Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | SÍLVIO SOUSA | ||
Descritores: | CESSÃO DE QUOTA CLÁUSULA ACESSÓRIA FORÇA PROBATÓRIA | ||
Data do Acordão: | 05/10/2018 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
Sumário: | São válidas as cláusulas verbais acessórias, respeitantes à contraprestação pela cedência de quotas de uma sociedade, não só porque não estão “abrangidas pela razão da exigência da forma”, como também não colidem com o conteúdo da escritura de cedência, na parte em que esta tem força “força probatória plena”. | ||
Decisão Texto Integral: |
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Évora: Relatório AA e mulher, BB, moradores na rua dos …, nº …, Tomar, intentaram a presente ação declarativa, contra CC e mulher, DD, com domicílio profissional na avenida …, … travessa, na mesma cidade, pedindo a sua condenação no pagamento da importância de €8.675,00, acrescida de juros moratórios, a contar de 17 de maio de 2013, articulando factos que, em seu critério, conduzem à sua procedência, a qual foi julgada improcedente. Face às conclusões antes referidas, o objeto do recurso circunscreve-se à apreciação da seguinte questão: saber se os recorridos devem ou não a quantia reclamada.
Fundamentação A - Os factos Na sentença impugnada, foram considerados os seguintes factos: 1 - O Autor AA foi sócio e gerente da EE, Lda., sociedade por quotas, com sede social na avenida …, … travessa, em Tomar, detentora do NIPC … e com o capital social de €25.000,00; 2 – A sua quota, na referida sociedade, tinha o valor nominal de €16.175,00; 3 - A sociedade foi declarada insolvente, no âmbito do processo nº 782/12.7 TBTMR (Apresentação), que correu termos no 1º. juízo do extinto Tribunal Judicial de Tomar; 4 - No âmbito do referido processo de insolvência, foi aprovado um plano de insolvência, que o administrador de insolvência apresentou, o qual, após aprovação pelos credores, veio a ser homologado, por sentença, em 12 de março de 2013, transitada em julgado, em 30 de abril seguinte; 5 - O referido plano previa, além do pagamento dos créditos reconhecidos - sendo que os valores de salários e subsídios que se encontravam vencidos seriam integralmente liquidados - uma alteração na estrutura do capital social, por forma a ficarem sócios o ora Réu CC, com 70% do capital social e o Autor AA com 30%; 6 - Na sequência da aprovação do plano de insolvência, os Autores AA e mulher, BB, na qualidade de primeiros outorgantes, FF e mulher, GG, na qualidade de segundo outorgantes e o Réu CC, na qualidade de terceiro outorgante, outorgaram, em 17 de maio de 2013, uma escritura pública de cessão de quotas, nomeação de gerente e alteração do pacto social, com, nomeadamente, o seguinte teor: “ (…) Disseram o primeiro e segundo outorgantes: Que são os únicos sócios, além da própria sociedade, da Sociedade Comercial por quotas EE, Lda., com NIPC/matrícula …, da Conservatória do Registo Comercial de Tomar, com o capital social de vinte e cinco mil euros (…) Que, o requerido capital social de vinte e cinco mil euros, integralmente realizado em dinheiro, corresponde à soma de quatro quotas, uma no valor nominal de quatro mil euros e outra no valor nominal de doze mil cento e setenta e cinco euros, ambas pertencentes ao ora primeiro outorgante, uma no valor nominal de dois mil e cem euros, pertencente ao ora segundo outorgante, e a restante no valor nominal de seis mil setecentos e vinte e cinco, pertencente à própria sociedade, todas devidamente liberadas. Que, na qualidade de únicos sócios da indicada sociedade, decidem, por unanimidade, constituir-se em Assembleia Geral, com dispensa de formalidades prévias, para deliberar sobre o consentimento para a divisão e cessão de quotas que a seguir efetuarão. Que, pela presente escritura, na referida qualidade, por unanimidade, deliberam consentir nas citadas divisão e cessões. Que a sociedade não possui bens imóveis. Disseram o primeiro e segundo outorgantes: Que, em execução do plano de insolvência aprovado por deliberação da Assembleia de Credores, nos autos de insolvência de pessoa coletiva (Apresentação) nº 782/12.7 TBTMR, que corre termos no tribunal Judicial de Tomar (…) a sociedade sua representada cede ao terceiro outorgante, pelo preço de seis mil setecentos e vinte cinco euros, a quota de que é titular, de igual valor nominal. Mais disseram os primeiros outorgantes: O primeiro, que pela presente escritura, divide a quota de que é titular, no valor nominal de doze mil cento e setenta e cinco euros, em duas novas quotas: uma no valor nominal de sete mil e quinhentos euros e a restante no valor nominal de quatro mil, seiscentos e setenta e cinco euros. Ambos que, em execução do referido plano de insolvência, pela presente escritura cedem ao terceiro outorgante, pelo valor igual ao seu valor nominal, a quota que o primeiro é titular, no valor nominal de quatro mil seiscentos e setenta e cinco euros. O primeiro, que em execução do referido plano de insolvência, pela presente escritura, cede ao terceiro outorgante, por valor igual ao seu valor nominal, a quota que é titular, no valor nominal de quatro mil euros. A primeira, que presta ao respetivo cônjuge a necessária autorização a esta cessão. Disseram ainda aos segundos outorgantes: Que pela presente escritura, em execução do plano de insolvência, cedem ao terceiro outorgante, por valor igual ao seu valor nominal, a quota que o segundo é titular, no valor nominal de dois mil e cem euros. Disse o terceiro outorgante: Que aceita a presente cessões, nos termos exarados. Que, pela presente escritura, unifica as três quotas de que agora é titular, numa única quota no valor global de dezasseis mil e quinhentos euros. Disseram o primeiro e terceiro outorgantes; Que, na qualidade de agora únicos sócios da sociedade decidem constituir-se em Assembleia Geral, com dispensa de formalidade prévias, para deliberar, por unanimidade: a) nomear o agora sócio, CC, gerente da indicada sociedade; b) eliminar o artigo quinto do pacto social, renumerar os artigos sexto, sétimo e oitavo, que passam ser o quinto, sexto e sétimo respetivamente, e alterar a redação dos artigos primeiro, segundo, terceiro, quarto do pacto social, que passam a ter a seguinte redação: (…) Artigo Terceiro O capital social, integralmente realizado em dinheiro, é de vinte e cinco mil euros e corresponde à soma de duas quotas, uma no valor nominal de sete mil e quinhentos euros, pertencente ao sócio AA, e a restante no valor nominal de dezassete mil e quinhentos euros, pertencente ao sócio CC. Artigo Quarto Para obrigar a sociedade são necessárias as assinaturas conjuntas de dois gerentes.
7 - Pela cedência ao Réu CC das quotas no valor nominal de €8.675,00 não foi paga ao Autor AA qualquer quantia; 8 - O Réu CC assumiu, de imediato, a gerência da sociedade; 9 - Com data de 16 de janeiro de 2015, subscrita pelo seu mandatário, o Autor AA remeteu à EE, Lda., que a recebeu, uma carta com, nomeadamente o seguinte teor: “ (…) Fui devidamente mandatado pelo Exmo. Sr. AA, no sentido de renunciar à gerência de V. Exas., devido a ocorrência anómalas. Ou seja, desde Maio de 2013, a minha função de gerente na EE, Lda. resume-se a assinar cheques para pagamento a fornecedores, sempre antecedidos de ordens do outro sócio que detém a maioria do capital social. Portanto, só para cumprimento do estipulado no pacto social, que exige duas assinaturas para obrigar a sociedade, é que tenho intervenção, sendo que foi retirada, de facto, a minha função de gerente societário desconhecendo, desde a data já referida, o estado da sociedade, assim como os seus compromissos para com terceiros e, principalmente, para com o estado, ou seja, a sua vida. Assim sendo, de acordo com o plasmado no número 1 do artigo 285º. do Código das Sociedades Comerciais, o meu constituinte renuncia à gerência da EE, Lda. (…)”; 10 - Com data de 16 de janeiro de 2015, subscrita pelo seu mandatário, o Autor AA remeteu ao Réu CC, que recebeu, uma carta, com, nomeadamente o seguinte teor: “ (…) Fui devidamente mandatado pelo meu constituinte Sr. AA, no sentido de sanar conflitos, trazidos por V. Exa., desde que faz parte da EE, designadamente quanto a cessão de quotas. Por escritura, lavrada no Cartório Notarial de Tomar, em 17 de Maio de 2013, foi-lhe cedida parte da participação social do meu constituinte, na EE, Lda., no montante de 4.675,00€ (quatro mil seiscentos e setenta e cinco euros), no entanto, até à presente data V. Exa. não o ressarciu da quantia em causa. Assim sendo, solicito a V. Exa., que se digne, no prazo a que a situação obriga, ou seja, com muita urgência, entregar-me o montante em dívida que, caso não ocorra, nada mais resta do que intentar o consequente procedimento judicial. Mais cumpre trazer à colação o Contrato de Cesão de Quotas que V. Exa. colocou à disposição do meu constituinte a favor da firma HH, onde era cedido o capital correspondente a 7.500,00 €, pela quantia de 1 € (um euro). Naturalmente, para já, o meu constituinte não vai ceder o seu capital social a quem quer que seja, pela quantia em causa, até porque V. Exa. não honrou o seu compromisso de retirar avais bancários do meu cliente, conforme assumiu aquando da cedência já outorgada, o que se aguarda. (…)”; 11- O Réu CC propôs ao Autor AA a aquisição da quota deste, pelo valor de €1, a favor da sociedade HH, o que sucederia em troca da extinção da dívida existente para com esta sociedade; 12 - Em 2012, a EE encontrava-se num contexto de grande adversidade económica, com um passivo que excedia os €285.000,00 e com um ativo baixo, por referência ao passivo; 13 - A viabilidade da mesma passava pela liquidação dos créditos aos fornecedores, o que se manifestava de impossível de concretização, por falta de liquidez, créditos e ativo; 14- Perante este quadro, o Réu CC, apresentou aos sócios da EE, que eram o ora Autor AA e FF, como sendo um potencial interessado em investir na empresa, propondo a entrada de dinheiro para a sociedade, quer de forma direta, quer por intermédio do pagamento direto aos fornecedores do valor necessário à viabilização da sociedade e em contrapartida os sócios ceder-lhe-iam quotas numa percentagem necessária a que ficasse detentor da maioria do capital social; 15 - Somente com a entrada de dinheiro na sociedade seria possível formular um plano de recuperação viável; 16 - De outra forma, a EE não teria viabilidade e seria liquidada, com a consequente perda das quotas dos sócios; 17 - Os sócios então detentores do capital social da EE, em seu nome e em sua representação, a qual era, igualmente, de detentora de uma quota, aceitaram a proposta apresentada pelo Réu CC; 18 - De acordo com essa proposta, o Réu CC entrava com dinheiro na empresa, pagando os salários em atraso de todos os trabalhadores, liquidava parte das dívidas da sociedade a todos os fornecedores de cujo fornecimento de material a manutenção da EE dependia (o valor a liquidar aos referidos fornecedores seria todo o que se mostrasse por aqueles exigido para desbloquearem o fornecimento de matérias-primas) e a HH, sociedade do referido Réu, com sede em França, tornava-se cliente da EE, permitindo assegurar uma faturação que, por certo, ascenderia aos 80%; 19 - Tal proposta deveria ser executada na medida do necessário para a recuperação e consequente retoma da empresa à atividade, gerando receitas para se manter; 20 - Como contrapartida, pretendia o Réu CC tornar-se sócio maioritário da metalúrgica, sendo que o pagamento das quotas que lhe viessem a ser cedidas seria o cumprimento da proposta; 21- O sócio FF não pretendia mais continuar com qualquer quota na sociedade EE, tendo-a cedido, na sua totalidade, ao Réu CC; 22- O referido plano de insolvência espelha a proposta apresentada pelo Réu CC e aceite; 23 - Na sequência da aprovação do plano de insolvência, o Réu CC procedeu ao pagamento dos salários em atraso de todos os trabalhadores da sociedade EE, relativos ao ano de 2012, incluindo o próprio salário do Autor AA, que desempenhava as funções de gerente; 24 - Procedeu ao pagamento de salários dos trabalhadores, incluindo o do Autor AA, durante alguns meses do ano 2013, uma vez que a sociedade ainda não tinha capacidade para gerar receitas suficientes; 25 - Procedeu ao pagamento a alguns fornecedores, por forma a ser desbloqueado o fornecimento de matérias-primas, nomeadamente: €8.563,90, a II; €12.392,50, a JJ, Lda.; €28.000,00, a LL, tendo ainda procedido a depósito - caução, a favor deste fornecedor, no valor de €60.000,00; 26 - Efetuou encomendas - em representação da sua sociedade em França, HH - à EE, que permitiram a esta começar a gerar receitas, reiniciando a sua atividade, tendo, designadamente, o volume de vendas atingido cerca de €600.000,00; 27 - Por não estar o Sr. Advogado devidamente mandatado para o efeito, a carta datada de 15 de janeiro de 2015, não foi aceite pela Sra. Conservadora do Registo Comercial, para efeitos de registo de renúncia à gerência, pelo que foi convocada assembleia pelo sócio -gerente, aqui Réu, CC, para que viesse o Autor AA esclarecer se se mantinha na gerência ou se mantinha a sua posição de renunciar à mesma, tendo este renunciado; 28 - O Autor AA renunciou à gerência na referida reunião, ocorrida em 5 de fevereiro de 2015. B - O direito/doutrina/jurisprudência
- “O instituto do abuso de direito, como princípio geral moderador dominante na globalidade do sistema jurídico, apresenta-se como verdadeira “válvula de segurança” vocacionada para impedir ou paralisar situações de grave injustiça que o próprio legislador preveniria se as tivesse previsto, de tal forma que se reveste, ele mesmo, de uma forma de antijuricidade cujas consequências devem ser as mesmas de qualquer ato ilícito” [6]; por outras palavras ainda: existe abuso do direito “(…) quando alguém, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objetivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos, apoditicamente, ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, designadamente com intenção de prejudicar ou comprometer o gozo do direito de outrem ou de criar uma desproporção objetiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências a suportar por aquele contra o qual é invocado” [7]. C - Aplicação do direito aos factos O recorrente/demandante AA e o recorrido/demandado CC, na sequência da submissão da devedora EE, Lda. a um “plano de insolvência”, não integraram, na escritura de 17 de maio de 2013, toda a “ regulamentação convencional dos seus interesses”. Efetivamente e com relevância para os autos, limitou-se o primeiro a declarar a cedência de duas quotas, “pelo valor igual ao seu valor nominal” - €4.675.00 e €4.000,00 -, cessão que o segundo disse aceitar. Decisão Pelo exposto, decidem os juízes desta Relação, julgando a apelação improcedente, manter a sentença impugnada. Custas pelo recorrente. ******* Évora, 10 de maio de 2018 Sílvio José Teixeira de Sousa Manuel António do Carmo Bargado Albertina Maria Gomes Pedroso
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