Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
607/14.9T8SLV-I.E1
Relator: CONCEIÇÃO FERREIRA
Descritores: HABILITAÇÃO DE HERDEIROS
ACEITAÇÃO DA HERANÇA
REPÚDIO DA HERANÇA
Data do Acordão: 02/13/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Tendo, embora de forma tácita, aceitado a herança - ao solicitar, noutro processo, a habilitação de herdeiro - a sua irrevogabilidade torna manifestamente inviável um posterior repúdio dessa mesma herança.
Decisão Texto Integral: Apelação n. º 607/14.9T8SLV-I.E1 (2ª Secção Cível)


ACORDAM OS JUÍZES DA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
Na Comarca de Faro (Juízo de Execução de Silves - Juiz 1) no âmbito da ação executiva 607/14.T8SLV vieram os exequentes (…) e Outros deduzir incidente de habilitação de sucessores da executada (…) alegando, para o efeito, ter esta falecido e ser o requerido (…), enquanto filho, seu herdeiro, requerendo a habilitação deste para ocupar na lide a posição daquela.
O requerido foi notificado e veio opor-se à habilitação, invocando ter repudiado a herança por escritura de 06/06/2016.
Em sede de resposta, os requerentes, vêm defender que o repúdio é ineficaz em virtude do requerido no âmbito de outro processo (ação pauliana n.º 4709/11.5TBPTM) ter requerido a sua própria habilitação na qualidade de herdeiro da sua falecida mãe, habilitação que lhe foi reconhecida por sentença transitada em julgado, proferida em 05/05/2016.
Por sentença de 16/11/2018 foi julgado improcedente o pedido de habilitação.
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Inconformado com esta decisão, interpôs o requerente (…) o presente recurso terminando nas respetivas alegações, por formular as seguintes conclusões que se transcrevem:
1 – O recorrente e os restantes exequentes vieram em face do óbito da executada (…), requerer incidente de habilitação contra o recorrido.
2 – Em 5 de Maio de 2016, foi proferida sentença judicial já transitada em julgado noutro processo (Processo n.º 4709/11.5TBPTM-B, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Portimão – Instância Central – J2), na qual o recorrido foi habilitado por morte de sua mãe (…), juntamente com o seu pai também executado nestes autos, entretanto já falecido, processo esse, que teve também como partes intervenientes o ora recorrente e os restantes exequentes.
3 – O recorrido após o trânsito em julgado dessa sentença de habilitação, veio mediante escritura pública outorgada no dia 6 de Junho de 2016 repudiar a herança de sua mãe (…).
4 – Em face do repúdio efetuado pelo recorrido, veio a sentença recorrida considerar improcedente o pedido de habilitação deduzido pelo recorrente e os restantes exequentes contra o recorrido, para o julgar habilitado na herança de sua mãe.
5 - Ora, prescreve o artigo 353º, nº 1, do Código de Processo Civil, que “se a qualidade de herdeiro ou aquela que legitimar o habilitando para substituir a parte falecida já estiver declarada noutro processo, por decisão transitada em julgado, ou reconhecida em habilitação notarial, a habilitação tem por base a certidão da sentença ou escritura, sendo requerida e processada nos próprios autos da causa principal.”
6 - O repúdio efetuado pelo Recorrido à herança de sua mãe, (…), é ilegal e de nenhum efeito, conforme o artigo 353º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
7 - Pretendeu o Recorrido, usar o repúdio da herança para impedir o prosseguimento da execução, ou pelo menos, retardar o prosseguimento da execução contra ele Recorrido, até porque na sentença da ação pauliana, também já transitada em julgado, foi o mesmo condenado, juntamente com os seus pais, (…) e (…), a declarar-se a impugnação pauliana dos atos de transmissão efetuados entre eles, assim como foi condenado o Recorrido a restituir os imóveis ao património dos seus pais, de modo a que o Recorrente e os restantes exequentes pudessem executá-los na medida dos seus interesses, no que se mostrasse à satisfação do seu crédito.
8 - No entanto, ainda que o repúdio da herança possa ter efeitos retroativos, nunca poderá destruir os efeitos do caso julgado da sentença de habilitação de herdeiros, onde já havido sido reconhecida a sua qualidade de herdeiro do Recorrido, ainda mais, em incidente suscitado até pelo próprio.
9 - A decisão recorrida teve em conta o repudio da herança, mas ignorou completamente a decisão judicial já transitada em julgada noutro processo onde o recorrido foi declarado habilitado, até por sua iniciativa (juntamente com o seu pai), na herança de sua mãe, violando assim o art. 353.º, do CPC.
10 - A razão de ser deste dispositivo legal é evitar a contradição de julgados sobre os mesmos sujeitos e a mesma questão fundamental.
11 - A decisão recorrida entra em contradição com anterior decisão judicial já transitada em julgado.
12 – A sentença recorrida violou entre outros, o disposto nos arts. 353.º, 628.º, do CPC.
13 – O recorrido não veio em sede de contestação alegar que a decisão que o considerou habilitação como herdeiro de sua mãe não preenche as condições exigidas no art. 353.º, n.º 1, do CPC, ou que enferme de vicio que o invalida, como tal, esse documento (certidão da sentença judicial de habilitação transitada em julgado), faz prova plena da sua legitimidade como herdeiro de sua mãe.
14 – Andou mal o tribunal a quo quando, sem mais decidiu absolver o recorrido do pedido de habilitação contra si deduzido pelo recorrente e os restantes exequentes com base na escritura pública de repúdio de herança, sem atender à habilitação decidida com transito em julgado noutro processo.

Cumpre apreciar e decidir

O objeto do recurso é delimitado pelas suas conclusões, não podendo o tribunal superior conhecer de questões que aí não constem, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso

Tendo por alicerce as conclusões, a única questão que importa apreciar consiste em saber se bem andou o Julgador “a quo” em não declarar habilitado o requerido para prosseguir na execução como executado no lugar da sua falecida mãe.

No tribunal recorrido omitiu-se a fundamentação de facto, ferindo a decisão proferida de nulidade, a qual este Tribunal Superior passa a suprir, descrevendo os factos com relevância para o conhecimento da questão:
1. A executada (…) faleceu no dia 18/02/2016.
2. O requerido (…), casado sob o regime de comunhão de adquiridos com (…), é filho da falecida (…).
3. O requerido (…), no âmbito do processo n.º 4709/11.5TBPTM-B, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro (Portimão – Instância Central – 2ª secção Cível - J2) veio deduzir incidente da sua própria habilitação para intervir nesses autos como herdeiro habilitado da ré (…), sua falecida mãe, tendo por sentença de 05/05/2016, transitada em julgado, sido habilitado por morte de sua mãe, processo esse, que teve também como partes intervenientes o ora recorrente e os restantes exequentes.
4. Após o trânsito em julgado da sentença aludida em 3., o requerido mediante escritura pública, outorgada 06/06/2016, veio repudiar a herança de sua mãe (…).

Conhecendo da questão
A habilitação consiste na prova da aquisição, por sucessão ou transmissão, da titularidade dum direito ou complexo de direitos, ou doutra situação jurídica ou complexo de situações jurídicas, com vista à substituição de alguma das partes prevista na al. a) do artº 263º, do CPC.
Na decisão recorrida o julgador, que não descreveu quaisquer factos, limitou-se em face da existência de repúdio a excluir a habilitação.
Diz o artº 2031º do C. Civil que «a sucessão abre-se no momento da morte do seu autor», enquanto o artº 2032º, nº 1, explicita que «aberta a sucessão, serão chamados à titularidade das relações jurídicas do falecido aqueles que gozam de prioridade na hierarquia dos sucessíveis». Estabelece o artº 2050º, nº 1, que «o domínio e posse dos bens da herança adquirem-se pela aceitação, independentemente da sua apreensão material», ao passo que o subsequente nº 2 determina que «os efeitos da aceitação retrotraem-se ao momento da abertura da sucessão». Por sua vez, esclarece o artº 2052º, nº 1, que «a herança pode ser aceita pura e simplesmente ou a benefício de inventário». O artº 2056º, nº 1, declara que «a aceitação pode ser expressa ou tácita», sendo expressa, segundo o seu nº 2, «quando nalgum documento escrito o sucessível chamado à herança declara aceitá-la ou assume o título de herdeiro com a intenção de a adquirir». Acrescenta o artº 2061º que «a aceitação é irrevogável».
Como vimos, a aceitação da herança é expressa ou tácita, sendo irrevogável. Isto significa que se se puder extrair da atuação do executado habilitado a conclusão de que o mesmo aceitou a herança de sua mãe, primitiva executada, então a irrevogabilidade dessa aceitação tornará manifestamente inviável um posterior repúdio.
Quanto propriamente ao repúdio, recorde-se que o artº 2062º do C. Civil estabelece que «os efeitos do repúdio da herança retrotraem-se ao momento da abertura da sucessão, considerando-se como não chamado o sucessível que a repudia, salvo para efeitos de representação», sendo que também «o repúdio é irrevogável», nos termos do artº 2066º do C. Civil.
No caso dos presentes autos, o recorrido veio [conjuntamente com o seu pai (entretanto já falecido)), deduzir um incidente de habilitação, pedindo que fossem habilitados para intervirem nos autos em substituição da ré [(mãe e mulher) já falecida], (…).
Nesse processo, que correu termos com o nº 4709/11.5TBPTM-B, os requerentes (filho e pai), fundamentaram tal pretensão no óbito da ré e na sua sucessão, enquanto filho e cônjuge sobrevivo.
Tendo-se decidido por sentença transitada em julgado e proferida em 5 de Maio de 2016, o seguinte.
“Em face do exposto, julga-se procedente o incidente de habilitação, declarando-se habilitados (…) e (…), em substituição de (…), para contra eles prosseguirem os ulteriores termos da causa”.
Ora, prescreve o artº 353, nº 1, do CPC, que “se a qualidade de herdeiro ou aquela que legitimar o habilitando para substituir a parte falecida já estiver declarada noutro processo, por decisão transitada em julgado, ou reconhecida em habilitação notarial, a habilitação tem por base a certidão da sentença ou escritura, sendo requerida e processada nos próprios autos da causa principal”.
Segundo Salvador da Costa in Os Incidentes Da Instância, 4ª ed., 250 «A decisão transitada em julgado a que alude este normativo é aquela que for proferida, por exemplo, no processo a que alude o nº 1 do artº 2075º do Código Civil, ou em processo de inventário, ou em habilitação incidental proferida noutro processo». E mais adiante refere “no que concerne à sentença visou evitar a repetição da discussão judicial da mesma questão entre as mesmas pessoas, por um lado dispensável, e, por outro, suscetível de gerar decisões contraditórias”.
Verifica-se, assim que a decisão recorrida, teve em conta o repúdio da herança, mas ignorou a decisão judicial já transitada em julgado no outro processo, onde o recorrido foi declarado habilitado, por sua própria iniciativa (juntamente com o seu pai), na herança de sua mãe.
Temos, pois que no caso presente foi o próprio recorrido que veio requerer a sua própria habilitação, por óbito de sua mãe, enquanto filho e sucessor desta. Este seu comportamento, afigura-se-nos claramente revelador de uma aceitação tácita da herança, assumindo a qualidade de sucessor, que lhe adveio da força de caso julgado da sentença de habilitação.
Entendemos, assim, que no presente caso, existiu uma aceitação tácita da herança, pois tal ocorre quando a vontade de aceitação “se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam”, isto é de «factos concludentes» (Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, Coimbra Editora, vol. II, 18 e 29).
Tendo, embora de forma tácita, aceitado a herança, a sua irrevogabilidade torna manifestamente inviável um posterior repúdio: mais do que uma nulidade, será um caso manifesto de inexistência jurídica (Cfr. Ac. do TRP de 02/02/2015 no processo 102048/12.7 YiPRT.p1 disponível em www.dgsi.pt)
Assim sendo, é irrelevante a apresentação de documento de repúdio em momento posterior, dado que a declaração é ineficaz em virtude das antecedentes circunstâncias, em face da anterior sentença de habilitação de herdeiros implicar a impossibilidade do ora recorrido impugnar essa qualidade. No mesmo sentido vão os acórdãos do TRL de 13/3/2007, proc.933/2007-1; TRG de 04/10/2017, proc.1336/15.1T8VRL.G1; TRP de 26/5/2009, proc.4593/03.2TBSTS-C.P1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Nestes termos procede o recurso sendo de revogar a sentença recorrida.

DECISÃO
Pelo exposto decide-se julgar procedente a apelação e, em consequência revoga-se a sentença recorrida, declarando-se habilitado (…) como sucessor de (…).
Custas de parte pelo requerido.
Évora, 13 de fevereiro de 2020
Maria da Conceição Ferreira
Rui Manuel Duarte Amorim Machado e Moura
Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes