Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
52/14.6GESLV-A.E1
Relator: JOÃO AMARO
Descritores: DETENÇÃO
COMPARÊNCIA SOB CUSTÓDIA
AUTORIDADE JUDICIÁRIA
ORGÃO DE POLÍCIA CRIMINAL
Data do Acordão: 02/24/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A detenção de faltoso (arguido, testemunha, ou pessoa para ser constituída como arguido), para se assegurar a sua comparência a ato para que fora regularmente notificado, só é legalmente possível quando a comparência seja perante autoridade judiciária (isto é, Juiz ou Ministério Público), e não perante órgão de polícia criminal, mesmo que este intervenha no inquérito com competência delegada pelo Ministério Público.
Decisão Texto Integral:





Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:



I - RELATÓRIO

Nos autos de inquérito nº 52/14.6GESLV, da Comarca de Faro (Silves - Instância Local - Seção Competência Genérica - J1)), veio o Ministério Público interpor recurso do despacho, proferido em 08 de Outubro de 2014, que não determinou a emissão de mandados de detenção de DMAB e de ANR para condução ao posto da GNR de Armação de Pêra (a fim de, aí, se proceder à realização de diligência processual).
Extraiu da motivação do recurso as seguintes (transcritas) conclusões:
“1ª - A requerimento do M.P., o Mmº Juiz recorrido entendeu não determinar a emissão de mandados de detenção de duas pessoas que faltaram injustificadamente a acto para que haviam sido regularmente convocados, a fim de serem conduzidas ao Posto da G.N.R. de Armação de Pêra, para serem inquiridos e constituídos arguidos, respectivamente, por ser do seu entendimento que tal detenção só é legalmente admissível para fazer comparecer tais pessoas perante autoridade judiciária, o que resultará da conjugação do art. 116º, nº2, com o art. 254º, nº1, al. a), ambos do C.P.P.;
2ª - Não constituindo a G.N.R. de Armação de Pêra, uma autoridade judiciária (art. 1º, al. b), do C.P.P.), mas antes um órgão de polícia criminal, não pode a pretensão do M.P. ser, como não foi, deferida;
3ª - É desta interpretação que discordamos, pois entendemos que o preceituado pelo art. 116º, nº2, do C.P.P., se aplica a toda e qualquer situação de falta injustificada de qualquer sujeito processual, e não visa apenas e tão só fazer comparecer aquelas pessoas que faltaram injustificadamente perante autoridade judiciária;
4ª - A detenção, para condução, a que se refere o art. 116º, nº2, do C.P.P., não se cinge nem é aplicável tão só aos actos que devam ser praticados perante Autoridade Judiciária;
5ª - Já as regras do art. 254º e ss. do C.P.P. aplicam-se apenas à situação da detenção em flagrante delito, ou fora dele, e somente são aplicáveis nos casos aí expressamente previstos – para comparência em julgamento sumário, para interrogatório de arguido detido, para aplicação de medidas de coacção, etc.;
6ª - Não é correcta a posição do Mmº Juiz recorrido quando afirma que a detenção, in casu, serve para assegurar a presença do detido perante autoridade judiciária em acto processual;
7ª - Por outro lado, tal interpretação corresponde a uma visão meramente formalista do que é ou do que deve ser a investigação num processo/crime;
8ª - A seguir-se a interpretação ora recorrida, teríamos esta situação caricata de a detenção, conforme interpreta o Mmº Juiz recorrido, levar necessariamente a pessoa detida à presença do Magistrado do M.P, para este, logo de seguida, a poder remeter ao OPC a fim de realizar a mesma diligência, ainda que por competência delegada;
9ª - Por outro lado, segundo essa interpretação, todas as diligências de investigação, em caso de falta injustificada da pessoa convocada, deveriam ser realizadas pelo Magistrado do M.P., enquanto Autoridade Judiciária, quando é do conhecimento geral que os serviços do Ministério Publico não têm meios humanos suficientes e bastantes para fazer face a todas essas diligências, e não têm meios materiais e espaços físicos para a realização de determinadas diligências, como seja a prova por reconhecimento;
10ª - Isso só serviria para emperrar mais a investigação, para tornar ainda mais lenta a justiça, e seria totalmente contrário aos princípios da economia e da celeridade processual;
11ª - Para além de que, não vemos que a emissão de mandados de detenção para assegurar a comparência de alguém, injustificadamente faltoso, em diligência a realizar em instalações do OPC, ponha em causa, de forma intolerável e injustificável, qualquer direito fundamental;
12ª - Decidindo-se como se decidiu, foi violado o disposto pelo art. 116º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Termos em que deverá dar-se provimento ao presente recurso, revogando-se, consequentemente, o douto despacho ora recorrido, devendo o mesmo ser substituído por outro que determine a emissão de mandados de detenção das duas pessoas faltosas injustificadamente, e para serem conduzidas ao Posto da G.N.R. a cargo de quem se encontra a realização das diligências de investigação”.
*
Não foi apresentada resposta ao recurso.
Neste Tribunal da Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer (fls. 27 a 32), pronunciando-se no sentido da procedência do recurso.
Efetuado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, o processo foi à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.



II - FUNDAMENTAÇÃO

1 - Delimitação do objeto do recurso.

Uma única questão, em breve síntese, é suscitada no presente recurso, segundo o âmbito das correspondentes conclusões, que delimitam o objeto do recurso e definem os poderes cognitivos deste tribunal ad quem, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do C. P. Penal: saber se a detenção prevista no artigo 116º, nº 2, do C. P. Penal, é apenas possível para comparência a atos que sejam praticados perante autoridade judiciária, ou se é também permitida para comparência a atos realizados perante entidade policial (atos processuais, praticados no âmbito de um inquérito/crime, e por competência delegada do Ministério Público).


2 - A decisão recorrida.

O despacho objeto do recurso é do seguinte teor:
“Fls. 36 (da falta):
Regularmente notificados (cfr. fls. 19 a 22), DMAB e ANR não compareceram no dia, hora e local designados e não comunicaram nem justificaram a sua ausência.
Nestes termos, julgam-se tais faltas injustificadas e, em consequência, condenam-se DMAB e ANR no pagamento, cada um deles, de uma multa que se fixa em 2 (duas) UC (cfr. arts. 116º, nºs 1 e 2, e 117º, nº 1, do CPP).
Neste quadro, requereu o Ministério público a emissão de mandados de detenção quanto às pessoas supra enunciadas para condução ao posto da GNR de Armação de Pêra, para realização de diligência processual.
Pois bem, tendo presente o teor dos arts. 116º, nº 2, e 254º, nº 1, al. b), do CPP, que, na sua conjugação, apontam no sentido de que a detenção, in casu, serve para assegurar a presença do detido perante autoridade judiciária em ato processual, sendo que a autoridade judiciária são as entidades referidas no art. 1º, al. b), do CPP (ou seja, o Juiz e o Ministério Público), tudo se conjuga para que se conclua que a pretensão do Ministério Público não deve obter acolhimento, visto que pretende a sua apresentação não perante autoridade judiciária mas perante órgão de polícia criminal (veja-se, neste sentido, o Ac. do TRP de 05/05/2010 (no proc. nº 784/08.8PAVLG-A.P1, disponível em www.dgsi.pt), onde se lê que “é constitucional e legalmente inadmissível a detenção da faltosa para comparecer em ato processual a realizar perante a PSP, dado que tal detenção, prevista no art. 254º, nº 1, do CPP, apenas é permitida para que a pessoa faltosa seja apresentada perante a autoridade judiciária em ato processual”.
Diante do exposto, não se determina a emissão dos requeridos mandados.
Notifique.
Após, remeta os autos ao Ministério Público, uma vez que os mesmos se encontram em fase de inquérito”.


3 - Apreciação do mérito do recurso.

A questão a que cabe dar resposta é apenas esta (em breve resumo): saber se é ou não admissível a emissão de mandados de detenção para comparência em diligência processual, a realizar perante órgão de polícia criminal (órgão este no qual o Ministério Público tenha delegado a realização dessa mesma diligência), em caso de falta injustificada de pessoa regularmente notificada para o efeito.
Cabe apreciar e decidir.
No despacho revidendo entendeu-se não determinar a emissão de mandados de detenção de duas pessoas, a requerimento do Ministério Público, para serem conduzidas ao Posto da GNR de Armação de Pêra, a fim de, uma delas, ser inquirida como testemunha, e, outra, ser ouvida e constituída como arguido, por se considerar que tal detenção só é legalmente admissível para fazer comparecer tais pessoas perante autoridade judiciária (como decorre do disposto nos artigos 116º, nº 2, e 254º, nº 1, al. a), ambos do C. P. Penal) - não sendo a GNR de Armação de Pêra uma autoridade judiciária, mas antes um órgão de polícia criminal (cfr. artigo 1º, als. b) e c), do C. P. Penal).
O Exmº Magistrado do Ministério Público, na motivação do recurso, discorda desse entendimento, considerando que o preceituado no artigo 116º, nº 2, do C. P. Penal, se aplica a toda e qualquer situação de falta injustificada de um cidadão a ato processual para que fora regulamente convocado, não visando apenas fazer comparecer as pessoas que faltaram injustificadamente perante autoridade judiciária (o Magistrado do Ministério Público recorrente, em defesa da sua posição, cita o Ac. da R.L. de 16-01-2014 - in www.dgsi.pt -, no qual se afirma o seguinte: “tendo a arguida faltado injustificadamente a diligência para a qual se encontrava regularmente notificada, é admissível a emissão de mandados de detenção para assegurar a sua comparência na referida diligência, ainda que a mesma deva ser perante Órgãos de Polícia Criminal com competência delegada”).
É perante este dissídio que nos confrontamos.
A nosso ver, e com o muito e devido respeito pelos argumentos expendidos pelo Exmº Magistrado do Ministério Público recorrente, a detenção de faltoso (arguido, testemunha, ou pessoa para ser constituída como arguido), para se assegurar a sua comparência a ato para que fora regularmente notificado, só é possível e legal quando a comparência seja perante autoridade judiciária (isto é, Juiz ou Ministério Público), e não perante órgão de polícia criminal, mesmo que este intervenha no inquérito com competência delegada pelo Ministério Público.
Ou seja: em nenhuma circunstância pode o Juiz mandar deter o faltoso para o fazer apresentar ao órgão de polícia criminal.
Em primeiro lugar, a detenção para assegurar a presença de uma pessoa em ato perante órgão de polícia criminal viola o preceituado no artigo 27º, nº 3, al f), da Constituição da República Portuguesa.
Na verdade, aí se permite, tão-só, a “detenção por decisão judicial em virtude de desobediência a decisão tomada por um tribunal ou para assegurar a comparência perante autoridade judiciária competente”.
Em segundo lugar, as consequências da falta injustificada de certa pessoa, regularmente convocada ou notificada para comparecer num certo dia, hora e local, estão regulamentadas no artigo 116º do C. P. Penal, estipulando-se, no seu nº 1: “em caso de falta injustificada de comparecimento de pessoa regularmente convocada ou notificada, no dia, hora e local designados, o juiz condena o faltoso ao pagamento de uma soma entre 2 UC e 10 UC”.
Mais se acrescenta, no nº 2 do mesmo artigo 116º: “sem prejuízo do disposto no número anterior, o juiz pode ordenar, oficiosamente ou a requerimento, a detenção de quem tiver faltado injustificadamente pelo tempo indispensável à realização da diligência e, bem assim, condenar o faltoso ao pagamento das despesas ocasionadas pela sua não comparência, nomeadamente das relacionadas com notificações, expediente e deslocação de pessoas. Tratando-se do arguido, pode ainda ser-lhe aplicada medida de prisão preventiva, se esta for legalmente admissível”.
Ora, para delimitar (definir e precisar) os contornos desta disposição normativa (artigo 116º, nº 2, do C. P. Penal), não podemos esquecer o preceito constitucional acima transcrito.
Dito de outro modo: não podemos conceber a comparência forçada do faltoso como uma medida ordinária, podendo ser decretada fora do necessário enquadramento constitucional (que obriga a que a comparência seja perante a “autoridade judiciária competente”).
A detenção de um cidadão só pode ocorrer nos casos e para os efeitos previstos na lei (proémio do nº 3 do artigo 27º da Constituição da República Portuguesa), e, em caso de detenção para comparência, tal detenção apenas pode ser decretada com vista a assegurar a comparência perante autoridade judiciária (artigo 27º, nº 3, al f), da Constituição da República Portuguesa) - cfr., neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Coimbra Editora, 4ª ed. revista, 2007, Vol. I, pág. 483, nota XI ao artigo 27º.
Por último, não podemos deixar de equacionar o disposto no artigo 254º do C. P. Penal.
Com efeito, e embora em diferente âmbito, verificamos que as finalidades da detenção, enunciadas nas duas alíneas do artigo 254º, nº 1, do C. P. Penal, são: “para, no prazo máximo de quarenta e oito horas, o detido ser apresentado a julgamento sob forma sumária ou ser presente ao juiz competente para primeiro interrogatório judicial ou para aplicação ou execução de uma medida de coacção” (alínea a)); ou “para assegurar a presença imediata ou, não sendo possível, no mais curto prazo, mas sem nunca exceder vinte e quatro horas, do detido perante a autoridade judiciária em ato processual” (alínea b)).
Ora, face à definição legal de autoridade judiciária (artigo 1º, al. b), do C. P. Penal), apenas aí se integra “o juiz, o juiz de instrução e o Ministério Público, cada um relativamente aos atos processuais que cabem na sua competência”, mas já não a GNR, pois esta instituição é um órgão de polícia criminal (artigo 1º, al. c), do mesmo diploma legal).
Perante o exposto, constatamos que, quer na Constituição, quer no Código de Processo Penal, em lado algum se consagra a possibilidade de ser decretada judicialmente a comparência forçada de um cidadão, mediante a sua detenção, para ato processual, por forma a assegurar a presença do detido perante um órgão de polícia criminal.
E, com esta nossa conclusão, não esquecemos que, como se sabe, o Ministério Público pode delegar nos órgãos de polícia criminal a competência para a realização de determinados atos (artigo 270º do C. P. Penal), e, do mesmo modo, não esquecemos o que resulta do preceituado no artigo 273º, nºs 1 e 4, do C. P. Penal (qualquer participante processual pode ser objeto de um mandado de comparência durante o Inquérito, mandado cuja emissão pode ser ordenada pelo Ministério Público ou pela “autoridade de polícia criminal” - quando nela tenha sido delegada a diligência ou a investigação -).
Só que, por um lado, a falta injustificada do participante processual dá lugar apenas às consequências previstas no artigo 116º, nº 2, do C. P. Penal (e a nenhumas outras), e, por outro lado, só o Juiz pode ponderar e determinar tais consequências, nomeadamente só o Juiz podendo mandar deter o referido participante processual para o fazer apresentar ao Ministério Público (e, em circunstância alguma, podendo o Juiz mandar deter o faltoso para, assim, este ser apresentado a um órgão de polícia criminal).
Em conclusão: o despacho recorrido não nos merece censura.
Posto tudo o que precede, é de improceder o recurso interposto pelo Ministério Público.



III - DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, mantendo-se o decidido no despacho recorrido.
Sem custas.
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Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 24 de Fevereiro de 2015.

João Manuel Monteiro Amaro

Maria Filomena de Paula Soares