Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
74167/13.1YIPRT.E1
Relator: RUI MACHADO E MOURA
Descritores: PRESCRIÇÃO PRESUNTIVA
INCOMPATIBILIDADE
CUMPRIMENTO
Data do Acordão: 03/12/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - O devedor, ao invocar a prescrição presuntiva e para que dela possa beneficiar, terá de produzir afirmação clara e inequívoca de que o pagamento do crédito reclamado já foi efectivamente realizado.
2 - Por isso, na oposição que deduzir, não poderá o devedor impugnar o montante da dívida peticionada pelo credor, nomeadamente, negando a mesma ou considerando o seu valor exagerado.
Sumário do Relator
Decisão Texto Integral: P.74167/13.1YIPRT.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

(…) – Construções e Projectos, Lda. apresentou requerimento injuntivo contra (…) pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de 52.809,00 €, a que acrescem juros de mora à taxa legal, desde 21/7/2008 até integral pagamento, os quais até à data da apresentação do presente requerimento se cifram em 21.366, 54 €, bem como na quantia de 153,00 € a título de taxa de justiça devida pela interposição deste requerimento.
Para o efeito alegou a A. que, no âmbito do seu objecto social, prestou à R., a pedido desta e nos termos de contrato de empreitada entre ambas celebrado, em prédio urbano propriedade desta última, trabalhos de construção civil, que discriminou. Referiu ainda que tais trabalhos foram recebidos pela R., não tendo esta apresentado qualquer reclamação, os quais foram terminados em 21 de Julho de 2008. Nesta data, a A. interpelou a R. para proceder ao pagamento do valor dos trabalhos, no montante supra referido de 52.809,00 €, o que a R. não fez até à presente data, apesar das repetidas solicitações da A. para o efeito.
Pela R. foi apresentada oposição, na qual invocou a excepção peremptória de prescrição, alegando, em suma, que o crédito da A., nos termos em que é alegado, estaria prescrito, atento o disposto no art.317º alínea b) do Cód. Civil, designadamente por se enquadrarem naquela os serviços cuja prestação vem alegada pela A.
Foi proferido despacho saneador, no qual a Mmª Juiz “a quo” conheceu da referida excepção, julgando verificada a prescrição e, em consequência, absolveu a R. do pedido.
Inconformada com tal decisão dela apelou a A. tendo apresentado para o efeito as suas alegações de recurso e terminando as mesmas com as respectivas conclusões, nas quais salienta, em resumo, que, para a R. poder beneficiar da prescrição presuntiva, nos termos dos arts. 312º e 317º alínea b) do Cód. Civil, é primordial a alegação do pagamento, sendo certo que, a R. em momento algum da sua oposição, alega que já pagou a quantia em dívida à A. e, por outro lado, é entendimento, unânime, da Jurisprudência que, no caso das prescrições presuntivas é fundamental a alegação de pagamento por parte do devedor o que, repete-se, a R. não fez, nem, tão pouco, alega que não é comerciante.
Pela R. foram apresentadas contra alegações nas quais pugna pela manutenção da decisão recorrida.
Atenta a não complexidade da questão a dirimir foram dispensados os vistos aos Ex.mos Juízes Adjuntos.
Cumpre apreciar e decidir:
Como se sabe, é pelas conclusões com que a recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639º nº 1 do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem [1] [2].
Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na decisão recorrida for desfavorável à recorrente (art. 635º nº 3 do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (nº 4 do mesmo art. 635º) [3] [4].
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na decisão recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação da recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
No caso em apreço emerge das conclusões da alegação de recurso apresentadas pela A., ora apelante, que o objecto do mesmo está circunscrito à apreciação da questão de saber se, relativamente ao crédito peticionado por aquela nestes autos, está verificada a excepção da prescrição presuntiva invocada pela R. e a que alude a alínea b) do art. 317º do Cód. Civil.
Analisando de imediato a questão suscitada pela apelante no presente recurso convirá referir, a tal propósito, que a figura da prescrição presuntiva está expressamente prevista nos arts. 312º a 317º do Cód. Civil, constituindo tal figura uma presunção de pagamento, a qual tem por base o facto de as obrigações a que se refere costumarem ser pagas em prazo bastante curto, não sendo costume exigir-se quitação do respectivo pagamento.
Assim, decorrido o prazo previsto na lei para o efeito presume-se que o pagamento foi efectuado, dispensando-se o devedor da prova deste, prova essa que poderia ser-lhe difícil ou quase impossível de fazer, dado não se exigir, por via de regra, documento de quitação ou, a existir, não se conservar o mesmo por muito tempo.
Esmiuçando mais essa ideia base subjacente a esse tipo de presunções escrevia já então Cunha Gonçalves que “as dívidas a que estes artigos se referem costumam ser pagas, ou na época dos seus vencimentos, ou sem demora alguma, já por assim o exigir a natureza das obrigações, já por ser essa a imposição das praxes sociais” - cfr. Tratado de Direito Civil, Vol. III, pag.726.
Para mais à frente acrescentar ainda “que todas as prescrições atrás referidas são baseadas numa presunção de pronto pagamento, seja porque representam, numa maioria dos casos, meios de vida normais do respectivo credor, que não pode consentir em largas demoras, seja porque os usos sociais assim o impõem, seja, enfim, porque tais dívidas costumam ser pagas sem recibo” – cfr. ob. cit. págs. 739/740.
Já, por sua vez, Menezes Cordeiro sustentava que tais presunções se reportam a débitos marcados pela oralidade ou próprios do dia-a-dia – cfr. Tratado de Direito Civil Português, I Parte Geral, Tomo IV, Coimbra, 2005, pág. 181.
E daí que, decorrido o prazo legal – de seis meses ou de dois anos, conforme a situação caía, respectivamente, no âmbito da previsão dos arts. 316º e 317º do Cód. Civil – presume a lei que o pagamento foi efectuado, ficando, assim, o devedor dispensado da sua prova, dado que, pelas razões acima expostas, isso poderia tornar-se-lhe difícil.
A prescrição presuntiva funciona, assim, e na realidade, como um benefício estabelecido fundamentalmente a favor do devedor, dispensando-o da prova do pagamento, a que normalmente está obrigado - cfr. art. 342º nº 2 do Cód. Civil.
Deste modo, provado o decurso do prazo legalmente estatuído para a situação em concreto (bem como os demais factos descritos nos já referidos arts. 316º e 317º, relativos nomeadamente à natureza do crédito, à qualidade dos contraentes e à ligação entre o crédito e as respectivas actividades profissionais) presume-se o cumprimento, passando a recair sobre o credor o ónus de ilidir essa presunção. Ou seja, e ao contrário do que se passa com o normal instituto da prescrição, a lei admite que as prescrições presuntivas possam ser afastadas, pelo credor, mediante a prova da manutenção da dívida.
Porém, a prova da elisão de tal presunção de cumprimento está limitada à confissão feita do devedor originário ou daquele a quem porventura a dívida tenha sido transmitida por sucessão. Confissão essa que tanto pode ser feita judicial como extrajudicialmente (sendo que neste caso só releva quando for feita por documento escrito do devedor), e tanto de forma expressa como de forma tácita, sendo que, neste último caso, ela só poderá ocorrer se o devedor se recusar a depor ou a prestar juramento no tribunal ou então se praticar em juízo actos incompatíveis com a presunção de cumprimento - cfr. arts. 313º e 314º do Cód. Civil.
Sobre a temática que vimos analisando, pode ver-se, entre outros - em tal sentido e para maior desenvolvimento - Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10ª ed., Almedina, págs. 1126/1127; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 3ª ed., Coimbra Editora, págs. 280 a 283; Vaz Serra, RLJ, Ano 109, pág. 243/246”e BMJ 106, págs. 53 e segs.; Sousa Ribeiro, Prescrições Presuntivas, Rev. de Direito e Economia, Ano V, 1979, nº 2, págs. 38 e segs., bem como os Acs. do STJ de 12/3/2009, 22/1/2009, 24/06/2008, 18/12/2007, 29/11/2006, 22/4/2004 e de 18/12/2003, os Acs. da R.C. de 29/4/2008 e de 26/7/2007, o Ac. da R.P. de 15/04/2004, o Ac. da R.L. de 6/6/2006 e ainda os Acs. da R.E. de 17/5/2007 e 5/7/2007, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
Ora, os “actos incompatíveis com a presunção de cumprimento”, a que alude o citado art. 314º, serão todos aqueles em que o devedor vem alegar a prescrição presuntiva do art. 317º do Cód. Civil mas, simultaneamente, vem impugnar o montante da dívida peticionada pelo credor.
Ou seja, o devedor ao invocar a prescrição presuntiva e para que dela possa beneficiar terá somente de produzir afirmação clara e inequívoca de que o pagamento do crédito reclamado já foi efectivamente realizado.
Porém, no caso em apreço, não foi isso que sucedeu uma vez que a R. - na oposição que deduziu - veio negar a dívida peticionada pela A. (cfr. art.42º do referido articulado) e, por outro lado, veio ainda alegar ser exagerado e muito superior ao valor real o montante das obras efectuadas e peticionadas pela A. nestes autos (cfr. arts. 46º e 51º do mencionado articulado).
Deste modo, resulta claro que a conduta da R., ao longo do processo, integra a figura da confissão tácita, prevista na parte final do art. 314º do Cód. Civil e, como tal, não poderá a mesma vir a beneficiar da prescrição presuntiva invocada no articulado de oposição que deduziu nos presentes autos, tendo por base a alínea b) do art. 317º do Cód. Civil, julgando-se, por isso, improcedente tal excepção.
Assim sendo, forçoso é concluir que a decisão recorrida não se poderá manter – de todo – revogando-se a mesma em conformidade e, por via disso, determina-se que os presentes autos venham a prosseguir os seus ulteriores termos na 1ª instância.

Decisão:

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o presente recurso de apelação e, em consequência, revogam a decisão recorrida nos exactos e precisos termos acima explanados.
Custas pela R./apelada.
Évora, 12 de Março de 2015
Rui Manuel Machado e Moura
Maria da Conceição Ferreira
Mário António Mendes Serrano
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[1] Cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363.
[2] Cfr., também neste sentido, os Acórdãos do STJ de 6/5/1987 (in Tribuna da Justiça, nºs 32/33, p. 30), de 13/3/1991 (in Actualidade Jurídica, nº 17, p. 3), de 12/12/1995 (in BMJ nº 452, p. 385) e de 14/4/1999 (in BMJ nº 486, p. 279).
[3] O que, na alegação (rectius, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso anteriormente definido (no requerimento de interposição de recurso).
[4] A restrição do objecto do recurso pode resultar do simples facto de, nas conclusões, o recorrente impugnar apenas a solução dada a uma determinada questão: cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 308-309 e 363), CASTRO MENDES (in “Direito Processual Civil”, 3º, p. 65) e RODRIGUES BASTOS (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. 3º, 1972, pp. 286 e 299).