Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1503/03-1
Relator: RIBEIRO CARDOSO
Descritores: MAUS TRATOS ENTRE CÔNJUGES
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
IN DUBIO PRO REO
Data do Acordão: 03/09/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: RECURSO PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário:
No tipo de criminalidade dita de «violência doméstica», as declarações das vítimas não podem deixar de merecer ponderada valorização, pois que, reconhecidamente, os maus-tratos físicos ou psíquicos infligidos ocorrem, por via de regra, dentro do domicílio conjugal, no recato da impunidade não presenciada, preservado da observação alheia, garantido até pelo generalizado pudor que os mais próximos têm de se imiscuir na vida privada do casal.

Ribeiro Cardoso
Decisão Texto Integral:
Processo nº 1503-03-1

Acordam, precedendo audiência, na Relação de Évora:

I

1. Nos autos de processo comum singular n.º ... do .. Juízo do Tribunal Judicial da Comarca ..., o arguido, A. ..., melhor identificado nos autos, acusado pelo Ministério Público da prática de factos consubstanciadores da autoria material de um crime de maus-tratos, previsto e punível nos termos do disposto no art. 152.º n.º 1 e 2, do Código Penal, foi submetido a julgamento, perante Tribunal singular, vindo este a decidir, por sentença de 13-3-2003 (fls. 98 a 107), no que ao presente recurso importa, condenar o arguido (a) como autor material de um crime de maus-tratos, p. e p. nos termos do disposto no art.152.º n.º 1 e 2, do CP, na pena de 3 anos de prisão; (b) condenar o arguido a pagar a B. ..., a quantia de € 3.250,00 (três mil duzentos e cinquenta euros), que vencerá juros à taxa de 7% ao ano a contar da data do trânsito em julgado da sentença até integral pagamento; (c) suspender a execução da pena de prisão pelo período de 4 anos, sob condição do arguido, no prazo de 6 meses, pagar metade da indemnização e no prazo de um ano pagar a restante parte.

2. O arguido interpôs recurso daquela sentença.

Pede que a mesma seja revogada e a sua, consequente, absolvição.

Extrai da correspondente motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

1) O Arguido foi condenado pela prática de um crime de maus-tratos a cônjuge, p. e p. pelo art.152.°, n.º 1 e 2 do C.P., na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução, pelo período de 4 (quatro) anos, sujeito à condição de o arguido, no prazo de seis meses, pagar à Ofendida metade da indemnização, no valor de € 3.250,00 (três mil e duzentos e cinquenta euros) e no prazo de um ano pagar a restante parte.

2) O Arguido considera que os factos referidos pela Ofendida não permitem ao Tribunal formar a sua convicção, com certeza jurídica bastante, para o condenar pela prática do crime de que vem acusado.

3) O Tribunal para a determinação dos factos dados como provados, baseou-se essencialmente no testemunho da Ofendida.

4) Com o devido respeito, a valoração da prova foi feita de forma ininteligível tendo sido julgados incorrectamente pontos de facto e impondo as provas decisão inversa da recorrida.

5) O depoimento do A. ... é perfeitamente coerente e resume-se ao facto de existirem algumas zangas no casal, que o mesmo acha que são normais, e não mais que isso.

6) Esse testemunho é claro, consistente e esclarecedor, o qual foi confirmado pela testemunha ... e ..., pessoas que contactavam e conheciam bem o casal, A... e B. ...

7) O testemunho de B. ... não é credível pelas incoerências, designadamente que o Arguido a ameaçava com facas grandes e a amarrava a cordas para que esta não saísse de casa.

8) Não é assim possível, face ao exposto, concluir que o A. ... maltratou a sua (então) mulher

9) A decisão que se impõe face à prova supra descrita e constante dos autos é, inequivocamente, a absolvição do Arguido, por não se terem efectivamente provado os factos constantes da acusação.

10) Logo, a indemnização arbitrada ao Arguido, nos termos do art. 82.°-A, do C.P.P., não faz qualquer sentido uma vez que o mesmo deveria ter sido absolvido.

11) O Tribunal não andou bem quanto aos factos dados como provados relativamente à situação económica do Arguido.

12) Pelo exposto, o mais longe onde se é possível chegar no plano da convicção é à dúvida razoável, no âmbito da qual a única solução justa é a aplicação do princípio "in dubio pro reo " e a consequente absolvição do Arguido

3. O recurso foi admitido por Despacho de 22-4-2003 (fls. 132).

4. O Ministério Público no tribunal “a quo” não respondeu.

5. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto nesta Relação emitiu parecer no sentido de confirmação do julgado, salvo no que respeita ao “quantum” da pena, que deverá ser reduzida a dois anos de prisão.

6. Cumprido o disposto no art. 417.º n.º2 do CPP, o recorrente não respondeu.

7. Corridos os vistos legais, teve lugar a audiência, na qual foram proferidas alegações orais.

8. Os poderes cognitivos deste Tribunal alcançam, não apenas a matéria de direito mas também a decisão sobre a matéria de facto (art. 364.º e 428.º, do Código de Processo Penal) - foram documentados os actos de audiência, em 1.º instância, mostrando-se transcritas, as declarações objecto de gravação áudio, no julgamento em 1.ª instância.

O arguido recorrente aporta, na minuta recursória, as seguintes questões: (a) do erro de julgamento da matéria de facto; (b) aplicação do princípio in dúbio pro reo.

Assim demarcado o objecto do recurso (art. 412.º n.º 1, do CPP), são estas as questões que merecem especial exame, sem prejuízo dos vícios de conhecimento oficioso.

II

9. Julgamento da matéria de facto, em 1.ª instância.

9.1. Factos julgados provados.

O arguido casou com B. ... no dia 16 de Dezembro de 2000 e ambos viveram juntos, pelo menos, desde aquela data e até Fevereiro de 2002, data em que aquela se viu forçada a abandonar o lar conjugal.

Pelo menos desde Agosto de 2001, o arguido começou a molestar física e verbalmente a referida B. ..., então sua esposa.

Pelo menos desde a data referida em 2., em diversas ocasiões, o arguido a molestou fisicamente, sendo que, após as agressões, não lhe permitia que saísse de casa para recorrer a tratamento médico.

Pelo menos no período compreendido entre Agosto de 2001 e Dezembro do mesmo ano, em diversas ocasiões, o arguido disse à sua (então) esposa B. ... que a matava, que a cortava aos bocadinhos e que a amarrava com uma corda para não sair de casa, querendo, com tais frases, causar-lhe medo de vir a ser molestada fisicamente, o que conseguiu.

Concretamente, no dia 17 de Dezembro de 2001, no interior da (então) residência de ambos, sita em ..., o arguido disse à sua (então) esposa B. ... que era uma puta, uma vaca e que era pior que as putas da rua, tendo ainda apertado e torcido o braço esquerdo da mesma.

No dia 19 de Dezembro de 2001, ao final da tarde, em hora concretamente não apurada, no parque de estacionamento do Hipermercado Continente, na ..., o arguido dirigiu-se a B. ... e deu-lhe uma bofetada, apertando-lhe, de seguida, o pescoço.

Em todas estas ocasiões e noutras que B. ... teve de suportar, o arguido quis molestá-la fisicamente, conforme molestou, e ofendê-la no seu íntimo com os nomes que lhe chamou, o que igualmente conseguiu.

Atento o facto de estarem casados, o arguido sabia que estava vinculado para com a sua (então) mulher, ora ofendida, aos deveres de respeito e cooperação.

Ao invés, o arguido usou sempre a sua superioridade física mas quase sempre contida no interior da sua casa, para assim assumir uma posição de controlo no seio da família, bem sabendo que a sua actuação para com a sua mulher era cruel, o que quis.

Agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas.

O arguido e B. ..., no decurso do ano de 2002, em data concretamente não apurada, divorciaram-se.

O arguido é ...., profissão na qual aufere o salário mensal de cerca de € 750,00 (setecentos e cinquenta euros).

Vive em casa arrendada, pagando € 250,00 (duzentos e cinquenta euros) por mês de renda.

Não tem antecedentes criminais.

Não se mostrou arrependido.

Em consequências das descritas condutas do arguido, B. ... sofreu bastante física e psicologicamente e ainda sofre psicologicamente, tendo-se tornado uma pessoa extremamente nervosa e fragilizada psicologicamente.

Passou a ser e continua a ser objecto de acompanhamento médico e sujeita a medicação, como que já despendeu quantia concretamente não apurada, mas não inferior a € 750,00 (setecentos e cinquenta euros).

Em consequência das agressões do arguido, B. ... teve, ainda, de abandonar o lar conjugal e o seu posto de trabalho.

B. ... não deduziu pedido de indemnização civil (neste processo ou em separado) contra o arguido.


9.2. Factos julgados não provados.

Não se provou qualquer outro facto (alegado ou não) com relevância para a decisão da causa (incompatível com os factos provados), nomeadamente:

1. Qual a hora concreta em que ocorreram os factos constantes do ponto 6. dos factos provados.

2. Qual o montante concreto despendido por B. ..., em acompanhamento médico e medicamentos.


9.3. Motivação
O Tribunal fundou a sua convicção, para dar como provados os factos constantes da acusação (na parte em que resultaram provados), bem como quanto às consequências da conduta do arguido, essencialmente no depoimento da testemunha de acusação B. ..., que revelou conhecimento directo dos mesmos (por ser a ofendida) e, não obstante estar extremamente nervosa e fragilizada psicologicamente, depôs de forma coerente, sincera e esclarecedora, diversamente do que se passou com o arguido, que teve um depoimento parcial, interessado, pouco esclarecedor e não credível.

Relativamente à situação pessoal e económica do arguido, mereceram crédito as suas declarações.

Quanto aos antecedentes criminais, o tribunal baseou-se no C.R.C. do arguido junto aos autos.

Quanto aos factos que não resultaram provados, tal deveu-se à circunstância de, quanto eles, não se ter produzido qualquer prova.

10. Apreciação.

Vejamos agora.

10.1. As questões a examinar, tal como aportadas pelo recorrente.

10.1.1. Do erro de julgamento em matéria de facto.

Neste particular, pretexta o arguido que, em face da prova produzida na audiência de julgamento, em 1.ª instância, deveria ter sido absolvido.

Alega, em abono, que o Tribunal a quo estabeleceu os factos que suportaram a sua condenação essencialmente com base no depoimento da ofendida (i) que os factos referidos pela ofendida não permitem ao tribunal firmar a sua convicção, com certeza jurídica bastante para o condenar (ii) o depoimento do arguido é perfeitamente coerente e resume-se ao facto de existirem algumas zangas no casal, que o mesmo acha que são normais, e não mais que isso (iii) esse testemunho é claro, consistente e esclarecedor e foi confirmado pela testemunha ... e ..., que contactavam e conheciam bem o casal (iv) o testemunho da queixosa não é credível pelas incoerências, designadamente que o arguido a ameaçava com facas grandes e a amarrava com cordas para que esta não saísse de casa (v) não é possível concluir que o arguido maltratou a sua então mulher (vi) o tribunal não andou bem quanto aos factos dados como provados relativamente à situação económica do arguido.

Opõe-lhe o Ministério Público dizendo que:

- a motivação do recurso do arguido centra-se numa crítica à forma como o tribunal “a quo” ponderou a prova produzida em julgamento e que, nessa sua crítica, o recorrente mais não pretende do que, sem motivos plausíveis e objectivos, fazer prevalecer aquilo que ele entende que deveria ter sido dado como não provado, a partir duma sua muito pessoal interpretação dos factos trazidos à apreciação do tribunal e aquilo que este mesmo tribunal veio a dar como provado no âmbito assinalado;

- E no desenvolvimento dessa crítica, o recorrente alega também que o tribunal “a quo” incorreu na violação do princípio “in dúbio pro reo”, violação que a seu ver se terá concretizado na privilegiada valorização conferida pelo tribunal ao depoimento da ofendida em detrimento das declarações do arguido;

- Todavia, a invocação da violação desse princípio feita pelo recorrente recorta-se como totalmente infundada, pois tem como pressuposto a existência no juiz “a quo” de um estado de incerteza ou de dúvida quanto a determinados factos, estado esse que o recorrente nem sequer é capaz de explicitar;


- E da análise crítica da prova feita na sentença recorrida não se vislumbra a existência da mínima sombra de dúvida por parte do tribunal “a quo” quanto à credibilidade do depoimento da ofendida e à inverosimilhança das declarações do arguido.

Vejamos.

Importa, desde logo, ter presente que o princípio da livre apreciação da prova consignado no art. 127.º, do CPP, não significa a possibilidade de apreciação puramente subjectiva, arbitrária, baseada em meras impressões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação, antes pressupondo uma cuidada valoração objectiva e crítica e em boa medida objectivamente motivável, em harmonia com as regras da lógica, da razão, das regras da experiência e dos conhecimentos científicos.

Engloba não apenas os factos probandos apresáveis por prova directa mas também os factos indiciários, factos interlocutórios ou habilitantes, no sentido de factos que, por deduções e induções objectiváveis a partir deles e tendo por base as referidas regras, conduzem à prova indirecta daqueles outros factos que constituem o tema da prova.

Tudo a partir de um processo lógico-racional que envolve, naturalmente, também, elementos subjectivos, inevitáveis no agir e pensar humano, que importa reconhecer, com consistência e maturidade, no sentido de prevenir a arbitrariedade e, ao contrário, permitir que actuem como instrumento de perspicácia e prudência na busca da verdade processualmente possível – elementos que tornam difícil senão mesmo impossível a motivação objectivada de todos os passos do processo interior que, na base indispensável dos dados objectivos carreados para o processo, conduziram à convicção do julgador [1] .

Como assinala Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, 204 e ss.), a convicção do juiz há-de ser uma convicção pessoal - até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade meramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis [v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova], e mesmo puramente emocionais - mas, em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, capaz de se impor aos outros.

Uma tal convicção existirá quando e só quando o Tribunal tenha logrado convencer-se da verdade, para além de toda a dúvida razoável.

E, nesta matéria, diremos nós, que se assume, como fundamental, o princípio da imediação, isto é, a relação de proximidade comunicante entre o Tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da sua decisão.

Só estes princípios, com efeito, permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. E só eles permitem, por último, uma plena audiência destes mesmos participantes, possibilitando-lhes da melhor forma que tomem posição perante o material de facto recolhido e comparticipem na declaração do direito do caso (cfr. F. Dias, ob. cit. 232 e ss.).

Isto dito, concluímos, prima facie, que o recorrente se limita a criticar o uso que o Tribunal fez do aludido princípio da livre apreciação da prova (cit. artigo 127º), em sede de julgamento de facto, pretendendo dever ser outra a matéria provada e não provada (cfr. quanto a este princípio o acórdão do Tribunal Constitucional publicado no DR, II série, nº 9, de 12 de Janeiro de 1998, 499).




Mas não menos exacto que o Tribunal a quo indicou as provas que serviram para formar a sua convicção (essencialmente o depoimento da ofendida e declarações prestadas em audiência pelo arguido, estas restritas à sua situação pessoal e económica), nenhuma delas proibida por lei (artigo 125º), e todas da livre apreciação do julgador, segundo as regras da experiência comum e a sua convicção (artigo 127º, ambos do CPP), fazendo uma análise crítica, embora não detalhada, esclarecendo as razões do seu convencimento.

Como exemplarmente se afirma em acórdão proferido no Tribunal da Relação do Porto, recurso nº. 9920001, “a actividade dos juízes, como julgadores, não pode ser a de meros espectadores, receptores de depoimentos. A sua actividade judicatória há-de ter, necessariamente, um sentido crítico. Para se considerarem provados factos não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre as questões num determinado sentido, para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão. Por isso, a actividade judicatória, na valoração dos depoimentos, há-de atender a uma multiplicidade de factores, que têm a ver com as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sócio-cultural, a linguagem gestual (inclusive, os olhares) e até saber interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para poder perceber e aquilatar quem estará a falar a linguagem da verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá a mesma estar a ser distorcida, ainda que, muitas vezes, não intencionalmente”.

Isto é, a percepção dos depoimentos só é perfeitamente conseguida com a imediação das provas, sendo certo que, não raras vezes, o julgamento da matéria de facto não tem correspondência directa nos depoimentos concretos, resultando antes da conjugação lógica de outros elementos probatórios, que tenham merecido a confiança do tribunal.

Isto posto e apreendido, tem de reconhecer-se que o alegado não pode proceder, salvo no tocante ao valor da renda de casa paga pelo recorrente, que o tribunal “a quo” consignou ser de € 250,00 por mês e ressalta das declarações do recorrente – fonte do convencimento do tribunal – que esse valor é de cerca de € 300,00 mensais.

Desde logo, não se vê que os segmentos dos depoimentos relacionados pelo recorrente infirmem a fundamentação com que o Tribunal recorrido abonou a decisão sobre a matéria de facto.

Acresce que, quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova se baseia numa opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só pode censurá-la se ficar demonstrado que tal opção é inadmissível face às regras da experiência comum [2] .

Ora, se é certo que a experiência manda conferir os depoimentos de testemunhas que tenham interesse na decisão do pleito, não é menos certo que a atribuição de credibilidade a depoimento de testemunha que, alegadamente, haja sido ofendida pelo arguido, não viola qualquer determinação legal ou regra de experiência, muito menos o disposto no art.127.º, do CPP.

E assim, é sempre de sublinhar, desde que seja possível, por via da fundamentação da decisão, a conferência das razões que levaram o tribunal a estabelecer a convicção de certa materialidade ocorreu de determinada maneira e não de outra.

Ora, no caso, a decisão revidenda explicita, de modo cuidado, as razões que levaram o Tribunal a quo a optar pela versão dos factos trazida pela ofendida e em parte confirmadas pela testemunha ...

Por isso que este Tribunal ad quem, sem os benefícios que inegavelmente conferem a imediação e a oralidade que bafejaram o Tribunal recorrido (sem a cor nem o cheiro que não ressumam das gravações nem das transcrições destas), não pode desconsiderar depoimentos que foram considerados ou considerar depoimentos que foram, em 1.ª instância, desconsiderados, sem razões sustentáveis, a partir, designadamente, das gravações do julgamento realizado.

Razões que, no caso, nem o Recorrente validamente aponta nem a conferência das gravações da audiência de todo consentem.

Ademais, ressalvado o devido respeito pelo esforço argumentativo do recorrente, não se pode, com cabimento e sensatez substantiva, infirmar a credibilidade do depoimento da ofendida (por, na abstracção, ter uma posição parcial relativamente à decisão da causa), apenas com base nas declarações contraditórias do arguido, que a sentença cabalmente explica porque não mereceram convencimento [3] .

Acresce que, no tipo de criminalidade dita de «violência doméstica», as declarações das vítimas não podem deixar de merecer ponderada valorização, pois que, reconhecidamente, os maus-tratos físicos ou psíquicos infligidos ocorrem, por via de regra, dentro do domicílio conjugal, no recato da impunidade não presenciada, preservado da observação alheia, garantido até pelo generalizado pudor que os mais próximos têm de se imiscuir na vida privada do casal [4] .

Ora, no caso, à luz de tais asserções e ensinamentos, vistas e revistas as fracções transcritas pelo recorrente no contexto em que foram produzidas, revelado pelas gravações dos depoimentos produzidos, e cabalmente explicitado na fundamentação do decidido aportada à douta sentença revidenda, não se detecta qualquer erro de julgamento em matéria de facto, com excepção do segmento acima referido, pois que se não afiguram relevantes, para o efeito de desmerecer a consideração do julgador, as contradições detectadas entre as declarações da ofendida e as declarações do arguido, que sempre negou a prática de qualquer crime e que na sua óptica depôs sempre de forma clara, coerente, consistente e esclarecedora.

Em lógica decorrência, a alegação do arguido não pode, neste particular, lograr provimento.

10.2. Da violação do princípio “in dúbio pro reo”.

Também neste conspecto não pode reconhecer-se razão ao recorrente.

É certo que o princípio in dubio pro reo é uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver a certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa.



O art. 32 nº 2 da CRP, que consagra o princípio da presunção de inocência, integra uma norma directamente vinculante e constitui um dos direitos fundamentais do cidadão – art. 18 nº 1 da CRP.

É, antes de mais, um princípio natural, lógico, de prova.

Enquanto não for demonstrada, provada, a culpabilidade do arguido não é admissível a sua condenação.

A presunção de inocência tem óbvias repercussões no princípio “in dubio pro reo”, já que um non liquet na questão da prova deve ser sempre valorado a favor do arguido.

Mas daqui não resulta que, tendo negado factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência ao princípio in dubio pro reo, por apenas haver uma outra pessoa a dizer coisas diferentes.

A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido – ac. STJ de 24-3-99 CJSTJ, tomo I, pag.247.

Ora no texto da sentença não se vislumbra que o senhor juiz tenha tido dúvidas sobre a prova dos factos impugnados pelo recorrente.

Por outro lado, não se detectam na sentença recorrida qualquer dos vícios enumerados no art. 410.º n.º2 do CPP.

10.3. Da medida da pena.

Ainda que o recorrente não tenha expressamente formulado o pedido de redução da pena de prisão – ele pediu mais, a absolvição – o Ministério Público nesta instância suscitou essa questão e nada obsta à sua reapreciação.

Com efeito, como se exarou no Ac. do STJ de 7 de Novembro de 2002, relatado pelo Exmo. Juiz Conselheiro Dr. Simas Santos, proferido no proc.596/02 -1 desta Relação de Évora, “ tem vindo o STJ a entender que a escolha e a medida da pena, ou seja a determinação das consequências do facto punível, é levada a cabo pelo juiz conforme a sua natureza, gravidade e forma de execução, escolhendo uma das várias possibilidades legalmente previstas, traduzindo-se numa autêntica aplicação do direito sindicável pelos tribunais superiores. E que não oferece dúvidas de que é susceptível de revista a correcção das operações de determinação ou do procedimento, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, a falta de indicação de factores relevantes, o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais de determinação, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, para controlo do qual o recurso de revista seria inadequado, salvo perante a violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efectuada”.

Retomando os termos do julgamento em 1.ª instância: o arguido foi condenado: (a) como autor material de um crime de maus-tratos, p. e p., nos termos do disposto no art. 152.º n.º 1, alin. a) e 2 do CP, com a pena de 1 a 5 anos de prisão, na pena concreta de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 4 anos.

E assim, com o expresso fundamento no médio grau de ilicitude dos factos (considerando o facto de tal conduta se ter repetido no tempo, quase diariamente, durante, pelo menos, cerca de 5 meses), modo de execução e às suas consequências (grau de sofrimento físico e psíquico da ofendida, que ficou muito fragilizada psicologicamente, tendo inclusivamente que ser medicada e objecto de acompanhamento médico), o dolo directo com que o arguido agiu, as exigências de prevenção geral, bem como nas condições pessoais, situação económica e conduta do arguido anterior e posterior aos factos.

Aduz o Ministério Público que, não divergindo do M.º Juiz “a quo” na enunciação dos factores dosimétricos que deverão ser ponderados na fixação do “quantum” da medida da pena, considerando que na determinação concreta da mesma intervém sempre uma certa margem de liberdade, uma inescapável dose de subjectividade, se apresenta como mais justo e equilibrado, sem deixar de satisfazer, no caso, as exigências de reprovação e de prevenção, sancionar o arguido com uma pena de dois anos de prisão.

É em atenção ao disposto no art. 71.º, do CP, que há-de fazer-se a pertinente ponderação.

A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo levar-se em conta que, nos termos prevenidos no art. 40.º, do mesmo Código, a pena não pode, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa.

Como refere o Prof. Figueiredo Dias, «culpa e prevenção são assim os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena (em sentido estrito ou de determinação concreta da pena)» [5] .

A escolha da pena terá assim de ser perspectivada em função da adequação, proporção e potencialidade para atingir os objectivos estipulados no referido art. 40.º do Código Penal.

É que, embora a pena privativa da liberdade possa corresponder a uma expectativa geral da sociedade, como meio de retribuir o mal causado à comunidade, o sistema legal não pode esquecer que a este anseio colectivo tem sempre de sobrepor a necessidade de ressocializar o infractor.

Revertendo ao caso.

Relativamente à questão sintetizada referente à medida da pena por um crime cuja qualificação jurídico-criminal não sofreu impugnação e que se mostra ajustada, afigura-se-nos que a sentença recorrida justificou adequadamente a pena aplicada de 3 anos de prisão, à luz dos critérios e factores constantes dos art. 40º e 71º do C.P.

Partindo da moldura legal abstracta da pena de prisão, com o mínimo de 1 ano de prisão, considerou o grau de ilicitude do facto – de grau médio, atento nomeadamente o modo de execução e as consequências sofridas pela ofendida -, a intensidade do dolo, a personalidade do arguido, sua inserção laboral e a ausência de antecedentes criminais.

Desde logo, não se vê que subsista particular vigor atenuativo na ausência de pretérito criminal, face à reiteração delitiva demonstrada e à ausência de uma conduta, ou mesmo apenas de uma atitude repesa, de arrependimento sincero.

Os factos ilícitos praticados denotam um médio grau de culpa no que diz respeito ao crime de maus-tratos.




O comportamento ilícito do recorrente é sentido pela comunidade como sinal de desprezo pela dignidade humana, fazendo perigar as expectativas dos restantes cidadãos na eficácia do ordenamento jurídico (prevenção geral).

As exigências de prevenção geral são elevadas, atenta a natureza do ilícito em causa, que no nosso tempo não se pode tolerar.

A violência no seio familiar, quase sempre silenciada, é um dos grandes flagelos da nossa sociedade. Só uma cultura interiorizada de respeito pela dignidade poderá criar as condições de harmonia tão desejadas.

Ponderando a medida da culpa e as exigências de prevenção geral e especial, afigura-se que a decisão recorrida estabeleceu, com equitativo e proporcionado critério, à luz da materialidade julgada provada e em face da moldura abstracta da pena, a pena concreta que não pode deixar de confirmar-se, nesta instância, bem como os termos e condições da suspensão da execução da pena.

Como assim, o recurso não pode deixar de improceder, no essencial.

Haverá apenas que rectificar o n.º13 dos factos provados, de modo a que onde se lê ”pagando € 250,00 (duzentos e cinquenta euros) por mês de renda”, passe a ler-se “pagando cerca de € 300,00 (trezentos euros) por mês de renda”.

11. Face à improcedência parcial do recurso, incumbe ao arguido recorrente o pagamento das custas – art. 513.º e 514.º n.º 1, do CPP e art. 82.º n.º 1 e 87.º n.º 1 al. b), estes do Código das Custas Judiciais.

III

12. Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se:

a) conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência, alterar a redacção do n.º 13 dos factos provados nos termos supra referidos, no mais confirmando a sentença recorrida;

b) condenar o arguido recorrente nas custas, com a taxa de justiça em 5 (cinco) UC.

Pagar-se-ão ao defensor oficioso do recorrente os honorários constantes da tabela em vigor, aprovada pela Portaria n.º 150/2002, de 19 de Janeiro.


Lido e revisto pelo relator que assina e rubrica as demais folhas.

Évora, 2004.03.09

a) F.Ribeiro Cardoso
Onélia Madaleno
Gilberto da Cunha




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[1] Veja-se, por mais recente, neste sentido, o Acórdão, do Supremo Tribunal de Justiça, de 16-1-2002, Proc. 3649/01 – 3.ª Secção, com relato do Exmo. Sons. Armando Leandro.
[2] Ensinava o Prof. Vaz Serra que as regras da experiência não são normas jurídicas mas são partes dessas normas porque estas as mandam, expressa ou tacitamente, ter em conta, pelo que a sua violação implica infracção de lei substantiva – Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 108.º, pág. 358.
[3] Cfr., a respeito e por mais impressivos para o caso, os Acórdãos, da Relação do Porto, de 28-6-89, na Colectânea de Jurisprudência, Ano XIV, tomo III, pp. 247 e segs., do Supremo Tribunal de Justiça, de 9-11-94, no Boletim do Ministério da Justiça 441.º, pp. 145 e segs., de 11-3-97, no BMJ 465.º, pp. 629 e segs., e, da Relação de Coimbra, de 5-2-2000, sumariado no BMJ 494.º, pág. 405, este no sentido de que «as declarações da ofendida, quando credíveis e relacionadas com todos os outros elementos de prova, são suficientes para, segundo as regras da experiência comum, dar como provados os factos».
[4] Neste sentido, por mais impressivo, vd. o Acórdão da Relação de Lisboa, de 6-6-2001, Proc. 0034263, com relato do senhor Juiz Des. Dr. Adelino Salvado (www.dgsi.pt).
[5] «Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime», Editorial Notícias, 1993, pág. 214.