Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1854/19.2T8PTM.E1
Relator: EMÍLIA RAMOS COSTA
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
QUALIFICAÇÃO
Data do Acordão: 03/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I – Estamos perante um acidente de trabalho quando (i) o trabalhador por conta de outrem (ii) sofre um acidente, (iii) no local de trabalho, (iv) no tempo de trabalho e (v) esse acidente é a causa direta ou indireta de lesão corporal, perturbação funcional ou doença no trabalhador (vi) de que resulta redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
II – Designa-se por acidente o evento súbito, imprevisível e com origem externa.
III – O conceito relativamente à exterioridade do evento deve ser interpretado de forma a abranger todas as situações, com exceção daquelas que são produzidas única e exclusivamente por causas endógenas.
IV – Considera-se preenchido o conceito de acidente de trabalho quando, no exercício das suas funções profissionais de técnico de refrigeração e climatização ao serviço da sua entidade empregadora, o Autor, ao baixar-se para tirar uma ferramenta de um saco, sofreu uma lesão em asa de cesto do menisco do joelho esquerdo.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Proc. n.º 1854/19.2T8PTM.E1
Secção Social do Tribunal da Relação de Évora[1]
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório
O sinistrado AA veio participar o acidente de trabalho de que foi vítima, ocorrido no dia 24-05-2019, pelas 14h30, em Lagos, quando prestava serviço para “GreenClima – Instalações Técnicas Unipessoal, Lda.”, na qualidade de ajudante técnico de refrigeração e climatização, tendo a sua entidade patronal participado o referido acidente à seguradora “Lusitânia, Companhia de Seguros, S.A.”, nos termos da apólice n.º 8298058, tendo esta se escudado em assumir as responsabilidades do acidente, por considerar inexistir nexo de causalidade entre o sinistro e a lesão sofrida.
Em 31-01-2020 é efetuado o relatório do exame médico ao sinistrado, o qual concluiu que:
- A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 12-07-2019.
- Incapacidade temporária absoluta fixável num período total de 49 dias.
- Incapacidade permanente parcial fixável em 3,00%.
Em 10-09-2020, realizou-se a tentativa de conciliação, estando presentes o sinistrado e a seguradora, não tendo sido possível conciliar as partes.
Os autos prosseguiram, tendo o Autor AA apresentado petição inicial de ação emergente de acidente de trabalho com processo especial, contra a “Lusitânia, Companhia de Seguros, S.A.” (Ré), peticionando, a final, que a Ré seja condenada a suportar todos os encargos com a assistência médica e medicamentosa necessária ao tratamento das lesões do sinistrado e condenada a pagar ao Autor indemnização pelas incapacidades temporária e definitiva que vierem a ser apuradas.
Requereu ainda a realização de perícia por junta médica, por considerar que não se encontra curado das lesões sofridas no evento ocorrido em 24-05-2019, perdurando a incapacidade temporária, desconhecendo se terá alguma sequela do acidente.
Formulou os seguintes quesitos[2]:
1.Que lesões ou sequelas apresenta o sinistrado?
2.As lesões ou sequelas do sinistrado são compatíveis com fenómenos dolorosos?
3.As lesões impossibilitam estar de pé e o andar?
4.As lesões ou sequelas podem ser tratadas? Em caso afirmativo, quais são os tratamentos adequados?
5.Qual o grau de incapacidade temporária e/ou definitiva do sinistrado?
6.Em caso de serem detectadas sequelas, que consequências têm no seu trabalho e na vida pessoal?
O Instituto de Segurança Social, I.P. – Centro Distrital de Faro veio deduzir pedido de reembolso das prestações pagas, no montante de €6.703,26, e quantias vincendas, acrescido de juros vencidos e vincendos até efetivo e integral pagamento, a título de subsídio de doença, ao beneficiário AA, contra a Ré “Lusitânia, Companhia de Seguros, S.A.”.
A Ré “Lusitânia, Companhia de Seguros, S.A.” contestou o pedido formulado pelo Autor, concluindo, a final, que a ação deve ser julgada improcedente, por não provada, com todas as consequências legais.
Requereu igualmente a realização de exame por junta médica, formulando os seguintes quesitos[3]:
1.º - Quais as lesões sofridas pelo A. em 24/05/2019?
2.º - Em 24/05/2019, o A. padecia de alguma estado pre-existente, como alguma doença degenerativa ou sequelas de acidente de trabalho anterior? Se sim, de que natureza e extensão?
3.º - As lesões sofridas decorrem de evento traumático verificado no momento, de doença ou de recidiva de sequelas? Se sim, quais, origem e extensão?
4.º - O A. sofreu alguma incapacidade temporária em consequência directa e necessária do evento de 24/05/2019, da doença ou de recidiva? Em caso afirmativo, quais os períodos e graus de incapacidade temporária por evento?
5.º - O A. ficou com sequelas relacionadas com o evento de 24/05/2019, da doença ou da recidiva? Se sim, quais e qual o grau de IPP por evento?
6.º - As lesões verificadas têm alguma evolução de agravamento ou melhoria e em que cenários?
A Ré “Lusitânia, Companhia de Seguros, S.A.” contestou o pedido formulado pelo Instituto de Segurança Social, I.P. – Centro Distrital de Faro, concluindo, a final, pela improcedência de tal pedido.
Proferido despacho saneador, foi fixado o objeto do litígio, bem como os factos assentes, tendo sido enunciados os temas da prova. Foi igualmente admitido o exame por junta médica.
“O Instituto da Segurança Social, I.P. – Centro Distrital de Faro” veio requerer a ampliação do pedido inicial para o montante total e atualizado de €12.115,26.
A Ré veio contestar o pedido de ampliação formulado.
Por despacho proferido em 24-03-2022, foi admitida a ampliação do pedido deduzida pelo interveniente “Instituto de Segurança Social, I.P. – Centro Distrital de Faro”.
No apenso de fixação da incapacidade para o trabalho[4], no auto de exame por junta médica, realizado em 04-06-2021, após exame ao sinistrado, foi decidido o seguinte:
- […] por maioria, enviar o sinistrado aos serviços clínicos da companhia de seguros, uma vez que existe nexo de causalidade entre as lesões observadas e o evento descrito, do qual resultou uma lesão meniscal, que carece de tratamento.
- Pelo perito indicado pela entidade responsável foi dito que para se pronunciar sobre o caso em apreço é necessário que se solicite à entidade seguradora os registos clínicos e as imagens dos Cd’s correspondentes às RMN’s efetuadas a 31/05/2019 e 05/08/2019, de modo a permitir uma avaliação comparativa das mesmas, o que também deveria ser feito por radiologista responsável.
Posteriormente, após cumprimento dos tratamentos ao Autor, efetuados pela Ré, foi realizado, em 01-04-2022, o exame por junta médica, através do qual foram dadas as seguintes respostas:
1 - Por maioria[5], aos quesitos formulados pelo Autor AA:
1. Do evento resultante dos autos resultou lesão em asa de cesto do menisco externo do joelho esquerdo. Atualmente, após cirurgia, o sinistrado não apresenta sequelas.
2. Atualmente, após cirurgia, o sinistrado não apresenta sequelas.
3. As lesões foram tratadas e, neste momento, o sinistrado não apresenta sequelas resultantes do evento.
4. As lesões foram tratadas e, neste momento, o sinistrado não apresenta sequelas resultantes do evento.
5. Não tem, uma vez que não apresenta sequelas.
6. Prejudicado.

2 - Por maioria[6], aos quesitos formulados pela Ré “Lusitânia, Companhia de Seguros, S.A.”:
1. Do evento resultante dos autos resultou lesão em asa de cesto do menisco externo do joelho esquerdo.
2. Sim, anteriormente o sinistrado foi submetido a meniscectomia parcial interna e, à data do evento, apresentava alterações degenerativas do compartimento interno do joelho.
3. A lesão descrita em 1. decorre de evento traumático.
4. Sim. ITA entre 25-05-2019 e 20-01-2022; ITP de 20% entre 21-01-2022 e 17-02-2022.
5. Não.
6. Não, porque a lesão está curada.

O perito médico indicado pela Ré procedeu às seguintes respostas:
- Em resposta ao quesito 1. de ambos os requerimentos, na sequência do que foi dito na junta médica do dia 04-06-2021, apreciados os exames e relatórios a fls. 43, 31 e 32 dos autos, a RMN de 31-05-2019 e da consulta de 20-01-2021, não encontrar lesões identificadas como traumáticas agudas, podendo ser interpretáveis como crónicas, no seu quadro de gonartrose, pelo que, do episódio em causa entende não terem resultado lesões agudas ou agravamento do estado prévio.
- Em resposta ao quesito 2. do requerimento ref.ª Citius 8234594: prejudicado.
- Em resposta ao quesito 2. do requerimento ref.ª Citius 8350105: Sim, anteriormente o sinistrado foi submetido a meniscectomia parcial interna e, à data do evento, apresentava alterações degenerativas do compartimento interno do joelho. O sinistrado foi também submetido a cirurgia no Hospital de Santa Maria aos 15 anos.
- Em resposta ao quesito 3. do requerimento ref.ª Citius 8350105: Não há como reportar a lesão descrita (menisco externo) como indubitavelmente decorrente do episódio.
- Em resposta ao quesito 4. do requerimento ref.ª Citius 8350105: As propostas inicialmente pela seguradora.
No apenso A, em 09-05-2022, foi proferida decisão, com o seguinte teor final:
Pelo exposto, julga-se o sinistrado AA afectado, em consequência do acidente sofrido em 24-05-2019:
a. De uma Incapacidade Temporária Absoluta (ITA) de 25-05-2019 até 20-01-2022;
b. De uma Incapacidade Temporária Parcial (ITP) de 21-01-2022 e 17-02-2022.
c. Curado, sem desvalorização, a partir de 18-02-2022.
Notifique-se e, oportunamente, lavre termo de conclusão no processo principal.

Nessa decisão foram dados como provados os seguintes factos:
1. No dia 24-05-2019, em Lagos, o sinistrado, em virtude de evento traumático ocorrido, sofreu lesão em asa de cesto do menisco externo do joelho esquerdo.
2. O sinistrado, em consequência das lesões sofridas, esteve:
i. com Incapacidade Temporária Absoluta (ITA) desde 25-05-2019 até 20-01-2022 (972 dias);
ii. com Incapacidade Temporária Parcial (ITP) de 20% entre 21-01-2022 e 17-02-2022 (28 dias).
3. A partir de 18-02-2022, data da alta clínica, foi considerado curado, sem sequelas objectiváveis.
Nos autos principais, realizada a audiência de julgamento, foi proferida a respetiva sentença, em 10-10-2022 com a seguinte decisão:
Nestes termos e por tudo o exposto:
a. Julga-se o sinistrado AA, por via do acidente de trabalho ocorrido a 24-05-2019, afectado:
i. de uma Incapacidade Temporária Absoluta (ITA) de 25-05-2019 a 20-01-2022 (972 dias);

ii. de uma Incapacidade Temporária Parcial (ITP) de 20% de 21-01-2022 a 17-02-2022 (28 dias);

iii. a partir de 18-02-2022, data da alta clínica, ficou recuperado, não subsistindo incapacidade susceptível de desvalorização para efeitos da Tabela Nacional de Incapacidades, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro.
b. Condena-se, em conformidade, “Lusitânia – Companhia de Seguros, S.A.”, a pagar a AA a quantia global de € 19.255,64 (dezanove mil, duzentos e cinquenta e cinco euros e sessenta e quatro cêntimos), a título de indemnização pelas incapacidades temporárias, absoluta e relativa, sofridas;

c. Julga-se totalmente procedente o pedido reembolso formulado pelo “Instituto da Segurança Social, I.P. – Centro Distrital de Faro” contra a ré “Lusitânia – Companhia de Seguros, S.A.”, condenando-se esta a reembolsar o Instituto da Segurança Social, I.P. pelas prestações respeitantes a subsídio de doença pago ao autor no período compreendido entre 20-07-2019 e 19-08-2021, no montante global de € € 12.115,26 (doze mil, cento e quinze euros e vinte e seis cêntimos), a deduzir das prestações devidas pela ré ao autor;
d. Condena-se a ré a pagar juros de mora sobre as prestações pecuniárias em atraso, à taxa anual de 4%, desde a data dos respectivos vencimentos e até efectivo e integral pagamento;
e. Condena-se a ré em custas, na proporção do decaimento, tudo de harmonia com o artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.

Fixa-se o valor da ação em € 19.255,64 (dezanove mil, duzentos e cinquenta e cinco euros e sessenta e quatro cêntimos).
Registe e notifique.

Não se conformando com a sentença, veio a Ré interpor recurso de apelação, terminando com as seguintes conclusões:
1.ª - A Recorrente não aceitou o evento em causa nos autos como acidente de trabalho.
2.ª - Realizado o julgamento, o Tribunal considerou que houve um acidente de trabalho e condenou a R..
3.ª - Porém, o Tribunal não decidiu correctamente, pois dos factos provados resulta inequivocamente que não houve um acidente, muito menos de trabalho.
4.ª - O acidente de trabalho é o evento externo, súbito e violento que produz, directa ou indiretamente, lesão corporal, perturbação funcional ou doença, pelo que assente a existência da relação laboral entre o sinistrado e o empregador, a responsabilidade civil infortunística ocorrerá sempre que, cumulativamente, se mostrem preenchidos os respectivos pressupostos.
5.ª - A caracterização dum evento ou episódio como acidente de trabalho pressupõe a ocorrência de uma situação no local e tempo de trabalho, numa cadeia de factos em que cada um dos elos está interligado por um nexo causal.
6.ª - Para tanto e desde logo tem que ocorrer um evento danoso durante a prestação laboral e apto a causar a lesão verificada.
7.ª - Nos factos provados da Sentença, nomeadamente no artigo 5.º, não consta que se verificou a eclosão de um “evento” anómalo, violento, súbito ou pelo menos de duração curta e limitada, inesperado e de origem exterior (estranho à constituição orgânica da vítima), relacionado com o trabalho que estava a ser realizado e gerador de lesão na saúde do A..
8.ª - O movimento "baixar-se para tirar uma ferramenta de um saco" não preenche o conceito de “evento” anómalo, violento, súbito ou pelo menos de duração curta e limitada, inesperado e de origem exterior, para que se possa dizer ter sido um acidente e de trabalho.
9.ª - Não se encontrando preenchidos os requisitos previstos para se poder reconhecer que as lesões foram causadas por um acidente, não houve um acidente de trabalho nos termos do disposto nos art.ºs 8.º e 9.º da LAT.
10.ª - Não havendo um acidente trabalho as lesões e incapacidades sofridas pelo A. e subsídios pagos pela Segurança Social não têm de ser indemnizadas pela Apelante.
11.ª - Foi violado, pelo menos, o disposto nos art.ºs 8.º e 9.º da LAT.
12.ª - Pelo exposto, deve ser dado provimento ao recurso e, em consequência, a Apelante absolvida dos pedidos, por não ter havido um acidente de trabalho.
Nestes termos, e nos melhores de Direito que V. Ex.ªs, doutamente suprirão, deve ser concedido provimento ao Recurso, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!
Não foram apresentadas contra-alegações.
O tribunal de 1.ª instância admitiu o recurso como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo (em face da caução prestada), tendo, após a subida dos autos ao Tribunal da Relação, sido dado cumprimento ao preceituado no n.º 3 do art. 87.º do Código de Processo do Trabalho, no qual o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, pugnando pela improcedência do recurso.
Não houve respostas a tal parecer.
Neste tribunal, o recurso foi admitido nos seus precisos termos e os autos foram aos vistos, cumprindo agora apreciar e decidir.
II – Objeto do Recurso
Nos termos dos arts. 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do Código de Processo Civil, aplicáveis por remissão do artigo 87.º n.º 1 do Código de Processo de Trabalho, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da recorrente, ressalvada a matéria de conhecimento oficioso.
No caso em apreço, a questão que importa decidir é:
1) Inexistência de acidente de trabalho.
III – Matéria de Facto
O tribunal de 1.ª instância deu como provados os seguintes factos:
1. AA nasceu no dia .../.../1974.
2. No dia 24-05-2019, em Lagos, o autor exercia a profissão de técnico de refrigeração e climatização ao serviço de “Greenclima – Instalações Eléctricas, Unipessoal, Lda.”, auferindo a retribuição anual de € 9.834,34 [(€ 620,00 x 14) + (€ 4,77 x 242)].
3. Nessa data, a entidade empregadora “Greenclima – Instalações Eléctricas, Unipessoal, Lda.” tinha a sua responsabilidade por acidentes de trabalho transferida para a ré “Lusitânia – Companhia de Seguros, S.A.”, pelo montante da referida retribuição anual.
4. Em 24-05-2019 a entidade empregadora “Greenclima – Instalações Eléctricas, Unipessoal, Lda.” participou à ré “Lusitânia – Companhia de Seguros, S.A.” a ocorrência, nesse dia, de um acidente de trabalho com o autor, nos termos que constam da participação junta com o requerimento que deu início ao processo, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
5. No dia 24-05-2019, em Lagos, no exercício das suas funções profissionais de técnico de refrigeração e climatização ao serviço da sua entidade empregadora, o autor, ao baixar-se para tirar uma ferramenta de um saco, sofreu uma lesão em asa de cesto do menisco do joelho esquerdo.
6. Após a cirurgia a que se submeteu o sinistrado não apresenta sequelas.
7. Desse acidente resultou para o sinistrado:
a) uma Incapacidade Temporária Absoluta (ITA) de 25-05-2019 a 20-01-2022 (972 dias);
b) Uma Incapacidade Temporária Parcial (ITP) de 20% de 21-01-2022 a 17-02-2022 (28 dias);
c) A partir de 18-02-2022, data da alta clínica, ficou recuperado, não subsistindo incapacidade susceptível de desvalorização da Tabela Nacional de Incapacidades, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro.
8. O Instituto da Segurança Social, I.P. – Centro Distrital de Faro pagou ao autor, a título de subsídio de doença, no período compreendido entre 20-07-2019 e 19-08-2021, o valor global de € 12.115,26 (doze mil, cento e quinze euros e vinte e seis cêntimos).
IV – Enquadramento jurídico
Conforme supra mencionámos, o que importa analisar no presente recurso é se existe acidente de trabalho.

1) Inexistência de acidente de trabalho
Segundo a Apelante, o Apelado não sofreu qualquer acidente, muito menos de trabalho, uma vez que um acidente de trabalho pressupõe a ocorrência de uma situação no local e tempo de trabalho, numa cadeia de factos em que cada um dos elos está interligado por um nexo causal, tendo, para tanto, de ocorrer um evento danoso durante a prestação laboral e apto a causar a lesão verificada.
Mais referiu que, na situação em apreço, não se verificou a eclosão de um “evento” anómalo, violento, súbito ou pelo menos de duração curta e limitada, inesperado e de origem exterior, ou seja, estranho à constituição orgânica da vítima, relacionado com o trabalho que estava a ser realizado e gerador de lesão na saúde do Apelado, uma vez que o movimento “baixar-se para tirar uma ferramenta de um saco" não preenche o conceito de “evento” anómalo, violento, súbito ou pelo menos de duração curta e limitada, inesperado e de origem exterior, para que se possa dizer ter sido um acidente e de trabalho.
Dispunha o art. 8.º da LAT[7] que:
1 - É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
2 - Para efeitos do presente capítulo, entende-se por:
a) «Local de trabalho» todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e em que esteja, directa ou indirectamente, sujeito ao controlo do empregador;
b) «Tempo de trabalho além do período normal de trabalho» o que precede o seu início, em actos de preparação ou com ele relacionados, e o que se lhe segue, em actos também com ele relacionados, e ainda as interrupções normais ou forçosas de trabalho.

Estabelece também o art. 9.º da LAT que:
1 - Considera-se também acidente de trabalho o ocorrido:
a) No trajecto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste, nos termos referidos no número seguinte;
b) Na execução de serviços espontaneamente prestados e de que possa resultar proveito económico para o empregador;
c) No local de trabalho e fora deste, quando no exercício do direito de reunião ou de actividade de representante dos trabalhadores, nos termos previstos no Código do Trabalho;
d) No local de trabalho, quando em frequência de curso de formação profissional ou, fora do local de trabalho, quando exista autorização expressa do empregador para tal frequência;
e) No local de pagamento da retribuição, enquanto o trabalhador aí permanecer para tal efeito;
f) No local onde o trabalhador deva receber qualquer forma de assistência ou tratamento em virtude de anterior acidente e enquanto aí permanecer para esse efeito;
g) Em actividade de procura de emprego durante o crédito de horas para tal concedido por lei aos trabalhadores com processo de cessação do contrato de trabalho em curso;
h) Fora do local ou tempo de trabalho, quando verificado na execução de serviços determinados pelo empregador ou por ele consentidos.
2 - A alínea a) do número anterior compreende o acidente de trabalho que se verifique nos trajectos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador:
a) Entre qualquer dos seus locais de trabalho, no caso de ter mais de um emprego;
b) Entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho;
c) Entre qualquer dos locais referidos na alínea precedente e o local do pagamento da retribuição;
d) Entre qualquer dos locais referidos na alínea b) e o local onde ao trabalhador deva ser prestada qualquer forma de assistência ou tratamento por virtude de anterior acidente;
e) Entre o local de trabalho e o local da refeição;
f) Entre o local onde por determinação do empregador presta qualquer serviço relacionado com o seu trabalho e as instalações que constituem o seu local de trabalho habitual ou a sua residência habitual ou ocasional.
3 - Não deixa de se considerar acidente de trabalho o que ocorrer quando o trajecto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito.
4 - No caso previsto na alínea a) do n.º 2, é responsável pelo acidente o empregador para cujo local de trabalho o trabalhador se dirige.

Estatui igualmente o art. 10.º da LAT que:
1 - A lesão constatada no local e no tempo de trabalho ou nas circunstâncias previstas no artigo anterior presume-se consequência de acidente de trabalho.
2 - Se a lesão não tiver manifestação imediatamente a seguir ao acidente, compete ao sinistrado ou aos beneficiários legais provar que foi consequência dele.

Consagra, por fim, o art. 11.º da LAT que:
1 - A predisposição patológica do sinistrado num acidente não exclui o direito à reparação integral, salvo quando tiver sido ocultada.
2 - Quando a lesão ou doença consecutiva ao acidente for agravada por lesão ou doença anterior, ou quando esta for agravada pelo acidente, a incapacidade avaliar-se-á como se tudo dele resultasse, a não ser que pela lesão ou doença anterior o sinistrado já esteja a receber pensão ou tenha recebido um capital de remição nos termos da presente lei.
3 - No caso de o sinistrado estar afectado de incapacidade permanente anterior ao acidente, a reparação é apenas a correspondente à diferença entre a incapacidade anterior e a que for calculada como se tudo fosse imputado ao acidente.
4 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, quando do acidente resulte a inutilização ou danificação das ajudas técnicas de que o sinistrado já era portador, o mesmo tem direito à sua reparação ou substituição.
5 - Confere também direito à reparação a lesão ou doença que se manifeste durante o tratamento subsequente a um acidente de trabalho e que seja consequência de tal tratamento.

Assim, para que estejamos perante um acidente de trabalho torna-se necessário que (i) o trabalhador por conta de outrem [8](ii) sofra um acidente, (iii) no local de trabalho, (iv) no tempo de trabalho e que (v) esse acidente seja a causa direta ou indireta de lesão corporal, perturbação funcional ou doença no trabalhador (vi) de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
Ora, se relativamente à circunstância de o Apelado ser trabalhador por conta de outrem, encontrar-se no exercício das suas funções, no local e tempo de trabalho, e ter ficado com uma incapacidade temporária absoluta de 25-05-2019 a 20-01-2022 e uma incapacidade temporária parcial de 20% de 21-01-2022 a 17-02-2922, tendo tido alta clínica em 18-02-2022, data a partir da qual ficou recuperado sem qualquer incapacidade suscetível de desvalorização pela Tabela Nacional de Incapacidades, inexiste controvérsia; o mesmo já não acontece quanto ao facto de ter ocorrido um acidente naquele dia.
A questão que importa, por isso, decidir é a de qualificar o ato do Apelado ao baixar-se para tirar uma ferramenta de um saco, momento em que sofreu uma lesão em asa de cesto do menisco do joelho esquerdo, como sendo, ou não, um acidente.
Conforme bem refere Maria do Rosário Palma Ramalho em Tratado de Direito do Trabalho[9]:
Em termos gerais, pode dizer-se que o acidente de trabalho é o evento súbito e imprevisto, ocorrido no local e no tempo de trabalho, que produz uma lesão corporal ou psíquica ao trabalhador que afecta a sua capacidade de ganho (…).

Cita-se igualmente o acórdão do STJ, proferido em 14-04-2010[10]:
II – A caracterização de um acidente de trabalho pressupõe, assim, a verificação cumulativa de três elementos; um elemento espacial (em regra o local de trabalho); um elemento temporal (correspondente, por norma, ao tempo de trabalho); um elemento causal (nexo de causa e efeito entre o evento e a lesão, perturbação funcional ou doença, por um lado, e entre estas situações e a redução da capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte).
III – Porém, a montante dessa verificação cumulativa de pressupostos torna-se imperioso, desde logo, que o evento possa ser havido como “acidente”, o que exige a sua produção ocasional, súbita e com origem externa.

Caracterizemos, então, o acidente como o evento súbito, imprevisível e com origem externa.
Relativamente à circunstância externa, importa ter presente o que consta do acórdão do TRL, proferido em 10-11-2010[11]:
Com efeito, a responsabilidade objectiva emergente de acidentes de trabalho baseia-se no risco que é inerente ao exercício de qualquer e toda a actividade profissional, fazendo recair sobre os empregadores, que com ela beneficiam, a obrigação de reparar os danos correspondentes. Assim, a referência a um acontecimento externo tem apenas em vista excluir do âmbito dos acidentes de trabalho situações em que a lesão que provocou a incapacidade ou morte não se relaciona com a actividade desenvolvida sob a autoridade de outrem, ou seja, nas situações em que o dano decorre de uma realidade que apenas diz respeito ao trabalhador, a denominada causa endógena, e nada tem que ver com a actividade desenvolvida.

Deste modo, o acontecimento externo basta-se com “que algo aconteça no plano das coisas sensíveis”[12].
Ora, na situação em apreço, a lesão em asa de cesto do menisco do joelho esquerdo do Apelado ocorreu quando este se baixou para tirar uma ferramenta de um saco, ou seja, ocorreu durante uma ação praticada no exercício da sua atividade laboral, pelo que o ato de se baixar para pegar numa ferramenta de trabalho consubstancia um acontecimento externo.
Na realidade, alargando-se o conceito relativamente à exterioridade do evento a tudo o que não seja única e exclusivamente produzido por causas endógenas, a definição de acidente deixa de se restringir apenas aos acontecimentos exteriores, diretos e visíveis[13].
De igual modo, também a necessidade de verificação de um acontecimento violento deixou de fazer parte da definição de acidente, bastando-se a mesma com a sua imprevisibilidade e natureza súbita.
No caso em apreço, a lesão em asa de cesto do menisco do joelho esquerdo sentida pelo Apelado, em virtude de se ter baixado para tirar uma ferramenta de um saco, traduziu-se, assim, não só num evento externo, como súbito e imprevisível, pois não era expectável para o Apelado que da sua atuação pudesse advir a lesão de que veio a padecer.
Só não será assim se resultar dos autos que a lesão sofrida pelo Apelado resultou de uma realidade que apenas diz respeito ao trabalhador, ou seja, de uma causa endógena, e única e exclusivamente dessa causa.
Porém, da matéria factual dada como provada, que não foi impugnada pela Apelante, resulta que, no exercício das suas funções profissionais, o Apelado, ao baixar-se para tirar uma ferramenta de um saco, sofreu uma lesão em asa de cesto do menisco do joelho esquerdo, ou seja, resulta que a lesão sofrida é consequência do ato de o Apelado se baixar e não de uma qualquer doença pré-existente que tivesse lhe provocado aquela específica lesão no exato período em que o Apelado efetua um movimento durante a sua atividade profissional.
Diga-se, ainda, a esse propósito, que, por maioria dos peritos participantes no exame da junta médica, realizada ao Apelado em 01-04-2022, foi considerado que do ato de o Apelado se baixar resultou a lesão de cesto do menisco externo do joelho esquerdo, sendo tal lesão decorrente de evento traumático, razão pela qual, apesar de o Apelado, apresentar à data do acidente, alterações degenerativas do compartimento interno do joelho, as lesões sofridas decorreram do ato de se baixar, sendo tal ato a sua causa. Essas alterações degenerativas do compartimento interno do joelho, ou seja, essa predisposição patológica do sinistrado nessa zona, permite, aliás, melhor compreender a razão pela qual o ato praticado pelo Apelado lhe agravou tal situação, sendo que, nos termos do art. 11.º, nºs. 1 e 2, da LAT, a predisposição patológica do sinistrado num acidente não exclui o direito à reparação integral e quando a lesão resultante do acidente agravar doença anterior, a incapacidade avaliar-se-á como se tudo tivesse resultado do acidente, pelo que a doença de que o Apelado já padecia não afeta nem a configuração desta situação como acidente, nem o seu enquadramento como sendo tal acidente de trabalho[14].
Cita-se ainda o acórdão do TRL, proferido em 12-10-2011[15] [16]:
No caso em apreço resultou provado que no dia 6 de Março de 2009, poucos minutos antes das 8.00 horas, no vestiário do seu local de trabalho, sito (…), em ..., o autor, quando estava a mudar de roupa para começar a trabalhar, às 8.00 horas, sofreu uma lombalgia devido a um movimento efectuado pelo mesmo autor quando procedia à mudança de roupa. Ora, perante esta factualidade, afigura-se-nos não restarem dúvidas que ficou apurada a situação (o evento) que causou a lesão ao autor, ora sinistrado. Esse evento consistiu, precisamente, no movimento que o sinistrado efectuou ao mudar a roupa, movimento esse que teve como consequência as dores nas costas sofridas pelo mesmo.
E, uma vez que o dito acontecimento se verificou no tempo (o autor estava a mudar a roupa para iniciar a sua prestação laboral, a praticar actos que se consideram de preparação para o trabalho - art.º 6.º, n.º 4) e no local de trabalho (no vestiário); e provocou ao dito sinistrado as lesões descritas nos autos, que lhe causaram incapacidade para o trabalho (fls. 61 do apenso), mostram-se preenchidos os requisitos (os sucessivos nexos de causalidade) previstos no citado art.º 6.º da LAT.

Posto isto, resta-nos apenas concluir pelo preenchimento de todos os requisitos previstos no art. 8.º da LAT, sendo os acontecimentos que se mostram descritos nos factos provados enquadráveis num acidente de trabalho.
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora, em julgar o recurso improcedente, mantendo-se a sentença recorrida.
Custas pela Apelante (art. 527.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Notifique.
Évora, 2 de março de 2023
Emília Ramos Costa (relatora)
Mário Branco Coelho
Paula do Paço

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[1] Relatora: Emília Ramos Costa; 1.º Adjunto: Mário Branco Coelho; 2.ª Adjunta: Paula do Paço.
[2] Correspondem tais quesitos à referência n.º 8234594 os autos principais.
[3] Correspondem tais quesitos à referência n.º 8350105 dos autos principais.
[4] Processo n.º 1854/19.2T8PTM-A.
[5] Pelos peritos médicos do Autor e do Tribunal.
[6] Pelos peritos médicos do Autor e do Tribunal.
[7] Na sua versão original, aplicável à data do acidente.
[8] Ou de algum modo equiparado a tal, como é o caso do trabalhador autónomo, mas economicamente dependente, do aprendiz, do estagiário e do formando, bem como do titular de órgão societário – vide Maria do Rosário Palma Ramalho em Tratado de Direito do Trabalho, Vol. II, 6.ª edição, Almedina, Coimbra, 2016, p. 721.
[9] Obra citada, p. 715.
[10] No âmbito do recurso n.º 459/05.0TTVCT.S1, consultável em www.stj.pt.
[11] No âmbito do processo n.º 383/04.3TTGMR.L1-4, consultável em www.dgsi.pt.
[12] Vítor Ribeiro, em Acidentes de Trabalho, Reflexões e Notas Práticas, Edição Rei dos Livros, p. 208.
[13] No mesmo sentido, Carlos Alegre em Acidentes de Trabalho e Notas Práticas, 2.ª Edição, Almedina, Coimbra, p. 36.
[14] Veja-se o acórdão do STJ, proferido em 12-09-2013, no âmbito do processo n.º 118/10-1TTLMG.P1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[15] No âmbito do processo n.º 282/09.2TTSNT.L1-4, consultável em www.dgsi.pt.
[16] Vejam-se igualmente os acórdãos do TRP, proferido em 15-06-2015, no âmbito do processo n.º 401/09.9TTVFR.P1; e o acórdão desta Relação, proferido em 27-05-2021, no âmbito do processo n.º 1460/18.9T8TMR.E1, consultáveis em www.dgsi.pt.