Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
353/10.2JAFAR-D.E1
Relator: RENATO BARROSO
Descritores: LIQUIDAÇÃO DA PENA
CONTAGEM DOS PRAZOS
Data do Acordão: 06/17/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
I – A homologação do computo da pena, a que alude o n.º4 do art.477.º do CPP, pressupõe a concordância do juiz com a liquidação efectuada, mas na inexistência de consenso, nada resulta daquele comando legal que permita concluir pela impossibilidade do juiz elaborar uma nova e diferente liquidação da pena e comunicá-la às entidades competentes.

II - Os períodos de privação de liberdade deverão ser descontados no cumprimento da pena e não na pena concreta.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA


I. RELATÓRIO

A – Decisão Recorrida

Nos presentes autos de processo comum colectivo, nº353/10.2JAFAR, que corre termos no 2º Juízo Criminal do Tribunal da Comarca de Faro, o arguido A., foi condenado na pena única de 8 ( oito ) anos e 8 ( oito ) meses de prisão.

O M.P. junto daquele tribunal procedeu nos autos à liquidação desta pena de prisão, nos seguintes termos:

«Liquidação da pena do arguido A.

Pena: 8 anos e 8 meses de prisão.
Detido desde 21/10/2010 (desligado destes autos por 29 dias)
O meio da pena ocorre em 22/3/2015
2/3 ocorrem em 29/8/2016
5/6 ocorrem em 8/2/2018
O termo da pena ocorre em 20/7/2019 »

Mais promoveu a homologação desta liquidação e o cumprimento do disposto no Artº 477 do CPP.

Conclusos os autos pelo Mmº Juiz a quo foi proferido o seguinte despacho:

«Por acórdão já transitado em julgado, o arguido A. foi condenado numa pena de 8 (oito) anos e 8 (oito) meses de prisão.

O arguido foi detido à ordem dos presentes autos em 21 de Outubro de 2010 (cfr. fls. 781) rendo-lhe sido aplicada medida de coacção de prisão preventiva por despacho datado de 23 de Outubro de 2010 (cfr. fls. 875 e seguintes).

O arguido esteve preso á ordem dos presentes autos ininterruptamente até ao dia 12 de Dezembro de 2013, data em que foi ligado ao processo n.º 83/10.5GTABF, a correr termos no 1º Juízo Criminal do Tribunal da Comarca de Loulé (cfr. fls. 4293)

O arguido foi religado aos presentes autos em 09 de Janeiro de 2014 (cfr. fls. 4327)

Considerando que o arguido foi detido à ordem dos presentes autos em 21 de Outubro de 2010 tendo estado desligado dos mesmos por 29 dias (período em que esteve ligado à ordem do processo nº 83/10.5GTABF-Cfr. fls. 4352 e seguintes), por referência à data de 21 de Outubro de 2010 e avançando 29 dias, encontramos como data de referência para início do cumprimento da pena nos presentes autos o dia 19 de Novembro de 2010.

Assim, procede-se à liquidação da pena de 8 (oito) anos e 8 (oito) meses de prisão nos seguintes termos:

- Meio da Pena: 19 de Março de 2015;
- Dois terços da pena: 29 de Agosto de 2016;
- Cinco sextos da pena: 08 de Fevereiro de 2018;
- Termo da Pena: 19 de Julho de 2019.

Notifique e cumpra o Artº 477 nº1 do CPP. »

B – Recurso

Inconformado com o assim decidido, recorreu o M.P. concluindo as respectivas motivações da seguinte forma (transcrição) :

1 - O Arguido A. foi condenado na pena de 8 anos e 8 meses de prisão.

2 - Foi detido à ordem destes autos a 21/10/2010.

3 - Esteve desligado destes autos durante 29 dias.

4 – Efectivamente entre 12/12/2013 e 9/1/2014 esteve ligado à ordem do processo 83/10.5GTABF do 1º Juízo Criminal de Loulé.

5 – Assim não se pode considerar que iniciou o cumprimento da pena à ordem destes autos no dia 19/11/2010.

6 – Se o arguido não tivesse sido desligado destes autos a liquidação da pena seria a seguinte:

O meio da pena ocorria em 21/2/2015

2/3 em 31/7/2016

5/6 em 10/1/2018

O termo da pena ocorria em 21/6/2019.

7 – Como o arguido esteve desligado destes autos durante 29 dias, às datas mencionadas acrescem 29 dias.

8 – Assim, 21/2/2015 + 29 dias dá 22/3/2015

31/7/2016 + 29 dias dá 29/8/2016

10/1/2018 + 29 dias dá 8/2/2018

21/6/2019 + 29 dias dá 20/7/2019

9 – A liquidação efectuada pela Exª Srª Drª Juiz a fls. 4357 é manifestamente irreal porque se baseia num dado fictício (nunca se pode dizer que o arguido iniciou o cumprimento da pena no dia 19/11/2010)

10 – Por outro lado, o Juiz do processo não tem competência para alterar a liquidação da pena ou cômputo da pena efectuado pelo Ministério Público

11 – O Juiz do processo apenas homologa (ou não) o cômputo referido no artigo 477 nº 4 do C.P. Penal.

12 – Se o Juiz não concordar com a liquidação da pena efectuado pelo Ministério Público, não a homologa, contudo não pode alterar a liquidação da pena efectuada (art. 477 nº 4 do C.P.P.)

13 – Foram violados os artigos 477 nsº 2 e 4 do Código de Processo Penal, 80 nº 1 do Código Penal e 3º nº 1 alínea g) do Estatuto do Ministério Público.

Face ao exposto o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outra decisão que homologue a liquidação da pena efectuada a fls. 4356, deste modo se fazendo JUSTIÇA.

O arguido não respondeu a este recurso.

D – Tramitação subsequente

Aqui recebidos, foram os autos com vista à Exma Procuradora-Geral Adjunta, que militou pelo provimento do recurso.

Observado o disposto no Artº 417 nº2 do CPP, não foi apresentada resposta.

Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.

Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

A – Objecto do recurso
De acordo com o disposto no Artº 412 do CPP e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. I-A de 28/12/95 ( neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/"www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria ) o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, que aqui e pela própria natureza do recurso, não têm aplicação.

Assim sendo, importa tão só apreciar se existe razão ao recorrente quanto aos termos da liquidação da pena que defende, ou seja, de o período de desconto não dever ser efectuado ao seu cumprimento, mas antes, à pena, propriamente dita.

B – Apreciação

A questão em discussão, eminentemente jurídica é, dita de outro modo, a de saber como é que se liquida em concreto, uma pena de prisão, quando exista um período de privação de liberdade a descontar, nos termos do disposto no Artº 80 do Código Penal.

Diz esta norma:
“1 – A detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão, ainda que tenham sido aplicadas em processo diferente daquele em que vier a ser condenado, quando o facto por que for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas.

2 – Se for aplicada pena de multa, a detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação são descontadas à razão de 1 dia de privação da liberdade por, pelo menos, 1 dia de multa”.

Esta matéria já foi tratada por este Tribunal, em acórdão de 28/05/13, no Proc. 8/11.0GCDM-B.E1, relatado pelo Exmo Desembargador Drº Fernando Pina, nos seguintes termos:

«Este instituto do desconto, regulado nos artigos 80º a 82, ambos do C. Penal, assenta na ideia básica segundo a qual as privações de liberdade de qualquer tipo que o agente tenha sofrido em razão do facto ou factos que integram ou deveriam integrar o objecto de um processo penal, devem, por imperativos de justiça material, ser imputadas ou descontadas na pena a que, naquele processo, o agente venha a ser condenado.

Esta ideia vale para todas as privações da liberdade anteriores ao trânsito em julgado da decisão do processo: prisões preventivas, obrigações de permanência na habitação e quaisquer detenções (não só as referentes ao 254º mas também, v. g. as que resultem do artigo 116º, ambas do Código Processo Penal.”, Prof. Figueiredo Dias – Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime – Notícias Editorial, pág. 297.

Resulta assim claro, não existir preceito legal expresso, sobre a correcta forma de proceder a este desconto da privação da liberdade, resultante da aplicação do artigo 80º, do Código Penal, sendo conhecidas duas correntes jurisprudenciais, na interpretação e aplicação de tal disposição legal, que são exactamente as que se encontram expressas e em confronto nos presentes autos ou seja, a privação da liberdade sofrida pelo arguido deverá ser descontada na pena ou no cumprimento da pena.

Cumpre desde já afirmar, que relativamente, à aplicação do disposto no citado artigo 80º, do Código Penal, na determinação do cômputo do meio do cumprimento da pena, dos dois-terços, dos cinco-sextos e, respectivas antecipações, tudo nos termos do disposto nos artigos 477º, do Código de Processo Penal e, 61º, do Código Penal, por exclusivamente respeitar à apreciação da eventual concessão de liberdade condicional, matéria esta que nos termos do disposto no artigo 138º, alínea c), do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, Lei nº 115/2009, de 15 de Outubro, é competência exclusiva do Tribunal de Execução das Penas, o cômputo destas datas de apreciação da liberdade condicional ou sua antecipação, é por maioria de razão da única responsabilidade e competência deste tribunal de execução das penas, não sendo para este mesmo efeito, vinculativa a liquidação efectuada pelo tribunal de julgamento.

Poderá então concluir-se que, nesta repartição de poderes, ao tribunal de julgamento cabe apenas determinar e enunciar a medida concreta da pena e informar os períodos de detenção a descontar em tal medida concreta de pena (nos termos dos artigos 80° a 82° do Código Penal), competindo depois ao Tribunal de Execução das Penas a decisão última e única juridicamente relevante, sobre as datas concretas para a apreciação da eventual concessão da liberdade condicional.»

Da doutrina exposta, que se segue por inteiro, resulta evidente, desde logo, a ausência de razão do recorrente em relação a um dos argumentos expostos e que consiste na impossibilidade do juiz do processo elaborar uma liquidação da pena diferente da sugerida pelo M.P.

Diz o recorrente que o magistrado judicial não liquida penas, podendo apenas homologar, ou não, a liquidação proposta pelo M.P., mas sem a possibilidade de a alterar, caso não concorde com ela.

Com o devido respeito, não parece que assim seja, nem que tal interpretação seja autorizada pelo teor do Artº 477 do CPP, designadamente, do seu nº3, onde se refere a homologação, por parte do juiz do processo, da liquidação levada a cabo pelo M.P.

É evidente que essa homologação pressupõe a concordância com a liquidação efectuada, mas na inexistência de consenso, nada resulta daquele comando legal que permita concluir pela impossibilidade do juiz elaborar uma nova e diferente liquidação da pena e comunicá-la às entidades competentes.

Nem de outra forma poderia deixar de ser, na medida em que a dita liquidação, seja a definida pela M.P. e homologada pelo juiz, seja a cristalizada por este em divergência com aquele, em mais não se traduz do que uma mera indicação, legalmente exigida para que seja comunicada aos serviços prisionais e ao Tribunal de Execução das Penas (TEP).

Em qualquer um dos casos, sempre caberá a este último, nomeadamente ao juiz do TEP, calcular e fixar, em definitivo, a liquidação da pena do arguido, que poderá, ou não, coincidir com a avançada pelo tribunal de julgamento.

Ora se assim é e esta é uma asserção indiscutível, então nenhuma razão existe, lógica e sistemática, para que o juiz do julgamento, não concordando com a liquidação da pena desenhada pelo M.P., não a possa alterar.

Decidida esta questão, atente-se agora no outro fundamento do recurso.

Prende-se o mesmo com a divergência existente entre as liquidações da pena de prisão a que o arguido se mostra condenado, efectuadas pelo M.P. e pela Mmª Juiz a quo, em concreto, em relação ao meio e ao termo da pena, já que as datas por ambos encontradas para os dois-terços e os cinco-sextos da pena são idênticos.

Ora, por incrível que possa parecer, as ditas discrepâncias são, apenas e tão só, de 3 dias para o meio da pena e de 1 dia para o seu termo !!!!

Sem prejuízo de se lamentar que os mecanismos recursivos sejam utilizados por tão pouco, o que eventualmente só se justificará por uma qualquer guerra de capelinhas, valem, aqui e agora, os considerandos expostos no citado aresto, ou seja, que « …não existindo preceito legal concreto, conforme supra referido, que estabeleça uma forma vinculada de efectuar o desconto dos períodos de detenção, no cômputo das penas, nos termos do artigo 80º, do Código Penal, entendemos que deverá ser a fórmula que se mostre menos prejudicial ao arguido, a que deverá ser a aplicável.

Assim, entendemos que os períodos de privação de liberdade deverão ser descontados no cumprimento da pena e não na pena concreta, ou seja é preferível ficcionar um dia, como o do da data de início de cumprimento de uma pena para proceder ao seu cômputo, do que por mero despacho, e, sem qualquer fundamento legal expresso, efectuar uma alteração na medida concreta da pena, determinada por uma decisão já transitada em julgado, formalmente temos como juridicamente mais sustentável a primeira das possibilidade.

Por outro lado, o mesmo regime mostra-se sempre concretamente mais favorável aos arguidos, por permitir sempre uma apreciação da liberdade condicional mais próxima da data do início do cumprimento efectivo da pena, pois que o período de privação de liberdade a descontar, conta como cumprimento efectivo da pena de prisão, o que determina uma apreciação da liberdade condicional, mais próxima da data do início do cumprimento da pena, para além de permitir uma outra certeza jurídica ao arguido e a todos os operadores de tal período de reclusão, serviços prisionais e de reinserção social, na verificação do cômputo da pena de prisão, pois em princípio a mesma será expressa em número de anos, meses e, dias exactos.

Neste contexto e, reiterando que é nosso entendimento que ambas as interpretações aqui em disputa têm igual cabimento na “ratio” subjacente ao citado artigo 80º, nº 1, do Código Penal, cremos que é de enveredar por aquela que, tal como decorre dos princípios nesta sede penal, não desfavoreça o arguido.

Pelos motivos expostos, e aos quais se adere na íntegra, deverá seguir-se a contagem determinada pela Mmª Juiz a quo, na medida em que a mesma, como é claro pelo respectivo confronto de datas, se mostra, apesar da sua mínima diferença, ainda assim, mais favorável ao arguido.

Nesta medida, improcede o recurso.

3. DECISÃO

Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso e em consequência, manter o despacho recorrido.

Sem custas.

Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o presente acórdão foi integralmente revisto e elaborado pelo primeiro signatário.

Évora, 17 de Junho de 2014

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(Renato Damas Barroso)
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(António Manuel Clemente Lima)