Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
223/16.0GBLLE.E1
Relator: JOÃO GOMES DE SOUSA
Descritores: CIBERCRIME
TELECOMUNICAÇÕES
REGIME APLICÁVEL
JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL
Data do Acordão: 10/25/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - No caso de investigação e repressão de infrações penais relativas a “comunicações, dados de comunicações e sua conservação” existe legislação especial que secundariza o Código de Processo Penal e torna quase irrelevantes as Leis nº 5/2004 e 41/2004 para efeitos processuais penais.
2 - Tal legislação especial são as Leis nº 32/2008, de 17-07 (Lei relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações) e 109/2009, de 15-09 (Lei do Cibercrime), assim como a Convenção do Conselho da Europa sobre o Cibercrime de 23/11/2001 (Resolução da AR n.º 88/2009, de 15 de Setembro), também designada Convenção de Budapeste.
3 – Tratando-se de dados de comunicações “conservadas” ou “preservadas” já não é possível aplicar o disposto no artigo 189º do Código de Processo Penal - a extensão do regime das escutas telefónicas - aos casos em que são aplicáveis as Leis nº 32/2008 e 109/2009 e a Convenção de Budapeste. Isto é, para a prova de comunicações preservadas ou conservadas em sistemas informáticos existe um novo sistema processual penal, o previsto nos artigos 11º a 19º da Lei 109/2009, de 15-09, Lei do Cibercrime, coadjuvado pelos artigos 3º a 11º da Lei nº 32/2008, se for caso de dados previstos nesta última;
4 - A Lei nº 32/2008 tem um regime processual “privativo” da matéria por si regulada, assente na existência de “dados conservados” nos termos do artigo 4.º, nº 1 pelos fornecedores de serviços.
5 - O regime processual aplicável é o constante dessa lei, inclusivé o catálogo de crimes permissivo que ela criou, os “crimes graves” referidos no artigo artigo 3.º, nº 1.
6 - O conceito de «crime grave», abarcando a “criminalidade violenta” – artigo 2º, nº 1, al. g) do diploma –, abrange o crime de violência doméstica previsto no nº 1 do artigo 152º do Código Penal por via da previsão do artigo 1º, al. j) do C.P.P..
7 - De onde resulta a aplicabilidade ao caso dos autos do “regime processual” previsto nos artigos 3º a 11º da Lei nº 32/2008.
8 - E, face ao nº 2 da Lei 32/2008, a “transmissão dos dados às autoridades competentes” - Ministério Público ou autoridade de polícia criminal competente - só pode ser ordenada ou autorizada por despacho fundamentado do juiz, nos termos do artigo 9.º do diploma, que regula a «transmissão dos dados» e que apresenta como pressuposto substancial que haja “razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter no âmbito da investigação, detecção e repressão de crimes graves”.
9 - Esta “transmissão” ou “processamento” veio a ser regulada pela Portaria n.º 469/2009, de 06 de Maio - Condições Técnicas e de Segurança, Tratamento de Dados de Tráfego - que mantém hoje a redacção dada pela Portaria n.º 694/2010, de 16/08.
Decisão Texto Integral: Tribunal da Relação de Évora
Secção Criminal



19

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório

Nos autos de inquérito supra numerados que corre termos no Tribunal de Faro – T, SCG, J1 – por despacho do Mº Juiz de 14-7-2016 foi indeferido o requerimento do Ministério Público para que a Vodafone fornecesse os números de telefone, bem como a identificação do(s) titular(es) do(s) cartão(ões) telefónico(s) que vier (em) a ser identificado(s) e que desde o dia ... e até ao dia ... contactaram os n.ºs de telefone 96 ... ... e 962 ... ..., com fundamento na possibilidade de a ofendida autorizar o fornecimento de tais dados.

O recurso foi instruído, apenas, com decisão recorrida, despacho de admissão de recurso, motivações de recurso do Ministério Público e termo de remessa dos autos a esta Relação.

Solicitada, por despacho do relator, a devida instrução dos autos, foi a mesma realizada.


*

Inconformada a Digna magistrada do Ministério Público interpôs recurso do referido despacho, com as seguintes conclusões:

1 – Promovido pelo MP que o Mmo. JIC, ordenasse à Vodafone que forneça listagem detalhada das chamadas recebidas nos n.ºs de telefone 96 ... ... e 962 ... ..., bem como os números telefónicos de proveniência de tais chamadas e, bem assim, a identificação do(s) titular(es) do(s) cartão(ões) telefónico(s) que vier(em) a ser identificado(s), desde o dia ... e até ao dia ..., foi tal promoção indeferida, tendo sido proferido o seguinte despacho: “A ofendida pode dar, por escrito, autorização para que a Vodafone forneça os nºs de telefone, bem como a identificação do(s) titular(es) do(s) cartão(ões) telefónico(s) que vier(em) a ser identificado(s) e que desde o dia ... e até ao dia ... contactaram os n.ºs de telefone 96 ... ... e 962 ... ....

Só na eventual recusa de colaboração da Vodafone com a sua cliente (a ofendida) se poderá basear eventual decisão judicial [artº 268º,nº 1-f) do C.P.P.].

Voltem, assim os autos, ao M.P.”

2 – Ora, de acordo com o preceituado na Lei n.º 41/2004, a ordem de fornecimento dos elementos em questão é da competência do Mmo. Juiz de Instrução Criminal, pelo que não pode nem a ofendida, nem o MP, carrear, como meio de prova válido, em sede de inquérito, tais elementos;

3 - Dispõe a alínea c) do n.º 1 do art.º 269º do CPP que, durante o inquérito, compete exclusivamente ao juiz de instrução ordenar ou autorizar a intercepção, gravação ou registo de conversações ou comunicações, nos termos dos artigos 187.º e 190.º, desde que legalmente admissíveis;

4 - A facturação detalhada das comunicações contende com a reserva de intimidade do cidadão (do emissor e do receptor), cabendo pois, ao Mmo. JIC, suprir o consentimento do emissor (atendendo a que o receptor já deu a sua expressa autorização;

5 – Tratando-se o receptor da ofendida, ainda assim não pode ser esta a pedir os elementos negados pelo despacho recorrido, atendendo a que cumpre suprir o consentimento dos emissores, o que, obviamente, apenas pode ser efectuado pelo Mmo. JIC;

6 – Com efeito, e fazendo nossas as palavras do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 10 de Janeiro de 2015, proferido no processo 2013/04.1 e disponível em dgsi.pt:

“Como bem se refere no Acórdão da RL de 10-12-2003, in www.dgsi.pt, que temos vindo a seguir de perto, “a lista de contactos telefónicos constante da facturação detalhada, pretendida pelo recorrente, não é apenas uma referência ligeira a meios de prova, sem inviolabilidade das comunicações telefónicas.

Pelo contrário, esse meio de prova afecta e contende com bens jurídicos pessoais que atingem a esfera da privacidade, normalmente de mais de uma pessoa. Neste mesmo sentido, o Ac. R.C., de 7/3/01, C.J., Ano XXVI, Tomo II, pág. 44, que refere: «As facturas de telefonemas viabilizarão o acesso tanto à esfera jurídica do autor como do destinatário da comunicação. A revelação dos telefonemas só será muitas vezes possível à custa do sacrifício de “segredos de terceiros”, deste modo se suscitando frequentes e não fáceis problemas de identificação do portador do bem jurídico – do Geheimnistrager, no dizer de Schunemann – isto é, das pessoas concretamente atingidas com a sua revelação. A índole estruturalmente comunicativa destas expressões de liberdade erigidas em bem jurídico imprime um carácter invencivelmente ambivalente à intervenção de terceiro. Ela configurará a forma mais drástica de sacrifício, se imposta sem tutela do direito fundamental do próprio investigando, mas pior se for atingido que não está a ser investigado.

Assim releva o princípio de proibição de produção de tal prova, ao abrigo do disposto no citado art.º 126º n.º 3, do C.P.P., tornando tal prova ilícita se não obtida ao abrigo do disposto no art.º 269º n.º 1 al. c), do C.P.P., uma vez que de registo de conversação efectivamente se trata”.

A informação pretendida – facturação detalhada – visa a obtenção de elementos documentais que são gerados pela utilização de uma rede de telecomunicações (o número e a morada do utilizador, a frequência, a data, a hora e a duração da comunicação).

Não se trata da prestação de depoimento sobre matéria sigilosa, relativamente ao qual as pessoas envolvidas poderiam invocar um direito de escusa nos termos de incidente regulado no artigo 135.º do CPP.

Por isso que essas informações, encontrando-se abrangidas pelo princípio de confidencialidade das comunicações, apenas poderão ser fornecidas nos termos e pelo modo em que a lei de processo penal permite a intercepção as comunicações, dependendo, como tal, da autorização do juiz de instrução.

Importa, pois, concluir:

Sempre que estiver em causa o fornecimento de dados (sejam eles quais forem) relativo a comunicações, como acontece no caso em análise, apenas o Juiz de Instrução pode ordenar o seu fornecimento, verificados que estejam os pressupostos legais.”

7 – É preconizado no despacho recorrido que a ofendida tem legitimidade para carrear para os autos tais elementos, o que, em nosso entender, não é legalmente admissível,

8 - Decorre expressamente da conjugação do disposto no artigo 189.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, com o disposto no artigo 187.º, n.º 4, alínea c), de tal diploma legal que o carrear de tais elementos para os autos é da competência do Mmo. JIC;

9 - O artigo 189.º, n.º 2, do Código de Processo Penal é cristalino (não se concebendo margem para interpretação), ao dispor que, ao fornecimento de dados sobre registos da realização de conversas ou de comunicações, aplica-se o regime das escutas telefónicas, e qual tal fornecimento, expressamente que o fornecimento apenas pode ser ordenado ou autorizado, em qualquer fase do processo, por despacho de Juiz;

10 – Ainda levando em consideração que o Mmo. JIC defende que a ofendida pode carrear tais elementos para os autos, sempre diremos, além de tudo o supra exposto, que dispõe o artigo 187.º, n.º 4, alínea c), do Código de Processo Penal, que, para que o Mmo. Juiz de Instrução possa ordenar o fornecimento dos elementos em questão nestes autos, a vítima do crime tem de dar o seu expresso consentimento;

11 – Ou seja, tal norma não pode ser interpretada senão no sentido que o consentimento da vítima é um dos pressupostos para o deferimento da pretensão do MP e da obtenção dos dados necessários à prossecução da investigação;

12 – Plasmado tal consentimento nos autos, e verificados todos os demais requisitos legais, é da competência do Mmo. JIC ordenar a remessa dos elementos por nós solicitados;

13 - Assim sendo, incumbindo ao Mmo. Juiz de Instrução Criminal determinar o fornecimento dos elementos em causa, Requer-se a V. Exas., na senda da Acostumada e Inteira Justiça, que revoguem o despacho recorrido e ordenem que seja proferido novo despacho a apreciar a nossa promoção.


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Nesta Relação, o Exmº Procurador-geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

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B - Fundamentação:

B.1 - São estes os elementos de facto relevantes e decorrentes do processo em função dos elementos enviados a esta Relação:

1 - Patrícia Carla Gomes Reis apresentou queixa por factos passíveis de integrar um crime de violência doméstica, violação de domicílio ou perturbação de vida privada.

2 - O Ministério Público promoveu “que o Mmo. JIC, ordenasse à Vodafone que forneça listagem detalhada das chamadas recebidas nos n.ºs de telefone 96 ... ... e 962 ... ..., bem como os números telefónicos de proveniência de tais chamadas e, bem assim, a identificação do(s) titular(es) do(s) cartão(ões) telefónico(s) que vier(em) a ser identificado(s), desde o dia ... e até ao dia ...”.

3 – Tal promoção foi indeferida por despacho de 14-07-2016.

4 - É este o teor do despacho recorrido:

«A ofendida pode dar, por escrito, autorização para que a Vodafone forneça os nºs de telefone, bem como a identificação do(s) titular(es) do(s) cartão(ões) telefónico(s) que vier( em) a ser identificado(s) e que desde o dia ... e até ao dia ... contactaram os n.ºs de telefone 96 ... ... e 962 ... ....

Só na eventual recusa de colaboração da Vodafone com a sua cliente (a ofendida) se poderá basear eventual decisão judicial [artigo 268°,n° 1-f) do C.P.P.].

Voltem, assim, os autos ao M.P.

T, 14-7-2016 (…).»


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B.2.1 - Cumpre apreciar e decidir.

O objecto do recurso penal é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação.

Como decorrência deste princípio concretiza-se nos autos como pretensão do Ministério Público, exposta em recurso - formulada nos autos em devida promoção -, que a Vodafone forneça os nºs de telefone, bem como a identificação do(s) titular(es) do(s) cartão(ões) telefónico(s) que vier(em) a ser identificado(s) e que desde o dia ... e até ao dia ... contactaram os n.ºs de telefone 96 ... ... e 962 ... ....

E o Mmº Juiz indeferiu tal pretensão com fundamento no artigo 268º, nº 1, al. f) do Código de Processo Penal que reza, sob a epígrafe «Actos a praticar pelo juiz de instrução»: “Durante o inquérito compete exclusivamente ao juiz de instrução (f) praticar quaisquer outros actos que a lei expressamente reservar ao juiz de instrução”.

Assim, entenderemos o objecto do recurso como a pretensão formulada para concretizar o ali requerido, quer em termos de enquadramento na competência jurisdicional, quer em termos de substância do peticionado. O que supõe uma prévia definição da legislação aplicável, vista a aparente dificuldade no enquadramento do regime jurídico amoldado à situação concreta.


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B.2.2 – Uma coisa é certa, a Lei 41/2004 é quase irrelevante para enquadrar o caso dos autos. A Lei 5/2004 é mesmo irrelevante. Sem dúvida que ambas são o corpo legislativo de enquadramento da actividade de que os autos dão conta – comunicações, dados de comunicações e sua conservação, regulação da actividade e características técnicas e jurídicas de contratos de natureza privada tendo por objecto as comunicações – mas não regulam directamente o caso concreto na medida em que estamos a tratar da prática de crimes com o uso de instrumentos de comunicação, um mais relativamente ao ali regulado.

Mas, por partes.

A Lei n.º 5/2004, de 10 de Fevereiro, Lei das Comunicações Electrónicas, tem como escopo estabelecer “o regime jurídico aplicável às redes e serviços de comunicações electrónicas e aos recursos e serviços conexos e define as competências da autoridade reguladora nacional neste domínio” – artigo 1º da dita. Trata-se de diploma que estabelece os direitos e deveres das empresas de comunicações e regula a actuação da respectiva entidade reguladora.

A norma citada pela Digna recorrente – que deverá ser a al. h) e não g), certamente referida por lapso, do nº 1 do artigo 27.º - apenas se insere na definição das “condições gerais” a que as “as empresas que oferecem redes e serviços de comunicações electrónicas” podem estar sujeitas na sua actividade, como se infere do corpo do artigo. No resto trata-se de diploma que fora deste âmbito geral não tem aplicação ao caso concreto.

Quanto à Lei n.º 41/2004, de 18 de Agosto, Lei de Protecção de Dados Pessoais e Privacidade nas Telecomunicações, relativa ao tratamento de dados pessoais e à proteção da privacidade no setor das comunicações eletrónicas que, no entender da recorrente é o diploma chave para sustentar a sua pretensão, pouco mais importância tem para o caso concreto.

Esta lei é expressa ao afirmar que se aplica ao tratamento de «dados pessoais no contexto da prestação de serviços de comunicações eletrónicas acessíveis ao público em redes de comunicações públicas, nomeadamente nas redes públicas de comunicações que sirvam de suporte a dispositivos de recolha de dados e de identificação, especificando e complementando as disposições da Lei n.º 67/98, de 26 de outubro (Lei da Proteção de Dados Pessoais)» - do artigo 1º.

Naturalmente que aspectos desta lei são relevantes, desde logo as definições, a de “dados de tráfego” para o caso concreto – artigos 2º, nº 1, al. d) e 6º, nº 2. E nada mais.

Ou seja, estamos aqui também no âmbito da regulamentação de serviços de comunicações e do acautelar da protecção de dados, matérias que não regulam directamente o caso sub iudicio.

Aliás, di-lo a Lei de forma explícita nos nsº 4 e 5 do mesmo artigo 1º, nos seguintes termos:

4 - As exceções à aplicação da presente lei que se mostrem estritamente necessárias para a proteção de atividades relacionadas com a segurança pública, a defesa, a segurança do Estado e a prevenção, investigação e repressão de infrações penais são definidas em legislação especial.

5 - Nas situações previstas no número anterior, as empresas que oferecem serviços de comunicações eletrónicas acessíveis ao público devem estabelecer procedimentos internos que permitam responder aos pedidos de acesso a dados pessoais dos utilizadores apresentados pelas autoridades judiciárias competentes, em conformidade com a referida legislação especial.

Assim, se a lei nos facilita a interpretação fazendo remissão expressa para lei especial que regula a actuação no caso de investigação e repressão de infrações penais – o que nos ocupa - impõe-se, pois, saber da existência de tal legislação especial.

Que não é o Código de Processo Penal, como se antolha claro, pois que este dificilmente se poderia considerar um “diploma especial” a regular as comunicações electrónicas e o resguardo de dados pessoais. Continuemos, portanto, a reservar a tal código o papel de diploma base de carácter geral e subsidiário nesta matéria. A não ser, claro, que tal legislação não existisse, apesar da remissão, caso em que se deveria então aplicar o dito código em toda a sua plenitude.

Mas dá-se o caso de haver legislação especial. Aliás, vária! As Leis nº 32/2008, de 17-07 (Lei relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações) e 109/2009, de 15-09 (Lei do Cibercrime), assim como a Convenção do Conselho da Europa sobre o Cibercrime de 23/11/2001 (Resolução da AR n.º 88/2009, de 15 de Setembro), também designada Convenção de Budapeste, são essa legislação especial.

Já se não justifica citar jurisprudência que não leva em conta a indicada legislação, nomeadamente a anterior a 2009,

E é a existência dessa legislação especial para a qual remete a Lei nº 41/2004 que permite concluir que à matéria deste caso concreto – dados de comunicações conservadas – já não é possível aplicar o disposto no artigo 189º do Código de Processo Penal - a extensão do regime das escutas telefónicas - aos casos em que são aplicáveis as Leis nº 32/2008 e 109/2009 e a Convenção de Budapeste.


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B.2.3 – Regressando ao caso concreto, aquilo que o Ministério Público pede é claro:

- a “listagem detalhada das chamadas recebidas nos n.ºs de telefone 96 ... ... e 962 ... ...;

- os números telefónicos de proveniência de tais chamadas e;

- a identificação do(s) titular(es) do(s) cartão(ões) telefónico(s) que vier(em) a ser identificado(s), desde o dia ... e até ao dia ...”.

Como é bom de crer, o primeiro elemento pode vir a ser obtido através de facturação detalhada pela ofendida, assinante, no âmbito do contrato de direito privado que celebrou com a empresa de comunicações.

Mas é bom de ver que os outros dois – a identificação de terceiros – não pode ser fornecido pela empresa sob pena de violação dos seus deveres de reserva e de acautelamento de dados pessoais de outrém. Por isso que a autorização da ofendida, que consta dos autos, só tenha sentido para a obtenção desses dados, já que as eventuais comunicações estabelecidas com a ofendida por esses terceiros exigem o consentimento desta.

A questão, então, é a de saber se nestes autos há justificação para tratamento diferenciado entre os “dados” possíveis de obter sem intervenção judicial e o que exige essa intervenção.

A resposta tem que ser necessariamente negativa. Decorrido todo o tempo desde Janeiro do corrente ano e tendo em vista o prazo limite de existência dos dados da Lei nº 32/2008, não faz sentido dividir o resultado do recurso em “dados” que podem ser obtidos pela ofendida daqueles que o não podem ser, sob pena de uma eventual negação do direito da ofendida pela empresa fornecedora de serviços de comunicações inviabilizar a diligência por necessidade de reacção jurisdicional a essa negação do direito.

Ou seja, o presente recurso deve conhecer da totalidade da pretensão e defini-la in totum, tendo em vista evitar o ultrapassar do prazo de 1 (um) ano previsto pelo artigo 6º da Lei nº 32/2008.


***

B.3 – Como ambas as peças processuais continuam a navegar nas águas do processo penal e, neste, nas normas aplicáveis às escutas telefónicas, convém começar por tornar claro que tais normas não são aplicáveis ao caso dos autos.

Desde logo porque se não trata de matéria de comunicações telefónicas. Foram! Já não são. Agora são material armazenado informáticamente. E como tal devem ser tratados, como material preservado em sistema informático.

A Lei nº 32/2008, de 17-07, veio estabelecer e regular um regime de «conservação e transmissão dos dados de tráfego e de localização relativos a pessoas singulares e a pessoas colectivas, bem como dos dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado, para fins de investigação, detecção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes, (…) relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações, (…).»

Como já afirmámos no acórdão de 06-01-2015 deste Tribunal da Relação de Évora (Processo: 6793/11.2TDLSB-A.E1):

«1 - As Leis nº 32/2008, de 17-07 e 109/2009, de 15-09 (Lei do Cibercrime) revogaram a extensão do regime das escutas telefónicas, previsto nos artigos 187º a 190º do Código de Processo Penal, às áreas das “telecomunicações electrónicas”, “crimes informáticos” e “recolha de prova electrónica”.

2 - A pretensão do legislador (quer o nacional quer o da Convenção de Budapeste sobre o Cibercrime) é o de alargar o âmbito da aplicação da lei até onde haja necessidade de fazer prova com o conteúdo existente em qualquer “sistema informático”

Mas note-se que a Lei nº 32/2008 tem um regime processual “privativo” da matéria por si regulada, assente na existência de “dados conservados” nos termos do artigo 4.º, nº 1 pelos fornecedores de serviços. A norma é clara:

1 - Os fornecedores de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de uma rede pública de comunicações devem conservar as seguintes categorias de dados:

a) Dados necessários para encontrar e identificar a fonte de uma comunicação;

b) Dados necessários para encontrar e identificar o destino de uma comunicação;

c) Dados necessários para identificar a data, a hora e a duração de uma comunicação;

d) Dados necessários para identificar o tipo de comunicação;

e) Dados necessários para identificar o equipamento de telecomunicações dos utilizadores, ou o que se considera ser o seu equipamento;»

Estes “dados” – nos termos da al. a), do nº 1, do artigo 2º da indicada Lei - são «os dados de tráfego e os dados de localização, bem como os dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador».

Assim, qualquer outro considerando sobre quais sejam os dados a que se pode ter acesso nos presentes autos é dispiciendo dada a amplitude da definição de “dados” oferecida pelo artigo 4º do diploma, conservação de dados que tem em vista a sua transmissão às autoridades competentes, “mediante despacho fundamentado do juiz” – artigo 7.º, nº 1, al. a) do diploma.

E os “dados” pretendidos obter no caso concreto caem na categoria de “dados” previstos nas alíneas a) a d) do preceito: são os “necessários para encontrar e identificar a fonte de uma comunicação; (…) necessários para encontrar e identificar o destino de uma comunicação; (…) necessários para identificar a data, a hora e a duração de uma comunicação; (…) necessários para identificar o tipo de comunicação”.

Naturalmente que o regime processual aplicável é o constante dessa lei, inclusivé o catálogo de crimes permissivo que ela criou, os “crimes graves” referidos no artigo artigo 3.º, nº 1, sob a epígrafe «Finalidade do tratamento»: “A conservação e a transmissão dos dados têm por finalidade exclusiva a investigação, detecção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes”.

A sua enunciação é clara: o conceito de «crime grave» abrange os “crimes de terrorismo, criminalidade violenta, criminalidade altamente organizada, sequestro, rapto e tomada de reféns, crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, contra a segurança do Estado, falsificação de moeda ou títulos equiparados a moeda e crimes abrangidos por convenção sobre segurança da navegação aérea ou marítima” – artigo 2º, nº 1, al. g) do diploma.

E, face ao nº 2 da Lei 32/2008, a “transmissão dos dados às autoridades competentes” - Ministério Público ou autoridade de polícia criminal competente - só podia ser ordenada ou autorizada por despacho fundamentado do juiz, nos termos do artigo 9.º do diploma, que regulava a «transmissão dos dados» e que apresentava como pressuposto substancial que houvesse “razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter no âmbito da investigação, detecção e repressão de crimes graves”. - Esta “transmissão” ou “processamento” veio a ser regulada pela Portaria n.º 469/2009, de 06 de Maio - Condições Técnicas e de Segurança, Tratamento de Dados de Tráfego - que mantém hoje a redacção dada pela Portaria n.º 694/2010, de 16/08.

Assim, para apurar da aplicabilidade de tal Lei ao caso dos autos, haverá que apurar se o crime ora em investigação se integra no conceito de “crime grave”. A resposta é afirmativa através da integração do mesmo no conceito de “criminalidade violenta”, tal como definido pelo artigo 1º, al. j) do C.P.P., isto é, «as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos».

Ora, sendo imputado ao aqui arguido a prática de um crime de violência doméstica e mesmo que a conduta apenas venha a integrar a norma contida no nº 1 do artigo 152º do Código Penal, a mesma é punida com pena de prisão de um a cinco anos. Cumpre-se, logo, o requisito constante do catálogo de o máximo de pena ser igual a 5 anos de prisão.

De onde resulta a aplicabilidade ao caso dos autos do “regime processual” previsto nos artigos 3º a 11º desta Lei nº 32/2008.


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B.4 – Dada a rápida alteração de posicionamento dos Estados e das Organizações supra nacionais reagindo ao ainda mais expedito agir ilícito na área da criminalidade informática, logo após a entrada em vigor da Lei 32/2008, - Que entrou em vigor 90 dias após a vigência, em 7 de Maio de 2009, da Portaria n.º 469/2009, de 06 de Maio. surge a Lei 109/2009, de 15-09, com início de vigência 30 dias após a data de publicação (por sinal publicada no mesmo Diário da República que a Convenção do Conselho da Europa sobre o Cibercrime de 23/11/2001, internacionalmente em vigor desde 01/07/2004, mas apenas vigente em Portugal em 01/07/2010).

Esta Lei nº 109/2009 vem, em súmula muito apertada, actualizar tipos “penais informáticos” em sede de nomas penais materiais (artigos 3º a 10º) e criar todo um sistema processual penal (artigos 12º a 17º), já apelidado de capítulo “escondido” do Código de Processo Penal sobre prova electrónica (Dá Mesquita).

Esta matéria foi já objecto de dois acórdãos desta Relação por nós relatados em 6 e 20 de Janeiro de 2015, o primeiro já supra citado. No segundo acórdão, de 20 de Janeiro (processo 648/14.6GCFAR-A.E1), sumariámos:

1 - O regime processual das comunicações telefónicas previsto nos artigos 187º a 190º do Código de Processo Penal deixou de ser aplicável por extensão às “telecomunicações electrónicas”, “crimes informáticos” e “recolha de prova electrónica (informática)” desde a entrada em vigor da Lei 109/2009, de 15-09 (Lei do Cibercrime) como regime regra.

2 - Esse mesmo regime processual das comunicações telefónicas deixara de ser aplicável à recolha de prova por “localização celular conservada” – uma forma de “recolha de prova electrónica – desde a entrada em vigor da Lei 32/2008, de 17-07.

3 - Para a prova electrónica preservada ou conservada em sistemas informáticos existe um novo sistema processual penal, o previsto nos artigos 11º a 19º da Lei 109/2009, de 15-09, Lei do Cibercrime, coadjuvado pela Lei nº 32/2008, neste caso se estivermos face à prova por “localização celular conservada”.

4 - Nessa Lei do Cibercrime coexistem dois regimes processuais: o regime dos artigos 11º a 17º e o regime dos artigos 18º e 19º do mesmo diploma. O regime processual dos artigos 11º a 17º surge como o regime processual “geral” do cibercrime e da prova electrónica. Isto porquanto existe um segundo catálogo na Lei n. 109/2009, o do artigo 18º, n. 1 do mesmo diploma a que corresponde um segundo regime processual de autorização e regulação probatória. Só a este segundo regime – o dos artigos 18º e 19º - são aplicáveis por remissão expressa os artigos 187º, 188º e 190º do C.P.P. e sob condição de não contrariarem e Lei 109/2009.

5 - As normas contidas nos artigos 12º a 17º da supramencionada Lei contêm um completo regime processual penal para os crimes que, nos termos das alíneas do n. 1 do artigo 11º, estão (a) previstos na lei nº 109/2009, (b) são ou foram cometidos por meio de um sistema informático ou (c) em relação aos quais seja necessário proceder à recolha de prova em suporte electrónico.

6 - A diferenciação de regimes assenta na circunstância de os dados preservados nos termos dos artigos 12º a 17º se referirem à pesquisa e recolha, para prova, de dados já produzidos mas preservados, armazenados, enquanto o artigo 18º do diploma se refere à intercepção de comunicações electrónicas, em tempo real, de dados de tráfego e de conteúdo associados a comunicações específicas transmitidas através de um sistema informático.

7 - Assim, o Capítulo III da Lei 109/2009, relativo às disposições processuais, deve ser encarado como um «escondido Capítulo V (“Da prova electrónica”), do Título III (“Meios de obtenção de prova”) do Livro III (“Da prova”) do Código de Processo Penal …» (Dá Mesquita).

8 - Tratando-se de obter prova por “localização celular conservada”, isto é, a obtenção dos dados previstos no artigo 4º, n. 1 da Lei 32/2008, de 17-07, o regime processual aplicável assume especialidade nos artigos 3º e 9º desta lei.

9 - Em suma, numa interpretação conjugada das Leis 32/2008, 109/2009 e da Convenção de Budapeste sobre o Cibercrime do Conselho da Europa (aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº 88/2009, publicada no DR de 15-09-2009), devem ter-se em consideração os seguintes catálogos de crimes quanto a dados preservados ou conservados: - o catálogo de crimes do n. 1 do artigo 11º da Lei 109/2009 como pressuposto de aplicação do regime processual contido nos artigos 11º a 17º dessa Lei;

- o catálogo de crimes do n. 1 do artigo 18º da Lei 109/2009 como pressuposto de aplicação do regime processual contido nesse artigo 18º e no 19º dessa Lei aos crimes previstos na al. a) do artigo 18º;

- o catálogo de crimes do n. 1 do artigo 187º do Código de Processo Penal, por remissão expressa da Lei 109/2009, como pressuposto de aplicação do regime processual contido nesse artigo 18º e no 19º dessa Lei para os crimes previstos na al. b) do artigo 18º;

- o catálogo de crimes (“crimes graves”) do artigo 3º da Lei nº 32/2008 quanto a especiais “dados conservados” (localização celular), como requisito de aplicação dos artigos 3º e 9º da Lei nº 32/2008.

10 - O artigo 189º do Código de Processo Penal nunca é aplicável a crimes informáticos, seja qual for o catálogo aplicável.

11 - O objecto de ambas as leis – de 2008 e 2009 – é parcialmente coincidente. Ambas se referem e regulam “dados conservados” (Lei nº 32/2008) e “dados preservados” (Lei nº 109/2009) ou seja, depositados, armazenados, arquivados, guardados. A Lei de 2009 assume um carácter geral no seu âmbito de aplicação, não distinguindo dados arquivados pela sua natureza, o que abrange todos eles, portanto (à excepção do correio electrónico, especificamente previsto no seu artigo 17º).

12 - O regime processual da Lei nº 32/2008 constitui relativamente aos dados “conservados” que prevê no seu artigo 4º, um regime especial relativamente ao capítulo processual penal geral que consta dos artigos 11º a 19º da Lei nº 109/2009.

13 - Consequentemente devemos concluir que o regime processual da Lei 32/2008, designadamente o artigo 3º, nº 1 e 2 e o artigo 9º:

- mostra-se revogado e substituído pelo regime processual contido na Lei nº 109/2009 para todos os dados que não estejam especificamente previstos no artigo 4º, n. 1 da Lei nº 32/2008 ou seja, dados conservados em geral;

- revela-se vigente para todos os dados que estejam especificamente previstos no artigo 4º, n. 1 da Lei nº 32/2008, isto é, para os dados conservados relativos à localização celular. Só para este último caso ganha relevo o conceito de “crime grave”.

14 -

(…).

Não se vê razão para alterar o então decidido, apenas se acham existentes razões para precisar que naquele caso se tratava de “localização celular” e no presente de simples dados de comunicações, anteriores, preservadas, o que implica tornar mais claro o regime processual de ambos os diplomas e seu relacionamento.

E a conclusão é a mesma, adaptada ao caso concreto e a este limitada:

- o artigo 189º do Código de Processo Penal nunca é aplicável à prova de comunicações conservadas em sistemas informáticos nos termos da Lei nº 32/2008. Dito de outra forma, o regime das escutas telefónicas do Código de Processo Penal nunca é aplicável por extensão aos dados abrangidos pela Lei nº 32/2008;

- o Código de Processo Penal – com exclusão do regime das escutas telefónicas - é aplicável subsidiariamente em tudo o que não contrarie o regime processual constante dos artigos 11º a 17º da Lei nº 109/2009 (regime processual, escondido, da prova electrónica) e artigos 3º a 11º da Lei 32/2008;

- para a prova de comunicações preservadas ou conservadas em sistemas informáticos existe um novo sistema processual penal, o previsto nos artigos 11º a 19º da Lei 109/2009, de 15-09, Lei do Cibercrime, coadjuvado pelos artigos 3º a 11º da Lei nº 32/2008, se for caso de dados previstos nesta última;

Tornemos mais claras as razões para tal.

O nº 2 do artigo 11º da Lei 109/2009 é cristalino na afirmação da manutenção da vigência do regime constante da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho.

O objecto de ambas as leis – de 2008 e 2009 – é parcialmente coincidente. Ambas se referem e regulam “dados conservados” (Lei nº 32/2008) e “dados preservados” (Lei nº 109/2009) ou seja, depositados, armazenados, arquivados, guardados.

Em concreto, o artigo 11.º da Lei nº 109/2009 dispõe que as normas de carácter processual previstas naquele capítulo aplicam-se a processos relativos a crimes:

a) Previstos na lei (ou seja, falsidade informática, dano informático, sabotagem informática, acesso ilegítimo, intercepção ilegítima e reprodução ilegítima – artigos 3º a 9º do diploma);

b) Cometidos por meio de um sistema informático; ou

c) Em relação aos quais seja necessário proceder à recolha de prova em suporte electrónico.

O artigo 4.º, nº 1 da Lei nº 32/2008 dispõe que as normas de carácter processual previstas naquele capítulo aplicam-se aos:

a) Dados necessários para encontrar e identificar a fonte de uma comunicação;

b) Dados necessários para encontrar e identificar o destino de uma comunicação;

c) Dados necessários para identificar a data, a hora e a duração de uma comunicação;

d) Dados necessários para identificar o tipo de comunicação;

e) Dados necessários para identificar o equipamento de telecomunicações dos utilizadores, ou o que se considera ser o seu equipamento;

f) Dados necessários para identificar a localização do equipamento de comunicação móvel.

Indubitavelmente existe coincidência de objecto na previsão de ambas as normas quando prevêm a possibilidade de recolha de prova nos processos «em relação aos quais seja necessário proceder à recolha de prova em suporte electrónico» [al. c) do artigo 11º da Lei 109/2009] e os dados previstos no nº 1 do artigo 4º da Lei nº 32/2008 («Dados necessários…»), na medida em que estes são prova em suporte electrónico a ser recolhida para o processo.

A Lei de 109/2009 assume um carácter geral no seu âmbito de aplicação, não distinguindo dados arquivados pela sua natureza, o que abrange todos eles e o regime processual da Lei nº 32/2008 constitui relativamente aos dados “conservados” que prevê no seu artigo 4º, um regime especial relativamente ao capítulo processual penal geral que consta dos artigos 11º a 19º da Lei nº 109/2009.

Assim, sequer o catálogo de crimes altera a posição a tomar nestes autos na medida em que já concluímos que o catálogo de crimes da Lei nº 32/2008, muito mais exigente, contempla e permite o acesso no caso concreto.

Questão que se coloca, em termos meramente sistemáticos, já que irrelevante para o caso concreto, é se o catálogo de crimes que permite a aplicabilidade do regime processual da Lei nº 109/2009 - de uma grande amplitude na medida em que a al. c) do artigo 11º se define pela “necessidade processual” e não pela natureza do crime – mantém características aceitáveis de delimitação de um “catálogo de crimes” como é usual na legislação portuguesa.

Que não é um catálogo muito restritivo esse é um ponto claro.

E assim sendo, a segunda e sequente questão seria a de apurar se não foi precisamente isso o pretendido pelo legislador na Lei nº 109/2009. Parece-nos ser esse o caso, com exclusão dos dados contidos no artigo 4º da Lei nº 32/2008.

A colocação desta dúvida sistemática assume uma função meramente retórica, pois que o essencial é saber se a Lei nº 32/2008 se apresenta de alguma forma revogada. A resposta, apesar de não ser fácil (não obstante a literalidade do nº 2 do artigo 11º da Lei nº 109/2009), parece-nos negativa.

Isto é, a Lei nº 32/2008 mantém-se imperante quer para a vigência do seu catálogo de crimes enquanto barreira processual no acesso aos dados, mantendo aquele catálogo uma função de delimitação em função da natureza dos “dados”, assim como para o processamento nos termos do diploma (artigos 3º a 9º do mesmo).

Assim concluimos, como anteriormente no acórdão de 20-01-2015, que o regime processual da Lei 32/2008, revela-se vigente para todos os dados que estejam especificamente previstos no seu artigo 4º, n. 1. - No acórdão por nós relatado em 20-01-2015, ponto 13 do sumário, parece haver uma limitação para os dados conservados relativos à localização celular, aparência que resultou da circunstância de o caso concreto a isso dizer respeito.

Em todos os outros casos de dados será aplicável o regime processual contido nos artigos 12º a 17º da Lei nº 109/2009.

Inexistente lacuna, não é aplicável norma do Código de Processo Penal relativo às escutas telefónicas (não é caso de intercepção em tempo real tendo presente o disposto nos artigos 18º e 19º da Lei nº 109/2009).

Daqui decorre e para o caso concreto, tendo presente que os dados pretendidos se incluem no catálogo da Lei nº 32/2008, que se investiga “crime grave” e que razões pragmáticas aconselham o tratamento processual unificado de todos os dados necessários à investigação, a procedência do recurso no seu aspecto substancial, incluindo a necessidade da prova - requisito substancial referido pelo nº 1 do artigo 9º da Lei 32/2008 - o haver “razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter no âmbito da investigação, detecção e repressão de crimes graves”.

Mas a opção pelo regime processual contido na Lei nº 32/2008 tem outra clara consequência: a atribuição clara de competência ao juiz de instrução para ordenar/autorizar a “transmissão” de dados ao Ministério Público e às policias, como claramente decorre do artigo 9º do diploma.

Fica, portanto, afastada a aplicação do regime processual mais permissivo contido na Lei nº 109/2008, mesmo quanto à intervenção do juiz de instrução, que claramente apenas actua nos casos excepcionais referidos nos nsº 3 e 5 do artigo 16º do diploma, sendo a regra geral a atribuição de competência à “autoridade judiciária” – artigos 15º e 16º da lei.

Consequentemente deverá o Mmº Juiz lavrar despacho em consonância com o decidido, tendo presente igualmente o prazo limite de conservação dos dados contido na legislação aplicável.


***

C - Dispositivo:

Face ao que precede acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso, devendo ser lavrado despacho judicial em consonância com o decidido.

Notifique.

Dada a urgência comunique de imediato ao tribunal recorrido com cópia do acórdão.

Sem tributação.

(Processado e revisto pelo relator)

João Gomes de Sousa

Carlos Campos Lobo