Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
81/14.0T8FAR.E1
Relator:
ALBERTINA PEDROSO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
FACTOS COMPLEMENTARES
PROVA PERICIAL
DANO BIOLÓGICO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
TAXA DE JUSTIÇA
Data do Acordão: 03/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I - A relação jurídica material, tal qual o autor a apresentou na acção, funda-se na ocorrência do acidente de viação cuja responsabilidade imputa ao condutor do veículo segurado na ré; no nexo de causalidade entre esse acidente e os danos por si sofridos; e, quanto a estes, concretamente do tipo de danos em causa.
II - Assim, tendo o autor alegado todos os factos essenciais principais dos quais pode eventualmente decorrer a peticionada indemnização pela perda da capacidade de ganho que alegou ter sofrido em consequência do acidente, com repercussão em toda a sua vida futura, e devendo o tribunal ter em conta para além da alegação explícita também a alegação implícita, o facto considerado provado em 84. apresenta-se como concretizador da extensão do dano alegado pelo autor quanto à repercussão do acidente na sua vida profissional.
III - Daqui decorre que, resultando da instrução da causa, tal facto deve ser considerado na sentença como complementar ou concretizador dos factos essenciais principais alegados, porquanto se integra no objecto do litígio, e sobre o mesmo as partes tiveram a possibilidade de se pronunciarem.
IV - A prova pericial não é de apreciação vinculada, só sendo efectuada por solicitação das partes ou determinada oficiosamente pelo juiz relativamente a factos necessitados de prova, na formulação do artigo 410.º do CPC, sendo de livre apreciação pelo tribunal mesmo quando é efectuada uma segunda perícia (artigo 489.º do CPC).
V - Não obstante, situações há em que, mercê da complexidade técnica da avaliação em causa, o legislador atribui a especialistas específicos nas respectivas áreas - sujeitos a especiais regras de recrutamento, de competências e de condições para o exercício dessas funções -, o cálculo dos factores determinantes para a posterior fixação pelo tribunal da indemnização justa e equitativa.
VI - Tal ocorre precisamente quando está em causa a avaliação do dano em direito civil em que não basta a apreciação de um médico ainda que especialista na área, estando o cálculo da incapacidade permanente do lesado para efeitos de reparação civil do dano que lhe foi causado, atribuída legalmente pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, artigo 2.º, n.º 3, a médicos especialistas em medicina legal ou por especialistas noutras áreas com competência específica no âmbito da avaliação médico-legal do dano corporal no domínio do direito civil e das respectivas regras.
VII - Deste modo, reconhecendo o legislador a especial complexidade da avaliação em causa, e não dispondo o juiz de conhecimentos especiais na área a que respeita a perícia, apesar da sua liberdade de apreciação das provas, incluindo a pericial, o julgador não pode, sem fundamentos suficientemente sólidos, afastar-se do resultado das peritagens, sobretudo quando os peritos oferecem as garantias de competência e imparcialidade que aquela formação específica exige.
VIII - Assim, salvo casos de erro grosseiro ou de aplicação de um critério ilegal, o juiz em regra não estará em condições de sindicar o juízo científico emitido pelo perito, havendo que o aceitar, salvo se existirem nos autos outros elementos que possuam o referido grau de segurança, fiabilidade e objectividade.
IX - Este entendimento, que temos vindo a adoptar, tem necessariamente que ser enquadrado com o concreto juízo pericial que está em causa, tendo diferentes nuances consoante estejamos perante um juízo de cariz absolutamente científico ou um juízo que possa também fundar-se na conjugação com outros meios de prova.
X - Resultando do relatório pericial na vertente da repercussão do dano na actividade profissional, que esta exige esforços suplementares, mas admitindo o Senhor Perito nos esclarecimentos prestados que a situação seria diversa consoante estivéssemos, no fundo, perante um maior ou menor exercício da actividade de condução, para cujo exercício está demonstrado que o Autor tem manifesta dificuldade, podendo não ser compatível com o exercício da actividade profissional, a referida conclusão encontra-se deferida ao juiz, em face da concreta situação de vida profissional em presença.
XI - Assim, ponderando que ao tribunal incumbe retirar as devidas ilações de toda a matéria de facto provada, e tendo resultado provado, por mais impressivo, que o autor exercia a profissão de vendedor em toda a região do Algarve (facto 83); que tem um défice funcional permanente da integridade física fixado em 47 pontos (facto 43); que tem dificuldade em executar a actividade de conduzir (facto 64); que ainda hoje mantém a ajuda de terceiros porque muitas vezes não consegue exercer a sua actividade diária básica de forma normal (facto 69); e também que a empresa veio a celebrar com o autor um novo contrato de trabalho compatível com as suas actuais capacidades físicas (facto 86), a conclusão extraída de que as sequelas descritas não são compatíveis com a profissão que o autor vinha exercendo, no âmbito da qual se deslocava diariamente exercendo a condução, num percurso que se situa entre São Brás de Alportel e Vila Real de Santo António, é a que se impõem ante a apreciação da prova globalmente produzida.
XII - O critério fundamental para a fixação da indemnização devida pelo dano biológico, tanto das indemnizações atribuídas por danos patrimoniais futuros (vertente patrimonial do chamado dano biológico) como especialmente por danos não patrimoniais (dano biológico e demais danos não patrimoniais), é a equidade.
XIII - Para ressarcimento dos danos patrimoniais futuros, contando-se 356 meses, entre a data em que terminou o período de repercussão temporária na actividade profissional total e o termo previsível da vida activa que o autor atingirá em 30/07/2042; multiplicando-se pelo resultado da diferença entre o valor médio mensal antes recebido e o auferido depois do acidente, que é de 1 361,75€, ascendendo essa quantia global a 484 783,00€; dividindo depois esta quantia por três, por aplicação da taxa de juro; subtraindo esse resultado àquela quantia inicialmente encontrada; e aplicando ainda o que dispõe o artigo 8.º do CC, de acordo com o qual a justiça do caso concreto há-de procurar-se também recorrendo a casos de natureza semelhante que já tenham sido apreciados pelos Tribunais, entendemos ser consentânea com os critérios que têm vindo a ser encontrados, designadamente pelo Supremo Tribunal de Justiça, para situações muito semelhantes à dos autos, fixar a referida indemnização em 320 000,00€.
XIV - Na vertente dos danos não patrimoniais, ponderam-se todos os factos associados à fixação do quantum doloris no grau 5/7; à fixação do dano estético permanente no grau 4/7; tendo presente ainda que o Autor tinha 37 anos de idade à data do acidente, sendo então uma pessoa saudável e com alegria de viver, ficou com uma incapacidade funcional de quase 50%, só por si bem indiciadora da perda da qualidade de vida com que se terá que defrontar até ao final da sua vida, com as inerentes dores, não só as já sentidas como as que ainda padecerá por longos anos e que tende a agravar no futuro; e naturalmente ainda que também sofreu dores e incómodos nos internamentos hospitalares, a sua vida será sempre marcada pela realização de exames médicos, de deslocações a instituições hospitalares, e de todo o quadro de sofrimento associado, tudo sendo consequência do acidente da exclusiva responsabilidade do condutor do motociclo segurado na ré, reputando-se adequada a fixação da respectiva indemnização em 60.000,00.
XV - Quando, mercê do pagamento da taxa de justiça remanescente, se verificar a ocorrência de «uma desproporção que afete claramente a relação sinalagmática que a taxa pressupõe entre o custo do serviço e a sua utilidade para o utente», impõe-se ao Juiz o uso da faculdade que actualmente lhe é conferida pelo n.º 7, do artigo 6.º, do RCP com vista a dispensar, total ou parcialmente, o pagamento dessa taxa de justiça
XVI - Não se verificando a desproporcionalidade que funda a aplicação do disposto nesse preceito, deve ser indeferida a requerida dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça.
Decisão Texto Integral:
Processo n.º 81/14.0T8FAR.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro[1]
*****
Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[2]:

I – RELATÓRIO
1. AA, instaurou contra ... - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., a presente acção sob a forma de processo com, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia global de 380 000,00€ (trezentos e oitenta mil euros), - correspondendo a quantia de 300 000,00€ (trezentos mil euros) a indemnização por danos patrimoniais, e a quantia de 80 000,00€ (oitenta mil euros) ao ressarcimento de danos não patrimoniais -, acrescida com juros desde a citação até efectivo e integral pagamento, sofridos em consequência de acidente de viação de que foi vítima, e pelo qual considera o condutor do veículo segurado na ré o único culpado.

2. Citada a Ré, contestou, impugnando a versão do acidente trazida pelo autor, e, por excepção, invocando a prescrição do direito que o autor pretende exercer através da presente acção, caso se entenda que se verifica responsabilidade pelo risco.

3. O autor respondeu à matéria da excepção invocada pela ré, pugnando pela respectiva improcedência.

4. Dispensada a realização de audiência prévia, foi fixado o valor da causa em 380 000,00€, e foi proferido despacho saneador, relegando-se para final o eventual conhecimento da excepção de prescrição, seguindo-se a fixação do objecto do litígio e a enunciação dos temas da prova, que não mereceram qualquer reclamação.

5. Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi seguidamente proferida sentença, com o seguinte dispositivo: «julga-se a ação procedente, porque provada, e, em consequência, decido condenar a seguradora “… – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.” no pagamento ao autor, dos seguintes montantes: € 340 000,00 (trezentos e quarenta mil euros), relativa a dano patrimonial futuro; € 40 000,00 (quarenta mil euros), a título de danos não patrimoniais; sobre tais quantias vencer-se-ão juros de mora à taxa legal, desde a data da sentença até integral pagamento».

6. Inconformada, a R. Companhia de Seguros, apresentou o presente recurso de apelação da sentença proferida, tendo finalizado a sua minuta recursória com as seguintes conclusões:
«I. Não se verificam as condições legais para que o tribunal adite o facto 84 dos factos provados da sentença (As sequelas descritas não são compatíveis com o exercício da profissão de vendedor que o A vinha exercendo e, nesse âmbito, a necessidade diária do exercício da condução num percurso que se situa entre a zona de São Brás e Vila Real de Santo António).
II. O facto 84 dos factos provados da sentença não foi alegado por qualquer das partes, não é complemento ou concretização de facto essencial alegado pelas partes, nem resultou da instrução da causa, sendo certo que constitui facto essencial à pretensão do Autor.
III. Ao aditar o facto 84 dos factos provados o tribunal cometeu uma nulidade, que deve ser reparada, nos termos do artº 195º nº 1 do CPC.
IV. O facto 84 dos factos provados da sentença deve ser eliminado do elenco dos factos provados.
V. Não se entendendo o referido nas conclusões anteriores, a matéria de facto constante do facto 84 dos factos provados deve dada como não provada, por a tal conduzir o relatório médico-legal junto aos autos e o depoimento gravado do perito que elaborou tal relatório, única entidade que se pronunciou sobre a questão.
VI. Em substituição do facto 84 dos factos provados da sentença deverá ser dado como provado apenas que as sequelas descritas são, em termos de repercussão permanente na actividade profissional, compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas implicam esforços suplementares, por tal resultar do exame pericial médico-legal e das declarações do respectivo perito, única prova existente nos autos sobre a matéria.
VII. Os danos totais do autor, emergentes do acidente dos autos, devem ser valorados em cinquenta mil euros.
VIII. A sentença recorrida violou as disposições conjugadas dos artigos 5º, 195º nº 1, 260º, 552º nº 1 d), 572º c) e 608º nº 2 do CPC e os arts 496º e 566 do Código Civil.
IX. As partes devem ser dispensadas de pagar o remanescente da taxa de justiça, previsto na Tabela I, para causas de valor superior a 275.000€».

7. O A. apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do julgado.

8. Observados os vistos legais, cumpre decidir.
*****
II. O objecto do recurso.
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil[3], é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, evidentemente sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Assim, vistas as alegações de recurso apresentadas pela Ré, a mesma aceita a responsabilidade do condutor do veículo seu segurado no acidente, pelo que, as questões a apreciar no presente recurso de apelação consistem, pela sua ordem lógica, em saber se:
- é ou não possível o aditamento da matéria contida no artigo 84.º dos factos provados o qual, em qualquer caso, deve ser considerado não provado;
- é ou não adequado o quantum indemnizatório fixado a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, pretendendo a Recorrente que a compensação global ao autor deve ser fixada em 50 000,00€;
- as partes devem ser dispensadas de pagar o remanescente da taxa de justiça, previsto na Tabela I do RCP, para causas de valor superior a 275 000,00€.
*****
III – Fundamentos
III.1. – De facto
Foram os seguintes os factos considerados como provados na sentença recorrida:
1. Através da apólice n.º … 224703 foi transferida para a ré a responsabilidade civil emergente da circulação do motociclo ...-...-NS (artigo 5.º da petição inicial).
2. O autor nasceu a 30 de julho de 1972 (artigo 43.º da petição inicial).
3. No dia 4 de outubro de 2009, pelas 20h45m, na A22, ao km 72,500, no Concelho de Loulé, no sentido Albufeira/Faro, ocorreu um embate entre o motociclo com a matrícula ...-...-NS e o motociclo com a matrícula ...-...-VH (artigos 1.º e 2.º da petição inicial).
4. O motociclo com a matrícula ...-...-VH, era conduzido pelo seu proprietário, o autor (artigo 3.º da petição inicial).
5. O motociclo com a matrícula ...-...-NS era conduzido pelo seu proprietário, MV, segurado da ré (artigo 4.º da petição inicial).
6. Ambos os motociclos intervenientes circulavam no sentido Albufeira/Faro. (artigo 6.º da petição inicial).
7. O condutor do motociclo com a matrícula ...-...-VH (o autor), seguia atento na sua faixa de rodagem. (artigo 7.º da petição inicial).
8. Fazia-o integrado num grupo de mais de seis motociclistas, todos conhecidos e amigos, que regressavam de uma festa. (artigo 8.º da petição inicial).
9. No qual se incluía o motociclo ...-...-NS, conduzido pelo segurado da ré (artigo 9.º da petição inicial).
10. O autor seguia à frente, outro motociclista de nome AS, seguia atrás deste e o MV, condutor do veículo ...-...-NS, segurado da ré, seguia atrás deste último. (artigo 10.º da petição inicial).
11. Àquela hora já era escuro (artigo 11.º da petição inicial).
12. No local não existe iluminação. (artigo 12.º da petição inicial).
13. E a estrada é constituída por uma curva larga, para a esquerda, após a saída do túnel do Areeiro. (artigo 13.º da petição inicial).
14. O condutor do veículo ...-...-NS, ultrapassou o AS e deparou-se com o motociclo VH, conduzido pelo autor à sua frente, pelo que travou (artigo 14.º da petição inicial).
15. E sem se certificar das condições de trânsito, o motociclo ...-...-NS foi embater no motociclo ...-...-VH conduzido pelo autor, que seguia na sua faixa de rodagem, provocando o seu despiste (artigo 15.º da petição inicial).
16. O embate deu-se antes da curva (artigo 16.º da petição inicial).
17. O autor, na sequência do despiste foi às cambalhotas, primeiro pelo alcatrão, depois nos rails de proteção lateral e saiu da estrada, bateu na rede, que ultrapassou, vindo a imobilizar-se do lado direito, a cerca de 75 metros do início do despiste. (artigo 17.º da petição inicial).
18. Não tendo, em momento algum travado. (artigo 18.º da petição inicial).
19. O motociclo ...-...-NS despistou-se e foi parar a cerca de 80 metros do local do início da travagem. (artigo 19.º da petição inicial).
20. O condutor do motociclo ...-...-NS caiu e foi conjuntamente com o seu motociclo durante cerca de 30 metros, onde ficou prostrado na estrada. (artigo 203.º da petição inicial).
21. Depois do motociclo ...-...-VH se despistar, o seu condutor, o autor foi ainda atingido, já no solo, por uma viatura automóvel que circulava à retaguarda. (artigo 21.º da petição inicial).
22. O motociclo ...-...-NS, apresenta estragos na sua lateral direita, provocados pelo seu arrastamento no solo (artigo 22.º da petição inicial e parte do artigo 22.º da contestação).
23. O motociclo ...-...-VH, ficou inutilizado com estragos em toda a sua extensão, nomeadamente no guiador, parte central e ambas as laterais (artigo 23.º da petição inicial).
24. Em consequência, sofreu o autor traumatismos múltiplos no antebraço esquerdo, cotovelo, joelhos, mão esquerda e braço direito, fratura cominutiva do planalto tibial esquerdo exposta grau III, fratura de múltiplos arcos costais à esquerda, fratura supracondiliana de úmero direito, fratura 1/3 proximal do rádio esquerdo, fratura de bennett com fratura luxação da MCF do 2.º e 3.º raio e fratura 2.º MC, fratura do colo do omoplata esquerdo, lesão do plexo braquial esquerdo – (artigo 27.º da petição inicial).
25. Múltiplos ferimentos, hematomas e escoriações ao longo do corpo. (artigo 28.º da petição inicial).
26. O autor foi transportado pelos Bombeiros para o Hospital Distrital de Faro onde esteve internado durante 52 dias, desde o dia do acidente, (04 de outubro de 2009) até ao dia 23 de novembro de 2009 (artigo 29.º da petição inicial).
27. Onde lhe foram ministrados diversos tratamentos e realizados exames complementares de diagnóstico e terapêutica, tais como analises, tomografia computorizada e incidências várias, consultas externas, radiologia, procedimentos em bloco operatório por traumatismos múltiplos no período entre 04 de outubro de 2009 e 25 de Novembro de 2010 (artigo 30.º da petição inicial).
28. O autor foi submetido a tratamentos cirúrgicos no Hospital Distrital de Faro), designadamente: duas cirurgias ao joelho esquerdo, uma cirurgia de urgência no bloco operatório no dia do acidente e posteriormente em 15/10/2009 sob AG com garrote, osteossíntese da fratura do côndilo externo com 2 pfs de esponjosa, redução sequencial multifragmentária da fratura da tíbia com pfs interfragmetários, colocação de placa na face interna da tibia; variax; sutura do quadricipete, entre outros tratamentos - (artigo 31.º da petição inicial).
29. No cotovelo direito, pela via transolecraneana, redução e OTS com duas placas de variax, entre outros (artigo 32.º da petição inicial).
30. No rádio esquerdo, redução e OTS com placa, encerramento por planos (artigo 33.º da petição inicial).
31. RI e fixação de Kishner de fratura de Bennett e de fratura do condilo do MC (artigo 34.º da petição inicial).
32. Depois do internamento hospitalar, o autor foi seguido por longo período de tempo em ambulatório/consultas no Hospital de Faro E.P.E., no Centro de Saúde da Bordeira e Centro de Saúde de Santa Barbara de Nexe (artigo 35.º da petição inicial).
33. E, fez tratamentos de fisioterapia cerca de 14 (catorze) meses e ainda hoje continua a fazer (artigo 36.º da petição inicial).
34. Apesar de todas as lesões sofridas, o autor nunca perdeu o conhecimento, padecendo de muitas dores e intenso mal-estar físico. (artigo 37.º da petição inicial).
35. Dores intensas essas sobretudo nas zonas afetadas que ainda hoje persistem (artigo 38.º da petição inicial).
36. Em 13 de julho de 2005 o autor apresentava as seguintes sequelas:
- Membro superior direito: cicatriz operatória da fase posterior do cotovelo com 20 cm limitação da mobilidade do cotovelo (10.º/10.º/120.º), sem limitação da pronosupinação;
- Membro superior esquerdo: cicatriz da face anterior do antebraço com 12 cm; limitação da mobilidade do ombro com abdução de 90.º e rotações de 60.º; e punho com pronação de 30.º e supinação de 45.º; dorsiflexão do punho de 60.º e flexão palmar de 60.º; rigidez trapézio metacárpica; Anquilose da 1.ª articulação metacarpo falângica e rigidez da articulação interfalangica;
- Membro inferior direito: Área equimótica do dorso do pé com 6*6cm;
- Membro inferior esquerdo: cicatriz operatória vertical com 32 cm desde o terço médio anterior da coxa até ao terço médio da perna e outra cicatriz transversal na face anterior do joelho com 7*7cm; desvio axial em valgo de 20.º de joelho e flexo de 30.º e limitação da mobilidade global (30.º/30.º/120.º), instabilidade articular, amiotrofia de 2,5cm e encurtamento (secundário a flexo) e sinais rotulianos positivos com sinais globais sugestivo de artorose femuro tibial e patelo lemural. (…)
37. Possuindo os seguintes danos permanentes:
- Marcha claudicante (sem recurso a canadianas); Cicatriz operatória da face posterior do cotovelo direito com 20 cm; Cicatriz da face anterior do antebraço esquerdo com 12 cm; Cicatriz operatória vertical com 32 cm desde o terço médio anterior da coxa até ao terço médio da perna e outra cicatriz transversal na face anterior do joelho com 7*7cm; Área equimótica do dorso do pé com 6*6cm;
- Limitação da mobilidade do cotovelo direito (20.º/20.º/120.º);
- Limitação da mobilidade do ombro esquerdo com abdução de 90.º e rotações de 60.º; Antebraço com pronação de 30.º e supinação de 45.º, dorsiflexão do punho de 60.º e flexão palmar;
- Rigidez trapézio metacárpico; Anquilose da 1.ª articulação metacarpo falângica e rigidez da articulação interfalangica do polegar esquerdo;
- Desvio axial em valgo de 20º do joelho esquerdo e flexo de 30º e limitação da mobilidade global (30º/30º/120º); instabilidade articular, amiotrofia de 2,5 cm da coxa e encurtamento (secundário a flexo) e sinais rotulianos positivos com sinais globais sugestivo de artrose femuro tibial e patelo femural do joelho esquerdo
38. A data da consolidação médico-legal das lesões apresentadas pelo autor corresponde a 18-7-2012.
39. Foi fixado um Período de Défice Funcional Temporário Total de 189 (cento e oitenta e nove) dias.
40. Foi fixado um Período de Défice Funcional Temporário Parcial de 829 (oitocentos e vinte e nove) dias.
41. Foi fixada a Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total num período de 1018 dias.
42. O Quantum doloris foi fixado no grau 5/7.
43. O Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica, em relação ao autor, foi fixado em 47 pontos, sendo de admitir a existência de Dano Futuro.
44. O Dano Estético Permanente foi fixado no grau 4/7.
45. A Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer do autor foi fixado no grau 4/7.
46. Ao longo do corpo são igualmente visíveis cicatrizes e marcas das escoriações sofridas (artigo 40.º da petição inicial).
47. O que causa ao autor grande desconforto, amargura, vergonha e incómodo, sendo o autor muitas vezes abordado e questionado sobre a causa das mesmas (artigo 61.º da petição inicial).
48. O autor continua a frequentemente necessitar de ser seguido medicamente e por tratamentos de fisioterapia, desconhecendo como vai evoluir a situação no futuro (artigo 41.º da petição inicial).
49. Situação que se mantém com carácter permanente para toda a vida do autor (artigo 42.º da petição inicial).
50. Antes do embate, o autor era uma pessoa saudável, ativa, alegre e extrovertido. (artigo 44.º da petição inicial).
51. Encarava a vida sob uma perspetiva otimista, de segurança e estabilidade (artigo 45.º da petição inicial).
52. O autor revela poucas expectativas em relação ao seu futuro. (artigo 47.º da petição inicial).
53. Antes do embate, o autor praticava desporto (futebol e ginásio) e ia constantemente à praia. (artigo 48.º da petição inicial).
54. Desde o embate, devido às sequelas, o autor não mais conseguiu praticar desporto, como o fazia antes. (artigo 49.º da petição inicial).
55. Não consegue exercer atividades que requeiram carregar pesos e ou esforço físico. (artigo 50.º da petição inicial).
56. Não consegue executar atividades de jardinagem e similares de forma normal (artigo 51.º da petição inicial).
57. Não consegue correr. (artigo 52.º da petição inicial).
58. Não consegue estar ou suportar grandes períodos de pé. (artigo 53.º da petição inicial).
59. Ou sequer andar em marcha rápida. (artigo 54.º da petição inicial).
60. Tem dificuldade em se levantar e raramente consegue firmar-se sobre a perna esquerda. (artigo 55.º da petição inicial).
61. Tem dificuldade em subir e descer escadas, muitas vezes só o consegue fazer com apoio. (artigo 56.º da petição inicial).
62. Não tem capacidade para transferir e aguentar peso sobre as pernas e braços (artigo 57.º da petição inicial).
63. É com grande dificuldade que consegue calçar-se (artigo 58.º da petição inicial).
64. Tem dificuldade em executar a atividade de conduzir. (artigo 59.º da petição inicial).
65. Durante cerca de 36 (trinta e seis) meses, o autor esteve impossibilitado de exercer de forma normal as atividades diárias (artigo 62.º da petição inicial).
66. E cerca de um ano esteve totalmente incapacitado e sem autonomia para as atividades pessoais básicas. (artigo 63.º da petição inicial).
67. Não conseguia fazer a higiene pessoal básica, lavar a cara, lavar as mãos, tomar banho, pentear-se, cortar as unhas, levar a comida à boca, entre outras (artigo 64.º da petição inicial).
68. Vendo-se o autor obrigado a recorrer a ajuda de terceiros para o exercício da atividade diária básica, designadamente a sua esposa e aos pais com todos os incómodos e transtornos daí resultantes (artigo 65.º da petição inicial).
69. Ajuda de terceiros que ainda hoje se mantém dado o autor muitas vezes ainda não conseguir exercer a sua atividade diária de forma normal. (artigo 66.º da petição inicial).
70. E em consequência dos factos descritos padeceu, padece e padecerá o autor ao longo da sua vida de um pronunciado sofrimento moral. (artigo 67.º da petição inicial).
71. Esse sofrimento consubstanciou-se no susto sofrido, no medo do desastre, na angústia face às possíveis consequências físicas do embate descritas e nas enormes dores quer físicas, quer morais causadas pelas lesões, das intervenções cirúrgicas, internamentos e tratamentos médicos. (artigo 68.º da petição inicial).
72. O autor passou largo período de tempo sem conseguir dormir, devido às dores intensas, desconforto, mau estar, e preocupação, sofreu de insónias e nos poucos momentos que conseguia dormitar, tinha pesadelos sempre relacionados com o acidente. (artigo 69.º da petição inicial).
73. Pesadelos que ainda hoje continua a sofrer. (artigo 70.º da petição inicial).
74. Passou a viver mergulhado numa profunda tristeza, em constante apatia e sem alegria de viver. (artigo 71.º da petição inicial).
75. São enormes as preocupações e receios do autor em face da evolução cada vez mais dolorosa e de forma permanente das lesões. (artigo 72.º da petição inicial).
76. O Hospital de Faro E.P.E., dista cerca de 14 Kms da residência do autor percorrendo o autor distância não inferior a 28 kms em cada deslocação, tendo efetuado pelo menos cinco deslocações em viatura própria com terceira pessoa a conduzir (artigo 75.º da petição inicial).
77. O Centro de Saúde de Santa Barbara de Nexe, dista cerca de 5 Kms da residência do autor, percorrendo o autor distância não inferior a 10 kms em cada deslocação, tendo efetuado mais de 40 deslocações em viatura própria com terceira pessoa a conduzir (artigo 76.º da petição inicial).
78. Os tratamentos de fisioterapia foram efetuados no Centro de Medicina e Reabilitação do Sul, em Almargens, São Brás de Alportel, que dista cerca de 10 kms da residência do autor, percorrendo o autor distância não inferior a 20 kms por cada sessão de fisioterapia que se submeteu, tendo efetuado mais de 300 (trezentas) deslocações em viatura própria com terceira pessoa a conduzir (artigo 77.º da petição inicial).
79. Em despesas com consultas médicas, tratamentos médicos, medicamentosos e fisioterapia, despendeu o autor a importância de € 1.202,25 (mil, duzentos e dois euros e vinte e cinco cêntimos) (artigo 78.º da petição inicial).
80. Em deslocações em viatura própria para as consultas médicas e tratamentos médicos, medicamentosos no HDF e fisioterapia, despendeu o autor importância não inferior a € 2.000,00 (dois mil euros) - (artigo 79.º da petição inicial).
81. Em consequência do embate, o motociclo do autor ficou totalmente inutilizado (artigo 80.º da petição inicial).
82. O motociclo tinha 6 (seis) anos e encontrava-se em bom estado de conservação e funcionamento, possuindo o valor atual de € 6.000,00 (seis mil euros) - (artigo 81.º da petição inicial).
83. O autor exercia a profissão de vendedor para a empresa “A..., Produtos Alimentares, S.A.” em toda a região do Algarve. (artigo 83.º da petição inicial).
84. As sequelas descritas não são compatíveis com o exercício da profissão de vendedor que o autor vinha exercendo e, nesse âmbito, a necessidade diária do exercício da condução, num percurso que se situa entre a zona de S. Brás e Vila Real de Santo António.
85. Até à data do embate, o autor auferia remuneração mensal variável de acordo com as comissões das vendas mensais, auferindo nos últimos 3 anos à data do acidente, montante mensal médio superior a € 2.000,00 (dois mil euros) - (artigo 84.º da petição inicial).
86. A empresa celebrou com o autor um novo contrato de trabalho compatível com as capacidades físicas, passando o autor a exercer funções de auxiliar de armazém. (artigo 86.º da petição inicial).
87. Pelo novo contrato, o autor passou a auferir o salário mensal fixo de € 638,25 (seiscentos e trinta e oito euros e vinte e cinco cêntimos) - (artigo 7.º da petição inicial).
88. Deixou de auferir as comissões que acresciam ao salário. (artigo 89.º da petição inicial).
89. E nunca mais foi concedido ao autor aumento de salário ou progressão na carreira profissional. (artigo 90.º da petição inicial).
90. Nos 36 (trinta e seis meses) anteriores à data do embate, o rendimento médio anual do autor foi de € 34.514,12 (trinta e quatro mil, quinhentos e catorze euros e doze cêntimos) - (artigo 91.º da petição inicial).
91. A partir de 2013, o rendimento anual do autor passou a ser de € 12.731,40 (doze mil, setecentos e trinta e um mil e quarenta cêntimos) - (artigo 92.º da petição inicial).
92. Todavia, no período que mediou entre 4/10/2009 (mês seguinte ao acidente) e data da alta (18/7/2012) o autor recebeu um montante equivalente ao seu salário médio, a título de “EQUIVALÊNCIA POR PRESTAÇÃO DE DOENÇA”, da parte da Segurança Social.
93. Por sentença transitada em julgado no âmbito do Processo n.º 2138/10.7TBLLE, que correu termos no 1.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Loulé, a Companhia de Seguros/ré, foi considerada culpada pela produção do acidente de viação e condenada a pagar ao Hospital de Faro, E.P.E. o pagamento dos serviços reclamados prestados ao autor em virtude do acidente de viação (artigo 25.º da petição inicial).
94. Na 2.ª seção dos serviços do Ministério Público de Loulé correu termos o inquérito com o n.º 399/09.3GTABF, o qual findou por despacho de arquivamento proferido em 23/3/2010.
E foram considerados não provados os seguintes factos:
a) O autor circulava a mais de 150 Kms/hora (artigo 8.º da contestação).
b) O autor circulava desatento à condução e inebriado pela excitação causada pela velocidade proporcionada pelo seu veículo. (artigo 10.º da contestação).
c) O autor AA despistou-se, porque seguia desatento e a velocidade excessiva para as condições do local e do tempo (parte do artigo 13.º da contestação).
d) O MV deparou-se com o despiste do VH (parte do artigo 16.º da contestação).
e) Com a sua travagem a fundo, o condutor do NS desequilibrou-se e o seu veículo entrou em despiste (parte do artigo 18.º da contestação).
f) Os veículos VH e NS não se tocaram um no outro em toda a tramitação do acidente, nem antes nem depois dos seus despistes. (artigo 20.º da contestação).
g) (…) Encontrando-se intacta a roda e guarda-lamas da frente do NS, (parte do artigo 22.º da contestação).
h) Imediatamente após o embate os motociclos não apresentavam qualquer sinal de terem chocado um com o outro em qualquer altura do acidente. (artigo 24.º da contestação).
i) Em nenhum dos motociclos havia sinais de tinta da cor do outro. (artigo 25.º da contestação).
*****
III.2. – O mérito do recurso
III.2.1. – Responsabilidade civil
Na presente acção o autor alegou factos conducentes a demonstrar a culpa efectiva e exclusiva do condutor do veículo segurado na ré na produção do acidente de viação objecto dos presentes, alegando ainda factos tendentes a demonstrar que em consequência do mesmo sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais cujo ressarcimento reclama.
Nos termos do disposto no artigo 483.º do Código Civil[4] “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação".
Acresce que, nos termos genéricos do artigo 342.º do CC, também afirmados a propósito da matéria referente à responsabilidade civil, no artigo 487.º, n.º 1 do mesmo diploma legal, ao autor (lesado) incumbe a prova dos factos constitutivos do direito invocado, no caso, “a culpa do autor da lesão”, apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso - n.º 2 do citado artigo 487.º - incumbindo, ao invés, à ré seguradora a prova de que o acidente ocorreu por culpa do lesado, ora autor.
Efectivamente, a responsabilidade extracontratual é uma responsabilidade pessoal, e não objectiva pela circulação de veículos ou de outras coisas e é sobre a pessoa responsável que recai o dever de indemnizar, daí que, o seguro de responsabilidade civil por acidente de viação, é sempre pessoal, apesar de destinado ao uso de certo e determinado veículo ou à sua direcção efectiva, razão pela qual assenta na actuação ilícita ou com risco do respectivo condutor.
Ora, a matéria de facto alegada pelo autor relativamente à dinâmica do acidente quando submetida a julgamento, logrou revelar-se provada em termos que a ré aceita, não colocando em causa no presente recurso que a responsabilidade pelo acidente se deveu a culpa exclusiva do condutor do veículo segurado, nem os danos decorrentes do mesmo para o autor e constantes da matéria de facto provada e supra descrita, dissentindo apenas da consideração pelo tribunal a quo do facto descrito sobre o ponto 84, e do quantum indemnizatório arbitrado.
Vejamos, pois, se é ou não de manter nos termos em que vem fixada, a matéria de facto constante deste ponto.
*****
III.2.2. – Reapreciação da matéria de facto
III.2.2.1. – Da nulidade invocada
Nas respectivas conclusões invoca a Apelante Companhia de Seguros que ao proceder ao aditar o facto 84 dos factos provados o Tribunal a quo cometeu uma nulidade, que deve ser reparada, nos termos do artigo 195.º, n.º 1, do CPC.
Justificando esta conclusão, afirma a recorrente que a mesma não podia ser aditada ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea b), do CPC, já que a não compatibilidade entre as sequelas das lesões sofridas no acidente e o exercício da profissão de vendedor que o Autor vinha exercendo constitui facto essencial, porquanto constitui o fundamento do quantum indemnizatório pretendido, cabendo-lhe portanto alegá-lo na petição inicial nos termos do artigo 5º e 552º nº 1 d) do CPC.
A respeito do vício da nulidade da sentença por omissão ou excesso de pronúncia rege actualmente o artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC na redacção introduzida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, o qual tem integral correspondência com a previsão anteriormente constante no artigo 668.º, n.º 1, alínea d), do CPC, mantendo-se consequentemente válidas todas as considerações que já se encontravam sedimentadas a respeito da respectiva interpretação.
Dispõe o referido preceito legal que é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Esta causa de nulidade da sentença consiste, portanto, na omissão de pronúncia, sobre as questões que o tribunal devia conhecer; ou na pronúncia indevida, quanto a questões de que não podia tomar conhecimento[5].
É entendimento pacífico que esta nulidade está em correspondência directa com o preceituado no artigo 608.º, n.º 2, do CPC, (com redacção correspondente ao anterior artigo 660.º, n.º 2, do CPC), que impõe ao juiz a resolução de todas as questões que as partes submeteram à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras, não podendo, porém ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo as que sejam de conhecimento oficioso, constituindo, portanto, a sanção prevista na lei processual para a violação do estabelecido no referido artigo[6].
Porém, «a consideração como provado de facto que, por qualquer motivo, não podia ser objeto de apreciação, não é abrangida por esta alínea, não sendo uma “questão” para efeitos de aplicação da consequência prevista no artigo 615.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, pelo que a sua ocorrência não provoca a nulidade de toda a sentença, mas a simples eliminação de tal facto da lista dos factos provados e a sua consequente desconsideração»[7].
Concordando integralmente com o referido, considera-se improcedente a arguição da nulidade da decisão recorrida.
III.2.2.2. – Da alteração da matéria de facto
Não obstante não se verificar a arguida nulidade da sentença, cumpre ainda assim apreciar se existiu erro de julgamento na consideração do indicado facto 84, a motivar a pretendida eliminação do mesmo do elenco dos factos provados.
Vejamos.
Em nota de rodapé 2 ao referido facto a Senhora Juíza expressou que «Este facto é aditado ao abrigo do disposto no artigo 5.º,[8] al. b), do C.P.C. por ter resultado dos esclarecimentos prestados pelo perito médico que subscreveu o relatório pericial em causa, na última sessão de julgamento e ambas as partes terem tido a possibilidade de, sobre ele, se pronunciarem», considerando, portanto, tal facto como complementar ou concretizador.
Somos, pois, primeiramente convocados à questão de saber se, tendo resultado o facto em causa da instrução da causa, podia ou não o mesmo ter sido, como foi, considerado pelo tribunal na sentença, isto porque, se da alínea b) do n.º 2 do artigo 5.º do CPC decorre que no julgamento subsequente à audiência final, poderão ser considerados pelo juiz quaisquer factos essenciais que resultem da discussão da causa, parece-nos também ser certo que tal consideração factual só pode acontecer desde que tais factos se integrem no objecto do litígio.
Como é sabido, em face do actual CPC, «a abolição da base instrutória e a opção pela enunciação de temas de prova dá aos tribunais de instância maior liberdade na circunscrição da matéria de facto, já não valendo argumentos de pendor formalista» sendo agora possível ao juiz «optar por uma formulação mais genérica, desde que não seja pura matéria de direito em face do caso concreto, tal como existe uma maior liberdade na consideração de factos que não foram alegados mas que resultaram da discussão da causa, nos termos do art. 5.º, n.º 2, do NCPC».
Acresce que, atento o princípio do inquisitório ínsito no artigo 411.º do CPC, na instrução da causa incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.
Por seu turno, o artigo 607.º, n.º 4, do CPC, impõe ao juiz, para além do mais, que na fundamentação da sentença declare quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais elementos que foram decisivos para a sua convicção, tudo tendo em vista a prevalência do fundo sobre a forma.
Consequentemente, com o novo Código de Processo Civil, «atribui-se ao juiz um poder mais interventor, sem que tal signifique, porém, o fim do princípio dispositivo e a sua substituição pelo princípio inquisitório, uma vez que continua a caber às partes a definição do objecto do litígio, através da dedução das suas pretensões e da alegação dos factos que integram a causa de pedir ou suportam a defesa»[9]. Por isso que, «embora a narração feita no articulado inicial não seja forçosamente definitiva, ela é determinante, pois, através da identificação da causa de pedir que oferece, ela ancora o objecto da instância»[10].
Pretende-se deste modo dizer que se esta maior amplitude na conformação de facto da acção, decorrente do disposto nas alíneas a) a c) do n.º 2 do artigo 5.º do CPC, significa seguramente que para além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz aqueles factos identificados no preceito. Porém, atento o preceituado pelo n.º 1 do mesmo artigo, essa amplitude não equivale a que actualmente possa resultar da instrução da causa uma diferente conformação do objecto do litígio, ou seja, e por outras palavras, o tipo de factos referidos neste preceito, designadamente a possibilidade de utilização dos factos complementares, acaba por consagrar expressa e mais amplamente aquilo que há muito a jurisprudência vinha parcialmente fazendo com as denominadas «respostas explicativas», numa orientação dirigida à desejada coincidência entre os factos da vida e os factos do processo.
Diz a Recorrente que, no caso em apreço, decorrendo da incapacidade para o exercício da profissão habitual do autor um maior valor indemnizatório, tal facto é essencial e, como tal, não tendo sido alegado na respectiva petição inicial, não pode agora ser considerado pelo tribunal.
Salvo o devido respeito, afigura-se-nos que se confunde um facto essencial para a procedência do pedido - na medida em que influi directamente no quantum indemnizatório peticionado -, com um facto que conforma o objecto do litígio, constitutivo da causa de pedir. Ora, naquela primeira categoria inserem-se os factos essenciais complementares ou concretizadores, que não só podem como devem ser considerados pelo tribunal como complemento ou concretização de outros factos essenciais que hajam sido alegados; na segunda categoria, não tendo sido oportunamente alegados pela parte que tem o ónus de os alegar, já não podem ser considerados porquanto inserindo-se na categoria dos factos essenciais principais a que alude o n.º 1 do artigo 5.º do CPC, a tal obsta o princípio do dispositivo.
De facto, conforme impressivamente explica o Professor Miguel Teixeira de Sousa[11], «Um facto complementar é um facto tão essencial para a apreciação da causa (e, nomeadamente, para a sua procedência) como um facto principal. Aliás, é esta "essencialidade" do facto complementar que justifica (e impõe) que, além de todos os factos principais alegados pelo autor como causa de pedir (cf. art. 5.º, n.º 1, CPC), o tribunal também possa considerar, na apreciação da causa, os factos complementares destes factos principais (cf. art. 5.º, n.º 2, al. b), CPC). O que justifica este regime legal é precisamente permitir que o tribunal possa considerar um facto que, apesar de complementar, se mostra ser essencial para a apreciação da causa, mas que não foi alegado pela parte. Em contrapartida, um facto que não é essencial para a decisão da causa não é nem principal, nem complementar, mas antes um facto irrelevante. (…)
O novo regime da aquisição dos factos complementares é claramente orientado para a prevalência da verdade em processo, obstando à utilização pelo tribunal de uma ficção de verdade em vez da verdade apurada em juízo. (…) O regime instituído pelo art. 5.º, n.º 2, al. b), CPC destina-se precisamente a desfazer a ligação entre a alegação do facto pela parte e a sua consideração pelo juiz na sentença, pelo que não se justifica nenhuma manifestação de vontade de aproveitamento do facto adquirido durante a instrução da causa».
Aliás, do confronto da alteração introduzida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, no artigo 5.º, n.º 2, alínea b), relativamente ao anterior artigo 264.º, n.º 3, do CPC, verifica-se precisamente que o legislador deixou de exigir a manifestação pela parte da intenção de se aproveitar do facto complementar adquirido durante a instrução da causa, que anteriormente se encontrava expressamente referida.
Em síntese, podemos concluir que actualmente, - ao contrário do que sucede quanto aos factos essenciais que conformam o objecto do litígio, relativamente aos quais continua a funcionar o princípio da auto-responsabilidade das partes -, quanto aos factos essenciais complementares ou concretizadores dos factos essenciais principais, o tribunal não está sujeito à alegação das partes, podendo oficiosamente carreá-los para o processo e sujeitá-los a prova[12].
Acresce que, não podemos também olvidar que nas decisões dos tribunais deve «ser tida em conta, não só a alegação factual explícita, como também a implícita»[13].
Significa isto no caso vertente, que a relação jurídica material tal qual o autor a apresentou na acção, se funda na ocorrência do acidente de viação cuja responsabilidade imputa ao condutor do veículo segurado na ré; no nexo de causalidade entre esse acidente e os danos por si sofridos; e, quanto a estes, concretamente do tipo de danos em causa.
Assim, tendo o autor alegado, mormente nos artigos 85.º a 93.º da petição inicial a profissão que exercia anteriormente ao acidente e o montante que auferia; que devido ao acidente não pode exercer tal actividade por um período que concretizou, superior a três anos; que em consequência celebrou com a empresa um novo contrato de trabalho compatível com as capacidades físicas; e ainda a sua actual remuneração no confronto com a anterior, mostram-se efectivamente alegados pelo autor todos os factos essenciais principais dos quais pode eventualmente decorrer a peticionada indemnização pela perda da capacidade de ganho que alegou ter sofrido em consequência do acidente, com repercussão em toda a sua vida futura.
Acresce que, como dito, devendo o tribunal ter em conta para além da alegação explícita também a alegação implícita, dúvidas não nos parece que possam existir de que na alegação supra se encontra implícita a alegação de que o autor celebrou este novo contrato de trabalho, porque, mercê das lesões decorrentes do acidente não conseguia exercer a anterior, daí que tenha passado a exercer funções compatíveis com a sua actual condição física. Por isso que, o facto em apreço se apresente como concretizador do resultado do dano alegado pelo autor quanto à repercussão do acidente na sua vida profissional.
Daqui decorre que, por via da consideração desse facto como complementar ou concretizador dos factos essenciais principais alegados, e sendo o mesmo manifestamente pertencente à relação jurídica material configurada nos autos, dúvidas não temos que, resultando da alínea b) do n.º 2 do artigo 5.º do CPC que no julgamento subsequente à audiência final, poderão ser considerados pelo juiz quaisquer factos essenciais que resultem da discussão da causa, e integrando-se o facto em apreço no objecto do litígio, o mesmo se enquadra de pleno no tema de prova enunciado na audiência prévia e correspondente à alínea f), de acordo com o qual se sujeitou à instrução da causa a prova da redução salarial mensal e a perda de comissões, anteriormente ao acidente recebidos pelo autor, nada obstando, portanto, à consideração daquele facto na sentença.
Consequentemente conclui-se que não existe qualquer erro de julgamento decorrente da consideração do indicado facto na sentença, com fundamento no disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea b), do CPC, tanto mais que relativamente ao mesmo as partes tiveram a possibilidade de se pronunciarem, porquanto a reabertura da audiência de julgamento foi precisamente fundamentada pela Senhora Juíza com a necessidade de audição do médico que subscreveu o relatório pericial para esclarecimento de algumas questões de facto.
Importa, pois, passar à questão de saber se, podendo o tribunal considerar este facto, em concreto não foi produzida prova bastante quanto ao mesmo.
De facto, pretende a Recorrente que, ainda que se considerasse, como se considerou, admissível a consideração de tal facto pelo juiz na sentença, o mesmo não resultou provado com essa amplitude em face quer do teor do relatório pericial, não colocado em causa por qualquer das partes, quer dos esclarecimentos prestados pelo Senhor perito médico, na reabertura da audiência de julgamento para o efeito determinada pela Senhora juíza.
Invoca, pois, a existência de um erro de julgamento sobre este concreto ponto de facto, a implicar uma decisão diversa quanto à matéria de facto em questão.
A impugnação desta matéria de facto pela ré, ora Recorrente, deve considerar-se efectuada com observância dos ónus a respectivo cargo previstos no artigo 640.º do Código de Processo Civil, cumprindo consequentemente verificar se existem ou não razões para modificar a matéria de facto nos termos pretendidos, no caso e em seu entender, dando apenas como provado exactamente o que consta no relatório pericial, ou seja: As sequelas descritas são, em termos de repercussão permanente na actividade profissional, compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas implicam esforços suplementares.
Como é sabido, nesta reapreciação da matéria de facto, os poderes conferidos por lei à Relação quanto ao princípio fundamental da apreciação das provas previsto no artigo 607.º, n.º 5, do CPC, têm amplitude idêntica à conferida ao tribunal de 1.ª instância, devendo a 2.ª instância expressar a respectiva convicção acerca da matéria de facto impugnada no recurso, e não apenas conferir a lógica e razoabilidade da convicção firmada pelo tribunal a quo[14].
Ora, a convicção do Tribunal, quer de primeira instância, quer da Relação, não se funda meramente na prova oral produzida, sendo a mesma conjugada com todos os demais meios de prova que a podem confirmar ou infirmar, e sendo evidentemente apreciada segundo as regras de experiência e a livre convicção do julgador, de acordo com um exame crítico de todas as provas produzidas.
De facto, «[o] “exame crítico” das provas constitui uma noção com dimensão normativa, com saliente projecção no campo que pretende regular - a fundamentação em matéria de facto -, mas cuja densificação e integração faz apelo a uma complexidade de elementos que se retiram, não da interpretação de princípios jurídicos ou de normas legais, mas da realidade das coisas, da mundividência dos homens e das regras da experiência.
O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção (cfr.,v.g., acórdão do Supremo Tribunal de 30 de Janeiro de 2002, proc. 3063/01)» [15].
Tendo presente este enquadramento, e conforme temos vindo sucessivamente a afirmar, relativamente à reapreciação do julgamento de facto pela Relação cumpre ainda ter presente que a mesma se destina primordialmente a corrigir invocados erros de julgamento - atento o preceituado no artigo 662.º, n.º 1, do CPC, que rege sobre a modificabilidade da decisão de facto -, evidenciados a partir dos factos tidos como assentes, da prova produzida ou de um documento superveniente, por forma a imporem decisão diversa. Significa esta formulação legal que não basta que a prova produzida nos autos permita decisão diversa, necessário é que a imponha. Por isso que, também na respectiva fundamentação a Relação tem de motivar, ou seja, dizer as razões que determinaram o respectivo juízo probatório, para aquilatar se tais elementos impõem ou não decisão diversa da recorrida quanto aos concretos pontos de facto impugnados.
Assim, no caso vertente o que está em causa é apreciar se o relatório pericial que faz fls. 615 e seguintes dos autos e os esclarecimentos prestados pelo Senhor Perito, Dr. CP, em audiência, impunham ou não decisão diversa da recorrida.
No referido relatório da perícia de avaliação do dano corporal em direito civil, elaborado em 31 de Agosto de 2015, o senhor perito médico, depois de analisar as diversas lesões sofridas pelo Autor por via do acidente e as respectivas sequelas afirmou nas conclusões expressas a fls. 622 dos autos que, neste caso: As sequelas descritas são, em termos de repercussão permanente na actividade profissional, compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas implicam esforços suplementares.
Conforme decorre de fls. 621, “a repercussão permanente na actividade profissional corresponde ao rebate das sequelas no exercício da actividade profissional habitual da vítima – actividade à data do evento, isto é, na sua vida laboral, para utilizar a expressão usada na Portaria nº 377/2008, de 26 de Maio, tratando-se do parâmetro de dano anteriormente designado por Rebate profissional”.
Analisado este documento verificamos ainda que a fls. 615 do mesmo relatório, na identificação profissional referida no respectivo preâmbulo quanto à situação profissional actual do autor, consta Auxiliar de armazém, referindo-se a fls. 618, em outras queixas a nível funcional, nos actos da vida diária, e na vida profissional, dificuldade na condução.
Por seu turno, ouvidos atentamente os esclarecimentos prestados pelo Senhor Perito médico aquando da reabertura da audiência, verificamos que, conforme a Senhora Juíza desde logo anunciou -, atenta a sobredita conclusão quanto à repercussão das sequelas decorrentes do acidente na actividade profissional do autor -, o que o Tribunal pretendia desde logo esclarecer era se o Senhor perito «quando fez o relatório teve em conta a profissão que o senhor desempenhava habitualmente, qual foi essa profissão, ou se fez esta consideração só com base no que será um desempenho normal de uma actividade profissional normal em que alguém está simplesmente sentado a uma secretaria ou a prestar um serviço que não implique especificamente determinada composição ou determinada actividade».
Esclareceu o Senhor Perito que «na avaliação medica ou legal, para avaliar o rebate profissional das sequelas que resultam do acidente é utilizada a profissão que o sinistrado exercia à data do evento. É a partir daí que se faz as apreciações seguintes». Perguntado «que profissão é que teve em conta então?» respondeu «a profissão que eu tenho referenciada no meu relatório e que decorre das informações que me foram dadas pelo próprio sinistrado ou constantes dos autos era de vendedor de produtos alimentares.» Perguntou a Senhora Juíza «não era de motorista? Perito – Não, vendedor de produtos alimentares, é o que tenho referenciado e também tenho que me é referido que à data em que fez dez anos que terá sido em meados de junho/julho de 2015, já que o relatório está datado de 31 de agosto, não sei exactamente o dia mas terá sido em junho/julho, que se este senhor…Portanto decorre que nesta altura me foi referido no relatório que fiz ao senhor que nessa data tinha essa profissão».
Portanto, dos esclarecimentos iniciais prestados resulta com toda a clareza que a conclusão a que o Senhor Perito chegou teve em conta que a actividade profissional exercida pelo autor à data do acidente era de vendedor de produtos alimentares.
Pretendeu então o Tribunal esclarecer se «enquanto vendedor foi de alguma forma veiculado por alguém que esta actividade de vendedor implicava o exercício da condução, o exercício diário da condução» respondendo o Senhor Perito «não levei isso directamente em linha de conta mas não tenho dificuldade em assumir neste momento que poderia ser condutor, pois alguém que é vendedor tem que se deslocar de alguma forma para chegar aos seus clientes. Portanto, embora não tenha especificado qual era a profissão do senhor, como motorista, não era a profissão específica de motorista, mas como vendedor de produtos alimentares é natural que tenha de conduzir». E mais adiante: «não está apto, está apto para a profissão com esforços acrescidos e esses esforços acrescidos pressupõem que tenha alguma limitação para executar as suas funções e entre as quais, provavelmente, a condução. Mas não está de todo impossibilitado embora eu não tenha levado essencialmente em linha de conta a componente condução. Porque Se estivéssemos perante um motorista profissional em que é exclusivamente motorista, teria mais relevância essa componente da condução. Estamos perante um condutor que pode conduzir ou ser conduzido».
A Senhora Juíza reportou-se então à situação do autor dizendo: «pronto, agora vamos àquilo que é o caso concreto. O senhor que exercia diariamente a profissão de vendedor e era também ele o motorista e então faço-lhe esta pergunta: se exercendo diariamente a profissão de motorista se tendo em conta as lesões que apresentava ele poderia cabalmente desempenhá-las», esclarecendo o Senhor Perito: «cabalmente não, daí eu acrescentar os esforços acrescidos….».
Interrompeu o Tribunal dizendo «Mas, os esforços acrescidos, dá a ideia que a pessoa poderia suportar aquela dor e continuar a conduzir embora com esforço», afirmando então o Senhor Perito: «A questão é, neste caso o que pode limitar a condução deste senhor não tanto a dor mas a dificuldade na mobilização do joelho. E se levarmos em linha de conta todo o quadro que está contido no processo, no relatório, essa situação pode ser prevista, no caso de a condução se tornar de todo impossível, com a revisão do caso enquadrada no chamado dano futuro».
Depois de outras instâncias em que o Senhor Perito foi sempre explicando as razões por que considerava a existência de dificuldade mas não impossibilidade para o exercício da profissão, afirmando a dado passo que «avaliadas as sequelas deste examinado é de enquadrá-lo nos esforços acrescidos, já que de todo o senhor não tem sequelas, pelo menos neste momento, enquadráveis na incapacidade da profissão habitual e isso decorre inclusivamente de que o senhor mantém a profissão, quanto mais não fosse também por isso, e isto dito pelo próprio examinado».
Noutro passo disse a Senhora Juíza «aqui o que se está a discutir é o facto de o sr ter deixado, ou melhor ter sido convidado pela entidade patronal a deixar de exercer aquela profissão, segundo declarações do próprio e ter passado, creio que não foi voluntariamente, a exercer funções de fiel de armazém durante o período de outubro, portanto ganhando um ordenado que é quase um terço do que ganharia como condutor e vendedor dos produtos da A…», referindo então o Senhor Perito: «Posso-lhe simplificar a questão desta maneira: como condutor este senhor não está incapaz para a profissão habitual, como motorista profissional está incapaz para profissão habitual. Agora se a sra. Dra quiser considerar a profissão do examinado como motorista está, se quiser considerar como condutor… (imperceptível)...está com esforços acrescidos.».
Prosseguindo nos esclarecimentos, agora já quanto à gravidade e intensidade das limitações do autor, disse o Senhor Perito: «no exame que fiz à época era já perfeitamente previsível, certo e seguro que o joelho deste senhor está sofrendo de uma paralesia suficientemente grave para necessitar de uma prótese. No futuro é inevitável que essa situação se viesse a agravar, daí eu ter deixado em aberto esta hipótese no relatório, quando descrevo o dano futuro prevê esse tipo de situações (…) a situação do joelho seguramente está pior hoje do que na altura que a vi (…) as dores e a mobilidade do joelho serão hoje seguramente mais gravosas do que estavam antes, porque esta lesão, esta lesão digamos assim tem tendência a agravar ao longo do tempo, tem tendência a agravar com maior ou menor rapidez, mas que vai agravando vai, (...) esta situação de deixar em aberto o dano futuro é de que em qualquer momento, em que ele se sente de todo incapacitado, não terá outra solução senão recorrer aos serviços médicos para ser tratado do ponto de vista cirúrgico(…).
Acresce que, referindo-se agora à extensão das sequelas disse o Senhor Perito Médico que «na pagina 7, nas dependências provenientes de ajudas, são referidas ajudas medicamentosas, analgésicos e anti-inflamatórios, bem como fisioterapia regular, é justificado, entre outras coisas pelo joelho, mas também não deixa de ser justificado pelo quadro múltiplo das múltiplas fracturas que o senhor sofreu e portanto atendendo à sua gravidade e à sua multiplicidade e sendo que não são tão acentuadas como as do joelho, que é a sequela mais grave que resultou deste acidente, mas que indiciam como é dito no relatório a necessidade de analgésicos, bem como fisioterapia regular a nível do corpo e do joelho, enquanto não for operado».
E perguntado se essas limitações o impedem de conduzir, referiu que «a limitação é em todas as actividades e no domínio da condução, por isso é que tem uma incapacidade no total de quase 50 pontos, que indicia a razão das sequelas graves, a limitação especifica para a condução encontra-se justificada pela artroplastia total do joelho, daí necessitar os tais analgésicos e a fisioterapia.»
Ora, na motivação da respectiva convicção quanto à matéria de facto atinente a esta questão, afirmou a Senhora Juíza que: «aquando da reabertura da audiência (sessão de dia 8/1/2016) o perito veio esclarecer que, à data de realização do exame pericial, não detinha a informação de que o autor exercia a condução, no âmbito da prestação da atividade profissional de vendedor, concluindo no sentido de que não estava capacitado para o exercício dessa função, em virtude da limitação na mobilidade do joelho. O Sr. Perito esclareceu também que o autor padece de uma incapacidade progressiva e que a mobilidade do autor nos dias de hoje se encontra agravada em relação a agosto de 2015, data de realização do exame pericial.
Fazendo uso do princípio da livre apreciação da prova e não obstante se tenha tido sempre presente a posição processual do autor AA o tribunal considerou as declarações por ele prestadas como honestas (…). De modo credível, o autor referiu todas as atividades que deixou de praticar, referindo-se inclusivamente à dificuldade de exercício da condução e que, nos primeiros tempos, aquando do seu regresso às funções de vendedor, ainda tentara conduzir a viatura que a empresa lhe disponibilizou (sem mudanças automáticas), relatando grandes dificuldades e dores ao utilizar o pedal destinado a acionar a embraiagem e que, por essa causa, a entidade patronal decidira colocá-lo a exercer funções de fiel de armazém, no período noturno. Ora, além da credibilidade que nos merecem estas declarações, não se afigura plausível que o autor tenha aceitado, de ânimo leve, a mudança de profissão e a redução dos rendimentos auferidos, nos termos que lhe foram propostos pela entidade patronal. (…) Por outro lado, não lhe seria exigível que continuasse a suportar as dores que sentia, as quais com o exercício prolongado da condução seriam, com toda a probabilidade, cada vez mais insuportáveis, no quadro de incapacidade progressiva de que padece o autor, a que se referiu o Sr. Perito médico, nos esclarecimentos prestados.»
Cumpre-nos agora motivar a nossa própria convicção, para o que importa primeiramente efectuar o enquadramento do valor probatório da prova pericial.
Como é sabido, a prova pericial não é de apreciação vinculada, só sendo efectuada por solicitação das partes ou determinada oficiosamente pelo juiz relativamente a factos necessitados de prova, na formulação do artigo 410.º do CPC, sendo de livre apreciação pelo tribunal mesmo quando é efectuada uma segunda perícia (artigo 489.º do CPC).
De facto, a prova pericial – diz-nos o artigo 388.º do CC – tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, sendo a sua força probatória fixada livremente pelo Tribunal – artigo 389.º do referido diploma.
Porém, esta livre apreciação da prova não se confunde com uma apreciação arbitrária, ou mesmo discricionária da prova, significando ao invés que a mesma não é vinculada àquele meio de prova, devendo apenas subordinar-se a critérios de racionalidade, de bom senso, assentes nas regras de experiência comum que decorram dos elementos objectivos constantes no processo.
Não obstante assim ser, a perícia constitui um meio de prova de natureza técnica na medida em que ao perito, ao invés do que ocorre quanto às testemunhas, para além da narração dos factos que percepciona, está também cometida a tarefa de apreciar ou valorar esses factos de acordo com os especiais conhecimentos técnicos que possui na matéria, e que não são do conhecimento do julgador, podendo inclusivamente trazer ao tribunal apenas a apreciação e valoração dos factos[16].
Por isso mesmo, situações há em que, mercê da complexidade técnica da avaliação em causa, o legislador atribui a especialistas específicos nas respectivas áreas - sujeitos a especiais regras de recrutamento, de competências e de condições para o exercício dessas funções -, o cálculo dos factores determinantes para a posterior fixação pelo tribunal da indemnização justa e equitativa, estando aqueles vinculados a proceder à elaboração dos relatórios periciais de acordo com as normas legais e regulamentares aplicáveis, devendo fundamentar o cálculo do valor atribuído, e expor as razões pelas quais atribuem ponderações diversas das previstas nas tabelas legais, quando estas existam, ou seja, por exigência legal, estes peritos têm de se pautar por critérios objectivos[17].
Tal ocorre precisamente quando está em causa a avaliação do dano em direito civil em que não basta a apreciação de um médico ainda que especialista na área, estando o cálculo da incapacidade permanente do lesado para efeitos de reparação civil do dano que lhe foi causado, atribuída legalmente pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, artigo 2.º, n.º 3, a médicos especialistas em medicina legal ou por especialistas noutras áreas com competência específica no âmbito da avaliação médico-legal do dano corporal no domínio do direito civil e das respectivas regras, os quais ficam vinculados à exposição dos motivos justificativos dos desvios em relação às pontuações previstas na Tabela Nacional para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil.
De facto, conforme se salienta no preâmbulo do diploma, a avaliação médico-legal do dano corporal, isto é, de alterações na integridade psico-física, constitui matéria de particular importância, mas também de assinalável complexidade. Complexidade que decorre de factores diversos, designadamente da dificuldade que pode existir na interpretação de sequelas, da subjectividade que envolve alguns dos danos a avaliar, da óbvia impossibilidade de submeter os sinistrados a determinados exames complementares, de inevitáveis reacções psicológicas aos traumatismos, de situação de simulação ou dissimulação, entre outros. Complexidade que resulta também da circunstância de serem necessariamente diferentes os parâmetros de dano a avaliar consoante o domínio do direito em que essa avaliação se processa, face aos distintos princípios jurídicos que os caracterizam. Assim sucede nomeadamente em termos das incapacidades a avaliar e valorizar. (…) No âmbito do direito civil, e face ao princípio da reparação integral do dano nele vigente, se deve valorizar percentualmente a incapacidade permanente em geral, isto é, a incapacidade para os actos e gestos correntes do dia-a-dia, assinalando depois e suplementarmente o seu reflexo em termos da actividade profissional específica do examinando.
Deste modo, reconhecendo o legislador a especial complexidade da avaliação em causa, o que levou à atribuição da competência para o cálculo da incapacidade permanente do lesado a médicos especialistas em medicina legal ou por especialistas noutras áreas com competência específica no âmbito da avaliação médico-legal do dano corporal no domínio do direito civil e das respectivas regras, e não dispondo o juiz de conhecimentos especiais na área a que respeita a perícia, apesar da sua liberdade de apreciação das provas, incluindo a pericial, o julgador não pode, sem fundamentos suficientemente sólidos, afastar-se do resultado das peritagens, sobretudo quando os peritos oferecem as garantias de competência e imparcialidade que aquela formação específica exige.
Assim, salvo casos de erro grosseiro ou de aplicação de um critério ilegal, o juiz não estará em condições de sindicar o juízo científico emitido pelo perito, havendo que o aceitar, salvo se existirem nos autos outros elementos que possuam o referido grau de segurança, fiabilidade e objectividade.
Por todas estas razões, tem-se entendido que este especial valor probatório do relatório pericial apenas será de excluir se outros preponderantes elementos de prova o infirmarem, mormente por padecer de erro grosseiro ou por ser contrário a normas legais vinculativas, caso em que o juiz deve pôr em causa o relatório técnico dos peritos, mas com recurso a argumentação técnica ou científica, eventualmente baseada noutros meios de prova divergentes, de igual ou superior credibilidade[18].
Este entendimento, que temos vindo a adoptar, tem necessariamente que ser enquadrado com o concreto juízo científico que está em causa. Assim se, por exemplo, estivermos perante a valorização percentual da incapacidade permanente em geral, isto é, a incapacidade para os actos e gestos correntes do dia-a-dia, naturalmente que a mesma se estriba num juízo científico que dificilmente o juiz pode afastar, salvos os assinalados casos. Ao invés, se estivermos perante a avaliação suplementar do reflexo desses danos em termos da actividade profissional específica do examinando, como é o caso dos autos, já o julgador terá uma maior margem para, avaliado o relatório pericial no seu conjunto, designadamente a extensão das várias incapacidades permanentes de que o lesado ficou a padecer, globalmente apreciadas, fazendo-o conjuntamente com os demais elementos objectivos constantes do processo avaliados segundo critérios de racionalidade, ponderando a concreta actividade profissional exercida e as respectivas exigências, e tudo sopesando de acordo com as regras de bom senso, e do normal acontecer, assentes nas regras de experiência comum, já será possível afastar o juízo pericial formulado, desde que se proceda a convincente fundamentação.
Ora, no caso dos autos, pese embora o que consta no relatório pericial e os esclarecimentos inicialmente prestados pelo Senhor Perito, o certo é que o mesmo acabou por admitir que a situação seria diversa consoante estivéssemos, no fundo, perante um maior ou menor exercício da actividade de condução, para cujo exercício está demonstrado que o Autor tem manifesta dificuldade. Assim, se o mesmo fosse motorista estaria totalmente incapacitado, se fosse vendedor, e podendo até ser conduzido, já enquadraria numa situação de esforços acrescidos para o exercício da actividade profissional. Portanto, com os esclarecimentos prestados, a referida conclusão foi como que «devolvida» ao juiz, em face da concreta situação de vida profissional em presença.
Assim, ponderando ainda que ao tribunal incumbe retirar as devidas ilações de toda a matéria de facto provada, e tendo resultado provado, por mais impressivo, que o autor exercia a profissão de vendedor em toda a região do Algarve (facto 83); que tem um défice funcional permanente da integridade física fixado em 47 pontos (facto 43); que tem dificuldade em executar a actividade de conduzir (facto 64); que ainda hoje mantém a ajuda de terceiros porque muitas vezes não consegue exercer a sua actividade diária básica de forma normal (facto 69); e também que a empresa veio a celebrar com o autor um novo contrato de trabalho compatível com as suas actuais capacidades físicas (facto 86), parece-nos evidente que a conclusão extraída de que as sequelas descritas não são compatíveis com a profissão que o autor vinha exercendo, no âmbito da qual se deslocava diariamente exercendo a condução, num percurso que se situa entre São Brás de Alportel e Vila Real de Santo António, é a que se impõe ante a apreciação da prova globalmente produzida.
Nestes termos, os meios de prova indicados pela Recorrente não impõem decisão diversa da proferida quanto ao ponto 84 da matéria de facto, a qual é compatível com as regras da experiência da vida e do normal acontecer, acrescendo ainda que não foi afastada pelo Senhor Perito.
Assim, por inexistir qualquer erro na sua apreciação, improcede a pretendida alteração da matéria de facto, que desta sorte se mantém nos seus exactos termos.
*****
III.2.3. – Da obrigação de indemnizar
Mantendo-se a matéria de facto nos termos considerados assentes, o mesmo se aplica quanto à fundamentação jurídica que consta da bem fundamentada decisão recorrida relativamente à conclusão da imputação da responsabilidade pela ocorrência do acidente, em exclusivo, à conduta do condutor do motociclo segurado na Ré, a qual não vem sequer posta em causa.
Assim, por força do contrato de seguro celebrado entre a tomadora do seguro e a seguradora e titulado pela apólice junta aos autos, a companhia de seguros é a responsável pela satisfação ao lesado dos danos emergentes do evento danoso decorrente de culpa exclusiva do condutor do veículo cuja circulação estava devidamente segurada, já que nos termos do artigo 64.º, n.º 1, alínea a), do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto, as acções destinadas à efectivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, em caso de existência de seguro, devem ser deduzidas obrigatoriamente só contra a empresa de seguros, quando o pedido formulado se contiver dentro do capital mínimo obrigatório do seguro obrigatório, como acontece no caso dos autos.
Consequentemente, a seguradora ora Recorrente encontra-se obrigada a satisfazer à lesada os danos decorrentes do acidente de viação em causa.
Nos termos do artigo 562.º do Código Civil, quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, compreendendo-se nesta reparação, não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixar de obter em consequência da lesão – lucros cessantes - artigo 564.º do CC.
E, dispõe o artigo 566.º, n.º 2, do CC, que a indemnização em dinheiro, como é o caso, tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado - situação real - na data mais próxima que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos - situação hipotética actual. É a denominada teoria da diferença[19].
Vejamos, pois, a segunda questão colocada pela Recorrente, relativa ao quantum da indemnização atribuída pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos.
*****
III.2.3.1. – Dos Danos
O autor peticionou o pagamento de uma indemnização na quantia de 300.000,00€, para ressarcimento dos danos patrimoniais decorrentes da perda da capacidade de ganho, calculados nos termos por si referidos nos artigos 94.º e 96.º da petição inicial, e de uma indemnização na quantia de 80 000,00€ pelos danos não patrimoniais sofridos.
Na sentença recorrida, sempre com recurso a pertinente ilustração com citações doutrinárias e da mais recente jurisprudência, designadamente do Supremo Tribunal de Justiça, depois de ponderar que os limites da condenação por parte do tribunal não se encontram delimitados por cada uma das parcelas indicadas pelo autor, mas sim pelo pedido globalmente formulado, qualificou os danos sofridos, como patrimoniais, na vertente de danos futuros, englobando o denominado dano biológico ou dano corporal, e ponderando todos os parâmetros habitualmente usados neste cálculo, fixou tal indemnização em 340 000,00. Por seu turno, entendeu também verificados danos não patrimoniais para cujo ressarcimento, com recurso a um juízo equitativo, entendeu adequada a quantia global de 40.000,00€ perfazendo a indemnização total fixada a quantia de 380 000,00€.
Pretende a Ré por via do presente recurso que a indemnização seja globalmente fixada a título de danos não patrimoniais, e no valor de 50 000,00€, colocando em causa o enquadramento jurídico efectuado quanto aos mesmos no pressuposto da pretendida alteração da matéria de facto que, como vimos, não ocorreu.
Apreciando.
Como é sabido, a limitação funcional, ou dano biológico, em que se traduz uma incapacidade é apta a provocar no lesado danos de natureza patrimonial e de natureza não patrimonial[20].
Assim, seguindo o iter percorrido na sentença recorrida, e seguindo de perto a fundamentação por nós expendida no acórdão proferido em 06-10-2016[21], iniciaremos a apreciação pela indemnização devida pelo denominado dano biológico apreciando seguidamente os danos não patrimonais.
*****
III.2.3.1.1. – Do dano biológico
A afectação da capacidade funcional de uma pessoa, traduzida pela atribuição de um determinado grau de incapacidade físico-psíquica constitui um dano que importa reparar, independentemente de se traduzir ou não em perda efectiva ou imediata de salários, isto é, ainda que à data do acidente o sinistrado não estivesse a trabalhar ou fosse ainda menor[22].
Porém, só «há relativamente poucos anos tem vindo a entrar na terminologia da doutrina e da jurisprudência nacionais o conceito de “dano biológico” ou de “dano corporal”. (…) Ao nível da jurisprudência o conceito tem vindo a ser utilizado sobretudo a respeito da fixação de indemnizações em caso de acidentes de viação, suscitando, em primeira linha, a dificuldade da relação com a dicotomia tradicional da avaliação de danos patrimoniais versus danos não patrimoniais»[23].
Na verdade, sendo inicialmente sempre qualificada como indemnização por danos patrimoniais futuros[24], foi sendo efectuada uma evolução do conceito no sentido de que, quando não existia uma efectiva perda de vencimento e apenas estava em causa indemnizar um esforço acrescido para o desempenho das tarefas do dia-a-dia, quer na vertente da vida profissional quer na vertente da vida pessoal, que a existência de uma incapacidade, por si só representa, melhor se enquadraria a qualificação de tal indemnização como sendo atribuída pelo dano biológico, concluindo-se em alguns casos que este era ainda um dano patrimonial e em outros que constituía um dano não patrimonial.
Exemplificativamente, considerou-se que “nos casos em que a percentagem de IPP se não traduz, na prática, numa efectiva perda de ganhos ou de capacidade de ganho proporcional ao montante dos vencimentos previsivelmente a auferir no futuro, a repercussão negativa da IPP centra-se apenas numa diminuição de condição física, resistência, e capacidade de esforços por parte do lesado, o que se traduzirá numa deficiente ou imperfeita capacidade de utilização do corpo no desenvolvimento das actividades pessoais em geral, e numa consequente e igualmente previsível maior penosidade na execução das suas diversas tarefas.
É neste agravamento da penosidade (de carácter fisiológico) para a execução, com regularidade e normalidade, das tarefas próprias e habituais do respectivo múnus que deve radicar-se o arbitramento da indemnização por danos patrimoniais futuros”[25], considerando-se ainda nesse agravamento a repercussão da incapacidade na execução das normais tarefas do dia-a-dia.
Na mesma vertente da qualificação como danos patrimoniais, tem-se entendido que este denominado “dano biológico”, enquanto “diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com substancial e notória repercussão na vida pessoal e profissional de quem o sofre”, é sempre ressarcível, como dano autónomo, independentemente do seu específico e concreto enquadramento nas categorias normativas do dano patrimonial ou do dano não patrimonial (…); tal compensação do dano biológico tem como base e fundamento, quer a relevante e substancial restrição às possibilidades de exercício de uma profissão e de futura mudança ou reconversão de emprego pelo lesado, enquanto fonte actual de possíveis e eventuais acréscimos patrimoniais, frustrada irremediavelmente pelo grau de incapacidade que definitivamente o vai afectar, quer da acrescida penosidade e esforço no exercício da sua actividade diária e corrente, de modo a compensar e ultrapassar as graves deficiências funcionais que constituem sequela irreversível das lesões sofridas; a perda relevante de capacidades funcionais – mesmo que não imediatamente reflectida no valor dos rendimentos pecuniários auferidos pelo lesado – constitui uma verdadeira «capitis deminutio» num mercado laboral exigente, em permanente mutação e turbulência, condicionando, de forma relevante e substancial, as possibilidades de exercício profissional e de escolha de profissão, eliminando ou restringindo seriamente qualquer mudança ou reconversão de emprego e, nessa medida, o leque de oportunidades profissionais à disposição, erigindo-se, deste modo, em fonte actual de possíveis e futuros lucros cessantes, a compensar, desde logo, como verdadeiros danos patrimoniais”[26].
Por seu turno, qualificando o dano biológico, como sendo exclusivamente um dano não patrimonial, afirmou-se que «levando os factos provados a excluir que a incapacidade permanente geral de 5% tenha repercussões funcionais directas ou indirectas, imediatas ou longínquas, não é devida indemnização, a título de danos patrimoniais futuros, esgotando-se a sua valoração e ressarcimento em sede de dano não patrimonial»[27].
Ainda noutra perspectiva, autonomizando a indemnização pelo dano biológico, entende-se que «deverá aditar-se ao lucro cessante, decorrente da previsível perda de remunerações, calculada estritamente em função do grau de incapacidade permanente fixado, uma quantia que constitua justa compensação do referido dano biológico, consubstanciado na privação de futuras oportunidades profissionais, precludidas irremediavelmente pela capitis deminutio de que passou a padecer (o lesado), bem como pelo esforço acrescido que o já relevante grau de incapacidade fixado irá envolver para o exercício de quaisquer tarefas da vida profissional ou pessoal»[28].
Concordamos com a citada autora, quando afirma que «o dano biológico, sendo um dano real ou dano-evento, não deve, em princípio, ser qualificado como dano patrimonial ou não patrimonial, mas antes como tendo consequências de um e/ou outro tipo; e também por isso, em nosso entender, o dano biológico não deve ser tido como um dano autónomo em relação à dicotomia danos patrimoniais/danos não patrimoniais».
Assim, sendo certo que «a atribuição de uma indemnização a título de danos patrimoniais pela perda de capacidade de ganho, ao abrigo do art. 566.º, n.ºs 2 e 3, do CC, não dispensa a prova da existência de danos futuros», mesmo quando não se saiba se «em consequência do acidente de viação de que foi vítima, deixou de trabalhar, ou, trabalhando, qual o grau de dificuldade existente no desempenho das suas tarefas como vidraceiro, se o seu rendimento laboral deixou de ser o mesmo e em que medida ou se deixou de auferir o mesmo salário e em que montante, não existem elementos fácticos que permitam avaliar a existência de um dano patrimonial futuro»[29], é sempre possível indemnizar, mesmo complementarmente, o dano biológico, quando o lesado «tem de suportar a onerosidade com a execução de tarefas materiais de índole pessoal, mormente no âmbito das suas lides domésticas, a qual representará, para além da respetiva penosidade anímica, uma diminuição da capacidade geral de ganho fora do âmbito profissional», já que «o chamado dano biológico abrange um espectro alargado de prejuízos incidentes na esfera patrimonial do lesado, desde a perda do rendimento total ou parcial auferido no exercício da sua atividade profissional habitual até à frustração de previsíveis possibilidades de desempenho de quaisquer outras atividades ou tarefas de cariz económico, passando ainda pelos custos de maior onerosidade no exercício ou no incremento de quaisquer dessas atividades ou tarefas, com a consequente repercussão de maiores despesas daí advenientes ou o malogro do nível de rendimentos expectáveis»[30].
Assim, como já resulta do sobredito, o dano biológico pode «projectar-se em duas vertentes:
- por um lado, a perda total ou parcial da capacidade do lesado para o exercício da sua atividade profissional habitual ou específica, durante o período previsível dessa atividade, e consequentemente dos rendimentos que dela poderia auferir;
- por outro lado, a perda ou diminuição de capacidades funcionais que, mesmo não importando perda ou redução da capacidade para o exercício profissional da atividade habitual do lesado, impliquem ainda assim um maior esforço no exercício dessa atividade e/ou a supressão ou restrição de outras oportunidades profissionais ou de índole pessoal, no decurso do tempo de vida expetável, mesmo fora do quadro da sua profissão habitual»[31].
No caso em apreço, como é bom de ver, mesmo que não tivéssemos considerado provado o aludido facto 84, como pretendia a Ré, estaríamos sempre no âmbito da segunda vertente, consequentemente, sempre ao lesado seria arbitrada uma indemnização equitativa somente pelo intenso dano biológico que temos provado. Porém, tendo-se demonstrado a «reconversão» da situação profissional do autor, da categoria de vendedor, auferindo por mês um vencimento médio de 2 000,00€, para outra actividade profissional, mediante cujo desempenho passou a auferir mensalmente a quantia de 638,25€, a situação em apreço enquadra-se naquela primeira vertente.
Ora, o critério fundamental para a fixação da indemnização devida pelo dano biológico, tanto das indemnizações atribuídas por danos patrimoniais futuros (vertente patrimonial do chamado dano biológico) como especialmente por danos não patrimoniais (dano biológico e demais danos não patrimoniais), é a equidade[32].
Por isso se afirma que os critérios definidos na Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, bem como nas alterações introduzidas pela Portaria n.º 679/2009, de 25 de Junho, destinam-se expressamente a um âmbito de aplicação extrajudicial. Consequentemente, os mesmos não se sobrepõem ao sobredito critério fundamental para a determinação judicial das indemnizações, a equidade. Apesar disso, podem evidentemente ser ponderados pelo julgador, mormente porque se lhe impõe a prossecução do princípio da igualdade, o que, sem deixar de atender às especificidades do caso concreto, implica a procura, tanto quanto possível, de uma uniformização de critérios, tarefa para a qual as indicadas tabelas podem contribuir, atenta a objectividade dos factores ali referidos.
Assim, na determinação desta indemnização, à luz de um juízo de equidade, devem levar-se em conta a idade do lesado à data do acidente, o tempo provável da sua vida activa, o salário auferido e o que passou a auferir, a depreciação da moeda e, evidentemente o grau de incapacidade sofrido em consequência do acidente e a sua repercussão na vida profissional do lesado, sendo ainda certo que há que ter em atenção que findo o período de vida activa deste, não é possível ficcionar que desapareçam instantaneamente todas as necessidades decorrentes da sua vida física, sendo ainda de considerar a respectiva esperança média de vida, a expectativa de um aumento do seu vencimento, e que o acidente de que o autor foi vítima não se deveu a qualquer conduta que lhe fosse imputável, sendo-o antes e apenas à conduta do condutor do motociclo segurado na Ré, que no exercício da respectiva condução não observou as regras estradais a que se encontrava sujeito.
Acresce que, e como vem sendo uniformemente reconhecido, o valor estático alcançado através da automática aplicação de uma tabela «objectiva» - e que apenas permitirá alcançar um «minus» indemnizatório - terá de ser temperado através do recurso à equidade[33], como foi feito na sentença recorrida.
No caso dos autos, teve-se em consideração que: «o autor tinha, à data em que terminou o período de repercussão temporária na atividade profissional total (18/7/2012), 39 anos de idade, o que significa que terá pela frente, previsivelmente, 37 anos de vida biológica (cfr. supra em que se estimou a esperança média de vida em 76 anos) e 31 anos de vida ativa; O autor auferia um vencimento variável no montante de € 2 000,00 (dois mil euros), por mês; Passou a auferir o valor de € 638,25 (seiscentos e trinta e oito euros e vinte e cinco cêntimos) – facto provado n.º 87; Foi fixado um défice funcional permanente da integridade física em 47 pontos – facto provado n.º 43 – não podendo exercer a profissão de vendedor, conforme vinha desempenhando – facto provado n.º 84.º; Nos termos da alínea b), do n.º 1, do artigo 7.º da Portaria n.º 377/2008, de 26 de maio o termo da vida activa foi fixado nos 70 anos; De harmonia com os dados do INE, tendo em conta o índice de mortalidade no período compreendido entre 2009 e 2011, o valor da esperança de vida à nascença é de 79,45 anos para ambos os sexos, sendo de 76,45 anos para os homens; Apresenta danos permanentes, na sequência do acidente de que foi vítima – artigo 37.º dos factos provados; Marcha claudicante (sem recurso a canadianas); Cicatriz operatória da face posterior do cotovelo direito com 20 cm; Cicatriz da face anterior do antebraço esquerdo com 12 cm; Cicatriz operatória vertical com 32 cm desde o terço médio anterior da coxa até ao terço médio da perna e outra cicatriz transversal na face anterior do joelho com 7*7cm; Área equimótica do dorso do pé com 6*6cm; Limitação da mobilidade do cotovelo direito (20.º/20.º/120.º); Limitação da mobilidade do ombro esquerdo com abdução de 90.º e rotações de 60.º; Antebraço com pronação de 30.º e supinação de 45.º, dorsiflexão do punho de 60.º e flexão palmar; Rigidez trapézio metacárpic; Anquilose da 1.ª articulação metacarpo falângica e rigidez da articulação interfalangica do polegar esquerdo; Desvio axial em valgo de 20º do joelho esquerdo e flexo de 30º e limitação da mobilidade global (30º/30º/120º); instabilidade articular, amiotrofia de 2,5 cm da coxa e encurtamento (secundário a flexo) e sinais rotulianos positivos com sinais globais sugestivo de artrose femuro tibial e patelo femural do joelho esquerdo; O valor da taxa de juro anual e a variação da taxa de inflação.
Por outro lado há ainda que reter que, o recebimento imediato da totalidade do capital indemnizatório poderá, se não for corrigido, propiciar um enriquecimento injustificado à custa do lesante.
Ora, multiplicando o valor do rendimento mensal auferido pelo autor, antes do acidente - descontado do valor recebido a título de salario, após o acidente - pelo número de meses de que dispunha, ao longo da sua vida ativa (€ 1 400,00 x 372 meses) obtínhamos o valor de € 520 000,00 (quinhentos e vinte mil euros), sendo esse o valor a que teria direito.
Atendendo a todos os aludidos critérios e ainda à luz da citada jurisprudência, segundo a qual o tribunal apenas se encontra limitado ao valor globalmente considerado, mas não às concretas parcelas peticionadas, de acordo com a equidade, decido fixar a indemnização devida no montante de € 340 000,00 (trezentos e quarenta mil euros).»
Diz a Recorrente que a Senhora Juíza computou um período de vida activa do lesado até aos 76 anos, mas não é assim, porquanto se verifica da respectiva fundamentação que tal ponderação foi efectuada apenas como valoração da esperança média de vida. Portanto, na vertente que supra referimos de que as necessidades do autor, como de qualquer outro indivíduo, não se extinguem no termo da vida profissional activa mas sim do previsível tempo de vida para o respectivo género.
Assim, efectuámos os cálculos respectivos com vista a alcançar alguma objectividade que possamos seguidamente «temperar» com os referidos elementos em que um juízo equitativo assenta.
Deste modo, encontrámos alguma variação no cálculo aritmético, devendo ponderar-se que são 356 meses, e não 372, os decorridos entre a data em que terminou o período de repercussão temporária na actividade profissional total – 18/07/2012 – e o termo previsível da vida activa que o autor atingirá em 30/07/2042; multiplicados pelo resultado da diferença entre o valor médio mensal antes recebido e o recebido depois do acidente, que é de 1 361,75€, ascendendo essa quantia global a 484 783,00€; dividindo depois esta quantia por três e subtraindo esse resultado àquela quantia inicialmente encontrada, chegamos ao valor de 323 189,00€.
Ora, atendendo a todos os critérios já referidos, e ainda ao que dispõe o artigo 8.º do CC, de acordo com o qual a justiça do caso concreto há-de procurar-se também recorrendo a casos de natureza semelhante que já tenham sido apreciados pelos Tribunais, entendemos ser consentânea com os critérios que têm vindo a ser encontrados, designadamente pelo Supremo Tribunal de Justiça, para situações muito semelhantes à dos autos, fixar a referida indemnização em 320 000,00€.
*****
III.2.3.1.2. Danos não patrimoniais
A este título, como dito, na sentença recorrida fixou-se a indemnização na quantia de 40 000,00€, correspondente ao máximo permitido pelo limite do pedido formulado pelo autor, atenta a arbitrada indemnização de 340 000,00€ pelos danos patrimoniais futuros.
Em face da alteração ora efectuada nessa matéria, apreciemos, pois, afirmando-se, desde já, que se nos afigura exígua a quantia fixada a este título.
Ora, não existe qualquer obstáculo à consideração, a este título, de um valor superior ao fixado na sentença, pois de acordo com a já referida jurisprudência é pacífico que este Tribunal da Relação não está vinculado aos montantes parciais de cada um dos tipos de danos, desde que evidentemente o valor globalmente atribuído se contenha no valor do pedido, isto porque da proibição da reformatio in mellius apenas decorre que não se possa conceder ao autor mais do que aquilo que lhe foi atribuído a título indemnizatório na sentença recorrida[34].
Nos termos do disposto no artigo 496.º n.º 1 do CC na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais, que pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, sendo que, por força do n.º 3 do mesmo preceito legal, “o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º.”
O que deve entender-se por danos não patrimoniais há muito se encontra sedimentado na mais autorizada doutrina que tem sido seguida pela jurisprudência.
Assim, “danos não patrimoniais são os prejuízos (como dores físicas, desgostos morais, vexames, perda de prestígio ou de reputação, complexos de ordem estética) que, sendo insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens (como a saúde, o bem estar, a liberdade, a beleza, a honra, o bom nome) que não integram o património do lesado, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma satisfação do que uma indemnização”[35].
À questão de como serão indemnizáveis estes danos de natureza não pecuniária, responde-nos a lei afirmando que o cálculo da indemnização devida será efectuado com base na equidade, assim se indemnizando apenas os danos que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito – citados n.ºs 1 e 3 do art. 496.º do CC.
Também para a formulação do referido juízo de equidade, que balizará a fixação da compensação pecuniária neste tipo de dano, podemos recolher o ensinamento dos Professores Pires de Lima e Antunes Varela, que nos dizem que: “o montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado em qualquer caso (haja dolo ou mera culpa do lesante) segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e às do lesado e do titular da indemnização, às flutuações do valor da moeda, etc.
E deve ser proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida.”[36].
Como podemos verificar um dos aspectos a ter em conta, a culpa do lesante, tem sido realçado pelos tratadistas que acentuam a importância da componente punitiva da compensação por danos não patrimoniais.
Assim, Menezes Cordeiro ensina que “a cominação de uma obrigação de indemnizar danos morais representa sempre um sofrimento para o obrigado; nessa medida, a indemnização por danos morais reveste uma certa função punitiva, à semelhança aliás de qualquer indemnização”[37].
Por seu turno, Galvão Telles, sustenta que “a indemnização por danos não patrimoniais é uma “pena privada, estabelecida no interesse da vítima – na medida em que se apresenta como um castigo em cuja fixação se atende ainda ao grau de culpabilidade e à situação económica do lesante e do lesado”[38].
Para Menezes Leitão a reparação por danos morais assume-se “como uma pena privada, estabelecida no interesse da vítima, de forma a desagravá-la do comportamento do lesante”[39].
Nestes moldes, desde há muito vem decidindo o Supremo Tribunal de Justiça que «(...) no caso dos danos não patrimoniais, a indemnização reveste uma natureza acentuadamente mista, pois “visa reparar, de algum modo, mais que indemnizar os danos sofridos pela pessoa lesada”, não lhe sendo, porém, estranha a “ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente»[40]; e que a quantia devida por estes danos não tem por fim «a reconstrução da situação anterior ao acidente, mas principalmente compensar o autor, na medida do possível, das dores e incómodos que suportou e se mantém como resultado da situação para que o acidente o arrastou, e deve a mesma ser calculada pondo em confronto a situação patrimonial do lesado (real) e a que teria se não tivessem existido danos»[41], jurisprudência que se mantém actual conforme as inúmeras decisões que se podem consultar a propósito no caderno de jurisprudência temática disponível no sítio do STJ[42], e espelhada no recente acórdão citado, nos seguintes termos: «ante a imaterialidade dos interesses em jogo, a indemnização dos danos não patrimoniais não pode ter por escopo a sua reparação económica. Visa sim, por um lado, compensar o lesado pelo dano sofrido, em termos de lhes proporcionar uma quantia pecuniária que permita satisfazer interesses que apaguem ou atenuem o sofrimento causado pela lesão; e, por outro lado, servir de sancionamento da conduta do agente».
No caso que nos ocupa, o dano violado foi a integridade física e psicológica do Autor, que viu o acidente causar-lhe danos corporais com muito significativa gravidade, que deixaram sequelas permanentes, a nível físico, psicológico e estético, componentes que entendemos não deverem ser nesta sede objecto de divisão mas sim de uma avaliação global, porque é globalmente considerados que se reflectem na vida daquele.
Assim, conforme aduzido na sentença recorrida, com maior relevância nesta avaliação temos que «o autor sofreu muitas dores e teve consciência das lesões sofridas durante o acidente (facto provado n.º 34) e que tais dores ainda persistem nos dias de hoje (facto provado n.º 35.º). Note-se que, o quantum doloris foi fixado no grau 5/7 – facto provado n.º 42.º. Apurou-se ainda que o autor tem cicatrizes ao longo do seu corpo, as quais são visíveis, causando-lhe desconforto e vergonha, tendo sido fixado um dano estético permanente no grau 4/7 – factos provados nºs 44.º, 46.º e 47.º. Devido às sequelas, o autor não mais conseguiu praticar desporto, como o fazia antes (artigo 49.º da petição inicial); Não consegue exercer atividades que requeiram carregar pesos e ou esforço físico (artigo 50.º da petição inicial); Não consegue executar atividades de jardinagem e similares de forma normal, não consegue correr e não consegue estar ou suportar grandes períodos de pé ou sequer andar em marcha rápida (artigos 52.º a 54.º da petição inicial); Tem dificuldade em se levantar e raramente consegue firmar-se sobre a perna esquerda, tendo também dificuldade em subir e descer escadas, muitas vezes só o consegue fazer com apoio (artigos 55.º e 56.º da petição inicial); Não tem capacidade para transferir e aguentar peso sobre as pernas e braços (artigo 57.º da petição inicial). É com grande dificuldade que consegue calçar-se (artigo 58.º da petição inicial). Tem dificuldade em executar a atividade de conduzir (artigo 59.º da petição inicial).
Mais se apurou: O autor passou largo período de tempo sem conseguir dormir, devido às dores intensas, desconforto, mau estar, e preocupação, sofreu de insónias e nos poucos momentos que conseguia dormitar, tinha pesadelos sempre relacionados com o acidente, de ainda continua a sofrer (artigos 69.º e 70 da petição inicial). Passou a viver mergulhado numa profunda tristeza, em constante apatia e sem alegria de viver. (artigo 71.º da petição inicial)».
Dir-se-á, pois, que o mero elenco deste quadro factual sofrido pelo Autor em consequência do acidente, revela à evidência que estamos perante dano não patrimonial indemnizável, subtraindo-se, como é evidente, à aplicação do princípio da reposição natural, previsto nos artigos 562.º e 566.º do CC, em virtude da incompatibilidade de correspondência económica entre o dano e a sua expressão monetária, por estarmos em planos valorativos diferentes, relevando aqui somente a equidade.
Assim, não podemos olvidar que tendo o Autor 37 anos de idade à data do acidente e sendo então uma pessoa saudável e com alegria de viver, nunca mais recuperará a sua saúde, entendida como um estado de bem estar físico e psicológico, já que ficou com uma incapacidade funcional de quase 50%, só por si bem indiciadora da perda da qualidade de vida com que se terá que defrontar até ao final da sua vida, com as inerentes dores, não só as já sentidas como as que ainda padecerá por longos anos se tivermos presente a já referida esperança de vida; naturalmente que também sofreu dores e incómodos nos internamentos hospitalares, a sua vida será sempre marcada pela realização de exames médicos, de deslocações a instituições hospitalares, enfim, de todo o quadro de sofrimento associado a este género de situações de incapacidade com a gravidade da presente, e que tende a agravar no futuro, tudo sendo consequência deste acidente.
Ora, quando alguém na idade do autor, se confronta com as provadas limitações funcionais, dependências e cicatrizes, que afectam a sua vida familiar, social, e profissional, estamos, como é bom de ver perante sequelas com tal gravidade que constituem dano não patrimonial que deve ser compensado, sendo que a censurabilidade da conduta do segurado da Ré é um dos factores a ter em conta na fixação da compensação em dinheiro que se arbitrará ao autor como possível lenitivo para o sofrimento físico-psíquico que padeceu e ainda padece e perdurará na sua memória.
No caso dos autos, o sofrimento do autor em consequência do acidente e até à consolidação das lesões, ocorreu durante período temporal muito prolongado, foi acentuado estando médico legalmente fixado numa escala mais próxima do grau máximo que do mínimo, e continua a estar presente na sua vida nos termos sobreditos.
Acresce que, o autor sofre de uma limitação funcional muito acentuada, não se podendo olvidar em termos de normalidade da vida, que quanto maior for o tempo em que um indivíduo se encontra em situação de incapacidade, ainda que temporária ou parcial, mais aumenta a sua angústia quanto ao futuro, sendo sabido que, no caso, atenta a idade do autor, e o previsível agravamento futuro da sua situação, demanda preocupação acrescida nomeadamente com a repercussão dessa maior fragilidade no desempenho da actividade profissional e, como tal, na própria manutenção do posto de trabalho.
De facto, “a situação de crise económica que se vive atualmente, e que está a conduzir a totalidade da população que vive do salário do seu trabalho por conta de outrem a níveis de empobrecimento não vistos há muitas dezenas de anos e a elevados níveis de desemprego, constitui fator que leva um sinistrado de acidente de viação, que fique afetado pelas lesões sofridas em incapacidade funcional, a sentir uma angústia mais intensa do que sentiria quanto ao seu futuro se, contrariamente ao que se verifica, vivesse num Estado com níveis de bem-estar e onde uma pessoa incapacitada não sentisse particulares dificuldades de obter emprego ou de manter o emprego ou atividade exercida”[43], sabido que em Portugal estas dificuldades estão comummente presentes e especialmente numa pessoa que entretanto já tem mais de 40 anos de idade, isto apenas e tão somente pela idade que o respectivo documento de identificação atesta.
Por tudo o que vem de referir-se, é de concluir que o autor deve ter uma compensação adequada às sequelas decorrentes do acidente que sempre a afectarão, sendo para esse fim que deve servir o constante aumento dos prémios dos seguros.
Efectivamente, assim tem decidido o Supremo Tribunal de Justiça, como lapidarmente pode ler-se no seguinte sumário: “O objectivo essencial do aumento continuado e regular dos prémios de seguro que tem ocorrido em Portugal no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil por acidentes de viação não é o de garantir às companhias seguradoras a obtenção de lucros desproporcionados, mas antes o de, em primeira linha, assegurar aos lesados indemnizações adequadas”[44].
Ora, para encontrar a indemnização adequada «não se devem perder de vista os padrões indemnizatórios decorrentes da prática jurisprudencial, procurando - até por uma questão de justiça relativa - uma aplicação tendencialmente uniformizadora ainda que evolutiva do direito, como aliás impõe o n.º 3 do artigo 8.º do CC. (…)
Para tal efeito, são relevantes, além do mais: a natureza, multiplicidade e diversidade das lesões sofridas; as intervenções cirúrgicas e tratamentos médicos e medicamentosos a que o lesado teve de se submeter; os dias de internamento e o período de doença; a natureza e extensão das sequelas consolidadas, o quantum doloris, o dano estético (…)» e evidentemente o balizamento pelos padrões que têm vindo a ser seguidos pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, pese embora a constatação de alguma diversificação nos valores fixados, que resulta também da diversidade casuística a que se tem precisamente de atender.
Nestes termos, ponderando a situação que os presentes autos convocam, na comparação com outras indemnizações a título de danos não patrimoniais que têm vindo mais recentemente a ser arbitradas, designadamente as atribuídas nos já indicados processos deste TRE em situações em que intensidade e gravidade das lesões sofridas e das sequelas decorrentes do acidente se nos afigura comparável com a presente[45], tem-se por mais condizente e ajustado a esses padrões elevar a indemnização compensatória a atribuir ao autor a este título de danos não patrimoniais, para o montante de € 60.000,00[46].
*****
III.2.4. – Do remanescente da taxa de justiça
Entende a Recorrente que o presente processo justifica, nos termos do artigo 6.º, n.º 7, do Regulamento das Custas Processuais, que as partes sejam dispensadas, a final, do remanescente da taxa de justiça, previsto na Tabela I, para causas de valor superior a 275.000€, uma vez que a complexidade da causa e a conduta das partes não o justifica.
Com a redacção introduzida pela Lei n.º 7/2012, de 13 de Fevereiro ao citado artigo 6.º, n.º 7, do RCP, estatuindo que «nas causas de valor superior a 275 000,00€ o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento», consagrou-se legalmente a possibilidade de intervenção judicial no sentido da correcção, a final, dos montantes da taxa de justiça, quando da sua fixação unicamente em função do valor da causa resultem valores excessivos e desadequados à natureza e complexidade da causa, intervenção judicial essa que mesmo antes da referida alteração já era preconizada pela jurisprudência, designadamente do Tribunal Constitucional.[47]
Na verdade, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 421/2013, de 15-07-2013, decidiu «Julgar inconstitucionais, por violação do direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20.º da Constituição, conjugado com o princípio da proporcionalidade, decorrente dos artigos 2.º e 18.º, n.º 2, segunda parte, da Constituição, as normas contidas nos artigos 6.º e 11.º, conjugadas com a tabela I -A anexa, do Regulamento das Custas Processuais, na redação introduzida pelo Decreto -Lei n.º 52/2011, de 13 de abril, quando interpretadas no sentido de que o montante da taxa de justiça é definido em função do valor da ação sem qualquer limite máximo, não se permitindo ao tribunal que reduza o montante da taxa de justiça devida no caso concreto, tendo em conta, designadamente, a complexidade do processo e o caráter manifestamente desproporcional do montante exigido a esse título»[48].
Em fundamento de tal juízo, aduziu-se que «os critérios de cálculo da taxa de justiça, integrando normação que condiciona o exercício do direito fundamental de acesso à justiça (artigo 20.º da Constituição), constituem, pois, a essa luz, zona constitucionalmente sensível, sujeita, por isso, a parâmetros de conformação material que garantam um mínimo de proporcionalidade entre o valor cobrado ao cidadão que recorre ao sistema público de administração da justiça e o custo/utilidade do serviço que efetivamente lhe foi prestado (artigos 2.º e 18.º, n.º 2, da mesma Lei Fundamental), de modo a impedir a adoção de soluções de tal modo onerosas que se convertam em obstáculos práticos ao efetivo exercício de um tal direito».
Portanto, uma interpretação conforme à Constituição da legislação ordinária que rege sobre as custas processuais, nelas se incluindo as taxas de justiça, há-de sempre reger-se pelos princípios da igualdade, da causalidade e da proporcionalidade, encontrando-se este na ponderação, por um lado, de qual o valor da acção, e, por outro, de que o custo a suportar pela prestação do serviço público de justiça deve ser proporcional ao serviço prestado.
Como à guisa de introdução, já salientava o Conselheiro Salvador da Costa aquando da entrada em vigor do referido Regulamento das Custas Processuais «o conceito de custas é agora pensado na tríplice vertente de taxa de justiça, encargos e custas de parte. A taxa de justiça continua a ser a prestação pecuniária que o Estado, em regra, exige aos utentes do serviço judiciário no quadro da função jurisdicional por eles causada ou da qual beneficiem, ou seja, trata-se do valor que os sujeitos processuais devem prestar como contrapartida mínima relativa à prestação daquele serviço»[49].
Esta ideia de contrapartida e de proporcionalidade tem sido também evidenciada pelo Supremo Tribunal de Justiça ao afirmar que «atendendo ao princípio da proporcionalidade a que toda a actividade pública está sujeita, a taxa de justiça deverá ter tendencial equivalência ao serviço público prestado, concretamente, ao serviço de justiça a cargo dos tribunais, no exercício da função jurisdicional, devendo a mesma corresponder à contrapartida pecuniária de tal exercício e obedecer, além do mais, aos critérios previstos nos artigos 530º nº 7 do CPC e 6º nº 7 do RCP», por isso que, «perante o valor da acção, o grau de complexidade dos autos e o comportamento processual das partes, poderá dispensar-se, total ou parcialmente, o pagamento do remanescente da taxa de justiça a considerar na conta a final»[50].
Mais afirmou o Supremo Tribunal de Justiça[51], que «os objectivos de plena realização prática dos princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da adequação, que estão subjacentes à norma flexibilizadora consagrada no citado nº7 do art. 6º do RCP, só são plenamente alcançados se ao juiz for possível moldar ou modular o valor pecuniário correspondente ao remanescente da taxa de justiça devida nas causas de valor especialmente elevado, ponderando integralmente as especificidades do caso concreto e evitando uma lógica binária de tudo ou nada, segundo a qual ou apenas seria devido o montante da taxa de justiça já paga ou teria de ser liquidada a totalidade das custas correspondentes ao valor da causa – devendo antes poder dispensar o pagamento, conforme seja mais adequado, da totalidade ou apenas de uma parcela ou fracção daquele valor remanescente».
Deste modo, «- Para os efeitos da aplicação da referida norma, torna-se essencial conhecer a estrutura do processo em que surge a liquidação desse remanescente com vista a aferir do seu grau de exigência técnica ou complexidade;
- Deve considerar-se que o remanescente não será devido não quando as causas não tenham especial complexidade mas quando a sua dificuldade seja inferior à normal ou média - que terá sido a ponderada pelo legislador quando desenhou o sistema vertido no Regulamento das Custas Processuais;
- Se assim não fosse, antes aquele legislador teria fixado que o pagamento do remanescente só se justificaria nos casos de particular dificuldade – eventualmente a definir pelo julgador – sendo, então, o regime de liquidação do remanescente excepcional e não regra como emerge, presentemente, do Regulamento das Custas Processuais ao permitir-se a sua dispensa apenas mediante despacho devidamente fundamentado, explicativo, patenteando a singularidade ou carácter atípico da situação concreta;
- Na ponderação da dificuldade de uma acção, deve atender-se à dimensão dos articulados e alegações das partes, à natureza das questões a analisar e ao «peso» temporal e material da instrução»[52].
Deste modo, dir-se-á que quando, mercê do pagamento da taxa de justiça remanescente se verificar a ocorrência de «uma desproporção que afete claramente a relação sinalagmática que a taxa pressupõe entre o custo do serviço e a sua utilidade para o utente», impõe-se nesse caso ao Juiz o uso da faculdade que actualmente lhe é conferida pelo n.º 7, do artigo 6.º, do RCP com vista a dispensar, total ou parcialmente, o pagamento dessa taxa de justiça[53].
Ora, no caso em apreço, o valor da acção é de 380 000,00€, pelo que, para além da quantia já depositada, seria ainda devido o remanescente, atendendo a que, para além dos 275 000,00€ de valor da acção, ao valor da taxa de justiça acresce, a final, por cada 25 000,00€ ou fracção, 1,5 UC (Cf. tabela I anexa ao RCP).
Assim, entende-se que em função dos princípios orientadores supra referidos e na ponderação de todos os referidos factores, tendo presente que apesar do valor da causa esta não integra a apreciação de questões com complexidade superior à que envolve a avaliação dos pressupostos da responsabilidade civil emergente de acidente de viação, em qualquer causa desta natureza em que sejam pedidas indemnizações com base em incapacidades permanentes dos lesados; que o comportamento processual das partes também se desenrolou na mais completa normalidade e sem justificar qualquer reparo porquanto se limitaram a usar os normais meios ao seu dispor e que tiveram por adequados à defesa dos seus interesses, não se vislumbrando qualquer violação dos deveres processuais respectivos, antes pelo contrário não sendo prolixos os articulados e desenvolvendo-se os autos estritamente de acordo com o figurino previsto para a acção declarativa com processo comum; mas também não revestindo a causa simplicidade nas questões a apreciar, e não esquecendo a utilidade económica da mesma resultante que, no caso, corresponde integralmente ao valor do pedido, somos levados a concluir que não se verifica nenhuma razão para a utilização da possibilidade prevista naquele preceito, por não se verificar a desproporcionalidade que funda a respectiva aplicação.
Indefere-se, pois, a requerida dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça.
*****
2.3. Síntese conclusiva:
I - A relação jurídica material, tal qual o autor a apresentou na acção, funda-se na ocorrência do acidente de viação cuja responsabilidade imputa ao condutor do veículo segurado na ré; no nexo de causalidade entre esse acidente e os danos por si sofridos; e, quanto a estes, concretamente do tipo de danos em causa.
II - Assim, tendo o autor alegado todos os factos essenciais principais dos quais pode eventualmente decorrer a peticionada indemnização pela perda da capacidade de ganho que alegou ter sofrido em consequência do acidente, com repercussão em toda a sua vida futura, e devendo o tribunal ter em conta para além da alegação explícita também a alegação implícita, o facto considerado provado em 84. apresenta-se como concretizador da extensão do dano alegado pelo autor quanto à repercussão do acidente na sua vida profissional.
III - Daqui decorre que, resultando da instrução da causa, tal facto deve ser considerado na sentença como complementar ou concretizador dos factos essenciais principais alegados, porquanto se integra no objecto do litígio, e sobre o mesmo as partes tiveram a possibilidade de se pronunciarem.
IV - A prova pericial não é de apreciação vinculada, só sendo efectuada por solicitação das partes ou determinada oficiosamente pelo juiz relativamente a factos necessitados de prova, na formulação do artigo 410.º do CPC, sendo de livre apreciação pelo tribunal mesmo quando é efectuada uma segunda perícia (artigo 489.º do CPC).
V - Não obstante, situações há em que, mercê da complexidade técnica da avaliação em causa, o legislador atribui a especialistas específicos nas respectivas áreas - sujeitos a especiais regras de recrutamento, de competências e de condições para o exercício dessas funções -, o cálculo dos factores determinantes para a posterior fixação pelo tribunal da indemnização justa e equitativa.
VI - Tal ocorre precisamente quando está em causa a avaliação do dano em direito civil em que não basta a apreciação de um médico ainda que especialista na área, estando o cálculo da incapacidade permanente do lesado para efeitos de reparação civil do dano que lhe foi causado, atribuída legalmente pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, artigo 2.º, n.º 3, a médicos especialistas em medicina legal ou por especialistas noutras áreas com competência específica no âmbito da avaliação médico-legal do dano corporal no domínio do direito civil e das respectivas regras.
VII - Deste modo, reconhecendo o legislador a especial complexidade da avaliação em causa, e não dispondo o juiz de conhecimentos especiais na área a que respeita a perícia, apesar da sua liberdade de apreciação das provas, incluindo a pericial, o julgador não pode, sem fundamentos suficientemente sólidos, afastar-se do resultado das peritagens, sobretudo quando os peritos oferecem as garantias de competência e imparcialidade que aquela formação específica exige.
VIII - Assim, salvo casos de erro grosseiro ou de aplicação de um critério ilegal, o juiz em regra não estará em condições de sindicar o juízo científico emitido pelo perito, havendo que o aceitar, salvo se existirem nos autos outros elementos que possuam o referido grau de segurança, fiabilidade e objectividade.
IX - Este entendimento, que temos vindo a adoptar, tem necessariamente que ser enquadrado com o concreto juízo pericial que está em causa, tendo diferentes nuances consoante estejamos perante um juízo de cariz absolutamente científico ou um juízo que possa também fundar-se na conjugação com outros meios de prova.
X - Resultando do relatório pericial na vertente da repercussão do dano na actividade profissional, que esta exige esforços suplementares, mas admitindo o Senhor Perito nos esclarecimentos prestados que a situação seria diversa consoante estivéssemos, no fundo, perante um maior ou menor exercício da actividade de condução, para cujo exercício está demonstrado que o Autor tem manifesta dificuldade, podendo não ser compatível com o exercício da actividade profissional, a referida conclusão encontra-se deferida ao juiz, em face da concreta situação de vida profissional em presença.
XI - Assim, ponderando que ao tribunal incumbe retirar as devidas ilações de toda a matéria de facto provada, e tendo resultado provado, por mais impressivo, que o autor exercia a profissão de vendedor em toda a região do Algarve (facto 83); que tem um défice funcional permanente da integridade física fixado em 47 pontos (facto 43); que tem dificuldade em executar a actividade de conduzir (facto 64); que ainda hoje mantém a ajuda de terceiros porque muitas vezes não consegue exercer a sua actividade diária básica de forma normal (facto 69); e também que a empresa veio a celebrar com o autor um novo contrato de trabalho compatível com as suas actuais capacidades físicas (facto 86), a conclusão extraída de que as sequelas descritas não são compatíveis com a profissão que o autor vinha exercendo, no âmbito da qual se deslocava diariamente exercendo a condução, num percurso que se situa entre São Brás de Alportel e Vila Real de Santo António, é a que se impõem ante a apreciação da prova globalmente produzida.
XII - O critério fundamental para a fixação da indemnização devida pelo dano biológico, tanto das indemnizações atribuídas por danos patrimoniais futuros (vertente patrimonial do chamado dano biológico) como especialmente por danos não patrimoniais (dano biológico e demais danos não patrimoniais), é a equidade.
XIII - Para ressarcimento dos danos patrimoniais futuros, contando-se 356 meses, entre a data em que terminou o período de repercussão temporária na actividade profissional total e o termo previsível da vida activa que o autor atingirá em 30/07/2042; multiplicando-se pelo resultado da diferença entre o valor médio mensal antes recebido e o auferido depois do acidente, que é de 1 361,75€, ascendendo essa quantia global a 484 783,00€; dividindo depois esta quantia por três, por aplicação da taxa de juro; subtraindo esse resultado àquela quantia inicialmente encontrada; e aplicando ainda o que dispõe o artigo 8.º do CC, de acordo com o qual a justiça do caso concreto há-de procurar-se também recorrendo a casos de natureza semelhante que já tenham sido apreciados pelos Tribunais, entendemos ser consentânea com os critérios que têm vindo a ser encontrados, designadamente pelo Supremo Tribunal de Justiça, para situações muito semelhantes à dos autos, fixar a referida indemnização em 320 000,00€.
XIV - Na vertente dos danos não patrimoniais, ponderam-se todos os factos associados à fixação do quantum doloris no grau 5/7; à fixação do dano estético permanente no grau 4/7; tendo presente ainda que o Autor tinha 37 anos de idade à data do acidente, sendo então uma pessoa saudável e com alegria de viver, ficou com uma incapacidade funcional de quase 50%, só por si bem indiciadora da perda da qualidade de vida com que se terá que defrontar até ao final da sua vida, com as inerentes dores, não só as já sentidas como as que ainda padecerá por longos anos e que tende a agravar no futuro; e naturalmente ainda que também sofreu dores e incómodos nos internamentos hospitalares, a sua vida será sempre marcada pela realização de exames médicos, de deslocações a instituições hospitalares, e de todo o quadro de sofrimento associado, tudo sendo consequência do acidente da exclusiva responsabilidade do condutor do motociclo segurado na ré, reputando-se adequada a fixação da respectiva indemnização em 60.000,00.
XV - Quando, mercê do pagamento da taxa de justiça remanescente, se verificar a ocorrência de «uma desproporção que afete claramente a relação sinalagmática que a taxa pressupõe entre o custo do serviço e a sua utilidade para o utente», impõe-se ao Juiz o uso da faculdade que actualmente lhe é conferida pelo n.º 7, do artigo 6.º, do RCP com vista a dispensar, total ou parcialmente, o pagamento dessa taxa de justiça
XVI - Não se verificando a desproporcionalidade que funda a aplicação do disposto nesse preceito, deve ser indeferida a requerida dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça.
*****
IV - Decisão
Nestes termos, julga-se a apelação improcedente, confirmando a indemnização global arbitrada na sentença recorrida, ainda que alterando, respectivamente o montante dos danos patrimoniais futuros para a quantia de 320 000,00€ (trezentos e vinte mil euros) e dos danos não patrimoniais para a quantia de 60 000,00€ (sessenta mil euros).
Custas pela Ré.
*****
Évora, 9 de Março de 2017
Albertina Pedroso [54]
Tomé Ramião
Francisco Xavier
__________________________________________________
[1] Instância Central, 1.ª Secção Cível, Juiz 1.
[2] Relatora: Albertina Pedroso;
1.º Adjunto: Tomé Ramião;
2.º Adjunto: Francisco Xavier.
[3] Doravante abreviadamente designado CPC, na redacção aprovada pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho.
[4] Doravante CC.
[5] Cfr. José Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil, Anotado, vol. V, págs. 142 e ss; e Ac. STJ de 19-04-2012, processo n.º 9870/05.5TBBRG.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[6] Cfr. neste sentido, exemplificativamente, Ac. STJ de 12-01-2010, processo n.º 630/09.5YFLSB; Ac. TRL de 20-12-2010, processo n.º 1650/10.2TBOER-A.L1-1; e Ac. TRC de 29-02-2012, processo n.º 144732/10.9YIPRT.C1, todos disponíveis em www.dgsi.pt. Este entendimento jurisprudencial pacífico estriba-se na doutrina já defendida por José Alberto dos Reis que a propósito do correspondente normativo afirmava que se impõe ao juiz o dever de resolver todas as questões que as partes tiverem submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, resultando a nulidade, precisamente, da infracção pelo juiz desse dever que lhe está legalmente cometido. Mais recentemente, cfr. no mesmo sentido, Jorge Augusto Pais de Amaral, in Direito Processual Civil, 7.ª edição, Almedina 2008, pág. 391.
[7] Cfr. Ac. TRP de 21-11-2016, proferido no processo n.º 2194/13.6, disponível em www.dgsi.pt.
[8] Por lapso não consta o n.º 2 do preceito, a que manifestamente a Senhora Juíza se refere.
[9] Cfr. Ac. STJ de 10-09-2015, Revista n.º 819/11.7TBPRD.P1.S1 - 2.ª Secção.
[10] Cfr. Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, in Primeiras Notas ao Código de Processo Civil, vol. I, 2.ª edição, Almedina 2014, na nota de rodapé 27 na pág. 40.
[11] Cfr. Blog do IPPC, comentário ao Ac. TRC de 22-09-2015, no qual se entendeu que um facto essencial para a decisão da causa não pode ser um facto complementar, orientação que o Ilustre Autor afirma expressamente não poder ser seguida.
[12] Cfr. Ac. STJ de 10-09-2015, Revista n.º 819/11.7TBPRD.P1.S1 - 2.ª Secção.
[13] Cfr. neste sentido Ac. STJ de 04-06-2015, Revista n.º 177/04.6TBRMZ.E1.S1 - 2.ª Secção, referindo-se aos factos instrumentais.
[14] Cfr. neste sentido, Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 3.ª Edição Revista e Actualizada, pág. 313; e na jurisprudência de forma meramente exemplificativa, Ac. STJ de 24-05-2012, processo n.º 850/07.7TVLSB.L1.S2, disponível em www.dgsi.pt.
[15] Cfr. Acórdão do STJ de 25.01.2006, proferido no Processo n.º 05P3460, e disponível em www.dgsi.pt.
[16] Cfr., neste sentido, Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2.ª edição, revista e actualizada, Coimbra Editora, 1985, pág. 576.
[17]
[18] Cfr. Ac. TRC de 15-01-2013, proferido no processo n.º 637/10.0TBSEI.C1, da ora Relatora, disponível em www.dgsi.pt.
[19] Cfr. Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. I, pág. 778.
[20] Cfr. Ac. STJ de 04-06-2015, proferido no processo n.º 1166/10.7TBVCD.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[21] Processo n.º 866/11.9TBABT.E1, deste TRE, disponível em www.dgsi.pt.
[22] Neste sentido, cfr. Ac. STJ, de 19-11-2009, proferido na revista n.º 585/09.6YFLSB, 1.ª secção e disponível em www.stj.pt, Sumários de Acórdãos, onde se afirma que “estamos perante danos patrimoniais indirectos quando o dano, atingindo embora valores ou interesses não patrimoniais, se reflecte no património do lesado, daí que possa concluir-se que nem sempre o dano patrimonial resulta da violação de direitos ou interesses patrimoniais”.
[23] Cfr. artigo doutrinário de 2011 da autoria de Maria da Graça Trigo, actualmente Juíza Conselheira no Supremo Tribunal de Justiça, com o título Adopção do Conceito de “Dano Biológico” pelo Direito Português, acessível na Internet, no qual é efectuada uma análise de Acórdãos significativos do Supremo Tribunal de Justiça a este respeito. Para mais desenvolvimentos, vd. João António Álvaro Dias, in Dano Corporal – Quadro Epistemológico e Aspectos Ressarcitórios, Almedina, Colecção Teses, Set. 2001, sobretudo em págs. 395 e segs.
[24] Veja-se exemplificativamente o acórdão acabado de citar.
[25] Acórdão do STJ, de 07-02-2002, Revista n.º 3985/01 - 2.ª Secção.
[26] Cfr. Ac. STJ de 20-01-2011, proferido no processo n.º 520/04.8GAVNF.P2.S1, e disponível em www.dgsi.pt.
[27] Cfr. Ac. STJ de 20-01-2010, proferido no processo n.º 203/99.9TBVRL.P1.S1, e disponível em www.dgsi.pt.
[28] Cfr. Ac. STJ de 10- 10-2012, proferido no processo n.º 632/2001.G1.S1, e disponível em www.dgsi.pt.
[29] Cfr. o recente Ac. STJ de 30-06-2016, proferido no processo n.º 161/11.3TBPTB.G1.S1, e disponível em www.dgsi.pt, decisão em que a citada autora é adjunta.
[30] Cfr. o recente acórdão do STJ, de 02-06-2016, proferido no processo n.º 2603/10.6TVLSB.L1.S1, e disponível em www.dgsi.pt.
[31] Cfr. citado Ac. STJ de 16-06-2016.
[32] Cfr. Ac. do STJ de 04-06-2015, proferido no processo n.º 1166/10.7TBVCD.P1.S1, e disponível em www.dgsi.pt.
[33] Acórdão STJ de 05-11-2009, processo n.º 381-2002.S1- 7ª SECÇÃO, em www.dgsi.pt.
[34] Cfr. neste sentido, Ac. TRC de 21-03-2013, proferido no processo n.º 793/07.4TBAND.C1, disponível em www.dgsi.pt, e o acórdão deste TRE desta mesma sessão, em que a ora Relatora é 1.ª Adjunta e o aqui primeiro Adjunto, ali é segundo adjunto, proferido no processo n.º 2153/12.6TBLLE.E1.
[35] Cfr. Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, 6ª edição, vol. l.°, pág. 571.
[36] In “Código Civil Anotado”, vol. I, pág.501.
[37] In “Direito das Obrigações”, vol. II, pág. 288.
[38] In “Direito das Obrigações”, pág. 387.
[39] In “Direito das Obrigações”, vol. I, pág. 299.
[40] Ac. do STJ, de 30.10.96, in BMJ 460, pág. 444.
[41] Cfr. Ac. STJ de 26.01.94 in CJSTJ, Tomo I, pág.65 e de 16.12.93, in CJSTJ, Tomo III, pág.181.
[42] Inter alia, Ac. STJ de 19-05-2009, Proc.º n.º 298/06.0TBSJM.S1, disponível em www.stj.pt.
[43] Cfr. o acórdão do STJ de 26-06-2012, proferido no processo n.º 631/1999.L1.S1, e disponível em www.dgsi.pt.
[44] Ac. STJ de 05-07-2007, Revista n.º 1734/07 - 6.ª Secção, disponível no local citado.
[45] Veja-se o caso citado na sentença recorrida decidido no acórdão do STJ de 04-06-2015, em que se provou uma IPG de 16,9 e se atribuiu uma indemnização de 40 000,00€, tratando-se evidentemente de situação de gravidade muito inferior à situação presente.
[46] Cfr. citado acórdão de 02-06-2016 e os exemplos ali referidos.
[47] Cfr. Guia Prático sobre Custas, Centro de Estudos Judiciários, 4.ª edição, pág. 87.
[48] Diário da República, 2.ª série, N.º 200, de 16 de Outubro de 2013, págs. 31096 a 31098.
[49] Cfr. Regulamento das Custas Processuais, 5.ª edição, Almedina 2010, págs. 6 e 7.
[50] Cfr., por todos, o recente Acórdão do STJ de 22-11-2016, proferido no processo n.º 200/14.6T8LRA-A.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[51] Cfr. Ac. STJ de 12-12-2013, proferido no processo n.º 1319/12.3TVLSB-B.-L1.S1, em www.dgsi.pt.
[52] Cfr. Ac. TRL, de 14-01-2016, proferido no processo n.º 7973-08.3TCLRS-A.L1-6, disponível em www.dgsi.pt. Neste mesmo sentido se pronunciou ainda no este Tribunal, em recente acórdão de 23-02-2017, relatado pelo ora segundo adjunto, e ainda inédito.
[53] Cfr. neste sentido, o citado Ac. TRL de 21-04-2015.
[54] Texto elaborado e revisto pela Relatora.