Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
598/08.5GBTVR-A.E1
Relator: MARIA FERNANDA PALMA
Descritores: SUBSTITUIÇÃO DA MULTA POR TRABALHO
INCUMPRIMENTO
Data do Acordão: 03/11/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I – Quando a pena de multa tenha sido substituída, a requerimento do arguido, pela prestação de trabalho, perante o não cumprimento parcial dos dias de trabalho, não deve operar-se a conversão da multa em prisão subsidiária, sem que seja averiguado se tal incumprimento é culposo ou não, de harmonia com o disposto no art. 49.º do Código Penal.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a secção criminal do Tribunal da Relação de Évora

No Processo Comum Singular nº 598/08.5GBTVR, o Mmº Juiz a quo proferiu o seguinte despacho, este datado de 15-07-2013:

“Por sentença transitada em julgado foi o arguido condenado na pena de 85 (oitenta e cinco) dias de multa, a qual foi convertida em dias de trabalho a favor da comunidade, tendo o arguido chegado a cumprir 4 horas (cfr. fls. 203), os quais serão descontados na pena de multa a converter.

Cumpre apreciar e decidir:

Ora, preceitua o artigo 49º, nº 1, do Código penal que:

«Se a multa, que não tenha sido substituída por trabalho, não for paga voluntária ou coercivamente, é cumprida prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços, ainda que o crime não fosse punível com prisão, não se aplicando para o efeito, o limite mínimo dos dias de prisão constante do nº 1 do artigo 41º».

Em conformidade, uma vez que o remanescente da multa a que o arguido foi condenado (85-04-81) não foi paga voluntária (por uma só vez ou em prestações) ou coercivamente (esta por se afigurar inviável), deverá essa pena ser substituída por prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços, ou seja, 54 (cinquenta e quatro) dias.

Face ao exposto, converto a pena de multa remanescente de 81 (oitenta e um) dias a que o arguido foi condenado em 54 (cinquenta e quatro) dias de prisão subsidiária, determinando que o arguido cumpra a mesma.

Consigna-se que o arguido pode a todo o tempo evitar, total ou parcialmente, a execução da pena de prisão subsidiária, pagando, no todo ou em parte, a multa em que foi condenado (cfr. artigo 49º, nº 2, do Código Penal).

Notifique e após trânsito, conclua.”

Inconformado com o despacho proferido, recorreu o arguido, concluindo nos seguintes termos:

a) O despacho recorrido onde se converte a pena de multa não paga em prisão subsidiária não se encontra suficientemente fundamentado.

b) O despacho recorrido violou o princípio do contraditório ao não proceder à prévia audição do arguido, violando o art.º 61.º n.º 1 alínea a) do CPP.

c) O despacho recorrido violou o art.º 32.º n.º 1 e 5 da CRP, que consagra que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa e deve estar subordinado ao princípio do contraditório.

d) Mesmo havendo lugar à aplicação de prisão subsidiária, esta poderia ainda ser suspensa, nos termos do n.º 3 do art.º 49º do CP, ouvida que fosse o arguido, sendo certo que sempre é preciso dar, ao condenado, oportunidade de se pronunciar e eventualmente provar que o não pagamento lhe não é imputável.

e) O despacho onde se notifica o arguido da conversão da multa em prisão subsidiária enferma da nulidade prevista no artigo 120.º n.º 2 al. d) do CPP, por não haver procedido previamente à audição do arguido perante um juiz de direito e no Tribunal.

f) Mostram-se igualmente violados os princípios da proporcionalidade, da necessidade e da adequação inscrito no artigo 18.º da Constituição ínsitos no artigo ao não considerar outra solução que não a revogação da suspensão da pena e a determinação sem mais da execução da pena de prisão substituta da pena de multa sem a prévia aquisição do conhecimento das causas do incumprimento, tal e tanto implica a revogação da douta decisão ora recorrida e a sua substituição por outra que obedecendo aos citados princípios Constitucionais determina a audição do arguido recorrente por forma a exercer o direito do contraditório, justificar o incumprimento e podendo ainda requerer a aplicação de medida alternativa à da execução de prisão, nos termos do disposto no artigo 49.º n.º 3, do Código Penal Português.

g) Antes de o Tribunal a quo converter automaticamente a pena de multa não paga em prisão subsdiária e efectiva aplicada ao arguido, deveria ter ouvido o arguido sobre as razões do não cumprimento do pagamento da pena de multa em que foi condenada, em consonância com os termos e para os efeitos do artigo 61.º n.º 1 al. a) do CPP e do artigo 32.º n.º 1 e 5 da CRP.

Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente, e em consequência, declarar nulo o despacho que converteu a pena de multa aplicada ao arguido em prisão subsidiária, sem prévia audição deste e em clara violação do princípio do contraditório violando o art.º 61.º n.º 1 al. a) do CPP sendo que o despacho recorrido violou o art.º 32.º n.º 1 e 5 da CRP, ou caso assim não se entenda, condiderar-se que o não pagamento da multa não pode ser imputado ao arguido e ser assim, a prisão subsidiária decretada, suspensa na sua execução, nos termos do n.º 3 do art.º 49 do CP.

O Ministério Público respondeu, pronunciando-se pela improcedência do recurso, concluindo nos seguintes termos:

1 - Alega o arguido que o douto despacho de 27 de Julho de 2013- que converteu o remanescente pena de multa em que foi previamente condenado em prisão subsidiária - enferma de nulidade porquanto foi proferido sem que previamente lhe houvesse sido dada a possibilidade de justificar a razão do não pagamento atempado da pena de multa em que foi condenado.

2 - É falso o alegado pelo arguido de que não lhe foi dada possibilidade para se pronunciar quanto às razões do não pagamento da pena de multa em que foi primeiramente condenado.

3 - Compulsados os autos verifica-se que: Por despacho de 27-5-2013, já depois de se ter verificado que o arguido não havia cumprido/pago a pena de multa em que foi condenado a Mmª Juiz titular do processo à data exarou o seguinte despacho:“… Notifique o arguido, bem como o respectivo defensor para proceder ao pagamento do remanescente da pena de multa em falta, com a advertência de que se a mesma (no todo ou em parte) não for paga voluntariamente – uma vez que a execução coerciva se mostra inviável- poderá ser convertida em prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços – cf. artigo 49º, nº 1 a 3, do Código Penal. Após, conclua”

4 - Tal despacho foi notificado ao arguido dia --- e ao defensor no dia----.

O despacho exarado pela Mm.ª Juiz em 5-5-2010 não carecia de ser pessoalmente notificado ao arguido, podendo ser – como foi – notificado na pessoa do seu defensor.

5 - Daí que o arguido tenha sido bem notificado para se pronunciar pelas razões do não pagamento da pena de multa em que foi condenado e não se tenha por verificado nos autos qualquer nulidade decorrente da violação do princípio do contraditório conforme referido pelo arguido.

6 - Sem prescindir

7 - Salvo o devido respeito, se a falta de audição em causa, como refere o arguido, traduz a nulidade supra mencionada – o que não se concede, como abaixo se exporá – então também não deixa de ser verdade que a arguição da mesma nos autos é extemporânea, por não ter sido feita em devido tempo.

8 - Com efeito, não podia o arguido ter sido notificado da decisão da conversão em causa e só em sede de recurso sobre a mesma vir alegar a suposta nulidade decorrente da violação do princípio do contraditório.

9 - Como o próprio artigo 120.º,nº2 al. d) do CPP refere, a nulidade prevista na sua alínea d) tem que ser arguida.

10 - E o prazo para o efeito – já que o nº3 do mencionado artigo não o estipula – é o prazo geral de 10 dias, previsto no artigo 105.º, nº1 do Código de Processo Penal.

11 - Assim, ao não ter arguido a (suposta) nulidade prevista no artigo 120.º, nº2 al.d) do CPP, decorrente da sua não audição prévia à prolação do despacho de conversão da pena de multa em prisão subsidiária, dentro dos 10 dias posteriores à notificação de tal despacho o arguido permitiu que a suposta nulidade ficasse sanada.

12 - No entanto, sempre se refere que a não audição prévia do arguido ao despacho de conversão da pena de multa em prisão subsidiária não constitui a nulidade prevista no artigo 120.º, nº 2 al. d) do Código de Processo Penal.

13 - Defende o arguido que ao não ter providenciado pela sua audição em momento prévio à prolação do despacho de conversão da pena de multa em prisão subsidiária a Mmª Juiz a quo violou manifestamente o principio do contraditório e por conseguinte os seus direitos de defesa, cometendo por isso mesmo a nulidade prevista no artigo 120.º, nº 2 al. d) do Código de Processo Penal, pois ao não ouvir o arguido tomou a decisão de converter a pena de multa em prisão subsidiária sem todos os elementos para o efeito, designadamente sem os elementos que (na perspectiva do arguido) apontam no sentido da sua não culpa no não pagamento atempado da pena de multa em que foi condenado.

14 - Ora, salvo o devido respeito por opinião contrária, a não audição prévia do arguido ao despacho de conversão da pena de multa em prisão subsidiária – a que alude o artigo 49.º, nº 1 do Código Penal -, não traduz qualquer nulidade processual por violação do princípio do contraditório e por omissão de diligências que possam reputar-se essenciais para a descoberta da verdade.

15 - E isto porquanto é no momento posterior à prolação do despacho de conversão da pena de multa em prisão subsidiária que, por lei, o arguido tem o direito/dever de vir alegar que o não pagamento da pena de multa em causa não foi devido a culpa sua.

16 - Razões pelas quais não merece provimento o recurso interposto pelo arguido, devendo a douta decisão recorrida ser mantida.

Neste Tribunal da Relação da Évora, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seu parecer, no qual entende, no seguimento da posição defendida pelo Ministério Público na 1ª Instância, que tanto o arguido como o seu defensor foram notificados, e bem, tanto do despacho que ordenou a sua notificação para proceder ao pagamento do remanescente da pena de multa em falta, com a advertência a que alude o artigo 49º, nº 1 e 3 do Código Penal, como do despacho recorrido.

Porém, quanto ao cerne da questão entende, em suma, o seguinte:

O artigo 49º do Código Penal, ao estabelecer a conversão da multa não paga em prisão subsidiária, distingue, claramente, a situação da multa que não foi substituída por trabalho daquela que resulta do incumprimento do regime de trabalho.

Na verdade, neste último caso, conforme dispõe o artigo 49° n° 4 do Código Penal, haverá sempre a distinguir os casos em que o incumprimento do trabalho foi culposo daqueles em que o não foi. E o disposto nos n°s 1 e 2 é correspondentemente aplicável ao caso em que o condenado culposamente não cumpra os dias de trabalho pelos quais, a seu pedido, a multa foi substituída. Se o incumprimento não lhe for imputável, é correspondentemente aplicável o disposto no n° 3.

O douto despacho recorrido ao aplicar à situação em apreço o disposto no n° l do artigo 49° do Código Penal cometeu, no nosso entendimento, um erro de direito na interpretação e aplicação da lei.

Na verdade, a proposição contida no n° l do citado preceito legal, designadamente a multa que não tenha sido substituída por trabalho pressupõe que não tenha sido aplicado o instituto do artigo 48° do Código Penal mas não já que tenha sido aplicado e incumprido como parece resultar do douto despacho recorrido.

A disciplina a aplicar ao caso é a constante no n° 4 do artigo 49° do Código Penal que pressupõe o apuramento, e fundamentação em conformidade, da culpa ou falta dela no incumprimento do regime de prestação de trabalho com importantes consequências no caminho a seguir. E que no caso do incumprimento não imputável ao arguido pode a execução da prisão subsidiária ser suspensa o que não acontecerá no caso de incumprimento imputável ao condenado.

Consideramos, assim, ter a douta decisão recorrida errado na aplicação do direito, erro esse a corrigir em sede de recurso, impondo-se que se determine, em consequência, a aplicação e subsequente ponderação do regime previsto no n° 4 e não a aplicação automática do estatuído no n° l do artigo 49° do Código Penal.

Donde, embora por diferentes razões, emitimos parecer no sentido da procedência do recurso.

Como o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas pelos recorrentes nas respectivas motivações de recurso, nos termos preceituados nos artigos 403º, nº 1 e 412º, nº 1, ambos do Código de Processo Penal, podendo o Tribunal de recurso conhecer de quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida, cumprindo cingir-se, no entanto, ao objecto do recurso, e, ainda, dos vícios referidos no artigo 410º do referido Código de Processo Penal, - v. Ac. do Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95 de 19 de Outubro - vejamos, pois, se assiste razão ao arguido recorrente no que respeita às questões que suscitou nas conclusões do presente recurso.

Quanto às arguidas nulidades decorrentes de falta de notificação e audição do arguido é manifesto que as mesmas não se verificam, pois que, como bem refere o Ministério Público, em ambas as Instâncias, tanto o arguido como o seu defensor foram notificados com a cominação que o juiz a quo teve por adequada, tanto para aquele proceder ao pagamento da multa em falta, sob pena de cumprimento da prisão alternativa, como do próprio despacho, ora recorrido, que ordena o cumprimento da prisão fixada em alternativa ao tempo da multa não paga (com o desconto do tempo de trabalho cumprido a favor da comunidade).

Assim sendo, é manifesto que o despacho recorrido não padece da arguida nulidade a que alude o artigo 120º, nº 2, al. d) do Código de Processo Penal, nem tão pouco constitui uma violação ao preceituado no artigo 61º, nº 1, al. a) do mesmo diploma legal, ou do artigo 32º, nºs 1 e 5 da Constituição.

Como tal, improcede esta pretensão do recorrente.

Quanto à questão de fundo, temos que o arguido foi condenado na pena de oitenta e cinco dias de multa, a qual foi convertida em dias de trabalho a favor da comunidade, tendo o arguido cumprido quatro horas desse mesmo trabalho a favor da comunidade.

O Mmº Juiz a quo, invocando infundadamente, já que não alude ao motivo concreto pelo qual isso acontece, que a cobrança coerciva da multa se mostra inviável, lançou mão do disposto no artigo 49º, º 1, do Código Penal, e ordenou o cumprimento da prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços.

Ora, está em causa uma pena de multa que foi substituída por trabalho a favor da comunidade, tendo existido um incumprimento do benefício fixado.

Como tal, quanto a estes casos, dispõe o nº 4 do citado artigo 49º do Código Penal que: “O disposto nos nºs 1 e 2 é correspondentemente aplicável ao caso em que o condenado culposamente não cumpra os dias de trabalho pelos quais, a seu pedido, a multa foi substituída. Se o incumprimento lhe não for imputável, é correspondentemente aplicável o disposto no número anterior.”

Esse número anterior, o nº 3, do artigo 49º do Código Penal, por sua vez, dispõe que, “Se o condenado provar que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável, pode a execução da prisão subsidiária ser suspensa, por um período de um a três anos, desde que a suspensão seja subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro. Se os deveres ou as regras de conduta não forem cumpridos, executa-se a prisão subsidiária; se o forem a pena é declarada extinta”.

No caso sub judice, não consta do despacho recorrido, sequer, as razões pelas quais o arguido incumpriu o trabalho a favor da comunidade.

Por outro lado, o mesmo nada disse quando foi notificado para proceder ao pagamento da multa, com a cominação de, não o fazendo, cumprir a prisão subsidiária.

Porém, em momento algum lhe foi dada expressamente a possibilidade de explicar o motivo pelo qual não continuou a prestar o trabalho a favor da comunidade, sendo que só dessa explicação se poderia aferir a existência ou inexistência de culpa da sua parte, esta fundamental para aplicação de um dos regimes legais previstos no artigo 49º do Código Penal.

Como tal, o despacho recorrido deverá de ser substituído por outro que aplique o regime constante dos nºs 3 e 4 do citado artigo 49º do Código Penal.

Assim, e pelo exposto, acordam os Juízes que constituem a secção criminal do Tribunal da Relação de Évora, em conceder provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido, o qual deverá de ser substituído por outro que tome em consideração os comandos legais acima referidos.

Sem tributação.

Évora. 11-03-2014

MARIA FERNANDA PEREIRA PALMA
MARIA ISABEL ALVES DUARTE