Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3939/17.0T8FAR.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CONDUÇÃO SOB O EFEITO DO ÁLCOOL
EXAME DE PESQUISA DE ÁLCOOL
IMPOSSIBILIDADE
COLHEITA DE AMOSTRA DE SANGUE
Data do Acordão: 03/14/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
I - O exame de sangue com vista à realização de perícia à taxa de álcool, é a via excecional para a recolha de prova admitida na lei para tal efeito, sendo apenas admissível nos casos expressamente tipificados, designadamente quando o estado de saúde não permite o exame por ar expirado ou esse exame não for possível.
II - A lei não impõe nem exige o consentimento expresso do visado para essa colheita de sangue, quando o estado de saúde não permite o exame por ar expirado ou esse exame não for possível. Nesta matéria, encontram-se apenas excluídos os exames coercivos, aos quais o titular do interesse manifestou oposição, através de recusa em a ele se sujeitar.
III - A Portaria 902-B/2007, de 13 de Agosto, que fixa o modo como se deve proceder à recolha, acondicionamento e expedição das amostras biológicas destinadas às análises laboratoriais, os procedimentos a aplicar na realização das referidas análises e os tipos de exames médicos a efetuar para deteção dos estados de influenciado por álcool ou por substâncias psicotrópicas, não exige se exige a assinatura do examinado, mas apenas que lhe seja entregue um duplicado.
IV – A assinatura de uma testemunha no impresso do modelo anexo I a que alude a alínea a) do artigo 9ª da referida Portaria, tem lugar no caso do “examinado não assinar” por não o poder fazer e não quando se recusa a fazê-lo, como aconteceu in casu. Ainda que assim não se entenda, a omissão de tal assinatura no referido impresso é suprível pela audição em julgamento do militar da GNR que acompanhou o réu em todo o procedimento e assistiu à colheita de sangue.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
BB, S.A. instaurou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra CC, pedindo a condenação do réu a pagar-lhe a quantia de € 8.314,21, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento.
Alegou, em síntese, que no dia 1 de Agosto de 2014, pelas 08:30 horas, ocorreu um acidente de viação na E.N. 125, ao Km 82.300, em que foram intervenientes os veículos de matrícula …-JR-…, conduzido pelo réu, e o veículo de matrícula …-…-FP, propriedade de DD e por este conduzido, tendo o acidente ocorrido em virtude do réu - condutor ainda em regime probatório e que conduzia na altura com uma taxa de álcool no sangue de 0,32gr/litro – ter adormecido e transposto a linha longitudinal descontínua, passando a circular na faixa destinada ao sentido contrário, provocando o embate frontal entre os referidos veículos, sendo que no âmbito do contrato de seguro, através do qual assumiu a responsabilidade civil decorrente da circulação automóvel do veículo conduzido pelo réu, a autora pagou as despesas hospitalares e indemnização devidas em virtude do sinistro e cujo reembolso agora peticiona.
O réu contestou, invocando a prescrição do direito de regresso da autora e, aceitando embora a sua responsabilidade pela eclosão do acidente, impugnou o valor da taxa de álcool no sangue que lhe é imputada, arguindo a nulidade do respetivo auto de colheita.
Foi realizada audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador que julgou improcedente a exceção perentória da prescrição, com subsequente identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova, sem reclamação.
Teve lugar a audiência de julgamento e depois foi proferida sentença que julgou a ação procedente e condenou o réu no pedido.
Inconformado, o réu recorreu de tal decisão, tendo finalizado a respetiva alegação com as conclusões que a seguir se transcrevem:
«I - A Apelante vem interpor recurso de Douta Sentença, que o condenou no pagamento à Apelada da quantia de 8.314,21€, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde citação até efectivo e integral pagamento;
II - O pedido funda-se num alegado direito de regresso da A., enquanto companhia de seguros, no âmbito de contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, entre ambos celebrado, e em consequência de acidente de viação em que foi interveniente o veículo objecto de seguro conduzido pelo R., o qual alegadamente, conduzia com uma taxa de álcool superior à legalmente permitida;
III - A Decisão recorrida teve na base da fundamentação, como elemento fulcral, para a sua condenação, um único ponto de facto controvertido, que o Tribunal a quo deu como provado, o ponto 16), que abaixo se transcreve:
" 16) Do resultado do exame toxicológico ao sangue revelou que o Réu apresentava uma taxa de álcool no sangue de 0,32 gramas/litro. ";
IV - Tal facto foi impugnado pelo R. na sua contestação, invocando a nulidade do auto de colheita de sangue, por não se encontrar assinado pelo mesmo;
V - O Tribunal, considerou na motivação da sua decisão, para dar como provada a matéria fáctica do referido ponto 16., o depoimento do agente da GNR, que elaborou o auto de participação de viação (tendo esta sido a única testemunha ouvida pelo Tribunal), o depoimento (de Parte) do Réu, e o exame de colheita de sangue (cfr. texto da decisão recorrida a págs. 7 e fls. 105, 106, 107, e 113 dos Autos);
VI - Ainda na motivação, verifica-se, que o Sr. Agente, enquanto testemunha, disse ter acompanhado o Réu em todo o procedimento e assistido à colheita de sangue, tendo o próprio preparado o "Kif' de colheita e afirmado peremptoriamente que o sangue que foi examinado, e cujo exame se encontra nos autos, corresponde ao do R., porque foi ele (testemunha) quem selou a bolsa onde o tubo foi colocado (cfr. texto da decisão recorrida a págs. 4 e 5), e bem ainda, que o Réu assinou todos os documentos com excepção do auto de colheita de sangue, mas que, apesar disso foi-lhe entregue em mãos, uma cópia do mesmo;
VII - Que o Réu, no seu depoimento, referiu recordar-se ter sido submetido a vários exames, e confirmou ter-lhe sido entregue uma cópia de auto de colheita de sangue.
VIII - Considerou, ainda, o Tribunal que, em momento algum, na portaria 902-B/2007, de 13 de Agosto (na qual, entre outros aspectos, são definidos os procedimentos a aplicar na realização de análises laboratoriais das amostras de sangue e os tipos de exames médicos a efectuar para detecção dos estados de influenciado por álcool ou por substâncias psicotrópicas), se exige a assinatura do examinado (no anexo I à portaria), mas apenas que lhe seja entregue um duplicado como aconteceu.
IX - E, como tal, entendeu o Tribunal a quo que não se verificou qualquer irregularidade naquele meio de obtenção de prova, e como tal, considerou aquele resultado um meio de prova legal, valorou-o e deu-o como provado;
X - Não se conforma, porém o Apelante com a motivação do Tribunal recorrido que levou a dar como provada a matéria constante do ponto 16;
XI - Como se poderá aferir da sua Contestação, dos documentos juntos à mesma, e agora do próprio texto da decisão recorrida, o R., aqui Apelante nunca aceitou o resultado cujo duplicado lhe foi entregue, tendo sempre defendido a nulidade do auto, porque, do duplicado que lhe foi entregue não constava a sua assinatura;
XII - Como também não consta assinatura de qualquer testemunha;
XIII - Se tivesse sido como o Sr. Agente da GNR referiu, isto é, que o R. se teria recusado a assinar o Auto de Colheita de Sangue, deveria contar a assinatura de uma testemunha, o que inexiste, pois só dessa forma, ou caso tivesse sido suprida irregularidade da omissão de assinatura de testemunha, mediante a apresentação de outra testemunha que não o agente participante/autuante, o que também não aconteceu, é que poderia ter sido valorado o auto de colheita de sangue que consta dos Autos;
XIV - O R., aqui Apelante, nunca aceitou aquele Auto (de colheita de sangue) e o respectivo resultado fosse derivado de uma colheita de sangue que a si lhe tivesse sido realizada, ou seja, que a TAS não seria dele;
XV - Como não foi ouvida pelo Tribunal a médica que assinou o auto impugnado, nem qualquer outra testemunha (sem ser o agente autuante) que tivesse presenciado a colheita e análise de qualquer amostra de sangue que tivesse sido recolhida ao R., e os procedimentos seguidos, entende o Apelante que ocorreu um vício no procedimento, a aplicar na realização de análises laboratoriais das amostras de sangue para detecção de álcool no sangue, resultante do não preenchimento completo do impresso do anexo i, cujo modelo consta da portaria 902-B/2007, de 13 de Agosto, e conforme se prevê na al. a) do n.º 9 da Secção II daquela portaria;
XVI - Considera, por isso, o Apelante que andou mal o Tribunal recorrido, na interpretação e aplicação deste referido normativo legal;
XVII- A interpretação do Tribunal a quo, foi a de que:
- O médico que promover a colheita poderá prescindir da recolha da assinatura do examinado, ou de uma testemunha quando o examinado se recuse assinar o auto, ou quando ocorra uma qualquer outra vicissitude que o impeça de assinar, e que tal facto, de falta de recolha de assinatura do examinado ou da testemunha nas condições referidas, não configura um vício de procedimento, e como tal não gera qualquer irregularidade em face da lei processual penal, aplicável ao regime geral das contraordenações;
XVIII - Tal interpretação, considera o Apelante, é inconstitucional, por diminuir as garantias de defesa do arguido (inicialmente em processo de contraordenação), vendo-se coarctado nos seus direitos de defesa, ao prescindir-se, no fundo, da sua dispensa num acto que deverá ser considerado processual, e portanto, ofensiva dos direitos e garantais previstos nos n.ºs 1, 6, e 10 do art.º 32 da CRP, que, como se refere no artigo 18.º, n.º s 1 e 2 apenas podem ser restringidos nos casos expressamente previstos na Constituição;
XIX - Tanto no direito processual criminal, como no direito processual civil encontramos normas que nos apontam para a necessidade de recolher a assinatura do arguido ou Réu, nos Autos elaborados, enquanto instrumentos destinados a fazer fé em juízo, mormente, quando haja lugar à sua participação num acto que pessoalmente os possa afectar e do qual lhe possa importar qualquer responsabilidade (A este respeito veja-se o disposto nos arts. 99.º e 95 do CPP, e 160. º do CPC).
XX - Entende o Apelante que não poderia o Tribunal ter dado como provada a matéria de facto constante do ponto 16, porque não poderia valorar um meio probatório (auto de recolha de álcool no sangue), que padecia de uma irregularidade (tempestivamente arguida, ainda que como nulidade), relacionada com um vício de procedimento (da responsabilidade do médico que promoveu a colheita), e que consistiu na falta de recolha de assinatura do examinado ou de testemunha (caso tivesse ocorrido recusa daquele em assinar, ou outra vicissitude que o tivesse impedido de assinar o Auto).
XXI - Irregularidade, essa, que nunca foi suprida, nomeadamente, mediante audição de uma qualquer testemunha, que não o agente autuante, que tivesse corroborado a versão deste, isto é, de que aquele auto resulta efectivamente da recolha e análise do sangue do examinado;
XXII - O Tribunal não poderia ter valorado tal elemento probatório (junto aos Autos e contestado pelo R.);
XXIII - Partindo do princípio de que o mesmo padecia de irregularidade à luz do direito criminal (Penal e Contraordenacional), tal elemento probatório, também deveria ter sido considerado irregular nestes autos, sendo certo que, esta irregularidade até poderá configurar uma nulidade, por influir no exame e na decisão da causa, assim configurada nos termos do art.º 195.º do CPC, norma essa que também invocámos;
XXIV - A aplicação correcta da lei in casu seria através da aplicação da al. a) do art. 9.º da Secção II da Portaria 902-B/2007, de 13 de Agosto, e através da interpretação de que:
- No auto de colheita de sangue para deteccão de álcool no sangue, deverá o médico que promover à colheita, recolher a assinatura do examinado, ou de pelo menos uma testemunha caso ocorra alguma vicissitude que impeça o examinado de assinar, e que a falta de uma dessas assinaturas acarretará um irregularidade que, apenas poderá ser suprida por testemunha presencial da colheita que não o agente autuante.
XXV - Assim deverá ser suprimido o ponto 16) da decisão recorrida dos factos dados como provados, devendo a matéria de facto nele constante ser antes considerada como não provada, e enquanto ponto único.
TERMOS EM QUE:
Deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser suprimido o ponto 16) da decisão recorrida dos factos dados como provados, devendo a matéria de facto nele constante ser antes considerada como não provada, e enquanto ponto único, e, em consequência ser acção julgada totalmente improcedente, por não provada, e o Réu, aqui Apelante, absolvido do pedido, com as demais consequências legais, assim se fazendo JUSTIÇA!!!

A autora contra-alegou, pugnando pela confirmação do julgado.

Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), a questão essencial a decidir consiste em saber se deve ser alterada a matéria de facto, dando-se como não provado o ponto 16 dos factos provados, com a consequente improcedência da ação.

III – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICO-JURÍDICA
Na 1.ª instância foram considerados provados os seguintes factos:
1) A Autora exerce, devidamente autorizada, a indústria de seguros em vários ramos.
2) No exercício da sua atividade, a Autora celebrou com EE um contrato de seguro do ramo automóvel, titulado pela apólice n.º …/1806988, através do qual assumiu a responsabilidade civil emergente de acidentes de viação decorrentes da circulação do veículo matrícula …-JR-….
3) No dia 01.08.2014, pelas 08:30 horas, ocorreu um acidente de viação na Estrada Nacional 125, ao Km 82.300, concelho de Loulé, em que foram intervenientes o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula …-JR-…, conduzido pelo Réu, e o veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula …-…-FP, propriedade e conduzido por DD.
4) No local do acidente, a estrada configura uma reta e o trânsito processa-se nos dois sentidos, sendo a faixa de rodagem composta por duas vias de circulação, uma no sentido Faro/Albufeira e outra no sentido oposto, delimitadas por uma linha longitudinal descontínua.
5) A faixa de rodagem, no local e à data do acidente, media 7 metros de largura.
6) Ambas as vias de circulação mediam 3,50 metros.
7) No momento do acidente não chovia e o piso estava seco e era de dia.
8) O local do acidente permite a visualização da faixa de rodagem em toda a sua largura numa extensão não inferior a 50 metros.
9) O veículo conduzido pelo Réu circulava no sentido Faro/Albufeira e o veículo matrícula …-53-… seguia no sentido contrário.
10) O Réu adormeceu e perdeu o controlo do veículo que conduzia, levando-o a transpor a linha longitudinal descontínua, delimitadora dos sentidos de trânsito.
11) O condutor do veículo de matrícula …-53-… circulava com atenção e velocidade adequadas às características da faixa de rodagem em que seguia.
12) Não obstante o referido em 11), o condutor do veículo …-53-… não conseguiu evitar o que se verificou entre as partes frontais dos veículos.
13) O Réu não efetuou qualquer manobra no sentido de evitar a ocorrência do acidente.
14) Em virtude da colisão, o veículo de matrícula …-53-… foi ficar parcialmente fora da sua faixa de rodagem.
15) Após o acidente, o Réu foi transportado para o Hospital de Faro e submetido a teste de alcoolemia através de recolha de sangue.
16) Do resultado do exame toxicológico ao sangue revelou que o Réu apresentava uma taxa de álcool no sangue de 0,32gramas/litro.
17) O Réu tem carta de condução desde 31.01.2014.
18) Do acidente de viação supra referido, resultaram quatro feridos ligeiros.
19) A Autora suportou as despesas atinentes à prestação dos cuidados clínicos que os feridos necessitaram.
20) A Autora despendeu, em 26.06.2015, com as despesas com a assistência clínica prestada no Centro Hospitalar do Algarve, EPE, à ocupante do veículo conduzido pelo Réu, Ana C…, a quantia de 136,07€.
21) Com a assistência médica prestada ao condutor do veículo matrícula …-53-…, DD, a Autora despendeu, em 26.06.2015, a quantia de 128,57€.
22) Com a assistência médica prestada ao ocupante do veículo referido em 21), Robert C…, a Autora despendeu, em 26.06.2015, a quantia de 121,07€.
23) A Autora pagou, em 14.04.2015, ao proprietário do veículo de matrícula …-53-… a quantia total de 6.703,36€, sendo a quantia de 2.340,00€ a título de indemnização por perda total do veículo; a quantia de 3.136,22€, respeitante a indemnização por danos corporais e morais do condutor daquele veículo; o montante de 570,00€ relativo a gastos e honorários médicos e a quantia de 657,14€ referente a honorários da intermediária “D… C… Services Portugal”.
24) A Autora despendeu, em 27.08.2014, a quantia de 610,38€ com veículo de substituição para que o proprietário do veículo de matrícula …-53-… não ficasse privado do uso de meio de transporte próprio.
25) Na sequência do sinistro, a Autora liquidou, em 30.01.2015, o valor de 271,94€, atinente à limpeza e remoção dos objetos da estrada.
26) Pelos serviços de averiguação e peritagem a Autora despendeu, entre 07.08.2014 e 17.06.2015, a quantia de 342,82€.

Não foram considerados factos não provados.

Da impugnação da matéria de facto.
Como resulta do artigo 662º, nº 1, do CPC, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se os factos tidos como assentes e a prova produzida impuserem decisão diversa.
Do processo constam os elementos em que se baseou a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto: prova documental, depoimento de parte do réu e depoimento da testemunha Paulo J…, militar da GNR que, no exercício das suas funções, compareceu no local do acidente, tendo elaborado o auto de participação de acidente de viação junto com a petição inicial.
Considerando o corpo das alegações e as suas conclusões, pode dizer-se que o recorrente cumpriu formalmente os ónus impostos pelo artigo 640º, nº 1, do CPC, já que especificou o concreto ponto da matéria de facto que considera incorretamente julgado e indicou o elemento probatório que conduziria à alteração daquele ponto nos termos por ele propugnados – o auto de recolha de sangue efetuada no Hospital Distrital de Faro -, e referiu a decisão que no seu entender deveria sobre ele ter sido proferida, ou seja, a sua consideração como facto não provado.
Não tendo o recorrente fundado o recurso na prova testemunhal nem no seu depoimento de parte não tinha de indicar quaisquer passagens de gravação, pelo que nada obsta ao conhecimento do recurso na parte atinente à impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Infere-se das conclusões do recorrente que este está em desacordo com a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal a quo, relativamente à matéria dada como provada no ponto 16 dos factos provados: «[d]o resultado do exame toxicológico ao sangue revelou que o Réu apresentava uma taxa de álcool no sangue de 0,32gramas/litro».
Na verdade, o recorrente não impugnou a dinâmica do acidente nem os danos por ele produzidos, mas apenas o facto de conduzir sob o efeito do álcool no sangue com a taxa acima referida, estribando o seu entendimento num argumento de ordem puramente formal, ou seja, invocando a nulidade do auto de colheita do sangue por não se encontrar por si assinado.
Nenhuma razão, porém, assiste ao recorrente. Senão vejamos.
O exame de pesquisa de álcool encontra-se previsto e regulado nos artigos 152º, n.º 1, al a), 153º e 156º do Código da Estrada e no Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas (Lei n.º 18/2007, de 17 de maio), de onde decorre, a obrigatoriedade da fiscalização para os condutores e peões, sempre que sejam intervenientes em acidentes de trânsito, e as pessoas que se propuserem iniciar a condução.
O exame de sangue é a via excecional para a recolha de prova admitida na lei para tal efeito, sendo apenas admissível nos casos expressamente tipificados, designadamente quando o estado de saúde não permite o exame por ar expirado ou esse exame não for possível.
Dispõe o nº 8 do artigo 153º do Código da Estrada:
«Se não for possível a realização de prova por pesquisa de álcool no ar expirado, o examinando deve ser submetido a colheita de sangue para análise ou, se esta não for possível por razões médicas, deve ser realizado exame médico, em estabelecimento oficial de saúde, para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool.»
Por sua vez, estatui o artigo 156º do mesmo diploma (exames em caso de acidente de viação):
«1 - Os condutores e os peões que intervenham em acidente de trânsito devem, sempre que o seu estado de saúde o permitir, ser submetidos a exame de pesquisa de álcool no ar expirado, nos termos do artigo 153.º;
2 - Quando não tiver sido possível a realização do exame referido no número anterior, o médico do estabelecimento oficial de saúde a que os intervenientes no acidente sejam conduzidos deve proceder à colheita de amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influência pelo álcool e ou por substâncias psicotrópicas;
3 - Se o exame de pesquisa de álcool no sangue não puder ser feito ou o examinando se recusar a ser submetido a colheita de sangue para análise, deve proceder-se a exame médico para diagnosticar o estado de influência pelo álcool e ou por substâncias psicotrópicas.»
Revertendo ao caso concreto, está provado que do acidente dos autos resultaram quatro feridos ligeiros, sendo um deles o próprio réu, como se colhe do auto de participação de acidente de viação, e que após o acidente o réu foi transportado para o Hospital de Faro e submetido a teste de alcoolemia através de recolha de sangue, tendo esse exame revelado que o réu apresentava uma taxa de álcool no sangue de 0,32 g/l.
Perante este quadro fáctico, consideramos que não pode deixar de ter-se por verificada a previsão do nº 2 do artigo 156º do Código da Estrada justificadora da colheita de amostra de sangue ao réu, para posterior exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool. Escreveu-se a propósito na sentença recorrida:
«O Réu, à data da realização de tal exame estava consciente, pois o mesmo, no seu depoimento[1] soube descrever ao Tribunal o facto de estar imobilizado e ter sido submetido a exames (estranho seria que o seu estado de inconsciência apenas tivesse surgido quanto a este exame específico), sabia ter conduzido e ter sido interveniente em acidente de viação e, por isso, transportado para o hospital, e não resulta dos autos, nem foi alegado, que tenha rejeitado realizar tal exame, destarte, o Réu, que é pessoa instruída, facilmente pôde alcançar o fim a que se destinava tal exame atentas as referidas e conhecidas circunstâncias.»
Embora o réu estivesse consciente, não era naturalmente aconselhável submetê-lo ao exame de pesquisa de álcool no ar expirado no local, tendo ele ficado ferido no acidente, o que determinou a sua condução ao Hospital após ter sido assistido no local pelos bombeiros, pois nessas circunstâncias, manda naturalmente o bom senso que, enquanto não chega ajuda médica, deve o sinistrado ficar repousado, mexendo-se o menos possível e acompanhado por alguém que lhe possa transmitir alguma calma, o que naturalmente não se coaduna com a obrigação (sob pena de desobediência!) de realizar um teste de álcool no ar expirado, inicialmente em aparelho qualitativo e depois em aparelho quantitativo, este último naturalmente até só disponível no Posto policial, como é costume, o que implicaria a deslocação até lá se o resultado do primeiro teste fosse positivo.
E, embora não resulte dos autos que o réu tenha dado o seu consentimento para a colheita de sangue, o certo é que também não se vislumbra que o mesmo tenha em momento algum manifestado vontade de recusa à sua realização ou que esta tenha ocorrido contra a sua vontade.
De todo o modo, sempre se adianta que analisadas toda a legislação e regulamentação da matéria acima identificadas, constata-se que em momento algum a lei impõe ou exige o consentimento expresso do visado para a recolha de sangue, quando o estado de saúde não permite o exame por ar expirado ou esse exame não for possível. De onde decorre, desde logo, que nesta matéria se encontram apenas excluídos os exames coercivos, aos quais o titular do interesse manifestou oposição, através de recusa em sujeitar-se ao exame[2].
Ora, in casu, como já se salientou, o réu não manifestou oposição, embora não pudesse desconhecer o regime legal da proibição de condução sob o efeito de álcool nem o regime normativo que desencadeia a recolha de sangue, quando não é possível proceder ao exame através do método do ar expirado.
Diz, porém, o recorrente que o Tribunal não podia ter dado como provada a matéria do ponto 16 dos factos provados, ou seja, que o exame toxicológico ao sangue do réu revelou que o mesmo apresentava uma taxa de álcool no sangue de 0,32g/l, em virtude do respetivo auto de recolha padecer de uma irregularidade consistente «na falta de recolha de assinatura do examinado ou de testemunha (caso tivesse ocorrido recusa daquele em assinar, ou outra vicissitude que o tivesse impedido de assinar o Auto); (…) irregularidade, essa, que nunca foi suprida, nomeadamente, mediante audição de uma qualquer testemunha, que não o agente autuante, que tivesse corroborado a versão deste, isto é, de que aquele auto resulta efetivamente da recolha e análise do sangue do examinado».
Quanto a este aspeto, escreveu-se na sentença recorrida:
«(…), a Portaria 902-B/2007, de 13 de Agosto, fixa o modo como se deve proceder à recolha, acondicionamento e expedição das amostras biológicas destinadas às análises laboratoriais, os procedimentos a aplicar na realização das referidas análises e os tipos de exames médicos a efectuar para detecção dos estados de influenciado por álcool ou por substâncias psicotrópicas.
Na Secção II, sob a epígrafe “Análise de sangue para quantificação da taxa de álcool” estabelece-se que a colheita do sangue destinado à realização das análises para quantificação da taxa de álcool é efectuada em estabelecimento da rede pública de saúde a que o examinando seja conduzido pelo agente de autoridade, o qual, em caso de acidente de viação, pode ser o serviço de saúde em que dê entrada, dispondo o n.º 5.º “Para a realização da colheita prevista no número anterior, o agente de autoridade deve entregar no estabelecimento da rede pública de saúde um impresso do modelo do anexo i, acompanhado de uma bolsa devidamente selada de modelo aprovado pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR), contendo o material destinado à recolha e acondicionamento da amostra”.
E, de acordo com o n.º 9.º “O médico que promover a colheita deve:
a) Preencher, correcta e completamente, o impresso do modelo do anexo i;
b) Entregar ao agente de autoridade que requisitou o exame o original preenchido, contendo a sua vinheta de identificação profissional;
c) Entregar o duplicado ao examinado ou, caso não seja possível, ao agente de autoridade que requisitou o exame para que, posteriormente, o entregue ao examinado ou a quem legalmente o represente;
d) Providenciar para que sejam introduzidos na bolsa referida no número anterior a amostra de sangue, devidamente acondicionada no tubo e contentor respectivos, e o triplicado do impresso preenchido, contendo a sua vinheta de identificação profissional;
e) Providenciar para que a bolsa selada seja remetida, de imediato, à delegação do Instituto Nacional de Medicina Legal, I. P., da sua área ou, caso não seja possível, que seja mantida refrigerada até à sua remessa.”.
Esse modelo a que se faz referência foi o modelo de formulário utilizado nos autos, conforme resulta de fls. 112, encontrando-se devidamente preenchido e assinado pela médica, nele constando a sua vinheta.
Em momento algum, conforme resulta daquele Portaria, se exige a assinatura do examinado, mas apenas que lhe seja entregue um duplicado, como sucedeu. Com efeito, resultou da prova produzida, in casu, do depoimento da testemunha …, militar da GNR[3], que o ora Réu se recusou a assinar, mas que recebeu o duplicado, tendo este último facto sido confirmado pelo próprio.
E, além do depoimento desta testemunha, os demais elementos existentes nos autos – fls. 105, 106 e 107 – permitem concluir que se mostraram assegurados e cumpridos todos os formalismos legalmente exigidos para colheita e exame de quantificação de álcool no sangue, bem como a respectiva cadeia de custódia da prova, não havendo dúvidas que a amostra que foi analisada no exame de fls. 113 pertence ao Réu.
Face ao exposto, atento o circunstancialismo que resultou provado, não se verifica qualquer nulidade ou irregularidade naquele meio de obtenção de prova. A recolha de amostra de sangue ao Réu constituiu um meio de obtenção de prova legal, assim como o resultado obtido através do Instituto Nacional de Medicina Legal, que efectuou o respectivo exame daquela amostra, constitui um meio de prova legal, o qual foi valorado, dando-se, assim, como provado o vertido em 15 e 16».
Contrariamente ao que sustenta o recorrente, esta interpretação do referido normativo feita na sentença recorrida não enferma de qualquer inconstitucionalidade, não se vislumbrando em que medida a não assinatura da uma testemunha no impresso do modelo do anexo i no local destinado para o efeito, possa diminuir as garantias de defesa do réu, quando é certo que essa testemunha é o próprio militar da GNR que acompanhou o réu em todo o procedimento e assistido à colheita de sangue, tendo sido quem preparou o “kit” de colheita e que não teve a mínima dúvida em afirmar no seu depoimento que o sangue que foi examinado, e cujo exame se encontra nos autos, corresponde ao do réu, porquanto foi ele (testemunha) que selou a bolsa com o tubo onde foi colocado o mesmo.
Ademais, no referido anexo i fala-se em “assinatura da testemunha em caso do examinado não assinar” o que parece apontar para os casos em que o examinado não pode assinar e não já quando se recusa a fazê-lo, como sucedeu in casu. Ainda que assim não se entenda, a falta de tal assinatura sempre seria suprível pela audição em julgamento do referido militar da GNR que acompanhou o réu em todo o procedimento e assistiu à colheita de sangue, como veio efetivamente a suceder.
Como bem diz a recorrida nas contra-alegações, a adotar-se o entendimento do recorrente, seria premiar o comportamento de alguém que através da recusa em assinar o referido impresso poderia, mais tarde, invocar uma irregularidade gerada pela sua própria conduta, o que é de todo inadmissível.
Resulta assim do exposto, que não se vislumbra uma desconsideração da prova produzida, mas sim uma correta apreciação da mesma, pelo que teremos de concluir que, perante tal prova, bem andou a Sr.ª Juíza a quo na decisão sobre a matéria de facto, concretamente no que respeita ao ponto 16 dos factos provados que, por isso, permanece intocado.

Do mérito da decisão
Permanecendo incólume a decisão do Tribunal a quo quanto à matéria de facto dada como provada, nenhuma censura há a fazer à decisão recorrida, onde se fez uma correta subsunção dos factos ao direito, com pertinentes citações jurisprudenciais.
Na verdade, tendo-se provado que o réu foi o único culpado pela produção do acidente e que conduzia com uma TAS de 0,32 g/l, encontrando-se o mesmo em regime probatório, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 81º, nº 3 e 122, nº 1, do Código da Estrada, não podia a ação deixar de ser julgada procedente, pois é inquestionável que assiste à autora o direito de regresso contra o réu das quantias que despendeu com a regularização do sinistro, em conformidade com o disposto no artigo 27º, nº 1, al. c), do DL nº 291/2007, de 21 de Agosto (Lei do Contrato de Seguro).
Improcede assim o recurso, não se mostrando violadas as normas invocadas pelo recorrente ou quaisquer outras.
Vencido no recurso, o apelante suportará as custas respetivas (art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC).

Sumário:
I - O exame de sangue com vista à realização de perícia à taxa de álcool, é a via excecional para a recolha de prova admitida na lei para tal efeito, sendo apenas admissível nos casos expressamente tipificados, designadamente quando o estado de saúde não permite o exame por ar expirado ou esse exame não for possível.
II - A lei não impõe nem exige o consentimento expresso do visado para essa colheita de sangue, quando o estado de saúde não permite o exame por ar expirado ou esse exame não for possível. Nesta matéria, encontram-se apenas excluídos os exames coercivos, aos quais o titular do interesse manifestou oposição, através de recusa em a ele se sujeitar.
III - A Portaria 902-B/2007, de 13 de Agosto, que fixa o modo como se deve proceder à recolha, acondicionamento e expedição das amostras biológicas destinadas às análises laboratoriais, os procedimentos a aplicar na realização das referidas análises e os tipos de exames médicos a efetuar para deteção dos estados de influenciado por álcool ou por substâncias psicotrópicas, não exige se exige a assinatura do examinado, mas apenas que lhe seja entregue um duplicado.
IV – A assinatura de uma testemunha no impresso do modelo anexo I a que alude a alínea a) do artigo 9ª da referida Portaria, tem lugar no caso do “examinado não assinar” por não o poder fazer e não quando se recusa a fazê-lo, como aconteceu in casu. Ainda que assim não se entenda, a omissão de tal assinatura no referido impresso é suprível pela audição em julgamento do militar da GNR que acompanhou o réu em todo o procedimento e assistiu à colheita de sangue.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente.
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Évora, 14 de Março de 2019
Manuel Bargado
Albertina Pedroso
Tomé Ramião

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[1] O que confirmámos através da audição do suporte áudio que contém o depoimento de parte do réu.
[2] Neste sentido, entre outros, os Acórdãos da Relação de Guimarães de 03.12.2018 e da Relação do Porto de 17.12.2018, procs. 470/17.8GBVLN.G1 e 573/17.9PAESP.P1, respetivamente, este último com largas referências jurisprudenciais e doutrinais, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
[3] O que confirmámos através da audição do suporte áudio que contém o depoimento daquela testemunha.