Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1039/11.6TBEVR.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
REVOGAÇÃO
CULPA GRAVE
Data do Acordão: 07/14/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 – Existe a obrigação de entrega imediata ao fiduciário de qualquer quantia recebida que integre rendimentos objecto de cessão, por impulso do insolvente e sem necessidade de intervenção directora do Tribunal ou do administrador judicial nomeado para fase de exoneração do passivo restantes.
2 – A cessação antecipada do instituto da exoneração do passivo restante ou a recusa de exoneração exige a verificação de dois pressupostos: a reiterada existência de negligência grave ou dolo das suas obrigações e desse facto resultar prejuízo efectivo para a satisfação dos créditos.
3 – O mero incumprimento da entrega de quantias ao fiduciário, por banda do devedor, sem que se apure que o mesmo tenha sido doloso ou cometido com grave negligência e que tenha causado prejuízo aos credores, não poderá sem mais conduzir à cessação antecipada da cessão de créditos.
4 – O instituto da exoneração do passivo restante não pode configurar «um instrumento oportunística e habilidosamente empregue unicamente com o objectivo de se libertarem os devedores de avultadas dívidas».
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1039/11.6TBEVR.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Évora – Juízo Local de Competência Cível de Évora – J2
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Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório:
(…) e (…) foram declarados insolventes e requereram o procedimento de exoneração do passivo restante. Não se conformando com o teor da decisão final de exoneração, os insolventes vieram interpor o competente recurso.

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Os insolventes (…) e (…) formularam o pedido de exoneração do passivo restante.
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Por despacho proferido em 09/11/2011, foi decidido que, para os efeitos do disposto no nºs 2 e 3 do artigo 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, ponderando os rendimentos e as despesas dos requerentes, determinou-se que fosse excluído do rendimento disponível dos insolventes o valor equivalente a dois salários mínimos nacionais. *
Interposto recurso de tal despacho, o Tribunal da Relação de Évora julgou improcedente a pretensão, confirmando a decisão recorrida.
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Após rateio, por despacho datado de 09/11/2015, foi declarado encerrado o processo de insolvência, sem prejuízo do prosseguimento do incidente de exoneração do passivo restante.
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O administrador da insolvência concluiu que, após o rateio final, permanecia em dívida aos credores o montante de € 129.078,12.
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Os insolventes requereram a alteração do montante mensal dispensado de entrega ao fiduciário.
Este pedido foi desatendido pelo despacho de 30/03/2016, que decidiu que: «considera-se adequado proceder a uma atualização da quota indisponível, atento o aumento do salário mínimo nacional. Como tal, uma vez que o mesmo ascende, atualmente, a € 505,00, deverão os Insolventes entregar, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do presente processo de insolvência, o rendimento disponível que venham a auferir, e ressalvado o recebimento pelos mesmos do montante de € 1.010,00».
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O fiduciário apresentou, em 06/01/2020, o competente relatório respeitante ao 4º ano da cessão de rendimentos e do mesmo resulta que, quanto a todos os anos, foi omitida a entrega de montantes abrangidos pela cessão de rendimentos.
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Em 06/02/2020 foi determinada a notificação dos insolventes para, no prazo de 10 dias, apresentarem ao fiduciário um plano de pagamentos das quantias em falta.
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Em 17/02/2020, através de requerimento, os insolventes informaram que pretendiam «repor o valor em falta na fidúcia até novembro de 2020, tendo para o efeito diligenciado junto do Sr. Fiduciário».
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Em 06/01/2021, o fiduciário veio informar que, no decurso dos cincos anos do período da cessão de rendimentos, os insolventes devem à fidúcia um montante de cerca de € 50.000,00, conforme discriminado naquele requerimento.
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Os credores “(…), SA”, “Banco (…) Portugal, SA” e (…) opuseram-se à pretendida concessão da exoneração do passivo restante, em função da existência da aludida dívida à fidúcia.
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No decurso do período da cessão de rendimentos, os insolventes entregaram ao fiduciário o montante total de € 38.309,12.
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Em função destes dados, em 01/03/2021, o Juízo Local de Competência Cível de Évora, após se ter socorrido de diversa jurisprudência de apoio e enunciado as normas legais aplicáveis, lavrou a seguinte decisão: «salienta-se que os insolventes deixaram de entregar ao fiduciário, no período da cessão de rendimentos, a elevada quantia de cerca de € 50.000,00, causando com tal conduta um manifesto prejuízo para os seus credores.
Por outro lado, quando advertidos para a existência da referida dívida, propuseram o seu pagamento até novembro de 2020, o que, mais uma vez, incumpriram, sem adiantar uma justificação concreta para tal conduta.
Constata-se, pois, que os insolventes, pelo menos, com grave negligência, incumpriram a apontada obrigação de entrega ao fiduciário, causando, com tal conduta, graves prejuízos para os seus credores, no montante global de cerca de € 50.000,00. Face ao exposto, ao abrigo do disposto no artigo 244.º, n.º 2, do CIRE, decide-se recusar aos insolventes a requerida exoneração do passivo restante».
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Os insolventes não se conformaram com a referida decisão e as suas alegações contenham as seguintes conclusões:
«A. Com o presente recurso impugna-se a decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Évora de recusa de concessão da exoneração do passivo restante peticionada pelos aqui Recorrentes.

B. A decisão em crise, decretada já depois de decorrido o período de cessão do rendimento disponível (60 meses) baseou-se na violação do artigo 243.º, n.º 1, do C.I.R.E, e que remete para as obrigações contempladas no artigo 239.º do C.I.R.E, nomeadamente, neste caso no facto dos insolventes terem entregue apenas parte do seu rendimento disponível.

C. Ocorre que a decisão padece dos seguintes vícios:

• a fundamentação encontrada pelo Tribunal a quo para demonstrar a verificação de um dos pressupostos legalmente exigíveis (existência de dolo ou negligência grave no comportamento dos insolventes) é errada e insuficiente, assenta no facto de não terem requerido a dispensa de cessão de valores durante os meses de cessão, desconsiderando, ao invés, o facto dos insolventes terem no inicio do período de cessão requerido a alteração do valor de cessão por nítida impossibilidade de cumprimento da decisão que havia sido fixada;

• desconsidera o facto de os credores terem sido ano após ano notificados dos relatórios do Sr. Fiduciário que reportavam uma diferença entre o rendimento a ceder e o cedido, e nada terem feito até ao inicio do último ano de cessão, contribuindo com essa inércia para que decorressem 60 meses, os insolventes tivessem entregue quase € 40.000,00 nesse período e criado expectativas de ser diferida a exoneração do passivo restante e no fim vêm o seu pedido recusado;

D. Para além disso, a decisão de recusa não teve em consideração a natureza dispositiva do incidente de exoneração do passivo restante, foi muito para além do que foi levado aos Autos, já que os credores limitaram-se, quando se pronunciaram para efeitos do artigo 244.º do C.I.R.E, já depois de terminado o período de cessão, a invocar o incumprimento da entrega de parte de valores na fidúcia, nada mais requerendo ou levando aos Autos que não esse argumento.

E. Finalmente, a decisão não respeitou aquilo que é o entendimento da maioria dos Tribunais Superiores (Supremos Tribunal de Justiça inclusive como é o caso da decisão no processo 279/13.8TBPCV.C1.S2 da Relatora Ana Paula Boularot de 09/04/19).

F. Em face do exposto, os Apelantes entendem que as alegações que aqui se juntam devem ser procedentes com as seguintes consequência: anulação da decisão que indeferiu a exoneração do passivo restante por não estarem verificados os pressupostos da a sua recusa e substituição por outro que profira decisão de concessão da exoneração do passivo restante».

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Não houve lugar a resposta.
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Admitido o recurso, foram observados os vistos legais. *
II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Analisadas as conclusões das alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito a apurar se se deve considerar extinto o período de cessão de rendimentos.
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III – Factos com interesse para a decisão da causa:
A factualidade com interesse para a justa resolução do caso encontra-se descrita no relatório inicial do presente acórdão.
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IV – Fundamentação:
4.1 – Considerações gerais sobre a exoneração do passivo e a questão concreta da data de início do período de cessão:
Como se pode ler no preâmbulo do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, no que respeita aos insolventes singulares, procura-se conjugar de «forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica».
A exoneração do passivo restante constitui uma novidade do nosso ordenamento jurídico, inspirada no direito alemão (Restschuldbefreiung), determinada pela necessidade de conferir aos devedores pessoas singulares uma oportunidade de começar de novo[1]. Este instituto é igualmente tributário da Discharge da lei norte-americana (Bankruptcy Code).
O procedimento de exoneração do passivo restante encontra assento nos artigos 235.º a 248.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, com particular enfoque no regime substantivo do instituto da cessão do rendimento disponível provisionado no artigo 239.º[2] do diploma em análise.
Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste (artigo 235.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas).
A exoneração do passivo restante traduz-se na liberação definitiva do devedor quanto ao passivo que não seja integralmente pago no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento das condições fixadas no incidente. Daí falar-se de passivo restante. Excepciona-se, contudo, as dívidas abrangidas pela estatuição do n.º 2 do artigo 245.º[3] [4].
Estamos confrontados com dois interesses conflituantes, por um lado, a subsistência dos insolventes e, por outro, a finalidade primária do processo de insolvência que consiste no pagamento dos credores, à custa dos bens e dos rendimentos que deveriam ser canalizados para a massa insolvente.
Cumpre assinalar que, da leitura do n.º 2 do artigo 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o prazo é fixo, não dependendo, portanto, do prudente arbítrio do juiz. Como sublinham Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, a razão de ser deste regime reside em o prazo, sendo manifestamente estabelecido em benefício dos credores, constituir o período que o legislador entendeu adequado para lhes assegurar uma razoável satisfação dos seus créditos[5].
Para além das obras genéricas relacionadas com o direito da insolvência, sobre a problemática específica da exoneração do passivo restante podem consultar-se as posições de Luís Carvalho Fernandes[6] [7], Catarina Serra[8] [9], Adelaide Menezes Leitão[10] [11], Ana Filipa Conceição[12] [13], Alexandre Soveral Martins[14], Catarina Frade[15], Cláudia Oliveira Martins[16], Francisco de Siqueira Muniz[17], Gonçalo Gama Lobo[18] [19], José Gonçalves Ferreira[20], Mafalda Bravo Correia[21], Maria Assunção Cristas[22], Maria do Rosário Epifânio[23], Paulo Mota Pinto[24] e Pedro Pidwell[25].
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4.2 – Da recusa de exoneração da cessão de rendimentos:

É indiscutível que a violação da obrigação de entrega de rendimentos seria susceptível de integrar abstractamente a situação de recusa da concessão da exoneração do passivo restante estabelecida nos artigos 243.º, n.º 1, alínea a)[26] e 244.º, n.º 2[27] verificados os demais requisitos ali expressos e poderia até justificar a revogação da exoneração concedida face ao provisionado no n.º 1 do artigo 246.º[28] todos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

Os recorrentes invocam que os relatórios reportavam uma diferença entre o rendimento a ceder e o cedido e entendem que, ao nada ter sido feito pelos credores e pelo fiduciário, essa inércia contribuiu para que os insolventes não tivessem entregue a totalidade da quantia prevista, criando assim expectativas de ser diferida a exoneração do passivo restante.

Em situação que entronca com a presente hipótese jurisdicional já escrevemos noutro acórdão proferido pelo mesmo colectivo de Juízes Desembargadores que «o eventual incumprimento da obrigação de entrega dos montantes que ultrapassem o salário mínimo mensal apenas pode ser imputado na esfera jurídica dos insolventes. Na realidade, os insolventes estão vinculados a um dever de informação, mostravam-se representados por mandatário forense – mesmo que esta relação tivesse sido interrompida ou que existissem dificuldades de comunicação com o advogado ou com o fiduciário – que, em caso de dúvida, deveria accionar os meios processuais adequados em ordem a perfectibilizar a ordem judicial prévia.
Não está demonstrado nos autos que existisse qualquer erro ou omissão do fiduciário e a obrigação é de depósito e não de mera comunicação de rendimentos»[29] [30].
Assim, o eventual incumprimento da obrigação de entrega dos montantes que ultrapassassem o montante disponível apenas pode ser imputado na esfera jurídica dos insolventes e os mesmos, através do patrocínio, em caso de dúvida, deveriam accionar os meios processuais adequados em ordem a perfectibilizar a ordem judicial prévia.

Se os insolventes tivessem imediatamente cedido o rendimento disponível segundo o decidido inicialmente seria razoável realizar uma interpretação que viabilizasse o entendimento perfilhado pelos recorrentes. De outro modo, não se verifica essa hipótese,
Contudo, aquilo que nitidamente transparece é que, não obstante o teor das decisões judiciais proferidas sobre este tema, os insolventes nunca se desviaram da intenção de não entregar mais do que determinada verba, ignorando tudo aquilo que se mostrava processualmente consolidado.
Assim, com base neste argumento não assiste razão aos recorrentes.
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Os recorrentes rejeitam ainda a fundamentação do Tribunal «a quo» para demonstrar a existência de dolo ou negligência grave no comportamento dos insolventes, que reputam de errada e insuficiente.
Os sujeitos processuais recorrentes entendem que foi desconsiderado que, no inicio do período de cessão, requereram a alteração do valor de cessão por nítida impossibilidade de cumprimento da decisão que havia sido fixada.
Todavia, neste particular ponto, como já atrás se aflorou, a questão está abrangida pelo efeito do caso julgado da decisão tomada pelo acima referenciado acórdão do Tribunal da Relação de Évora, que fixou o rendimento disponível. E, neste domínio, caso existissem circunstâncias supervenientes relativamente à situação económica e necessidades do agregado familiar, as mesmas nunca foram comunicadas ao decisor e não foi impulsionada qualquer nova pretensão de alteração do montante disponível.
Em acréscimo, na óptica dos insolventes, a recusa de exoneração do passivo assenta exactamente no facto de não terem requerido a dispensa de cessão de valores durante os meses de cessão. Todavia, este não é o fundamento primário da decisão e a resolução da situação encontra justificação na disciplina referente à existência de culpa, na modalidade de negligência grave, na não disponibilização de rendimentos ao fiduciário.
A jurisprudência mais autorizada dos Tribunais Superiores relacionada com a recusa ou cessação antecipada do instituto da exoneração do passivo restante entende que a procedência da mesma exige a verificação de dois pressupostos: a reiterada existência de negligência grave ou dolo das suas obrigações e desse facto resultar prejuízo efectivo para a satisfação dos créditos.
Como adverte a jurisprudência mais eloquente, «ao não entregar ao fiduciário parte do seu rendimento, o apontado incumprimento não é susceptível de gerar, a se, a cessação antecipada requerida, porquanto esta pressuporia um comportamento doloso daquele, que tivesse sido causa de um dano relevante para os seus credores, e o nexo de imputação deste à conduta daquele»[31].
Concorda-se com a jurisprudência contida neste último aresto quando adianta que o mero incumprimento da entrega de quantias ao fiduciário, por banda do devedor, sem que se apure que o mesmo tenha sido doloso e que tenha causado prejuízo aos credores, não poderá sem mais conduzir à cessação antecipada prevenida naquele segmento normativo[32].

No entanto, lida toda a fundamentação do despacho recorrido, na situação judicanda existem sinais do insolvente ter agido com dolo ou negligência grave e de tal omissão ter causado prejuízo aos credores e a explicação dada pelo Tribunal «a quo» é suficiente e acertada para integrar as exigências conceptuais consagradas na lei.

Como sucede com a generalidade das famílias portuguesas, os insolventes tinham de adequar o seu trem de vida aos rendimentos efectivamente percebidos, fazendo as suas opções quanto às suas necessidades básicas e gerindo as receitas de acordo com critérios de utilidade e normalidade económica como sucede com qualquer outro interessado que receba os montantes abrangidos pela cessão de rendimentos. Com efeito, o instituto da exoneração do passivo restante não pode configurar «um instrumento oportunística e habilidosamente empregue unicamente com o objectivo de se libertarem os devedores de avultadas dívidas»[33].

E assim, julga-se improcedente o recurso apresentado, confirmando-se a decisão recorrida.

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V – Sumário: (…)
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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar improcedente o recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo dos recorrentes, sem prejuízo do disposto no artigo 248.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
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Processei e revi.
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Évora, 14/07/2021
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
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[1] Maria do Rosário Epifânio, Manual do Direito da Insolvência, 6ª edição, Almedina, Coimbra, 2016, pág. 320.
[2] Artigo 239.º (Cessão do rendimento disponível):
1 - Não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido o despacho inicial, na assembleia de apreciação do relatório, ou nos 10 dias subsequentes a esta ou ao decurso dos prazos previstos no n.º 4 do artigo 236.º.
2 - O despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte.
3 - Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:
a) Dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;
b) Do que seja razoavelmente necessário para:
i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional;
iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.
4 - Durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a:
a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;
b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto;
c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão;
d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;
e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores.
5 - A cessão prevista no n.º 2 prevalece sobre quaisquer acordos que excluam, condicionem ou por qualquer forma limitem a cessão de bens ou rendimentos do devedor.
6 - Sendo interposto recurso do despacho inicial, a realização do rateio final só determina o encerramento do processo depois de transitada em julgado a decisão.
[3] Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição (actualizada de acordo com o Decreto-Lei n.º 26/2015, de 6 de Fevereiro, e o Código de Processo Civil de 2013), Quid Juris, Lisboa 2015, pág. 848.
[4] Artigo 245.º (Efeitos da exoneração):
1 - A exoneração do devedor importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados, sendo aplicável o disposto no n.º 4 do artigo 217.º.
2 - A exoneração não abrange, porém:
a) Os créditos por alimentos;
b) As indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor, que hajam sido reclamadas nessa qualidade;
c) Os créditos por multas, coimas e outras sanções pecuniárias por crimes ou contra-ordenações;
d) Os créditos tributários.
[5] Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de empresas Anotado, 3ª edição, Quid Juris, Lisboa, 2015, pág. 858.
[6] Luís Carvalho Fernandes, La exoneración del passivo restante en la insolvência de personas naturales en el Derecho Português, Revista de Derecho Concursal y Paraconcursal, n.º 3-2005.
[7] Luís Carvalho Fernandes, A exoneração do passivo restante na insolvência das pessoas singulares no Direito Português, in Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, Colectânea de estudos sobre a insolvência, Quid Juris, Lisboa, 2009, págs. 275 e seguintes.
[8] Catarina Serra, As funções do Direito da Insolvência no âmbito de life time contracts (breve reflexão), in Nuno Manuel Pinto Oliveira e Benedita McCrorie (coordenação), Pessoa, Direito e direitos, Braga, Direitos Humanos – Centro de Investigação Interdisciplinar, Escola de direito da Universidade do Minho, 2016.
[9] Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra, 2018, págs. 556 e seguintes.
[10] Adelaide Menezes Leitão, Pré-condições para a exoneração do passivo restante – Anotação ao Ac. do TRP de 29.9.2010, Proc. 995/09”, Cadernos de Direito Privado, 2011, 35, págs. 65 e seguintes.
[11] Adelaide Menezes Leitão, Insolvência de pessoas singulares: a exoneração do passivo restante e o plano de pagamentos: as alterações da Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, in AA. VV. Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 2013, págs. 509 e seguintes.
[12] Ana Filipa Conceição, Disposições específicas da insolvência de pessoas singulares no Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, in I Congresso de Direito da Insolvência.
[13] Ana Filipa Conceição, “A jurisprudência portuguesa dos tribunais superiores sobre exoneração do passivo restante – Breves notas sobre a admissão da exoneração e a cessão de rendimentos em particular”, Julgar on line, Junho de 2016.
[14] Alexandre Soveral Martins, A reforma do CIRE e as PMEs”, Estudos de Direito da Insolvência, Coimbra Editora, Coimbra, pág. 15 e seguintes.
[15] Catarina Frade, O perdão das dívidas na insolvência das famílias, In Ana Cordeiro Santos (coordenação) Famílias endividadas: uma abordagem de economia política e comportamental. Causas e Consequências, Almedina, Coimbra, 2015.
[16] Cláudia Oliveira Martins, O procedimento de exoneração do passivo restante – controvérsias jurisprudenciais e alguns aspectos práticos, Revista de Direito da Insolvência, 2016, ano 0, págs. 213 e seguintes.
[17] Francisco de Siqueira Muniz, O sobreendividamento por créditos ao consumo e os pressupostos de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante no processo de insolvência, Estudos do Direito do Consumidor, 2017, n.º 12, págs. 337 e seguintes.
[18] Gonçalo Gama Lobo, Da exoneração do passivo restante, in Pedro Costa Azevedo (coordenação), Insolvência, Volume especial, Nova Causa, 2012.
[19] Gonçalo Gama Lobo, Exoneração do passivo restante e causas de indeferimento liminar do despacho inicial, in Catarina Serra (coordenação), I Colóquio do Direito da Insolvência de Santo Tirso, Almedina, Coimbra, 2014, págs. 257 e seguintes.
[20] José Gonçalves Ferreira, A exoneração do passivo restante, Coimbra Editora, Coimbra, 2013.
[21] Mafalda Bravo Correia, Critérios de fixação do rendimento indisponível no âmbito do procedimento de exoneração do passivo restante na jurisprudência e na conjugação com o dever de prestar alimentos, Julgar, 2017, 31, págs. 109 e seguintes.
[22] Maria Assunção Cristas, Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante, Themis, edição especial, 2005.
[23] Maria do Rosário Epifânio, Manual do Direito da Insolvência, 6ª edição, Almedina, Coimbra, 2016.
[24] Paulo Mota Pinto, Exoneração do passivo restante: fundamento e constitucionalidade, in Catarina Serra (coordenação), III Congresso de Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra, 2015, pág. 175 e seguintes.
[25] Pedro Pidwell, Insolvência de pessoas Singulares. O “Fresh Start” – será mesmo começar de novo? O fiduciário. Algumas notas”, revista de Direito da insolvência, 2016, págs. 195 e seguintes.
[26] Artigo 243.º (Cessação antecipada do procedimento de exoneração):
1 - Antes ainda de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando:
a) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência;
b) Se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f) do n.º 1 do artigo 238.º, se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente;
c) A decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência.
2 - O requerimento apenas pode ser apresentado dentro do ano seguinte à data em que o requerente teve ou poderia ter tido conhecimento dos fundamentos invocados, devendo ser oferecida logo a respectiva prova.
3 - Quando o requerimento se baseie nas alíneas a) e b) do n.º 1, o juiz deve ouvir o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência antes de decidir a questão; a exoneração é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las.
4 - O juiz, oficiosamente ou a requerimento do devedor ou do fiduciário, declara também encerrado o incidente logo que se mostrem integralmente satisfeitos todos os créditos sobre a insolvência.
[27] Artigo 244.º (Decisão final da exoneração):
1 - Não tendo havido lugar a cessação antecipada, o juiz decide nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor, ouvido este, o fiduciário e os credores da insolvência.
2 - A exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, nos termos do artigo anterior.
[28] Artigo 246.º (Revogação da exoneração):
1 - A exoneração do passivo restante é revogada provando-se que o devedor incorreu em alguma das situações previstas nas alíneas b) e seguintes do n.º 1 do artigo 238.º, ou violou dolosamente as suas obrigações durante o período da cessão, e por algum desses motivos tenha prejudicado de forma relevante a satisfação dos credores da insolvência.
2 - A revogação apenas pode ser decretada até ao termo do ano subsequente ao trânsito em julgado do despacho de exoneração; quando requerida por um credor da insolvência, tem este ainda de provar não ter tido conhecimento dos fundamentos da revogação até ao momento do trânsito.
3 - Antes de decidir a questão, o juiz deve ouvir o devedor e o fiduciário.
4 - A revogação da exoneração importa a reconstituição de todos os créditos extintos.
[29] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 05/12/2019, consultável em www.dgsi.pt.
[30] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 08/10/2020, visitável em www.dgsi.pt.
[31] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/04/2019, publicado em www.dgsi.pt.
[32] Esta é a solução abstracta a que se vincula este colectivo de Desembargadores no acórdão do Tribunal da Relação de 10/10/2019 proferido no âmbito do processo registado sob o n.º 740/13.4TBOLH.E1, Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo de Comércio de Olhão – J2, consultável em www.dgsi.pt.
[33] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17/12/2008, in www.dgsi.pt.