Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
236/15.0T8PTM.E1
Relator: GOMES DE SOUSA
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
DIREITO SUBSIDIÁRIO
Data do Acordão: 12/06/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - Um processo contra-ordenacional não é um processo administrativo. Tem uma fase administrativa. Mas existem diferenças entre os termos “fase” e “processo”.
2 - Um recurso de “impugnação judicial” em processo contra-ordenacional, como tal definido por lei – artigo 59º, n. 1 do RGCO - não é um recurso administrativo. Nem se lhe aplicam normas administrativas.
3 - Ao recurso de impugnação judicial do processo contra-ordenacional aplicam-se as normas do RGCO; em caso de lacuna neste aplicam-se as normas do C.P.P. (artigo 41º do RGCO); em caso de lacuna deste, aplicam-se as normas do C.P.C. (artigo 4º do C.P.P.).
4 - O direito administrativo só serve para definir a entidade administrativa com competência decisória e qual a sua forma de decisão. O Código de Procedimento Administrativo é, pois, uma inutilidade no Direito contra-ordenacional. E indesejável porquanto limitador de direitos do acusado,
5 - Para a interposição de um recurso de impugnação judicial é necessário apresentar escrito dirigido ao tribunal judicial competente – artigo 61º RGCO – não obstante apresentado à entidade administrativa decisora.
6 - A apresentação do recurso de impugnação judicial junto da entidade administrativa é um acto praticado em juízo na medida em que se trata de um recurso “de impugnação judicial” que apenas é praticado junto da entidade administrativa seguindo uma tradição sistemática idêntica aos recursos penais que, não obstante dirigidos a tribunais superiores, são apresentados no tribunal recorrido, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 414º do C.P.P..
7 - Aqui apresenta um acréscimo de utilidade ao permitir à entidade administrativa a revogação da sua decisão e a passagem para a fase “acusatória” do processo contra-ordenacional contida no artigo 62º, n. 2 do RGCO.
8 - Não se encontrando no RGCO e no C.P.P. norma que resolva o caso sub iudicio, teremos que nos socorrer do disposto no nº 1 do artigo 144.º do actual C.P.C. (apresentação a juízo dos actos processuais). E este afirma que nos actos processuais que devam ser praticados por escrito pelas partes vale como data da prática do acto processual a da respetiva expedição. O que é, aliás, jurisprudência pacífica desde a prolação do Assento do STJ nº 2/2000 (in DR I Série A de 7-02-2000) que dispunha a propósito do antecedente do referido artigo 144º do diploma: «O n.º 1 do artigo 150.º do Código de Processo Civil é aplicável em processo penal, por força do artigo 4.º do Código de Processo Penal
9 - Por isso que o simples erro de envio do recurso para o tribunal – que até é o destinatário final do recurso – não tem o relevo suficiente para impedir que se considere que o recurso de impugnação judicial foi interposto em tempo e é admissível por ter cumprido as parcas exigências formais de tal tipo de recurso, suprido o único erro formal detectado.
Decisão Texto Integral:

Acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório:
No recurso de contra-ordenação que corre termos no Tribunal Judicial de P – I. Local, S. Criminal, J3 - com o número supra indicado, PRM foi condenado, por decisão de 07-11-2014 pela extinta Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, no pagamento de uma coima no valor de € 750,00 e na sanção acessória de 60 dias de inibição de conduzir por violação do disposto no artigo 81º, nº 3 do Código da Estrada, por factos ocorridos em 08-06-2014 conduzindo o motociclo de matrícula XX-00-YY.
O recorrente apresentou defesa junto da dita entidade administrativa, de natureza documental e testemunhal, sendo que apenas a primeira foi considerada e a segunda desprezada.
Inconformado com a decisão proferida pela entidade administrativa impugnou judicialmente a decisão com vista à sua absolvição, por recurso de impugnação judicial enviado e dirigido ao tribunal recorrido com data de envio de 19-12-2014.
No tribunal recorrido foi aposta a data de 23-12-2016 no dito recurso.
A oficial de justiça do tribunal recorrido, em 23-12-2014 (fls. 22), devolveu o recurso ao mandatário do recorrente.
O recorrente enviou o recurso de impugnação judicial à entidade administrativa.
Por despacho de 09-05-2016 o tribunal recorido rejeitou liminarmente o recurso de impugnação judicial por extemporâneo.
Inconformado com a rejeição recorre o arguido com as seguintes conclusões (transcritas):
A) Entende, o recorrente, não ter razão a Meritissima juiz a quo, que julgou incorrectamente os factos face à prova carreada aos autos, e correspondente direito adjetivo aplicado, errando, por conseguinte, na sua decisão tomada.
B) O recorrente foi notificado da decisão administrativa em 01/12/2014, começando nessa data a decorrer o prazo de 15 dias úteis para a interposição de recurso judicial, que terminaria em 23/12/2014. C) O recorrente praticou o acto em 19/12/2014, e por isso, tempestivamente,
D) Ou seja, o recorrente interpôs o recurso judicial constante dos autos dirigido ao Mm. Juiz de Direito do Tribunal, expedindo a peça processual com 2 documentos, duplicado e procuração forense, por via postal registado (RD 0573 8294 2 PT) no exacto dia 19/12/2014, conforme o documento comprovativo original que juntou.
E) O recorrente devidamente patrocinado por mandatário, dirigiu o seu recurso ao Tribunal Judicial de P, na altura com competência territorial para a indicada morada Palácio da Justiça, Av. Miguel Bombarda, 8500-960 P.
F) O expediente que foi recebido no Tribunal de P em 23/12/2014, conforme o comprova o Ofíclo n. 477306 datado de 23/12/2014, que nessa data o Tribunal dirigiu ao mandatário do recorrente, junto aos autos sob os DOC. 2 e 3, que de seguida reencaminhou todo o expediente recebido, também sob postal registado (RD 0573 8296 O PT) ao Presidente da ANSR conforme comprovativos igualmente juntos DOCs. 4 e 5.
G) Dúvidas não há que o acto foi praticado pelo recorrente dentro do prazo, ou seja em 19/12/2014, considerando-se a eventualidade do erro de entrega da peça na Secretaria do Tribunal, onde a tramitação judicial contra-ordenacional compete julgar (art. 61.°/1 do DL 433/82),
H) Não pode pois ser coartado o direito da prática do acto ao recorrente.
I) Dispõe o art. 249.° do Código Civil – “o simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita, apenas dá direito à retificação desta”.
Acrescentando o Capitulo II, para os "Actos jurídicos': as disposições reguladoras do art. 295.° do CC - II os actos jurídicos que não sejam negócios juridicos são aplicáveis, na medida em que a analogia das situações o justifique, as disposições do capítulo precedente."
J) Sendo matéria pacifica e assente pela jurisprudência,
- Dai que se possa concluir que se preenchem os pressupostos previstos no artigo 249º do Código Civil, como condições da sua aplicabilidade ao presente caso, naturalmente, com as necessárias adaptações.
- A consequência daqui adveniente é a de se reconhecer que a recorrente tinha e tem direito à respectiva rectificação do erro.
- Acresce que as secretarias devem assegurar o expediente, autuação e regular tramitação dos processos, com o zelo com que o faria um bonus pater familias, não: podendo os erros ou omissões da secretaria, em qualquer caso, prejudicar as partes.
- Segundo uma orientação jurisprudencial praticamente pacifica, mercê do disposto no art. 2950 do mesmo diploma, o principio contido no art. 2490 do Cód Civil - rectificação de lapso manifesto - é aplicável a todos os actos processuais e das partes.
- Consequentemente, como o requerimento de interposição de recurso constitui uma autêntica declaração de vontade da parte visando produzir determinados efeitos processuais, é-lhe aplicável o princípio contido no artigo 249º do Código Civil, segundo o qual o simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita, dá direito à rectificação desta.
- De qualquer modo tal erro só pode ser rectificado (ao abrigo do cit. art. 2490 do Código Civil) se for ostensivo, evidente e devido a lapso manifesto: é preciso que, ao ler o texto logo se veja que há erro e logo se entenda o que o interessado queria dizer.
Ac. TRL 493/09.0TCFUN.L1-1, 15/03/2013
1- É de considerar validamente praticado o acto de contestar, se a parte, dentro do prazo legal, apresenta a contestação em Tribunal identificando erradamente nessa peça o Juizo e o número do processo, mas o sobrescrito remetido pelo correio, contendo a contestação, é dirigido ao Juizo e processo respectivo.
2. Apesar de a contestação ter sido junta pela secretaria ao processo indicado na contestação, e não ao processo mencionado no sobrescrito, a errada individualização da acção nessa peça constitui mera irregularidade processual imputável à parte, decorrendo de simples erro de escrita que jamais pode implicar a perda do direito de praticar o acto."
Ac. TRC, 2160/05. 27/09/2005
K) Porém, dispõe ainda o artigo 143.° do CPC-" que os actos judiciais realizam-se no lugar onde possam ser mais eficazes, mas podem realizar-se em lugar diferente, por motivos de deferência ou de justo impedimento”: o que terá aplicação ao caso sub judice em face da prova exibida.
L) Ora dúvidas não restam, que inequivocamente o recorrente praticou o acto, junto do Tribunal, e no prazo que a Lei lhe conferiu para o efeito. pelo que não lhe poderá ser coartado o direito de ver julgado seu recurso judicial (contra-ordenacional).
M) A sentença recorrida violou, entre outros, o artº 410°/2, 127º do CPP, art. 32.° da CRP e artº 59.° do DL-432/82, de 27/10, aplicados ao caso sub judice.
Nestes termos e nos demais de direito aplicáveis, deverá o presente recurso ser julgado procedente, e atenta a factualldade supra relatada e provada e se ordene o bom prosseguimento da impugnação judicial tempestivamente entregue pelo recorrente.

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A Digna Procuradora Adjunta respondeu ao recurso, defendendo a sua improcedência, com as seguintes conclusões:
1.O recurso de impugnação judicial de uma decisão administrativa que aplica coima em sede de processo de contra-ordenação, é apresentado, não em juízo, mas perante a respectiva autoridade administrativa, fazendo assim parte da fase administrativa do processo e não, da fase judicial, pelo que não pode o referido prazo ser considerado um prazo judicial, antes revestindo natureza administrativa, o qual é contado nos termos combinados do disposto nos artigos 59.º, n.º s 1 e 3 e 60, ambos do Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro, 279.º do Código Civil e 71.º a 73.º, ambos do Código de Procedimento Administrativo.
2. Devendo tal prazo ser considerado de natureza administrativa, não lhe são aplicáveis as regras privativas dos prazos judiciais, quer no que respeita à sua suspensão em período de férias judiciais, quer quanto à possibilidade de prática extemporânea de acto mediante o pagamento de multa processual.
3. É aplicável ao prazo de interposição do recurso da decisão administrativa o disposto no artigo 146.º do Código de Processo Civil, no caso de a inobservância do prazo se ficar a dever da razões justificáveis do recorrente ou dos seus representantes. O justo impedimento é o evento que não é imputável à parte nem aos seus representantes.
4. O recurso é expedido para a autoridade administrativa recorrida no prazo acima referido, que tem competência para revogar a decisão recorrida (artigo 62.º, n.º 2, do RGCO), mas não tem competência para não admitir o recurso por intempestivo ou desrespeito de exigências formais (artigo 63.º, n.º 1, do mesmo diploma legal).
5. Da análise dos autos verifica-se que, aquando da interposição do recurso da decisão administrativa que lhe foi desfavorável (06.01.2015 - cfr. fls. 118), já o respectivo prazo se encontrava ultrapassado (termo a 23.12.2014), pelo que aquele teria de ser rejeitado ao abrigo do disposto no artigo 63.º, n.º 1, do RGCO. Em suma, o que sucedeu foi que o recorrente, através do seu representante, Advogado, em vez de ter remetido o recurso no prazo devido para a autoridade administrativa, apresentou-o directamente ao Tribunal, não obedecendo à formalidade prevista na lei, inexistindo, deste modo, qualquer erro de cálculo ou de escrita susceptível de ser suprido nos termos do disposto no artigo 146.º do Código de Processo Civil, bem como o invocado justo impedimento.
6. Em face do exposto, nada há a censurar ao despacho judicial recorrido, que não violou as normas, substantivas e processuais, invocadas ou quaisquer outras, quando decidiu pela rejeição da impugnação, pelo que o presente recurso deve ser julgado improcedente.
Pelo exposto, deverá negar-se provimento ao recurso interposto pelo arguido, confirmando-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
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Nesta Relação, a Exmª Procuradora-geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Foi observado o disposto no nº 2 do artigo 417° do Código de Processo Penal.
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B - Fundamentação:
B.1 – Os factos relevantes para decisão constam do relatório que antecede e do teor do despacho recorrido.
É o seguinte o teor do despacho recorrido:
«Nos presentes autos de recurso de contra-ordenação, veio PRM, por requerimento que constitui fls. 23 a 32, impugnar a decisão proferida pela AUTORIDADE NACIONAL DE SEGURANÇA RODOVIÁRIA que o condenou numa coima no valor de € 750,00 e na sanção acessória de 60 dias de inibição de conduzir.
Atento o disposto no art. 59° n.s 1 a 3 do DL. 433/82 de 27.10 a decisão administrativa é susceptível de impugnação judicial, devendo o respectivo recurso deve ser apresentado por escrito e endereçado à autoridade administrativa que aplicou a coima.
Estipula, por seu turno, o art. 181 °/2 a) do Código da Estrada (norma especial) que o recurso deverá ser instaurado no prazo de 15 dias após o seu conhecimento pelo visado, prazo este que se suspende aos sábados, domingos e feriados (dr. art. 60°/1 do DL. 433/82).
De salientar que a advertência para as formalidades atinentes à interposição de recurso constam do texto da decisão administrativa.
Ora,
Compulsados os autos verifica-se que, nos termos do preceituado no art. 176°/8 do C.Estrada, o Recorrente se considera notificado da decisão da autoridade administrativa no dia 01.12.2014 (3° dia útil posterior à assinatura do aviso de recepção por terceiro), pelo que o prazo previsto nos supra mencionados preceitos legais terminou no dia 23.12.2014.
Constata-se, portanto, que o recurso apresentado pelo Recorrente, em obediência às formalidades legais para as quais havia sido expressamente advertido no texto da decisão administrativa, no dia 06.01.2015, é extemporâneo.
Assim e ao abrigo do disposto no art. 63° do citado D.L. 433/82, rejeito o recurso apresentado por PRM.
Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC's (arts. 93°/3 e 92°/1, ambos do D.L. 433/82, art. 513° do C.P.Penal e art. 8° do R.C.P.).
Notifique o Recorrente, na sua pessoa e do seu ilustre mandatário, e a autoridade administrativa (art. 70°/4 do D.L. 433/82).
Deposite.
Oportunamente, após trânsito, remeta os autos à autoridade administrativa.
*****
Cumpre decidir.
B.2 - O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação – 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal - de acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das secções do STJ de 19/10/95 in D.R., I-A de 28/12/95, aplicável ao processo contra-ordenacional.
Não há que conhecer de vício de conhecimento oficioso.
É questão a conhecer a extemporaneidade do recurso de impugnação judicial.
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B.3.1 – Convém esclarecer pontos prévios que negam um entendimento errado, que persiste, na análise de processos contra-ordenacionais e que se expressam de forma simples: um processo contra-ordenacional não é um processo administrativo.
Tem uma fase administrativa. Mas existem diferenças entre os termos “fase” e “processo”. Questão que qualquer dicionário resolve a contento.
Estamos a tratar de um recurso de “impugnação judicial” em processo contra-ordenacional, como tal definido por lei – artigo 59º, n. 1 do RGCO (Dec-Lei n. 433/82, de 27-10).
Logo, não é um recurso administrativo. Nem se lhe aplicam normas administrativas. O Código de Procedimento administrativo é uma excrescência indesejável num processo contra-ordenacional.
O processo contra-ordenacional tem mais semelhanças com o direito e processo penal do que com o direito administrativo. Para concluir tal basta ler os artigos 32º e 41º do RGCO.
O primeiro reza:
«Em tudo o que não for contrário à presente lei aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contra-ordenações, as normas do Código Penal.»
O segundo suplica:
1 - Sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal.
2 - No processo de aplicação da coima e das sanções acessórias, as autoridades administrativas gozam dos mesmos direitos e estão submetidas aos mesmos deveres das entidades competentes para o processo criminal, sempre que o contrário não resulte do presente diploma.
Sob a epígrafe “Garantias de processo criminal”, impetra o artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa:
10. Nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa.
Por fim, o artigo 6º da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (vulgo Convenção Europeia dos Direitos do Homem) aplica-se ao processo contra-ordenacional, como é jurisprudência estabilizada do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
Isto na medida em que “o conceito de acusação em matéria penal contido no artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (conceito com autonomia e que deve ser interpretado no sentido da Convenção), é interpretado pelo TEDH como abrangendo o direito contra-ordenacional” – nosso relato no acórdão desta relação de 28-10-2008 (proc. 1441/08-1).
Isto quer significar que o direito administrativo só serve para definir qual é a entidade administrativa com competência decisória e qual a sua forma de decisão.
E, como já fundamentámos no acórdão desta Relação de 21 de Abril de 2015 (Proc. Nº 7/14.0T8ORQ.E1):
O que as posições de pendor “administrativizante” revelam é uma surpreendente incompreensão sobre o que é o processo contra-ordenacional, sendo certo que até no “Assento” n. 1/2001 já se fundamentava, com apoio expresso da doutrina (Manuel Ferreira Antunes, Reflexões sobre o Direito Contra-Ordenacional, SPB Editores, 1997, pp. 41 e seg.), que:
«Não parece possível, hoje, admitir-se que o direito contra-ordenacional constitua ou possa constituir ‘ilícito penal administrativo’. Do que se trata é de um verdadeiro ‘direito penal especial’ (Fernanda Palma, ao tratar do direito contra-ordenacional in Direito Penal, Faculdade de Direito de Lisboa, 1993, fala também do ‘direito penal secundário’), disfarçado no poder da Administração Pública, mais por conveniências práticas, do que por preocupações de rigor da sua natureza jurídica.
9.2 — O direito contra-ordenacional constitui um género do direito penal, um direito penal especial [. . .] Não é um direito administrativo ou direito penal administrativo [. . .] O direito subsidiário é o direito penal e o direito processual penal e não o direito administrativo.»
Hoje a melhor doutrina reconhece ao direito contra-ordenacional um carácter autónomo, distinto quer do direito penal, quer do direito administrativo, apenas se encontrando nos tribunais judiciais – incluindo os de segunda instância – uma forte corrente no sentido da “administrativização” do processo contra-ordenacional, ao arrepio da lei (por interpretação contra-legem do Dec-Lei n. 433/82, designadamente do seu artigo 41º, n. 1 quando estabelece, sem fazer distinção entre fases processuais, que “sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal”).
Assim, ao recurso de impugnação judicial do processo contra-ordenacional aplicam-se as normas do RGCO; em caso de lacuna neste aplicam-se as normas do C.P.P. (artigo 41º do RGCO); em caso de lacuna deste, aplicam-se as normas do C.P.C. (artigo 4º do C.P.P.). Simples.
Como já se afirmou no acórdão desta Relação de 15-12-2015 (proc. 911/15.9T8PTG.E1):
1 - Ao processo contra-ordenacional são aplicáveis, numa primeira linha, as normas do respectivo diploma relativo ao tipo de ilícitos respectivos pois que o diverso enquadramento jurídico contra-ordenacional específico prevalece em função da natureza do ilícito (as contra-ordenações ambientais e o regime estradal são dois bons exemplos).
2 - Depois as normas do seu regime geral (RGCO) caso seja necessário ao seu enquadramento. Em caso de lacuna é subsidiário o Código de Processo Penal. Em caso de lacuna deste o Código de Processo Civil. E só.
3 - Nunca é aplicável ao regime contra-ordenacional o direito administrativo pois que isso contrariaria a natureza do processo contra-ordenacional enquanto direito “punitivo” enquadrado pelo artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, para além de a legislação administrativa ser inadequada por natureza e poder ser limitativa de direitos, como é da sua essência. Nenhuma norma prevê a legislação administrativa como subsidiária do direito contra-ordenacional. Várias afirmam o contrário.
4 - As notificações a efectuar no âmbito do direito estradal regem-se pelas normas do Código da Estrada.
5 – (…).
O Código de Procedimento Administrativo é, pois, uma inutilidade no Direito contra-ordenacional. E indesejável porquanto limitador de direitos do acusado, dado o seu cariz de direito de origem napoleónica.
Mas, por se tratar de contra-ordenação estradal haverá que apurar se o regime específico de tal contra-ordenação contém normas específicas.
E de facto assim é, contendo o nº 2, alínea a) do artigo 182º do Código da Estrada um comando diverso – e por isso aplicável – quanto ao prazo de interposição de recurso, que é de 15 dias, a dirigir ao tribunal competente mas a apresentar “junto da autoridade administrativa que aplicou a coima”, reproduzindo-se parte do conteúdo do nº 3 do artigo 59º do RGCO.
Ora, do que aqui tratamos é de prática de actos pelas “partes”.
E o caso concreto tem, assim, norma expressa no Código da Estrada a definir nessa sede o prazo de recurso. E duas normas não contraditórias (CE e RGCO) a definir a entidade administrativa como receptora do recurso. Em tudo o resto aplicam-se, em sucessão se for o caso, as normas de processo penal e civil, por ausência de normas específicas a regular o dito “acto das partes”.
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B.3.2 – Para a interposição de um recurso de impugnação judicial é necessário apresentar escrito dirigido ao tribunal judicial competente – artigo 61º RGCO – não obstante apresentado à entidade administrativa decisora. [1]
A apresentação à entidade decisora justifica-se por duas razões: possibilidade de revogação da decisão – artigo 62º, n. 2 do RGCO; a possibilidade de o Ministério Público tomar posição sobre ela, retirando a “acusação” (na prática revogando a decisão administrativa) - artigos 62º, n. 1 e 65º-A do diploma.
Assim, a apresentação do recurso de impugnação judicial praticado junto da entidade administrativa é um acto praticado em juízo? É indubitável que sim na medida em que se trata de um recurso “de impugnação judicial” que apenas é praticado junto da entidade administrativa seguindo uma tradição sistemática idêntica aos recursos penais que, não obstante dirigidos a tribunais superiores, são apresentados no tribunal recorrido, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 414º do C.P.P..
Aqui apresenta um acréscimo de utilidade ao permitir à entidade administrativa a revogação da sua decisão e a passagem para a fase “acusatória” do processo contra-ordenacional contida no artigo 62º, n. 2 do RGCO.
Mas não deixa de ser um recurso de “impugnação judicial” (e não de “impugnação administrativa”) e, portanto, deve ser considerado um acto “praticado em juízo” para todos os efeitos.
Como tal – um dos efeitos - é-lhe aplicável o artigo 279º, al. e) do Código Civil: «o prazo que termine em domingo ou dia feriado transfere-se para o primeiro dia útil; aos domingos e dias feriados são equiparadas as férias judiciais, se o acto sujeito a prazo tiver de ser praticado em juízo».
Mas acresce que o artigo 296.º do mesmo diploma, que rege sobre a contagem dos prazos, determina que as regras constantes do artigo 279.º são aplicáveis, na falta de disposição especial em contrário, aos prazos e termos fixados por lei, pelos tribunais ou por qualquer outra autoridade.
Não há disposição especial em contrário! E trata-se de termo fixado por lei, independentemente de saber se as entidades administrativas estão ou não de férias. Ou seja, o acto podia ser praticado no primeiro dia útil seguinte como foi.

Neste mesmo sentido os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 21-09-2011 (proc. 0318/11, rel. Cons. Francisco Rothes) [2] e de 28-05-2014 (proc. 0311/14, Rel. Cons. Aragão Seia). [3]
Nos termos do artigo 28.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário), as férias judiciais decorrem de 22 de dezembro a 3 de janeiro, do Domingo de Ramos à Segunda-Feira de Páscoa e de 16 de julho a 31 de agosto.
Assim, como o prazo de recurso terminava a 23-12-2014, no dizer do tribunal recorrido, o terminus de tal prazo ocorria em férias judiciais pelo que o acto podia ser praticado em 04-01-2015. E, portanto, já por aqui o recurso é procedente.
Note-se que não afirmamos que o prazo se suspende em férias judiciais, só afirmamos que o acto a praticar, quando o respectivo prazo termine em período de férias judiciais pode ser praticado no primeiro dia útil fora destas. Trata-se, pois, do termo do prazo, que não da suspensão do mesmo.
De qualquer forma este entendimento não contraria o decidido no Acórdão n. 2/94, de 10-03-1994 (Proc. nº 45325) pois que aí apenas se discutia – e se decidiu - sobre a suspensão do prazo de recurso através da aplicação do artigo 144º, n. 3 do Código de Processo Civil, algo que aqui não está directamente em causa na medida em que este artigo afirmava que o prazo judicial se suspendia, no entanto, durante as férias, sábados, domingos e feriados . [4]
O acórdão nº 2/94 do STJ, de 10 de Março de 1994, havia fixado jurisprudência no sentido de considerar que «Não tem natureza judicial o prazo mencionado no n.º 3 do artigo 59.° do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, com a alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 356/89, de 17 de Outubro».
Este aresto foi rapidamente desmentido pelo legislador. De facto, o suporte de tal decisão era a inexistência de norma que regulasse directamente a questão no Dec-Lei n. 433/82, de 27-10 e assim acontecia. [5]
Mas logo no ano seguinte o Dec-Lei nº 244/95, de 14/09, viria a alterar a letra do artigo 60º do RGCO que, sob a epígrafe “Contagem do prazo para impugnação”, passou a ter dois números prevendo a suspensão aos sábados, domingos e feriados e a transferência da possibilidade da prática do acto no primeiro dia útil seguinte. [6]
Ou seja, houve intervenção legislativa através da nova redacção do artigo 60º RGCO que alterou os termos da questão de direito ali decidida. [7]
Assim e não apenas num aspecto substancial, também formal, tal aresto mostra-se caduco na medida em que o legislador tomou posição sobre a questão, ficando apenas um problema por solucionar mas que não releva para o caso sub iudicio (não releva a suspensão do prazo sim o seu termo), a de saber se ocorre suspensão do prazo em férias judiciais na medida em que tal hipótese ficou excluída porque não prevista no novo preceito.
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B.4 – Mas outra faceta, a trazida pelo recorrente ao conhecimento desta Relação, deve ser abordada.
O recorrente enviou o “recurso de impugnação judicial” em 19-12-2014 – envelope a fls. 58. Ora, no entender do tribunal recorrido esse envio foi feito em prazo.
Não se encontrando no RGCO e no C.P.P. norma que resolva o caso sub iudicio, teremos que nos socorrer do disposto no nº 1 do artigo 144.º do actual C.P.C. (apresentação a juízo dos atos processuais). E este afirma que nos actos processuais que devam ser praticados por escrito pelas partes vale como data da prática do acto processual a da respetiva expedição.
O que é, aliás, jurisprudência pacífica desde a prolação do Assento do STJ nº 2/2000 (in DR I Série A de 7-02-2000) que dispunha a propósito do antecedente do referido artigo 144º do diploma: «O n.º 1 do artigo 150.º do Código de Processo Civil é aplicável em processo penal, por força do artigo 4.º do Código de Processo Penal
Apesar de o artigo 63.º do RGCO dispor que “o juiz rejeitará, por meio de despacho, o recurso feito fora do prazo ou sem respeito pelas exigências de forma”, o preceito não pode hoje ter uma leitura que corresponda à sua literalidade e, nesta, a “forma” ter um sentido da mais ampla cobertura, sob pena de o direito ao recurso de impugnação judicial ser a negação da própria ideia de um recurso e significar a negação dos direitos dos arguidos, para mais num processo com uma grande proximidade ao criminal e com sanções cada vez mais gravosas.
A sensatez revelada no nº 2 do artigo 146.º do novel C.P.C. ao determinar, no que ao suprimento de deficiências formais de atos das partes diz respeito, que o juiz “deve ainda admitir, a requerimento da parte, o suprimento ou a correção de vícios ou omissões puramente formais de atos praticados, desde que a falta não deva imputar-se a dolo ou culpa grave e o suprimento ou a correção não implique prejuízo relevante para o regular andamento da causa”, deve impor-se àquela norma do RGCO que ainda via o direito contra-ordenacional como um direito de bagatelas.
E a “omissão puramente formal” não fica a dever-se a dolo ou culpa grave nem a sua correcção implica prejuízo relevante pois que os objectivos pretendidos pelo legislador, a eventual revogação da decisão administrativa e o provocar a intervenção do Ministério Público, foram já alcançados, já que aquela não revogou a decisão e este entendeu estarem verificados os pressupostos de admissão do recurso, tanto que transformou a decisão em acusação.
Por isso que o simples erro de envio do recurso para o tribunal – que até é o destinatário final do recurso – não tem o relevo suficiente para impedir que se considere que o recurso de impugnação judicial foi interposto em tempo e é admissível por ter cumprido as parcas exigências formais de tal tipo de recurso, suprido o único erro formal detectado.
Por tudo é o recurso procedente.
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C - Dispositivo:
Face ao que precede se decide conceder provimento ao recurso, determinando-se que o tribunal recorrido admita o recurso de impugnação judicial interposto pelo ora recorrente.
Sem tributação.
Évora, 06 de Dezembro de 2016 (Processado e revisto pelo relator)
João Gomes de Sousa
Carlos Campos Lobo

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[1] - Seguimos aqui, abreviando, o já por nós relatado no acórdão desta Relação de 21 de Abril de 2015 (Proc. Nº 7/14.0T8ORQ.E1):
[2] - «I - A contagem do prazo de vinte dias após a notificação da decisão administrativa de aplicação da coima, de que o arguido dispõe para interpor recurso (art. 80.º, n.º, 1 do RGIT), faz-se nos termos do artigo 60.º do RGCO (ex vi da alínea b) do art. 3.º do RGIT), donde resulta que o prazo se suspende aos sábados, domingos e feriados. II - Porque esse prazo não respeita a acto a praticar num processo judicial, antes constituindo um prazo de caducidade de natureza substantiva, não lhe é aplicável o regime dos prazos processuais. III - No entanto, terminando esse prazo em férias judiciais, transfere-se para o primeiro dia útil seguinte, por força do preceituado no art. 279.º, alínea e), do CC. IV - O facto de o requerimento de interposição de recurso judicial da decisão de aplicação da coima em processo de contra-ordenação tributária dever ser apresentado no serviço de finanças, não obsta a que se considere acto a praticar em juízo, pois, para esse efeito, o serviço de finanças funciona como receptáculo do requerimento, que é dirigido ao tribunal tributário».
[3] «I - A contagem do prazo de vinte dias após a notificação da decisão administrativa de aplicação da coima, de que o arguido dispõe para interpor recurso (art. 80.º, n.º, 1 do RGIT), faz-se nos termos do artigo 60.º do RGCO (ex vi da alínea b) do art. 3.º do RGIT), donde resulta que o prazo se suspende aos sábados, domingos e feriados. II - Terminando esse prazo em férias judiciais, transfere-se para o primeiro dia útil seguinte, por força do preceituado no art. 279.º, alínea e), do Código Civil».
[4] - Versão então vigente, a do Dec-Lei n. 381º-A/85, de 28-09 que estipulava: (3) «O prazo judicial suspende-se, no entanto, durante as férias, sábados, domingos e feriados»
[5] - A redacção anterior do preceito (artigo 60º), dada pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, era irrelevante para o caso pois que, sob a epígrafe “Renúncia ao recurso”, estabelecia: «A todo o tempo, durante o prazo previsto no artigo anterior, poderão os recorrentes renunciar ao recurso».
[6] - A actual letra do preceito: «1 - O prazo para a impugnação da decisão da autoridade administrativa suspende-se aos sábados, domingos e feriados. 2 - O termo do prazo que caia em dia durante o qual não for possível, durante o período normal, a apresentação do recurso, transfere-se para o primeiro dia útil seguinte».
[7] - No mesmo sentido, de forma implícita, Frederico de Lacerda da Costa Pinto in “O ilícito de mera ordenação social e a erosão do princípio da subsidariedade da intervenção penal”, in «Direito Penal Económico e Europeu – Textos Doutrinários», vol. I, pag 262, nota 127, Coimbra Editora, 1998.