julgar prestadas as contas da administração da herança aberta por óbito de (…) durante os anos de 2010, 2011, 2012, 2013, 2014, 2015, e 2016, fixando a receita bruta em 304.200,87 € e as despesas em 166.632,63 €, sendo o saldo credor a favor da herança ilíquida e indivisa de (…), de 137.568,24 €, e ainda a condenar o réu (…) a entregar à herança o valor de 137.568,24 €, a fim de ser partilhado pelos herdeiros na proporção dos respetivos quinhões, bem como consta da matéria de facto provada que a quantia exequenda está paga.

8 – Ficou provado, nos autos do processo 293/09.8TBORQ-A, entre outros factos, que: (…)

“9. Em 2009, a herança tinha uma dívida de 41.162,22 € para com a interessada (…).

16. Em 2010, o Réu entregou 6.900,00 € à interessada (…) para pagamento da dívida referida no ponto 9 (…).

25. Em 2011, o Réu entregou 15.750,00 € à interessada (…) para pagamento da dívida referida no ponto 9 (…).

33. Em 2012, o Réu entregou 8.100,00 € à interessada (…) para pagamento da dívida referida no ponto 9 (…).

41. Em 2013, o Réu entregou 3.600,00 € à interessada (…) para pagamento da dívida referida no ponto 9 (…).

48. Em 2014, o Réu entregou 3.600,00 € à interessada (…) para pagamento da dívida referida no ponto 9 (…).

55. Em 2015, o Réu entregou 3.600,00 € à interessada (…) para pagamento da dívida referida no ponto 9 (…)”.

9 – Pelo que neste momento, é manifesto e inegável o facto extintivo da alegada obrigação da recorrida, neste caso, o pagamento da dívida.

10 – A quantia exequenda trata-se precisamente da tal dívida referida no facto 9, dado como provado no processo de prestação de contas: “9. Em 2009, a herança tinha uma dívida de 41.162,22 € para com a interessada (…).

11 – Dos factos provados naquela sentença resultou ainda que tal dívida foi sendo paga e, por isso, actualmente, está paga!

12 – A quantia exequenda está paga!

13 – Pelo que o facto 5, sem prejuízo de entendermos que já estava provado, agora está inequivocamente provado!

14 – E que não se diga que a recorrente nada tem a ver com o processo de prestação de contas!

15 – Pode realmente não ser parte naquele, mas ficou provado através do mesmo, que a alegada dívida à recorrente, a quantia exequenda está integralmente paga.

16 – Pelo que, deve manter-se a sentença recorrida integralmente.

O recurso foi admitido.


Objecto do recurso


As questões a resolver são as seguintes:

1 – Relevância da prolação, posteriormente à sentença recorrida, da sentença na acção de prestação de contas;

2 – Relevância da impugnação da decisão sobre a matéria de facto;

3 – Admissibilidade de suspensão da instância executiva com fundamento na pendência de uma causa prejudicial.


Factualidade apurada


No saneador-sentença recorrido, foram julgados provados os seguintes factos:

1. O título executivo dado à execução constitui a sentença proferida no processo de inventário n.º 293/09.8TBORQ, que correu termos neste Juízo de Competência Genérica de Ourique da Comarca de Beja, que homologou uma dívida à herança no valor de € 41.162,22, aprovada por todos os interessados herdeiros e a pagar por todos na proporção do quinhão de cada um, sendo que à executada corresponde o pagamento de € 13.720,74.

2. Decorre simultaneamente um processo de prestação de contas, n.º 293/09.8TBORQ-A, neste Juízo de Competência Genérica de Ourique, sendo que no âmbito desses autos o cabeça de casal apresentou as contas, referentes aos anos de 2010 a 2016, tendo incluído, nas contas apresentadas, o saldo negativo resultante das contas dos anos de 2008 e 2009, no valor de € 43.572,79, valor aceite por todas as partes.

3. O saldo negativo das contas dos anos de 2008 e 2009 é referente a duas dívidas da herança: uma no valor de € 41.162,22, à exequente, e outra, no valor de € 2.553,58, ao cabeça de casal (…).

4. A dívida da herança no valor de € 41.162,22 é aquela que se discute na execução a que os presentes embargos correm por apenso.

5. Relativamente a esta dívida da herança à exequente, no valor de € 41.162,22, e conforme as contas apresentadas nos autos do processo n.º 293/09.8TBORQ-A pelo cabeça de casal, a mesma tem vindo a ser paga à exequente através das receitas da herança.

6. As dívidas da herança à exequente e ao cabeça de casal (…) estão incluídas no passivo apresentado nas contas prestadas pelo cabeça de casal, no âmbito dos autos n.º 293/09.8TBORQ-A foram aprovadas na ação de inventário, processo n.º 293/09.8TBORQ, processo no qual foi proferida sentença que serve agora de título executivo.

7. Foi penhorado na execução, um depósito bancário no valor de € 3.000, um depósito bancário no valor de € 163,96 e metade de um imóvel no valor de € 32.900,00.

8. Também foi penhorado um imóvel, em que a executada/embargante é compropriedade na proporção de metade no valor de € 53.800,00, mas que está hipotecado ao BES, atual Novo Banco, até ao montante máximo € 141.500,00.

9. A executada é profissional liberal e não tendo tido trabalho nos últimos meses e, por isto, auferiu de rendimento em Janeiro, Fevereiro e Março de 2018 o valor total de € 2.554,80.

10. O seu sustento e da sua filha menor, (…), depende da utilização do valor depositado na conta bancária.

11. O pai da sua filha paga apenas o Colégio/Escola da menor.

12. Os imóveis que possui foram brutalmente vandalizados e/ou estão em avançado grau de degradação.

13. Encontra-se em recuperação de divórcio e de inventário judicial que a deixaram em dificuldades financeiras.

14. Possui doença auto-imune crónica, estando-se a privar de acompanhamento médico, alimentação e outros cuidados essenciais à estabilidade física e psíquica, por dificuldades financeiras.

15. Nesse processo de inventário foi proferida sentença que transitou em julgado a 30 de Janeiro de 2017, da qual, em conformidade com a forma da partilha (cfr. despacho de 04/07/2016), respetiva relação de bens (cfr. requerimento de 22/11/2013) e acta de conferência de interessados (cfr. despacho de 10/02/2016), consta a existência de dívidas quer à ora exequente, quer às entidades de crédito, quer ao cabeça de casal, aprovadas por todos os interessados herdeiros, bem como a responsabilidade de cada herdeiro na sua efectiva liquidação.

A sentença recorrida julgou não provado o seguinte facto:

As receitas obtidas após a sentença homologatória da partilha no inventário e na pendência da prestação de contas têm exclusivamente se destinado ao pagamento de outras obrigações distintas do passivo da herança.


Fundamentação

1



Nas contra-alegações, nomeadamente nas suas conclusões 6 a 15, a recorrida invoca a sentença proferida na acção de prestação de contas que constitui o apenso A.

Todavia, essa sentença não pode ser considerada para a decisão do recurso.

Desde logo, por não resultar do processo que a sentença proferida na acção de prestação de contas tenha transitado em julgado.

Por outro lado, por a mesma sentença ter sido proferida posteriormente ao saneador-sentença recorrido. Resulta dos artigos 627.º, n.º 1, 639.º, n.ºs 1 e 2 e 640.º do CPC que os recursos ordinários visam o reexame de questões que foram submetidas à apreciação do tribunal a quo e não o conhecimento de questões novas, ou seja, suscitadas pela primeira vez nessa sede. Isto, naturalmente, sem prejuízo do conhecimento, pelo tribunal ad quem, das questões que o devam ser oficiosamente. “Os recursos são meios de obter a reforma de sentença injusta, de sentença inquinada de vício substancial ou de erro de julgamento. (…) pretende-se um novo exame da causa, por parte de órgão jurisdicional hierarquicamente superior.”[1] Ora, estando em causa, no presente recurso, sindicar o saneador-sentença recorrido, é evidente a inadmissibilidade de o fazer tendo em consideração elementos surgidos em momento posterior à sua prolação.


2


A recorrente impugna a decisão sobre a matéria de facto, pelo que, em princípio, caberia apreciar tal questão antes de entrar na análise jurídica da causa.

Contudo, a questão de facto suscitada pela recorrente é irrelevante para a decisão da causa, pois, qualquer que fosse o sentido da decisão do tribunal ad quem sobre tal questão, a solução a dar ao recurso seria a mesma.

Aquilo que está fundamentalmente em causa é saber se uma acção de prestação de contas pode, em algum caso, constituir causa prejudicial relativamente a uma acção executiva.

Realce-se que é este o verdadeiro fundamento dos embargos de executado e não o pagamento, total ou parcial, do crédito exequendo. Na tese da recorrida, seria da verificação daquele nexo de prejudicialidade que decorreria a inexigibilidade e a iliquidez do crédito exequendo até ao trânsito em julgado da sentença a proferir na acção de prestação de contas. Tanto assim é, que o montante do alegado pagamento parcial nunca é concretizado na petição de embargos, visando a alegação desse hipotético pagamento, tão-só, demonstrar as pretensas inexigibilidade e iliquidez do crédito exequendo e a invocada prejudicialidade da acção de prestação de contas relativamente à acção executiva. E foi com esse mesmo fundamento que o saneador-sentença recorrido suspendeu a instância executiva.

Ora, a resposta a dar à questão da invocada prejudicialidade da acção de prestação de contas relativamente à acção executiva não depende da resolução da questão de facto suscitada pela recorrente, como resultará da exposição subsequente.


3


O artigo 272.º, n.º 1, 1.ª parte, do CPC, estabelece que o tribunal pode ordenar a suspensão da instância quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta. Ora, a finalidade da acção executiva “não é decidir uma causa, mas dar satisfação efectiva a um direito já declarado por sentença ou constante de título com força executiva. Não se verifica assim, no tocante à execução, o requisito exigido no começo do artigo: estar a decisão da causa dependente do julgamento doutra já proposta”[2]. Em face da redacção daquele preceito legal, mantém plena actualidade a doutrina acabada de citar, bem como o assento do STJ de 24.05.1960, que fixou jurisprudência no sentido de que a execução não pode ser suspensa com fundamento na existência de causa prejudicial[3]. “Na verdade, continua a não fazer sentido a invocação de uma causa prejudicial no confronto com o exercício do direito sustentado num título com força executiva, tanto mais que o art. 733.º prescreve agora a suspensão potestativa mediante a prestação de caução e legitima que noutros casos seja decretado o mesmo efeito”[4].

Concluímos, assim, que uma acção declarativa nunca constitui causa prejudicial relativamente a uma acção executiva. No caso sub judice, a acção de prestação de contas, da qual, aliás, a recorrente nem sequer é parte, não constitui causa prejudicial relativamente à execução embargada. Como a recorrente acertadamente afirma, o título apresentando a esta execução é uma sentença transitada em julgado que afirma a existência do seu crédito contra a recorrida e da qual resulta a exigibilidade e a liquidez desse mesmo crédito. Em face desse título executivo, está certificado que o crédito exequendo existe, é exigível e tem o montante de € 13.720,74. Nada daquilo que possa vir a ser decidido na acção de prestação de contas abalará a força desse título. Caso a recorrida venha a obter meio de prova do pagamento, total ou parcial, do crédito exequendo, poderá juntá-lo à execução ao abrigo do disposto no artigo 846.º, n.º 5, do CPC.

Sendo assim, carece de fundamento a suspensão da instância executiva decretada no saneador-sentença recorrido. Já que não indeferiu liminarmente os embargos de executado, o tribunal a quo devia ter julgado estes últimos improcedentes no saneador. Impõe-se, pois, a revogação do saneador-sentença na parte em que julgou procedentes os embargos de executado e determinou a suspensão da instância executiva até ao trânsito em julgado da sentença a proferir no apenso de prestação de contas. Em vez disso, deverão os embargos de executado ser julgados improcedentes, ordenando-se o prosseguimento da acção executiva.


Sumário


(…)

Decisão


Acordam os juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso procedente, revogando o saneador-sentença recorrido na parte em que julgou procedentes os embargos de executado e determinou a suspensão da instância executiva até ao trânsito em julgado da sentença a proferir no apenso de prestação de contas. Em vez disso, julga-se os embargos de executado improcedentes, ordenando-se o prosseguimento da acção executiva.

Custas pela recorrida.

Notifique.

Évora, 11 de Julho de 2019

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

José Manuel Barata

Conceição Ferreira

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[1] JOSÉ ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, volume V (reimpressão), p. 212.

[2] JOSÉ ALBERTO DOS REIS, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 3.º, p. 274.

[3] Neste sentido, CARLOS LOPES DO REGO, Comentários ao Código de Processo Civil, p. 226, nota III ao artigo 279.º.

[4] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, p. 315, anotação 6 ao artigo 272.º.