Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3451/09.1TBSTB-A.E1
Relator: JOÃO AMARO
Descritores: ACUSAÇÃO
NARRAÇÃO DOS FACTOS
NULIDADE
Data do Acordão: 06/03/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I - Como resulta até das mais elementares regras da experiência comum, há comportamentos humanos, sancionados penalmente, em relação aos quais não é possível (ou humanamente exigível) a concretização, quanto ao dia e à hora, de todos os atos que os integram.

II - É o que sucede no caso destes autos, em que ocorre uma imputação de um comportamento reiterado (durante um certo período de tempo, num local determinado, e por um motivo concretizado, o arguido desferiu “bofetadas” no ofendido - então menor de idade).

II - Foi, precisamente, para prevenir situações como as descritas que a norma do artigo 283º, nº 3, al. b), do C. P. Penal, impõe que as concretizações nela previstas sejam feitas “se possível” (as circunstâncias de tempo relativas à prática dos factos devem ser narradas se possível, na medida do possível, e, obviamente, dentro daquilo que for razoável à luz dos princípios que norteiam o nosso processo penal).

III - Não padece de nulidade a acusação que balizou, suficientemente, o comportamento do arguido no tempo e no espaço,e que até indica, de forma clara, a motivação para o mesmo (o arguido atuou por o ofendido brincar sem cumprir as tarefas que lhe estavam destinadas).
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - RELATÓRIO

Nos autos de instrução nº 3451/09.1TBSTB, do Tribunal Judicial de Setúbal (JIC), veio o Ministério Público recorrer do despacho, proferido em 20 de Dezembro de 2013, que declarou inválida a acusação proferida contra o arguido A. e determinou a remessa dos autos ao Ministério Público para os efeitos tidos por convenientes.

Apresentou as seguintes (transcritas) conclusões, extraídas da motivação do recurso:

“a) Por despacho datado de 28 de Abril de 2006, o Ministério Público deduziu acusação imputando, entre o mais, ao arguido A. a prática de factos que consubstanciam a prática de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art.º 143º do Código Penal.

b) Não se conformando, veio o arguido requerer a abertura de instrução invocando que a referida acusação padecia de nulidade por violação da al. b) do nº3 do art.º 283º do Código de Processo Penal, porque de tão sintética não identifica com precisão o ofendido sobre quem o arguido teria dado as bofetadas, nem identifica as circunstâncias de tempo e lugar onde os factos teriam ocorrido.

c) Realizado debate instrutório, proferiu o meritíssimo Juiz de instrução decisão instrutória onde declarou inválida a acusação deduzida e ordenou a remessa dos autos ao Ministério Público, para os efeitos tidos por convenientes.

d) Consideramos que o tribunal a quo violou o disposto nos art.ºs 120º, 121º, 122º, 283º e 308º do Código de Processo Penal e o art.º 32º da Constituição da República Portuguesa.

e) Na verdade, o libelo acusatório, consiste, essencialmente, na descrição da conduta levada a cabo por um sujeito, que se mostra contrária aos valores preservados no Código Penal. Esta operação de subsunção, que identifica o tipo penal, correspondente a determinados factos é a essência das garantias de defesa e deve ser conhecida pelo arguido, para que a possa controlar.

f) De acordo com a al. b) do nº 3 do art.º 283º do CPP, a acusação deve conter uma narração, ainda que sintética “(…) dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.”

g) Daqui não decorre que a acusação tenha de proceder a uma descrição completa e esgotante do acontecimento, já que na perspetiva substantiva, na passagem dos factos ao direito, o que interessa saber é se convergem os elementos integradores da incriminação, se se verificaram as circunstâncias constitutivas do tipo de crime, incluindo as que concorrem para a definição da autoria e da culpa, e aquelas que, em complemento, são capazes de influenciar a aplicação das reações criminais que no caso couberem.

h) Como é bom de ver da mera leitura da acusação, é notório que os elementos integradores do ilícito imputado ao arguido se encontram ali descritos.

i) Importa relembrar que são fatos juridicamente determinantes aqueles que descrevem os elementos indiciários da prática do crime, ou seja, aqueles que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, sendo circunstâncias as indicações de tempo, modo, lugar, grau de participação e as relevantes para a determinação da sanção que deva ser aplicada.

j) Apenas a omissão quanto a factos juridicamente relevantes dará lugar à rejeição da acusação, por nulidade. A falta de indicação das circunstâncias de tempo ou lugar em que ocorreram os factos descritos na acusação pode ser sanada no início da audiência de julgamento, de acordo com o disposto nos art.ºs 340º, 358º e 359º do Código de Processo Penal.

k) Nestes termos, não podia o meritíssimo Juiz de instrução ter declarado a nulidade da acusação deduzida nos autos, todavia, ainda que se considerasse que andou bem ao declarar a nulidade da acusação deduzida nos autos, nunca poderia o meritíssimo Juiz ordenar a devolução dos autos ao Ministério Público.

l) No caso em apreço a nulidade oportunamente arguida é uma nulidade prevista no art.º 283º do Código de Processo Penal, logo, dependente de arguição, nos termos do art.º 120º do Código de Processo Penal.

m) A nosso ver, declarada a referida nulidade nunca pode o Ministério Público deduzir nova acusação contra o arguido sob pena de violação do princípio do acusatório e das garantias de defesa do arguido (cfr. o disposto no art.º 32º da Constituição da República Portuguesa).

n) Não negamos que o meritíssimo Juiz de instrução apenas ordenou a devolução dos autos ao MP para os efeitos tidos por convenientes - não os concretizando - mas que outro efeito poderia preconizar que não a reformulação da acusação?

o) Concluindo o meritíssimo Juiz de instrução que a acusação não contém todos os pressupostos - nomeadamente, de facto - de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, só lhe resta a alternativa de proferir despacho de não pronúncia, nos termos do art.º 308.º, n.º 1, in fine, do CPP.

Termos em que requer que o recurso seja julgado procedente e, consequentemente, seja o despacho recorrido substituído por outro que profira despacho de pronuncia, ou, assim não se considerando, que profira despacho de não pronuncia”.
*
Não foi apresentada resposta ao recurso.

Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer (fls. 110 a 115), pronunciando-se no sentido da procedência do recurso.

Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2, do C. P. Penal, não tendo sido apresentada qualquer resposta.

Efetuado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, o processo foi à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1 - Delimitação do objecto do recurso.

Uma única questão, em breve síntese, é suscitada no presente recurso, segundo o âmbito das correspondentes conclusões, que delimitam o objecto do recurso e definem os poderes cognitivos deste tribunal ad quem, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do C. P. Penal: saber se é de pronunciar ou não o arguido A..

2 - A decisão recorrida.

O despacho objeto do recurso é do seguinte teor (integral):
“Declaro encerrada a instrução.
Cumpre, agora, proferir despacho de pronúncia ou não pronúncia, nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 307º e 308º do Código de Processo Penal.
O que se fará, dando seguimento.

DECISÃO INSTRUTÓRIA
I. Enquadramento.
Iniciaram-se os presentes autos com a separação de processos ordenada no âmbito dos autos com o número 1130/04.5TASTB, com o fito se de apreciar autonomamente a factualidade objeto desses autos na parte respeitante à atuação do arguido A..

Feita a separação de processos, foi extraída certidão do processado, que deu origem a estes autos.

Encontra-se o arguido A. acusado da prática de factos que no entender do Ministério Público determina a comissão, pelo mesmo, de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punível pelo artigo 143º, número 1, do Código Penal.

Notificado da acusação contra si deduzida, não se conformou o arguido com a sua submissão a julgamento, e requereu a abertura de instrução. Alega em seu favor a nulidade da acusação (ao abrigo do disposto no artigo 283º, número 3, al. b) do Código de Processo Penal), por não conter uma narração especificada dos factos que lhe são imputados, e ainda a prescrição do procedimento criminal.

Admitida a instrução, não foi produzida qualquer prova, por se entender tal como desnecessário, face ao sentido da defesa e ao que já constava dos autos.

Foi realizado o debate instrutório em obediência ao devido formalismo legal, como se alcança da respetiva ata.

II. Conhecimento de nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que se possa conhecer (artigo 308º, número 3, do Código de Processo Penal).

O Tribunal é competente.
As partes têm legitimidade para exercer a ação penal.
Das nulidades, exceções ou quaisquer outras questões prévias que obstem à apreciação do mérito da causa:

II. A - Da prescrição do procedimento criminal:
Sustenta o arguido que desde a prática dos factos que lhe vem imputada – a qual cessou, ou mais tardar, em 10-7-2004, já decorreu o prazo de prescrição do procedimento criminal (não indica as normas aplicáveis, mas presume-se que se estribe no disposto no artigo 118º, número 1, al. c) do Código Penal), acrescentando que não se verificou qualquer causa interruptiva ou suspensiva de tal prazo.

Apesar de no requerimento de abertura de instrução esta questão ser invocada em segundo lugar, a ser procedente, determina a inutilidade de apreciação da restante, pelo que importa, então, e antes do mais dilucidá-la.

Vejamos então se assiste razão ao arguido nesta parte.
Com relevância para a apreciação a fazer, importa considerar o seguinte:

1 - O Ministério Público acusou, em 6 de Março de 2006, o arguido A. imputando-lhe a prática, no período compreendido entre 23 de Fevereiro de 2001 e 10 de Julho de 2004, de factos que no entender do Ministério Público determinam a comissão, pelo mesmo, de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punível pelo artigo 143º, número 1, do Código Penal – fls. 403-414.

2 - A acusação apenas veio a ser notificada ao arguido no dia 3 de Junho de 2013 – fls. 914.

3 - Por despacho de fls. 757-758, foi declarada a contumácia do arguido, em 22 de Setembro de 2008.

4 - A situação de contumácia do arguido apenas foi declarada cessada em 13 de Setembro de 2013, por efeito de despacho de fls. 920.

5 - Nunca foi registada a situação de contumácia do arguido, nos termos previstos no artigo 19º e seguintes do Decreto-Lei número 381/98, de 27 de Novembro.

Apreciando.

Sendo o crime imputado ao arguido punível com pena de prisão até três anos (artigo 143º, número 1, do Código Penal), o prazo de prescrição aplicável é o de cinco anos – artigo 118º, número 1, al. c) do mesmo diploma – e começa-se a contar desde a data da prática do facto – artigo 119º, número 1, do aludido diploma - , que na pior das hipóteses, ocorreu no dia 10 de Julho de 2004.

Ou seja, não tendo havido qualquer causa de interrupção ou suspensão da prescrição, o procedimento criminal ocorreria no dia 10 de Julho de 2009.

Mas houve causas não só de interrupção, como de suspensão do decurso do prazo de prescrição do procedimento criminal.

No que toca à interrupção, a contagem do prazo interrompeu-se:

a) Em 22 de Setembro de 2008, com a declaração de contumácia do arguido - artigo 121º, número 1, al. c) do Código Penal;

b) Em 3 de Junho de 2013 com a notificação da acusação ao arguido - artigo 121º, número 1, al. b), do Código Penal.

Como se sabe, após qualquer causa de interrupção, começa-se a contar novo prazo de prescrição - artigo 121º, número 2, do Código Penal.

Assim, nunca decorreram cinco anos completos desde o início do prazo, ou desde que se verificasse qualquer causa de interrupção.

Existe também a regra especial do artigo 121º, número 3, do Código Penal.

Mas não aproveita ao arguido.

No caso, para lhe aproveitar, teria que se considerar terem decorrido sete anos e seis meses, acrescidos do tempo em que a contagem do prazo esteve suspensa, desde a data da prática dos factos.

Ora, de acordo com o disposto no artigo 120º, número 1, al. c) do Código Penal, o prazo prescricional do procedimento criminal suspende-se durante o tempo em que vigorar a declaração de contumácia.

Ou seja, no período compreendido entre em 22 de Setembro de 2008 e 13 de Setembro de 2013 – 4 anos, 11 meses e 21 dias - , o prazo prescricional encontrou-se suspenso.

Assim, e no estado atual dos autos, só se poderia considerar extinto o procedimento criminal por efeito da prescrição e ao abrigo do disposto no artigo 121º, número 3, do Código Penal decorridos 12 anos, 5 meses e 21 dias após o dia da prática dos factos imputados.

Ou seja, no dia 31 de Dezembro de 2016.

O que ainda não sucedeu.

Pelo exposto, entende-se improceder a invocada exceção de prescrição do procedimento criminal.

II.B - Da nulidade do despacho acusatório:
Alegou o arguido em seu favor a nulidade da acusação (ao abrigo do disposto no artigo 283º, número 3, al. b) do Código de Processo Penal), por não conter uma narração especificada dos factos que lhe são imputados.

Vejamos.
Os factos imputados ao arguido na acusação são especificamente os seguintes:

- Desferiu bofetadas na cara de JP, em datas que em concreto não foi possível apurar (fls. 410 - aceita-se a referência a JPG como um lapso material ou lapsus calami, detetável através do contexto em que se insere a frase em que se verifica), por este brincar sem cumprir as tarefas destinadas;

- Estas datas compreender-se-ão no período 23-2-2001 a 10-07-2004 (fls. 410);

- Essas bofetadas provocaram dores e sofrimento físico e psíquico a JP (fls. 411);

- Agiu de forma livre e consciente, com intenção de atacar o corpo do JP, bem sabendo que assim, violava a lei (fls. 412).

Pois bem, perante esta descrição factual fica-se por saber concretamente o que terá feito o arguido. E muitas perguntas podem e devem ser colocadas, por exemplo:

a) Quantas vezes foi o ofendido agredido?
b) Quantas bofetadas lhe foram desferidas?
c) Onde ocorreram tais factos?
d) Que circunstâncias concretas estiveram na sua génese?
e) Que relação existia entre o arguido e a vítima nessa altura?

Como se sabe, o objeto do processo penal varia ao longo do tempo. Um dos momentos em que se fixa, porém, é do da dedução da acusação. Impõe-se ao acusador a descrição tão clara quanto possível de factualidade que a provar-se, permita a aplicação ao acusado de um pena ou medida de segurança.

Detenhamo-nos um pouco mais sobre aquilo que se deve ter por “objeto do processo” (reportando-nos ao procedimento criminal). Bem como, em que termos é que o mesmo pode ser introduzido, fixado e modificado.

Como sabemos, o processo penal nasce com “a notícia do crime” – artigo 262º, número 2, do Código de Processo Penal.

Esta notícia pode assumir as mais variadas formas. Daí que se entenda que na notícia do crime, nos termos previstos no aludido preceito, não têm que estar presentes todos os elementos factuais que traduzam a enunciação clara, completa e precisa dos elementos da infração eventualmente em causa.

Na realidade, o objeto do processo (no sentido de lastro factual que constitua alguém na prática de uma infração criminal) durante o inquérito é fluído, porque de uma fase investigatória se trata (artigo 262º, número 1, do Código de Processo Penal).

É, contudo, no despacho final do inquérito que se define o objeto do processo. Objeto esse que apenas poderá vir a ser alterado nos estritos limites do disposto nos artigos 303º, 358º e 359º do Código de Processo Penal.

Daí a especial importância de, no despacho de encerramento do inquérito, e independentemente do sentido da decisão do titular da ação penal, se enunciar de forma clara a factualidade sobre a qual incidiu a ação investigatória, seja aquela que foi objeto de arquivamento, seja aquela que foi objeto de acusação.

De acordo com o disposto no artigo 283º, número 3, al. b) do Código de Processo Penal, a acusação tem de conter, sob pena de nulidade, "A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada".

Não se pode interpretar a expressão utilizada pelo legislador “se possível” como uma dispensa total de investigar as circunstâncias em que as ações que constituem crime ocorreram.

E menos ainda como a permissão para deduzir uma acusação inespecificada, com recurso a ações quase inespecificadas, ocorridas em número inespecificado, e num lapso de tempo superior a três anos.

Esta expressão tem que ser compaginada com as garantias de defesa em processo penal - artigo 32º, número 1, da Constituição da República Portuguesa - que inclui a garantia do contraditório em fase de julgamento - número 5 do mesmo preceito legal.

Daqui decorre que ninguém possa ser submetido a julgamento sem que essa possibilidade de contraditar o que lhe é imputado se verifique efetivamente.

Assim, a factualidade imputada em sede de acusação tem que permitir ao arguido defender-se da mesma - daí a exigência de concretização.

A matéria factual “para que se considere “objeto do processo”, tem que ser concretizada, tem que permitir possibilidade de ser contraditada e não pode ser considerado apenas como “objeto” de “transferência” para a “opinião” de uma qualquer testemunha que “homologue” uma “generalidade” (expressão utilizada no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 17 de Junho de 2013, proc. número 97/11.8PFSTB.E1, in www.dgsi.pt.).

Não é possível a ninguém defender-se de imputações como as que são feitas ao arguido na acusação.

Num período de tempo superior a três anos imputa-se ao arguido um número indeterminado de ações, cujo conteúdo individualizado nem sequer está bem delimitado.

Resulta pois, da imputação factual genérica e inespecificada que se faz ao arguido na acusação destes autos, uma violação irreparável da garantia do contraditório do processo penal, porquanto a forma como essa imputação está efetuada não permite o seu contraditório eficaz. O arguido não pode refutar factos que não conhece.

E poderia, como sustentou o Ministério Público em sede de debate instrutório, essa concretização ser feita pelo tribunal de julgamento (e já agora porque não, em sede de instrução)?

Não se concorda.

Significaria transferir o poder investigatório, de forma totalmente injustificada, para o tribunal. Com grave violação do princípio do acusatório (artigo 32º, número 5, da Constituição da República Portuguesa).

Segundo esta interpretação, e tirando o exemplo do caso concreto, poderá o Ministério Público acusar por algo mais ou menos indeterminado, que depois o tribunal de julgamento ou o juiz de instrução investigarão. E acrescentarão factos ao objeto do processo, desde que tal acrescento não ultrapasse os limites impostos pelos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal. Perguntar-se-á, se assim é, porque o não fez o Ministério Público tal investigação em sede de inquérito, que era onde tal deveria ter sido feito? (artigo 262º, número 1, do Código de Processo Penal).

Até porque, se o Ministério Público em sede de inquérito não conseguiu concretizar tais factos, pese embora o esforço investigatório de cuja existência se não duvida, dificilmente haveriam de o conseguir levar a cabo o tribunal de julgamento ou o juiz de instrução.

Enfim, não pode este tribunal concordar com tal visão do processo penal português. O princípio do acusatório é também uma garantia de defesa do arguido na medida em que lhe garante a imparcialidade do julgador. Os mecanismos previstos nos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal (e já agora, também, no artigo 303º do mesmo diploma) são “válvulas de escape”, destinando-se a permitir a inclusão no objeto do processo de matéria factual que de forma inusitada se descobriu no decurso do processado. Não está na sua previsão a sua utilização premeditada, como forma de colmatar insuficiências ou impossibilidades de apuramento de factos em sede de inquérito.

Em suma, a acusação terá efetivamente, e como pretende o arguido, que ser considerada nula, por violação do disposto nos artigos 283º, número 3, al. b), do Código de Processo Penal e 32º, números 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa (em sentido que se considera essencialmente concordante com esta posição se decidiu nos recentes acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 17/9/2013 e 5/11/2013, processos número 97/11.8PFSTB.E1 e 18/08.5GDODM.E1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt; no primeiro dos arestos é efetuada uma pertinente resenha jurisprudencial sobre a questão da admissibilidade das “imputações genéricas”).
*
A nulidade verificada na acusação, não sendo insanável (artigo 119º do Código de Processo Penal, a contrario), apenas pode ser sanada em sede de inquérito.

Importa pois, que os autos retornem a essa fase, afim de o Ministério Público determinar o que tiver por conveniente, como é seu múnus.

A declaração de nulidade torna inválido o ato em que se verifica, (no caso a acusação, apenas na parte em que respeita á atuação do arguido A.), bem como os que dele dependerem e resultem afetados pela nulidade (artigo 122º do Código de Processo Penal).

No caso concreto entende-se que nenhum dos atos praticados posteriormente à acusação ora declarada nula ficam afetados pela nulidade de que a mesma padece (isto é, sofram de qualquer vício decorrente das causas de nulidade da acusação que ora se notaram).

Todavia, e porque é de se declarar inválido o despacho final do inquérito na parte em que se reporta à atuação do arguido A., devem os autos retornar a essa fase, para os efeitos que o titular da ação penal tiver por convenientes.

IV. Decisão final.
Por conseguinte, e tendo presentes todas as supra aludidas considerações e normas jurídicas invocadas, declaro verificada a nulidade a que se alude no artigo 283º, número 3, al. b), do Código de Processo Penal, da acusação proferida nos autos e apenas na parte em que se reporta à atuação do arguido A., e consequentemente:

a) Declaro inválida tal acusação, na parte em que se reporta à atuação do arguido A..

b) Determino a remessa dos autos ao Ministério Público, após trânsito em julgado da presente decisão, para os efeitos que tiver por convenientes.

Sem custas.
Notifique e dê baixa.
Após trânsito, devolva os autos ao Ministério Público, para os efeitos que tiver por convenientes”.

3 - Apreciação do mérito do recurso.

A primeira questão a que cabe dar resposta é apenas esta: a acusação apreciada pelo despacho recorrido satisfaz (ou não) os requisitos do artigo 283º, nº 3, do C. P. Penal.

A segunda questão a que cabe responder pode enunciar-se assim: concluindo-se que a acusação em causa não satisfaz os aludidos requisitos, sendo nula, os autos devem ser remetidos ao Ministério Público (como decidiu o Mmº Juiz a quo), ou, pelo contrário, deve ser proferido despacho de não pronúncia.

Há que apreciar e decidir.

Dispõe o artigo 283º, nº 3, do C. P. Penal: “a acusação contém, sob pena se nulidade:
(...)

b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática (…)”.

In casu, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido A., pela prática de um crime de “ofensa à integridade física simples unificado”, p. e p. pelo artigo 143º, nº 1, do Código Penal, com base na seguinte factualidade:

- “JP (nascido em 18.10.1989) residiu na Casa do Gaiato de Setúbal desde 23.02.2001 até 10.07.2004”;

- “O arguido A., em datas que, em concreto, não foi possível apurar, deu bofetadas na cara do JP, por este brincar sem cumprir as tarefas destinadas”;

- Essas bofetadas provocaram “dores e sofrimento físico e psíquico” ao JP.

- “O arguido M. atuou de forma livre e consciente, com intenção de atacar o corpo do JP, bem sabendo que, agindo assim, violava a lei”.

Perante esta descrição fatual, o Mmº Juiz, no despacho revidendo, considerou a acusação nula, por a mesma não conter a “narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática (conforme preceituado no artigo 283º, nº 3, al. b), do C. P. Penal).

Discordamos de tal entendimento.

Senão vejamos:

A acusação (e a sentença - artigo 374º do C. P. Penal) tem de conter, sob pena de nulidade, o tempo e o lugar da prática dos factos, se possível.

A indicação das circunstâncias de tempo e de lugar não é, pois, obrigatória (tem de ser feita apenas se for possível), admitindo-se que, caso não seja possível mencionar o lugar e o tempo dos factos com inteira precisão, se refira, por exemplo, “em lugar desconhecido” ou “em local cuja localização exata não foi possível apurar”, e, quanto ao tempo, por exemplo, “em datas que, em concreto, não foi possível apurar”.

No caso dos autos, a acusação descreve que o ofendido JP “residiu na Casa do Gaiato de... desde 23.02.2001 até 10.07.2004”, local esse onde, durante tal período de tempo, o arguido A., “em datas que, em concreto, não foi possível apurar, deu bofetadas na cara” do ofendido, “por este brincar sem cumprir as tarefas destinadas”.

O arguido A. e o ofendido JP tiveram, pois, um período de “vivência” em comum (desde 23-02-2001 até 10-07-2004), na Casa do Gaiato, em ..., e, nesse preciso local e durante esse específico período de tempo, o arguido A., por diversas vezes, desferiu bofetadas na cara do ofendido JP, por este brincar sem cumprir as tarefas que lhe estavam destinadas.

Essas bofetadas ocorreram em variadas alturas, sempre pelo mesmo motivo, compreendendo-se, por isso, que seja impossível ao ofendido JP recordar-se, com precisão, do tempo (da data concreta) da prática dos factos.

Contudo, o arguido A. sempre esteve por dentro dos factos, viveu-os com o ofendido JP (no interior da mesma instituição - a Casa do Gaiato de ...), e, por isso, sabe bem do que o ofendido o acusa.

Assim sendo, a alusão às circunstâncias de tempo feita na acusação em análise, apesar de omissa quanto a pormenores, é aceitável e legalmente admissível, pois com base nela permite-se concluir pela ocorrência de factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena.

Por outro lado, os factos descritos na acusação em questão preenchem os elementos (objetivos e subjetivos) do crime de ofensa à integridade física simples pelo qual o arguido está acusado, sendo certo que a data precisa da prática dos factos não é elemento constitutivo desse mesmo crime.

Lendo-se, com a devida atenção, a acusação do Ministério Público (a qual, na parte ora relevante, acima se deixou transcrita), constata-se que nela estão descritos os factos necessários à condenação pelo crime de ofensa à integridade física simples, vindo narrada, por exemplo, na exata medida do possível, a data da prática de tais factos (os factos em causa ocorreram no período compreendido entre 23-02-2001 e 10-07-2004 - altura essa em que o arguido A. e o ofendido JP se encontravam na Casa do Gaiato, em ...).

O arguido A. pode defender-se da acusação por esses factos, não saindo violado, nomeadamente, o princípio do contraditório.

Do mesmo modo, não sai desrespeitado o princípio acusatório.

Na verdade, é emanação clara do princípio acusatório (consagrado no artigo 32º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa) quer a exigência de indicação precisa, na acusação, dos factos imputados ao arguido (sendo a acusação condição e limite do julgamento), quer ainda a imposição de que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse mesmo crime por parte de um órgão distinto do julgador.

Como bem salienta o Prof. Figueiredo Dias (in “Direito Processual Penal”, Coimbra Editora, 1981, pág. 65), a conceção típica de um “processo acusatório” implica a “estrita ligação do juiz pela acusação e pela defesa, tanto na determinação do objeto do processo (…), como na extensão da cognição (…), como nos limites da decisão”.

Mais esclarece o mesmo Ilustre Professor (ob. citada, pág. 145), acerca da vinculação temática do tribunal, como efeito consubstanciador dos princípios da identidade, da unidade ou indivisibilidade e da consunção do objeto do processo penal: “deve pois afirmar-se que objeto do processo penal é o objeto da acusação, sendo este que, por sua vez, delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal (...) e a extensão do caso julgado”.

As garantias de defesa a que alude o artigo 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, inculcam também, claramente, a necessidade de o arguido conhecer, na sua real dimensão, os factos de que é acusado, para que deles possa convenientemente defender-se.

E isto implica, nomeadamente, que não possa ser surpreendido, na audiência de discussão e julgamento, com factos que a acusação lhe não tivesse posto “diante dos olhos” (na feliz expressão constante do Ac. do S.T.J. de 06-12-2002, in CJ/STJ, Ano X, Tomo III - 2002, pág. 240).

Neste quadro de análise, e retomando o caso dos autos, afigura-se-nos que não estamos aqui perante uma acusação deduzida sem as necessárias condições materiais de viabilidade, em função dos enunciados princípios.

Com efeito, o que está em causa não é a punição autónoma de cada uma das “bofetadas” dadas pelo arguido A. ao ofendido JP.

Só nessa situação, então sim (sob pena de se postergarem os direitos de defesa), teriam de ser indicadas, uma a uma, as concretas circunstâncias de tempo (e de modo, e de lugar) dessas mesmas “bofetadas”.

Na acusação está exposta uma outra situação: no período de tempo compreendido entre 23-02-2001 e 10-07-2004, na Casa do Gaiato, em ---, o arguido A., por diversas vezes (e em datas que não foi possível apurar - pois o ofendido era menor e não anotou tais datas), desferiu bofetadas na cara do ofendido JP, por este brincar sem cumprir as tarefas que lhe estavam destinadas.

A acusação em apreciação baliza o tempo em que tal comportamento do arguido persistiu - entre 23-02-2001 e 10-07-2004 -, define, com rigor, o local onde o arguido praticou os factos (na Casa do Gaiato, em ----), e diz até qual o motivo da conduta do arguido (o arguido atuou por o ofendido brincar sem cumprir as tarefas que lhe estavam destinadas).

Ora, é esse comportamento reiterado do arguido, nesse período de tempo, nesse local, e motivado como a acusação relata, que vai ser submetido a julgamento, e não cada um dos atos (ou seja, das “bofetadas”) em que o comportamento se materializou.

Assim, saber quantas vezes foi o ofendido esbofeteado, ou quantas bofetadas foram desferidas de cada uma das vezes (ou com que intensidade foram desferidas), é questão que, por relevar apenas para determinação do grau de ilicitude e do grau culpa, pode (e deve) ser respondida na audiência de discussão e julgamento, e pode (e deve) ser vertida na sentença a proferir, uma vez produzida a prova (e obedecendo o tribunal, na íntegra, aos critérios de apreciação dessa mesma prova).

Aliás, e como resulta até das mais elementares regras da experiência comum, há comportamentos humanos, sancionados penalmente, em relação aos quais não é possível (ou humanamente exigível) a concretização, quanto ao dia e à hora, de todos os atos que os integram.

É o que sucede no caso destes autos, em que ocorre uma imputação de um comportamento reiterado (durante um certo período de tempo, num local determinado, e por um motivo concretizado, o arguido desferiu “bofetadas” no ofendido - então menor de idade).

Foi, precisamente, para prevenir situações como as descritas que a norma do artigo 283º, nº 3, al. b), do C. P. Penal, impõe que as concretizações nela previstas sejam feitas “se possível” (as circunstâncias de tempo relativas à prática dos factos devem ser narradas se possível, na medida do possível, e, obviamente, dentro daquilo que for razoável à luz dos princípios que norteiam o nosso processo penal).

Em todo o caso, a acusação em apreço balizou, suficientemente, o comportamento do arguido A. no tempo e no espaço, bem como indicou, aqui de forma clara, a motivação para o mesmo (nos termos por nós acima assinalados).

A acusação em causa não padece, pois, de nulidade, ao contrário do entendimento expresso no despacho sub judice.

Neste ponto, e face ao exposto, merece total provimento o recurso (sendo de revogar o despacho recorrido, e sendo de determinar a substituição do mesmo por outro que pronuncie o arguido A.).

E, deste modo, fica prejudicado o conhecimento da segunda questão suscitada no recurso (saber se, ocorrendo a nulidade assinalada no despacho revidendo, o Mmº Juiz podia remeter os autos para o Ministério Público, como o fez, ou se devia, pelo contrário, ter proferido despacho de não pronúncia).

III - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder inteiro provimento ao recurso, determinando que o despacho recorrido seja substituído por outro que, nos termos acima assinalados, pronuncie o arguido A..

Sem custas.
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Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 03 de Junho de 2014.

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(João Manuel Monteiro Amaro)
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(Maria Filomena de Paula Soares)