Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2505/12.1TBFAR-A.E1
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: OBJECTO DO RECURSO
QUESTÕES NOVAS
ALTERAÇÃO DA CAUSA DE PEDIR
Data do Acordão: 06/30/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: I - O julgamento de mérito ou de fundo no despacho saneador só pode ocorrer quando o processo fornece já os elementos suficientes para que o litígio em causa possa ser decidido com segurança, ou seja, quando não existe prova a produzir quanto a factos essenciais para a decisão da causa.
II - Os recursos destinam-se a reapreciar questões colocadas ao tribunal recorrido, e não questões novas, sobretudo factos novos, como acontece no caso dos autos em que a recorrente diz nas alegações o que não alegou no requerimento inicial, já que, em momento algum do seu articulado a ora Recorrente alegou factos que consubstanciem aquilo que agora vem afirmar nas suas alegações de recurso: que a Exequente BB, tinha conhecimento da alegada obtenção ilícita das letras por parte da co-executada e do alegado preenchimento abusivo das mesmas.
III - As partes estão oneradas com a invocação dos factos essenciais à procedência da acção ou da excepção, incumbindo-lhes alegar os factos concretos em que assentam a sua pretensão ou a sua defesa, com a efectiva identificação e concretização da causa de pedir a qual é constituída pelo conjunto de factos em que se consubstancia a relação material controvertida, pois só estes e os previstos no n.º 2 do artigo 5.º do CPC, podem ser conhecidos pelo tribunal e são subsumíveis às regras de direito.
IV - No caso dos autos, a forma como o ora Recorrente conformou a relação material controvertida não permite em momento algum identificar a causa de pedir que agora tenta modificar e adaptar nas alegações de recurso porquanto todo o requerimento inicial foi desenhado por referência às relações imediatas entre os co-executados, não permitindo, portanto, em qualquer vertente de análise, enquadrar o «aperfeiçoamento» do articulado quanto à exequente, isto porque todos os factos alegados se referem a diferente relação jurídica.
V - Assim, admitir-se o que a Recorrente agora pretende, seria admitir uma alteração da causa de pedir, à qual se opõe o princípio da estabilidade da instância previsto no artigo 260.º do CPC, de acordo com o qual, a instância deve manter-se a mesma, designadamente quanto à causa de pedir, que só pode ser alterada por acordo, nos termos do artigo 264.º do CPC, ou na falta de acordo na situação regulada no artigo 265.º do CPC, situações que não se verificam nos presentes autos.
VI - O contrato de desconto bancário é uma modalidade de financiamento em que o Banco adianta o valor de uma letra sacada pelo seu cliente sobre alguém a quem aceitou uma letra a prazo certo, permitindo por esta via que o cliente não tenha que esperar por tal prazo para obter o montante titulado pela letra, recebendo antecipadamente o valor do seu crédito, “descontado” do valor da comissão cobrada pelo Banco e do juro correspondente ao tempo que medeia entre a colocação à disposição do cliente da quantia adiantada pelo Banco e a data do vencimento da letra.
VII - Com a operação de desconto não se extingue a relação cambiária decorrente da letra, nem com esta se extingue a proveniente daquele, porquanto o Banco, enquanto descontador das letras, além de credor cambiário, é também credor comum do descontário, podendo inclusivamente invocar como causa de pedir em acção declarativa o empréstimo decorrente da operação de desconto, que não possa eventualmente invocar por via da obrigação cambiária.
VIII - Considerando que quem aceita uma letra contrai uma obrigação cambiária, o sabido carácter literal e autónomo das letras produz integralmente os seus efeitos, porquanto os princípios da literalidade, abstracção e autonomia, só deixam de funcionar quando o portador endossado tenha conhecimento designadamente de que não existia nenhuma obrigação causal, situação que não foi sequer oportunamente alegada pela embargante.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[3]:

I – Relatório
1. AA, S.A. por requerimento entrado em 17 de Janeiro de 2014 deduziu a presente oposição à execução e penhora mediante embargos contra BB, S.A., requerendo a extinção da execução e das penhoras efectuadas quanto à executada/embargante.
Para o efeito invocou, em síntese, que as letras dadas à execução foram assinadas em branco pela Executada, para reserva de aquisição futura de um conjunto de viaturas automóveis à co-executada, não estando na altura preenchidos os restantes espaços da letra. Mais alude que tais espaços foram preenchidos de má-fé e de forma abusiva, e bem assim sustenta que pagou integralmente os veículos que reservou à também executada CC, Ld.ª.
Mais requereu a imediata suspensão do processo de execução e das penhoras efectuadas.

2. Notificada a Exequente, apresentou contestação pugnando pela improcedência da oposição à execução, invocando ser legítima portadora dos títulos de crédito que vieram à sua posse no âmbito de uma vulgar operação de desconto bancário, perfeitamente válida conquanto as letras foram apresentadas devidamente preenchidas em cumprimento dos requisitos legais e formais indispensáveis.
Assim, como nas datas dos respectivos vencimentos, as letras não foram pagas nem pelo aceitante, nem pela sacadora, sendo portadora dos títulos, pede o cumprimento da obrigação, sendo a mesma exigível quer perante o aceitante quer perante o sacador, não podendo ao portador ser opostas as excepções cambiárias que se fundam nas relações pessoais e imediatas entre as executadas.

3. Com a apresentação da contestação, a Embargada juntou aos presentes autos os originais das letras dadas à execução, em cumprimento de despacho judicial que nesse sentido havia sido proferido aquando da admissão liminar dos embargos.

4. Seguidamente foi proferido despacho saneador-sentença, julgando improcedente a presente oposição à execução e penhora, ordenando, em consequência, o prosseguimento da execução.

5. Inconformada com esta decisão, a executada/embargante apresentou o presente recurso de apelação que terminou com as seguintes conclusões:
«A) Não poderia o MMº. Juiz do Tribunal A Quo, no douto despacho saneador – sentença decidir como decidiu sem atentar na matéria factual e no correcto entendimento das disposições legais aplicáveis.
B) A recorrente quando deduziu oposição à execução, impugnou especificadamente a matéria constante do requerimento executivo.
C) A oposição à execução reveste a natureza de uma acção declarativa enxertada na acção executiva e a Recorrente, através do liminarmente proferido despacho saneador – sentença, foi impedida de apresentar meios de prova testemunhais e outros que possibilitariam produzir prova bastante em sede de audiência de discussão e julgamento, quanto à invocada má fé da exequente BB S.A. na aquisição e utilização das letras apresentadas em execução, bem como da sua consciência na forma e modo como adquiriu e utilizou, bem sabendo que causava relevante prejuízo à recorrente, conforme consta alegado claramente nos pontos 20º, 21º, 22º, 23º 24º e 25º da oposição.
D) O MM. Juiz do Tribunal A Quo não pode invocar o ónus de prova que impende sobre a recorrente, para depois negar, com o proferido despacho saneador / sentença, a possibilidade da recorrente produzir prova da manifesta má fé na aquisição e utilização das referidas Letras por parte da BB. S.A e da CC Lda., ambas com plena consciência da ilicitude dos seus atos e dos prejuízos avultados que causariam e causam à recorrente, consubstanciados nas penhoras de saldos bancários e veículos automóveis que constam identificados no auto de penhora destes autos.
E) O que a Recorrente AA Lda. alega na sua oposição e lhe foi vedado provar em sede de audiência de discussão e julgamento é a plena consciência da portadora das duas Letras, neste caso a Recorrida BB. S.A., quanto ao conhecimento que a mesma possuía da ilicitude na sua obtenção por parte da CC Lda., bem sabendo que as mesmas não eram devidas por parte da Recorrente e que aquelas somente existiram para garantia e reserva de aquisição futura de um conjunto de viaturas automóveis da marca : " Mitsubishi", por parte da AA Lda. à CC Lda., pelo que aquando do pagamento integral efectuado, de que a recorrida BB S.A tinha direto e pessoal conhecimento, deveriam ter sido devolvidas à ora executada / oponente, o que não sucedeu, tendo as mesmas sido adquiridas com manifesta má fé e ilicitamente utilizadas, neste caso pela BB S.A., tudo conforme consta do ponto 17º da oposição da recorrente.
F) A BB S.A. para além de ter conhecimento pessoal e direto da inexistência de qualquer obrigação cambiária por parte da recorrente AA Lda. apoderou-se das referidas Letras de forma ilícita, intitulando-se : "legítima portadora" das mesmas quando na realidade não o é, pois sempre teve plena consciência da ilicitude da sua conduta e dos graves danos que causava e causa à recorrente pela utilização indevida que faz das mesma nos autos principais de execução.
G) A má fé para aquele efeito alegada pela recorrente na sua oposição, consiste no conhecimento ou na ignorância indesculpável (negligente) do preenchimento abusivo das referidas letras por parte da BB S.A., bem sabendo que inexistia qualquer dívida ou obrigação da AA Lda. e que ao adquirir, fazendo-se portadora e utilizadora daquelas letras o fazia ilicitamente cometendo falta grave e causando graves prejuízos à recorrente.
H) Não podia o MMº. Juiz do Tribunal A Quo dar como provado e assente o : "... não pagamento pelos executados da quantia de 9.452,65€, relativa ao valor correspondente a duas letras, de que exequente é portadora e legítima possuidora", quando a recorrente impugnou especificada e claramente na sua oposição a posse e o modo como a BB S.A. adquiriu e utilizou os mesmos, conforme consta dos pontos 8º, 9º, 13º, 16º, 17º, 18º, 19º, 20º, 21º, 22º, 23º, 24º, 25º, 30º da oposição à execução e penhora deduzida, bem como do supra ponto 5º deste recurso.
I) Não podia o MMº. Juiz do Tribunal A Quo dar como provado e assente que : " Através de desconto perante a BB, S.A. que lhes entregou as quantias tituladas pelas letras." quando na realidade não ficou provado em momento algum naqueles autos que aquelas letras tivesse sido apresentadas a desconto e que a BB S.A. tivesse pago a quem quer que fosse as quantias ali feitas inscrever de forma ilícita. Pois os únicos documentos apresentados nos autos pela exequente BB, S.A. são as duas letras que constam a fls. 32 e 33, sem que tenha sido junta qualquer prova de desconto bancário e / ou comprovativo de pagamento das mesmas à executada CC Lda. ou a terceiros.
J) O MMº. Juiz do Tribunal A Quo ao decidir naqueles termos decidiu mal, pois carecia de factos e fundamentos que o permitissem proferir conscienciosa e fundamentadamente um Despacho Saneador – Sentença, o que na realidade não sucedeu, uma vez que não foram produzidos quaisquer factos, por se encontrarem devidamente contraditados no âmbito da oposição à execução apresentada pela Recorrente.
K) Ao contrário do entendimento expresso pelo MMº. Juiz do Tribunal A Quo, só deve conhecer-se do pedido no saneador se o processo contiver todos os elementos que possibilitem decisões segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito e não somente aqueles que possibilitem a decisão de conformidade com o entendimento do Juiz do processo. Assim se uma dessas soluções impuser o prosseguimento do processo em ordem ao apuramento dos factos alegados não pode proferir-se decisão sobre o mérito da causa (Cfr. A. R.L. 24/07/81 BMJ 314 pág. 361).
L) Caberia ao MMº. Juiz do Tribunal A Quo, findos que estavam os articulados, dever fazer prosseguir os seus ulteriores termos para o apuramento e prova dos factos alegados pela Recorrente em sede Audiência de Discussão e Julgamento, o que não sucedeu contrariamente ao que dispõe a Lei.
M) Na oposição à execução apresentada pela Recorrente, a mesma para além de defender-se contraditando de forma específica os factos alegados pela Recorrida, apresenta factos concretos de que resultaria a improcedência da execução e relativamente aos quais o MM. Juiz do Tribunal A Quo ao decidir como decidiu em sede de Despacho Saneador / Sentença não permitiu que a Recorrente exercesse o seu direito / dever de produzir prova em sede de Audiência de discussão e julgamento.
N) Competia ao MMº. Juiz do Tribunal A Quo, em face dos factos alegados pela Recorrente em sede de articulado de Oposição à Execução, realizar a audiência de discussão e julgamento para produção de prova, uma vez que era sobre a mesma que recaía o ónus e o direito de produzir as provas que inviabilizassem o prosseguimento da execução.
O) Ao decidir como decidiu violou o Tribunal A Quo, o disposto nos Artigo 731º, 576º, 595º,597º, 598º, 410º, 411º, 413º, 415º e 417º todos do C.P.C., bem como artigos 10º e 17º da LULL .
Termos em que deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão proferida pelo Tribunal A Quo com as legais consequências, sendo esta substituída por outra que mande prosseguir os termos normais da oposição à execução e à penhora constante do apenso A do Processo 2505/12.1TBFAR, 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial, com a fixação da base instrutória e marcação de audiência de julgamento para se poder provar os factos alegados pelo Recorrente por assim ser de inteira JUSTIÇA!».

6. Pela Embargada/Recorrida não foram apresentadas contra-alegações.

7. Observados os vistos, cumpre decidir.
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II. O objecto do recurso.
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil[4], é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo evidentemente daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Assim, vistos os autos, cumpre apreciar se o tribunal podia conhecer do mérito da causa no saneador, atentos os fundamentos da oposição da executada.
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III – Fundamentos
III.1. – De facto:
Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
A) Corre termos neste Juízo, sob o n.º 2505/12.1TBFAR, execução para pagamento de quantia certa proposta em 4 de Outubro de 2012 pela exequente BB, S.A. contra os executados AA, S.A. e CC, Ld.ª.
B) (… ) Com fundamento invocado do não pagamento pelos executados da quantia de 9.452 ,65 €, relativa ao valor correspondente a duas letras, de que a exequente é portadora e legítima possuidora.
C) (…) Tendo a administração da executada AA, S.A. aposto o carimbo da sociedade e assinado pelo seu punho transversalmente o rosto de cada uma das letras no local destinado ao aceite.
D) (…) E, em seguida, entregou as letras ao sacador CC, Ld.ª, que apôs o carimbo da sociedade e assinou horizontalmente o rosto das duas letras no espaço destinado para tal e assim procedeu ao seu saque.
E) (…) Através de desconto perante a BB, S.A., que lhe entregou as quantias tituladas pelas letras.
F) (…) E após, o sacador CC, Ld.ª assinou o verso de cada uma das letras apondo o respectivo carimbo, e entregou-as à Exequente com a menção “pague-se à ordem de BB”.
É ainda relevante consignar que, do requerimento inicial de execução[5] constava também o seguinte:
«1. A Requerente, é dona e legítima portadora de duas LETRAS, que foram descontadas à sociedade “CC LDA.”, sendo o local de pagamento DD, SACADA E aceite por “AA Lda”, conforme Doc. 1 e 2 que se juntam e aqui se dão por integralmente reproduzidas, e que se passam a indicar:
2º. - letra nº 500792887096193603(a que corresponde, informaticamente, a operação nº. PT 003500352544600989596) de € 5.200,00, conforme resulta do título cambiário de que se junta cópia como Doc. nº 1.
- letra nº 500792887092846084(a que corresponde, informaticamente, a operação nº. PT 003500352544601012896) de € 4.252,65, conforme resulta do título cambiário de que se junta cópia como Doc. nº 2.
3º. -Sucede que, nas respectivas datas de vencimento, nem até hoje, o valor representado nos respectivos títulos não foi pago, nem pela sacadora, CC, Lda, nem pela sacada e aceitante, AA Lda.
4º. – Os executados, constantes do título são responsáveis para com a exequente, pelo pagamento da quantia consubstanciada na letra, juros de mora à taxa legal, actualmente de 4% e imposto selo».
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III.2. – Do conhecimento do mérito da causa
Pretende o recorrente que a matéria de facto dependia de melhor prova, porquanto «ao contrário do que declara o MMº. Juiz do Tribunal A Quo, a recorrente AALda., na sua oposição apresentou factos concretos da manifesta má fé da exequente BB S.A. e da sua consciência na forma e modo como adquiriu e utilizou as referidas Letras para causar relevante prejuízo à recorrente, conforme consta alegado claramente nos pontos 20º, 21º, 22º, 23º 24º e 25º da oposição», tendo impugnado especificadamente a matéria constante do requerimento executivo e tendo sido impedida pela decisão no saneador de apresentar meios de prova testemunhais e outros em sede de audiência de julgamento que possibilitariam provar a aquisição e utilização com manifesta má fé e ilicitamente das letras apresentadas em execução por parte de exequente BB e da co-executada CC, Ld.ª.
Mais aduziu nos artigos 20.º a 22.º do corpo das suas alegações, reforçando invocação anterior no mesmo sentido, que alegou na sua oposição e lhe foi vedado provar em sede de audiência de discussão e julgamento «a plena consciência da portadora das duas Letras, neste caso a Recorrida BB S.A., quanto ao conhecimento que a mesma possuía da ilicitude na sua obtenção por parte da CCLda., bem sabendo que as mesmas não eram devidas por parte da Recorrente e que aquelas somente existiram para garantia e reserva de aquisição futura de um conjunto de viaturas automóveis da marca : " Mitsubishi", por parte da AA Lda. à CC Lda., pelo que aquando do pagamento integral efectuado, de que a recorrida BB S.A tinha direto e pessoal conhecimento, deveriam ter sido devolvidas à ora executada / oponente, o que não sucedeu, tendo as mesmas sido adquiridas com manifesta má e ilicitamente utilizadas, neste caso pela BB S.A., tudo conforme consta do ponto 17º da oposição da recorrente. Daquele modo, a BB S.A. para além de ter conhecimento pessoal e direto da inexistência de qualquer obrigação cambiária por parte da recorrente AA Lda. apoderou-se das referidas Letras de forma ilícita, intitulando-se : "legítima portadora" das mesmas quando na realidade não o é, pois sempre teve plena consciência da ilicitude da sua conduta e dos graves danos que causava e causa à recorrente pela utilização indevida que faz das mesma nos autos principais de execução. A má fé para aquele efeito alegada pela recorrente na sua oposição, consiste no conhecimento ou na ignorância indesculpável (negligente) do preenchimento abusivo das referidas letras por parte da BB S.A., bem sabendo que inexistia qualquer dívida ou obrigação da AA Lda. e que ao adquirir, fazendo-se portadora e utilizadora daquelas letras o fazia ilicitamente cometendo falta grave e causando graves prejuízos à recorrente».
Como é sabido, o julgamento de mérito ou de fundo no despacho saneador só pode ocorrer quando o processo fornece já os elementos suficientes para que o litígio em causa possa ser decidido com segurança, ou seja, quando não existe prova a produzir quanto a factos essenciais para a decisão da causa.
De facto, atenta a formulação legal do artigo 595.º, n.º 1 alínea b), do CPC, o despacho saneador destina-se a conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória.
Ponto é, pois, que o estado do processo o permita, sem necessidade de mais provas para além das já processualmente adquiridas.
Ora, analisado detalhadamente o requerimento inicial não podemos deixar desde já de afirmar que não assiste razão à recorrente, pela singela mas evidente asserção de que os recursos se destinam a reapreciar questões colocadas ao tribunal recorrido, e não questões novas, sobretudo factos novos, como acontece no caso dos autos em que a recorrente diz nas alegações o que não alegou no requerimento inicial.
Efectivamente, a recorrente refere nas alegações que não lhe foi dada a possibilidade de, em audiência de julgamento produzir provas quanto aos factos que alegou a respeito da má fé. Porém, a mesma, ao contrário do que afirma, não invocou «factos» nos indicados artigos do requerimento inicial, limitando-se a reproduzir, em várias formulações, a aquisição das letras com má fé, quando, também com múltiplas variantes, explicava que se limitou a assinar as letras em branco, desconhecendo todos os demais elementos do respectivo preenchimento posterior.
Assim acontece nos artigos 8.º «tendo as referidas letras sido adquiridas de má fé»; 9.º «E para além daquelas letras terem sido adquiridas com manifesta má fé»; foram ali feitos constar com má fé; 12.º «sem o seu conhecimento, autorização e com manifesta má fé»; 13º «as referidas Letras adquiridas de má fé, são agora abusivamente utilizadas»; 15.º «As letras aqui adquiridas de má fé»; 25º «Os alegados títulos em execução foram obtidos de forma ilegal e com manifesta má fé».
Portanto, não temos qualquer dúvida em sufragar o entendimento expresso pelo Mm.º Juiz a quo na decisão recorrida a respeito do ónus da prova incumbir ao embargante, quando refere «que este se limita no seu articulado a alusões conclusivas e vazias de conteúdo relativamente a uma qualquer exceção, cujo ónus de prova sobre impende». Efectivamente, na referência ao ónus da prova está implícito ao prévio ónus de alegação dos factos que hão-de ser sujeitos à mesma: é uma evidência que se o Recorrente não alegou factos essenciais - sendo estes os necessários ao preenchimento das previsões legais nas quais assenta o direito invocado -, não pode depois pretender provar conclusões ou asserções jurídicas, como acontece quando se limita, com vários cambiantes, a usar as expressões legais contidas nos artigos 10.º e 17.º da Lei Uniforme das Letras e Livranças.
Mas, para que dúvidas não restem de que o ora Recorrente não alegou nenhum dos «factos» que agora coloca nas alegações, designadamente quanto ao conhecimento pela Exequente e ora Recorrida dos contornos da relação contratual daquele com a co-executada, respigaremos alguns artigos, onde, para evidenciar o que vimos de afirmar, sublinharemos as passagens que, para além de demonstrarem à saciedade a sobredita completa inexistência de factos relevantes que integrassem um comportamento que pudesse concluir-se preencher o conceito ínsito no citado artigo 10.º, são absolutamente reveladores de que a interpretação que ressalta de toda a peça processual em causa, é a de que a Embargante se refere sempre quanto ao preenchimento da letra e sua utilização à co-executada e não à Exequente. Assim:
«16º- A Executada / oponente desconhece e desconhecia os elementos essenciais destas duas letras agora apresentadas em execução e da sua aquisição e utilização de má fé por parte da co-executada CC Lda. para com terceiros, neste caso a exequente e oponida BB S.A.
17º- As referidas letras foram única e exclusivamente assinadas em branco pela aqui executada / oponente para reserva de aquisição futura de um conjunto de viaturas automóveis da marca : " Mitsubishi", por parte da AA Lda. à CC Lda., pelo que aquando do pagamento integral efectuado deveriam ter sido devolvidas à ora executada / oponente, o que não sucedeu efectivamente, tendo as mesmas sido adquiridas com manifesta má e ilicitamente utilizadas para alegadas transacções com terceiros, neste caso a BB S.A.
18º- A AA Lda. pagou integralmente os veículos que reservou à co - executada CC Lda., sendo que a mesma adquiriu e utilizou com manifesta má fé as mesmas, não as tendo devolvido e inutilizado conforme era sua obrigação após o pagamento efectuado.
19º - No âmbito da conclusão daquelas relações comerciais, a CC Lda. não se encontrava autorizada pela CC Lda. A apropriar-se, preencher e utilizar com terceiros as letras aqui apresentadas em execução, (…)
22º- A Oponente / executada AA Lda. nada deve ou devia à co - executada CC Lda. que justifique ou justificasse a aquisição e utilização ilícita que esta fez das referidas letras, através do preenchimento, manipulação e utilização com a oponida BB S.A.
29º- O aceite, ao ter sido igualmente prestado em branco para única e exclusiva garantia de concretização de um negócio que se concluiu com a entrega e pagamento dos veículos, revela que era do completo desconhecimento a AA Lda. Lda. que a CC Lda. Iria apropriar-se, preencher, manipular e utilizar para com terceiros aqueles documentos, cujos elementos constitutivos da obrigação igualmente desconhecia por não serem minimamente devidos e justificados».
Como dito, é uma evidência que, em momento algum do seu articulado a ora Recorrente alega factos que consubstanciem aquilo que agora vem afirmar nas suas alegações de recurso: que a Exequente BB, tinha conhecimento da alegada obtenção ilícita das letras por parte da co-executada e do alegado preenchimento abusivo das mesmas.
Ora, nos termos do artigo 5.º, n.º 1, do CPC, às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e, no caso, aqueles em que baseiam as exceções invocadas, porquanto nos termos do n.º 2 do mesmo preceito, para além destes, apenas podem ser considerados pelo juiz os factos instrumentais que resultem da instrução da causa, e os factos que sejam complemento ou concretização daqueles que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, e quanto a estes, apenas desde que as partes tenham tido a oportunidade de se pronunciar sobre eles. Ou seja, da correlação entre estes dois números do preceito, extrai-se que as partes estão oneradas com a invocação dos factos essenciais à procedência da acção ou da excepção, incumbindo-lhes alegar os factos concretos em que assentam a sua pretensão ou a sua defesa, com a efectiva identificação e concretização da causa de pedir a qual é constituída pelo conjunto de factos em que se consubstancia a relação material controvertida, pois só estes podem ser conhecidos pelo tribunal e são subsumíveis às regras de direito.
De facto, a indicação da causa de pedir, prevista no artigo 186.º, n.º 2, alínea a), do CPC, “é feita através da alegação de factos da relação material que, integrando a fatispécie da norma pertinente, permitem a sua identificação, assim se respeitando a substanciação imposta pela nossa lei adjectiva”. Assim, “a causa de pedir da acção é fixada por referência ao instituto jurídico pertinente, sendo este individualizado através da conjugação dos dois elementos fundamentais do pedido formulado pelo autor (art. 3.º, n.º 1): o pedido propriamente dito, e os fundamentos de facto invocados”. Deste modo, sendo a causa de pedir “o conjunto de factos ocorridos essenciais à procedência da acção” pode acontecer que não tenham “ocorrido (na relação material) todos os factos que a norma elege como requisitos do nascimento do direito invocado. Neste caso, a causa de pedir não sustenta o pedido. A acção improcede ainda que o autor alegue e prove exaustivamente todos os factos da causa de pedir – aqui se inserem os casos de inconcludência ou de manifesta improcedência (art. 590.º, n.º 1)”.
“Pode também suceder que todos os factos exigidos pela norma substantiva tenham ocorrido, mas que o autor não os tenha alegado (al. D) do n.º 1 do art. 552.º): na narração que faz da relação material, por incompetência sua – ou do seu mandatário -, omite factos que, na economia da demanda por si desenhada, servem de fundamento ao pedido formulado”. Neste caso, pode haver lugar ao aperfeiçoamento da articulação. Mas, “se este não tiver lugar, a acção improcede, não porque ao autor não assista o direito, mas porque fracassou na alegação dos factos que o revelam e que integram essa causa de pedir”.
Porém, se é certo que a narração dos factos essenciais pode ser completada, não é menos certo que “embora a narração feita no articulado inicial não seja forçosamente definitiva, ela é determinante, pois, através da identificação da causa de pedir que oferece, ela ancora o objecto da instância, apenas permitindo a alegação de novos factos essenciais que respeitem à causa de pedir identificada, embora não exaustivamente descrita”[6].
Ora, no caso dos autos, como vimos supra, a forma como o ora Recorrente conformou a relação material controvertida não permite em momento algum identificar a causa de pedir que agora tenta modificar e adaptar nas alegações de recurso porquanto todo o requerimento inicial foi desenhado por referência às relações imediatas entre os co-executados, não permitindo, portanto, em qualquer vertente de análise, enquadrar o «aperfeiçoamento» do articulado quanto à exequente, isto porque todos os factos alegados se referem a diferente relação jurídica. Assim, admitir-se o que a Recorrente agora pretende, seria admitir uma alteração da causa de pedir, à qual se opõe o princípio da estabilidade da instância previsto no artigo 260.º do CPC, de acordo com o qual, a instância deve manter-se a mesma, designadamente quanto à causa de pedir, que só pode ser alterada por acordo, nos termos do artigo 264.º do CPC, ou na falta de acordo, na situação regulada no artigo 265.º do CPC, situações que não se verificam nos presentes autos.
Invoca ainda a Recorrente que «não tem qualquer justificação legal ou contratual a aquisição e utilização agora efectuada das letras apresentadas em execução por parte da oponida BB S.A. as quais se revelam ser efectuadas com manifesta má fé, bem como os valores e dizeres inscritos nas duas letras em execução; e que de facto e de direito nada justifica os valores e os dizeres ali inscritos, consubstanciados na aquisição com manifesta má fé daquelas letras e no preenchimento abusivo e não autorizado das mesmas nesta execução».
Mas não é assim.
Efectivamente, no requerimento executivo, a Exequente e ora Recorrida invocou logo no artigo 1.º que «é dona e legítima portadora de duas letras, que foram descontadas à sociedade “CC, Ld.ª”, identificando as operações informáticas constantes nos referidos títulos, e invocando que nas datas do vencimento o valor representado nos títulos não lhe foi pago por nenhuma das sociedades executadas.
Portanto, a Exequente invocou a causa: o desconto bancário.
Ora, o contrato de desconto bancário é uma modalidade de financiamento em que o Banco adianta o valor de uma letra sacada pelo seu cliente sobre alguém a quem aceitou uma letra a prazo certo, permitindo por esta via que o cliente não tenha que esperar por tal prazo para obter o montante titulado pela letra, recebendo antecipadamente o valor do seu crédito, “descontado” do valor da comissão cobrada pelo Banco e do juro correspondente ao tempo que medeia entre a colocação à disposição do cliente da quantia adiantada pelo Banco e a data do vencimento da letra[7].
Assim, para que o desconto possa ser executado, a letra é endossada pelo cliente ao Banco “descontador” que por esta operação assume a qualidade de portador endossatário, e, chegada a data do vencimento da letra, o Banco apresenta-a a pagamento ao aceitante. Porém, caso este não efectue o pagamento devido, então o Banco debita o seu valor na conta do seu cliente “descontário”, atenta a sua qualidade de endossante, ou procede à sua cobrança judicial contra ambos ou contra qualquer um deles[8].
Efectivamente, do ponto de vista jurídico, o desconto é um contrato misto de mútuo mercantil (artigos 1142.º do Código Civil, 2.º e 13.º do Código Comercial) e de dação pro solvendo (artigo 840.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil), tendo em conta que, de acordo com o perfil económico do negócio, o Banco descontador, ao adiantar (emprestar) a quantia descontada, fica investido, por causa do endosso, na posse legítima de um título de crédito sobre terceiro, sem perder, porém, o direito de acção sobre o próprio descontário[9].
Por isso, no caso dos autos, o Banco ora Autor decidiu instaurar execução contra a ora Executada, sua aceitante, e CC, Ld.ª, na qualidade de sacadora, tendo como títulos executivos as referidas letras de câmbio que cumprem os requisitos de conteúdo assinalados no artigo 1.º da Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças[10]. O mesmo é dizer que o Banco Autor pretendeu cobrar o valor do financiamento de qualquer um dos obrigados cambiários, usando para o efeito a acção cambiária, a relação cartular.
De facto, a letra integra-se na categoria dos títulos de crédito, sendo um documento com uma função constitutiva, necessário para exercitar o direito literal e autónomo nele mencionado. Tem, portanto, uma posição característica e única em face do direito a que se refere: dir-se-á que é a titularidade do documento que decide da titularidade do direito nele mencionado; o documento é o principal, sendo o direito seu acessório. Por isso se fala da incorporação da obrigação no título e se designa o direito referido no título como “direito cartular”[11].
O direito cartular pressupõe uma relação jurídica prévia – a relação subjacente ou fundamental - e tem normalmente o mesmo conteúdo económico de um dos direitos que decorrem dessa relação jurídica.
Porém, “o título de crédito em confronto com a relação fundamental apresenta-se com uma feição unilateral: refere-se exclusivamente aos direitos de uma só das partes. A razão de ser desta feição unilateral alcança-se facilmente se tivermos presente que o título de crédito é um instrumento para a circulação de direitos; para a circulação do direito de uma das partes num contrato bilateral, é esse direito considerado isoladamente dos direitos da parte contrária”[12].
Por isso se afirma que, para além da referida característica da incorporação, os títulos de crédito se revestem das características da literalidade, autonomia e abstracção.
De facto, o direito incorporado no título é um direito literal, porquanto a letra do documento traduz o direito que o mesmo incorpora, pela mesma se determinando o conteúdo e extensão do direito que contém. “Pelo conceito de literalidade põe-se em relevo que a existência, validade e persistência da obrigação cambiária não podem ser contestadas com o auxílio de elementos estranhos ao título; e que o conteúdo, extensão e modalidades da obrigação cartular são os que a declaração objectivamente defina e revele”[13].
É ainda um direito autónomo e abstracto, significando isso que o possuidor do título adquire o direito que este anuncia de um modo originário, não lhe sendo oponíveis os vícios que porventura existissem numa titularidade anterior; a relação subjacente, a causa ou relação fundamental que em regra é concomitante da convenção executiva, é separada do negócio cambiário porquanto decorre não dele próprio mas da convenção extra-cartular. Daí que, estando a causa fora da obrigação cambiária (abstracção), esta seja vinculante para os obrigados cambiários independentemente dos possíveis vícios da sua causa e por isso se tornem inoponíveis ao portador mediato e de boa fé as excepções causais: falta, nulidade ou ilicitude da relação fundamental, exceptio inadimpleti contractus, etc., porque decorrem de uma convenção extra-cartular, exterior ao negócio cambiário[14].
Serve o precedente enquadramento para definir o terreno em que nos movemos e afirmar que a extensão e a qualidade da especial tutela de que gozam os títulos de crédito no confronto com a função normal de outro documento, assenta no propósito legal de os tornar instrumentos adequados a facilitar e incentivar a circulação dos próprios créditos, tutelando desta forma os interesses de terceiros de boa fé que, por via da natural circulação dos mesmos, os venham a adquirir.
Ora, a letra é um título de crédito formal com as características previstas no referido artigo 1.º, da LULL. Trata-se de um título à ordem, sujeito às formalidades ínsitas no referido preceito legal, que enuncia uma ordem de pagamento de determinada importância em certa data[15]. “A obrigação inicial é a do emitente do título – o sacador, e surge com a sua declaração cambiária na forma de uma ordem de pagamento. O sacador dá uma ordem de pagamento, e por este simples facto promete ao tomador (e aos sucessivos possuidores da letra) que fará com que o sacado assuma a responsabilidade cambiária do pagamento (aceite) e pague a letra, e por isso obriga-se a pagá-la ele, sacador, se o sacado a não aceitar, ou se, aceitando-a, não a saldar. A obrigação do sacador, embora seja a inicial, é, pois, uma simples obrigação de garantia”[16].
Volvendo ao caso dos autos, conforme decorre da factualidade supra e resulta manifesto quer do exame dos títulos quer do próprio conteúdo do requerimento inicial, a administração da executada AA, S.A. apôs o seu nome, o carimbo da sociedade, assinou pelo seu punho transversalmente o rosto de cada uma das letras no local destinado ao aceite, e entregou as letras à sacadora CC, Ld.ª. Por seu turno, resulta ainda da simples análise dos títulos, que esta também apôs o carimbo da sociedade e assinou horizontalmente o rosto das duas letras no espaço destinado para tal, assim procedendo ao seu saque.
Portanto, das letras decorre que a ora Exequente assumiu a responsabilidade cambiária do pagamento da quantia pelas mesmas titulada, e a co-executada assumiu a obrigação de garantir tal pagamento, caso aquela o não efectuasse pontualmente.
Alega a Recorrente neste recurso que o Mmº. Juiz não podia «dar como provado e assente que: "Através de desconto perante a BB, S.A. que lhe entregou as quantias tituladas pelas letras" quando na realidade não ficou provado em momento algum naqueles autos que aquelas letras tivesse sido apresentadas a desconto e que a C.G.D. S.A. tivesse pago a quem quer que fosse as quantias ali feitas inscrever de forma ilícita».
Porém, basta novamente atentar no requerimento inicial para vermos que logo no artigo 1.º a mesma afirma ter tomado conhecimento que no requerimento executivo «constam duas letras que foram descontadas à co-executada CC». Portanto, no requerimento inicial a embargante e ora recorrente claramente aceita que as duas letras foram «descontadas». Assim, o que consta provado é o facto consubstanciador do contrato de desconto já supra referido: que a BB, S.A., entregou à descontária as quantias tituladas pelas letras.
Finalmente, diz a recorrente que não podia dar-se como provado e assente o "não pagamento pelos executados da quantia de 9.452,65€, relativa ao valor correspondente a duas letras, de que exequente é portadora e legítima possuidora", quando a recorrente impugnou especificada e claramente na sua oposição a posse e o modo como a BB S.A. adquiriu e utilizou os mesmos». Porém, como vimos, não só a executada apenas impugnou de facto o modo como a co-executada adquiriu e utilizou as letras, como em momento algum do seu articulado - peça em que expôs os fundamentos da defesa -, invocou ter efectuado o pagamento. Antes pelo contrário, diz que nada deve e não tem que pagar.
Ora, resultando da matéria de facto e da simples análise das letras que a sacadora “CC, Ld.ª assinou o verso de cada uma das letras apondo o respectivo carimbo, e entregou-as à Exequente com a menção “pague-se à ordem de BB”, e não tendo o pagamento sido efectuado nem na data do respectivo vencimento, nem posteriormente, quer pela aceitante, como esta admite, quer pela sacadora, a obrigação cambiária não se extinguiu.
Na verdade, com a operação de desconto não se extingue a relação cambiária decorrente da letra, nem com esta se extingue a proveniente daquele porquanto o Banco, enquanto descontador das letras, além de credor cambiário, é também credor comum do descontário, podendo inclusivamente invocar como causa de pedir em acção declarativa o empréstimo decorrente da operação de desconto, que não possa eventualmente invocar por via da obrigação cambiária[17].
Efectivamente, “a coexistência das duas obrigações nem envolve absurdo nem importa prejuízo para o devedor, pois essas obrigações não lhe podem ser simultaneamente exigidas, visto que o credor, ao aceitar a dação, ficou por isso mesmo vinculado a procurar primeiro satisfazer-se mediante a cobrança do crédito que lhe foi entregue, só podendo reverter à acção ex causa depois de ter tentado, em vão, obter o cumprimento da prestação cartular”[18].
Concluindo, o facto de o preenchimento das letras não ter provindo do punho da embargante, que apenas as assinaram, não afecta, por si só, a eficácia do título cambiário (artigos 10.º e 17.º da LULL, primeira parte). O que as poderia afectar, no caso dos autos, era a prova pela embargante de factos que permitissem concluir que a exequente, a quem as mesmas foram endossadas, adquiriu as letras de má fé, ou que, adquirindo-as, cometeu uma falta grave (artigo 10.º da LULL segunda parte), ou finalmente que ao adquirir a letra tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor (artigo 17.º da LULL, segunda parte).
De facto, ao contrário do que parece entender a recorrente, não é ao embargado, portador das letras, que compete demonstrar que a quantia exequenda respeita o acordo que esteve na base do preenchimento das mesmas nos moldes em que foram dadas à execução. Ao invés, tal ónus de alegação e prova impende antes sobre o embargante[19].
Como vimos, na oposição deduzida a executada não alegou e consequentemente não poderia nunca provar, quaisquer factos de onde decorresse alguma das apontadas situações, daí ter sido possível proferir, sem mais prova, decisão de mérito.
Efectivamente, não tendo a embargante cumprido o ónus de alegação que sobre a mesma impendia, nos termos previstos mo artigo 5.º, n.º 1, do CPC, não poderia nunca cumprir o ónus da prova da verificação de alguma das sobreditas excepções, que cabe aos obrigados cambiários, enquanto facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito emergente do título de crédito, nos termos do artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil.
Consequentemente, permanecem válidos e eficazes as obrigações cambiárias assumidas pela aceitante das letras, já que, ao contrário do afirmado, os factos comprovam que as letras dadas à execução continham todos os elementos essenciais para poder valer como tal, não podendo concluir-se que as mesmas padecem de um qualquer vício de forma[20].
Ora, «geralmente quem assina uma letra e assume a respectiva obrigação cambiária, não o faz senão porque está já vinculado por efeito duma relação jurídica anterior. Esta é a obrigação causal ou subjacente, também chamada contrato originário ou relação jurídica fundamental. (…) Note-se, no entanto, que tudo se passa como se tal obrigação não existisse, tudo se passa como se a obrigação cambiária fosse uma obrigação sem causa. (…) O devedor, aceitante, deve o montante da letra, porque apôs nela a sua assinatura, e não porque o sacador estivesse adstrito a entregar-lhe, por exemplo, alguma mercadoria»[21].
Nestes termos, considerando que quem aceita uma letra contrai uma obrigação cambiária, o sabido carácter literal e autónomo das letras produz integralmente os seus efeitos, porquanto os princípios da literalidade, abstracção e autonomia, só deixam de funcionar quando o portador endossado tenha conhecimento designadamente de que não existia nenhuma obrigação causal, situação que, como vimos, não foi sequer oportunamente alegada pela embargante.
De facto, mesmo «o simples conhecimento, no momento da sua aquisição, pelo portador mediato de uma letra, das excepções que o aceitante poderia opor ao sacador não basta para caracterizar procedimento consciente em detrimento do devedor, para efeitos do artigo 17.º da Lei Uniforme, tornando-se ainda necessário articular e provar factos que denunciam um comportamento consciente desse detrimento»[22], que, como sobredito, não foram sequer articulados.
Pelo exposto, improcedem ou mostram-se deslocadas todas as conclusões do recurso, sendo consequentemente de manter a decisão recorrida que procedeu a um correcto enquadramento das questões colocadas.
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III.3. Síntese conclusiva:
I - O julgamento de mérito ou de fundo no despacho saneador só pode ocorrer quando o processo fornece já os elementos suficientes para que o litígio em causa possa ser decidido com segurança, ou seja, quando não existe prova a produzir quanto a factos essenciais para a decisão da causa.
II - Os recursos destinam-se a reapreciar questões colocadas ao tribunal recorrido, e não questões novas, sobretudo factos novos, como acontece no caso dos autos em que a recorrente diz nas alegações o que não alegou no requerimento inicial, já que, em momento algum do seu articulado a ora Recorrente alegou factos que consubstanciem aquilo que agora vem afirmar nas suas alegações de recurso: que a Exequente BB, tinha conhecimento da alegada obtenção ilícita das letras por parte da co-executada e do alegado preenchimento abusivo das mesmas.
III - As partes estão oneradas com a invocação dos factos essenciais à procedência da acção ou da excepção, incumbindo-lhes alegar os factos concretos em que assentam a sua pretensão ou a sua defesa, com a efectiva identificação e concretização da causa de pedir a qual é constituída pelo conjunto de factos em que se consubstancia a relação material controvertida, pois só estes e os previstos no n.º 2 do artigo 5.º do CPC, podem ser conhecidos pelo tribunal e são subsumíveis às regras de direito.
IV - No caso dos autos, a forma como o ora Recorrente conformou a relação material controvertida não permite em momento algum identificar a causa de pedir que agora tenta modificar e adaptar nas alegações de recurso porquanto todo o requerimento inicial foi desenhado por referência às relações imediatas entre os co-executados, não permitindo, portanto, em qualquer vertente de análise, enquadrar o «aperfeiçoamento» do articulado quanto à exequente, isto porque todos os factos alegados se referem a diferente relação jurídica.
V - Assim, admitir-se o que a Recorrente agora pretende, seria admitir uma alteração da causa de pedir, à qual se opõe o princípio da estabilidade da instância previsto no artigo 260.º do CPC, de acordo com o qual, a instância deve manter-se a mesma, designadamente quanto à causa de pedir, que só pode ser alterada por acordo, nos termos do artigo 264.º do CPC, ou na falta de acordo na situação regulada no artigo 265.º do CPC, situações que não se verificam nos presentes autos.
VI - O contrato de desconto bancário é uma modalidade de financiamento em que o Banco adianta o valor de uma letra sacada pelo seu cliente sobre alguém a quem aceitou uma letra a prazo certo, permitindo por esta via que o cliente não tenha que esperar por tal prazo para obter o montante titulado pela letra, recebendo antecipadamente o valor do seu crédito, “descontado” do valor da comissão cobrada pelo Banco e do juro correspondente ao tempo que medeia entre a colocação à disposição do cliente da quantia adiantada pelo Banco e a data do vencimento da letra.
VII - Com a operação de desconto não se extingue a relação cambiária decorrente da letra, nem com esta se extingue a proveniente daquele, porquanto o Banco, enquanto descontador das letras, além de credor cambiário, é também credor comum do descontário, podendo inclusivamente invocar como causa de pedir em acção declarativa o empréstimo decorrente da operação de desconto, que não possa eventualmente invocar por via da obrigação cambiária.
VIII - Considerando que quem aceita uma letra contrai uma obrigação cambiária, o sabido carácter literal e autónomo das letras produz integralmente os seus efeitos, porquanto os princípios da literalidade, abstracção e autonomia, só deixam de funcionar quando o portador endossado tenha conhecimento designadamente de que não existia nenhuma obrigação causal, situação que não foi sequer oportunamente alegada pela embargante.
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IV - Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso de apelação, mantendo-se o despacho saneador-sentença recorrido.
Custas pela recorrente.
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Évora, 30 de Junho de 2016


Albertina Pedroso [23]


Elisabete Valente


Bernardo Domingos







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[1] Distribuído à ora Relatora em 01-06-2016.
[2] Loulé - Instância Central - 1ª Secção de Execução - J1
[3] Relatora: Albertina Pedroso;
1.º Adjunto: Elisabete Valente;
2.º Adjunto: Bernardo Domingos.

[4] Doravante abreviadamente designado CPC, na redacção do DL n.º 41/2013, de 26 de Junho.
[5] Cuja junção aos presentes autos foi determinada pela ora Relatora ao abrigo do disposto no artigo 652.º, n.º 1, alínea d), do CPC.
[6] Cfr. Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, in Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Os Artigos da Reforma, Almedina 2014, vol. I, 2.ª edição, págs. 37 a 39.
[7] Cfr. neste sentido, Ac. STJ de 16-06-2009, Revista n.º 5108/06.6TBMTS-A.S1 - 6.ª Secção, disponível em www.stj.pt, Sumários de Acórdãos.
[8] Cfr. neste sentido, Pedro Pais de Vasconcelos, in Direito Comercial, Vol. I, Almedina 2011, págs. 224 e 225 e Ac. STJ de 23-09-1999, Revista n.º 535/99 - 7.ª Secção, disponível em www.stj.pt, Sumários de Acórdãos.
[9] Cfr. Ac. STJ de 06-05-1999, Revista n.º 354/99 - 2.ª Secção, disponível em www.stj.pt, Sumários de Acórdãos.
[10] Doravante abreviadamente designada LULL, resultante das Convenções de Genebra de 7 de Junho de 1930, aprovadas pelo Decreto n.º 23721, de 29 de Março de 1934 e publicadas em 21 de Junho, as quais estão em vigor como direito interno português desde 8 de Setembro do mesmo ano, conforme declarado no Decreto 26556, de 30 de Abril de 1936, publicado na sequência de dúvidas que então se suscitaram sobre a respectiva vigência.
[11] Cfr. Ferrer Correia, in Lições de Direito Comercial, Letra de Câmbio, vol. III, Universidade de Coimbra, 1966, págs. 3 a 5, 38 e 39.
[12] Cfr. Ferrer Correia, obra citada, pág. 8.
[13] Cfr. Ferrer Correia, obra citada, pág. 40.
[14] Cfr. Ferrer Correia, obra citada, págs. 47, 48 e 65.
[15] Cfr. Abel Delgado, in Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, Anotada, 6.ª Edição, Livraria Petrony, Lisboa 1990, pág. 17.
[16] Cfr. Ferrer Correia, obra citada, pág. 20.
[17] Cfr. Ac. STJ de 24-01-1984, in BMJ 333, pág. 485.
[18] Cfr. Ac. STJ de 06-07-2004, junto aos autos e com sumário disponível em www.stj.pt, citando Fernando Olavo, in Desconto Bancário, págs. 242 e 254, e o Pinto Furtado, in Obrigação Cartular e Desconto Bancário, pág. 173.
[19] Cfr. Acórdão do STJ de 27-01-2011, Processo n.º 15-A/2001.L1.S1 - 2.ª Secção, disponível em sumários de acórdãos www.stj.pt.
[20] Cfr. Acórdão do STJ de 29-10-2013, Processo n.º 2923/10.0T2AGD-A.C1.S1 - 7.ª Secção, disponível em www.stj.pt, Sumários de Acórdãos.
[21] Cfr. Abel Delgado, ob. cit., págs. 105 e 106.
[22] Cfr. Acórdão do STJ de 12-10-78, citado por Abel Delgado, pág. 107.
[23] Texto elaborado e revisto pela Relatora.