Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
398/13.0TBCCH-A.E1
Relator: ISABEL PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
DOCUMENTO PARTICULAR
CONTRATO DE MÚTUO
Data do Acordão: 10/12/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A autorização concedida a entidade bancária mutuante para movimentar, designadamente a débito, contas bancárias de que o autorizante seja titular ou co-titular junto dela, não consubstancia a assunção de pagamento integral de todas as obrigações emergentes do contrato de mútuo para a mutuária, em termos tais que todo o património do autorizante fique afeto à satisfação daquelas obrigações.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 398/13.0TBCCH-A.E1


ACÓRDÃO

Acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrentes / Embargantes: (…) e (…)

Recorrida / Embargada: Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…), CRL

No âmbito da ação executiva que a Caixa de Crédito Agrícola de (…) move a (…) e (…), alicerçada num contrato de mútuo, apresentam-se estes a deduzir oposição à execução, invocando a inexistência de título executivo, e a consequente nulidade da penhora realizada.

II – O Objeto do Recurso

Decorridos os trâmites processuais legalmente previstos, foi proferida sentença julgando a oposição à execução e à penhora totalmente improcedente, determinando-se o prosseguimento dos regulares termos dos autos de execução e a manutenção da penhora realizada.

Inconformados, os embargantes apresentaram-se a recorrer, pugnando pela revogação da sentença recorrida, a substituir por outra que absolva os Recorrentes do pedido. Concluem a sua alegação de recurso nos seguintes termos:
«A) Resulta do n.º 1 da cláusula sétima que para assegurar o pagamento por parte dos mutuários e avalistas, foi entregue uma livrança que titulava o contrato de mútuo.
B) As partes convencionaram que em caso de incumprimento, poderia a Recorrida executar a livrança.
C) As partes não atribuíram força executiva ao contrato de mútuo nem quiseram que o Decreto-Lei n.º 24/91, de 11 de Janeiro, regulasse o referido contrato.
D) Os Recorridos apenas fazem parte no contrato de mútuo como garantes do pagamento.
E) Pelo referido contrato não reconheceram a existência de qualquer dívida.
F) O contrato de mútuo não é título executivo à luz do artigo 703.º do Código de Processo Civil.
G) A manifesta falta de título executivo deveria ter dado lugar a indeferimento liminar, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 726.º do Código de Processo Civil.
H) Tal facto determina a nulidade de todo o processado, nos termos e para os efeitos da alínea b) do artigo 577.º e do artigo 195.º do Código de Processo Civil, devendo a sentença ser revogada e ser substituída que indefira o requerimento executivo por falta de título executivo.»

A Recorrida apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, concluindo a sua alegação de recurso nos seguintes termos:
«A – Pelo contrato de mútuo apresentado é bem patente o reconhecimento da dívida pelos Recorrentes, bem como a utilização das quantias mutuadas;
B – Sempre tiveram os Recorrentes pleno conhecimento e consciência da totalidade do clausulado;
C - Tendo em consideração o artigo 703.º, n.º 1, do CPC de 2013, o artigo 33.º do Regime Jurídico do Crédito Agrícola Mútuo e das Cooperativas de Crédito Agrícola Mútuo, aprovado pelo DL n.º 24/91, de 11.01, para além do Acórdão do tribunal Constitucional n.º 408/2015 com força obrigatória geral, sempre terá de considerar o Contrato de Mútuo apresentado como um documento com força executiva.
D – Inexistem razões para que se determine a nulidade do processado.»

Assim, em face das conclusões da alegação dos Recorrentes, que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso[1], importa apreciar se o contrato de mútuo dado à execução constitui título executivo relativamente aos mesmos.

III – Fundamentos

A – Os factos

As factos provados em 1.ª instância

1. Em 09-10-2013, a Exequente deu entrada em juízo do requerimento executivo para instauração de ação executiva para pagamento de quantia certa.
2. Nesse requerimento executivo, indica, como título executivo, “outro título com força executiva”.
3. Nesse requerimento executivo, para além do mais, a Exequente juntou, como título executivo um “contrato de mútuo, com aval e hipoteca autónoma”, cujo teor se encontra reproduzido na sentença recorrida.

Outros dados a considerar

4. De tal documento consta:
- ter sido celebrado em 28 de setembro de 2012;
- a identificação dos Recorrentes como terceiros contraentes, avalistas;
- a declaração de que «celebram o presente contrato de mútuo com aval, ao qual atribuem força executiva»;
- que a Caixa Agrícola concede à mutuária, a seu pedido e no seu interesse, um empréstimo no montante de €500.000;
- que a mutuária declara recebida a quantia mutuada e dela se confessa devedora, obrigando-se a pagá-la com os respetivos juros, impostos , encargos e despesas;
- que a quantia mutuada se destina a financiar a reestruturação da conta caucionada ali devidamente identificada;
- que «em caso de incumprimento e nos acima aludidos, bem como se a mutuária optar pela resolução do contrato prevista no número cinco da cláusula quinta, a Caixa Agrícola desde já fica autorizada a movimentar e debitar a Conta D.O. e quaisquer outras contas, de qualquer natureza, de que a mutuária e os avalistas sejam titulares ou co-titulares, nela ou em qualquer Caixa Agrícola do Sistema Integrado do Crédito Agrícola, para efetivar e obter o pagamento das obrigações emergentes deste contrato ou de qualquer outra operação de crédito, ato ou título, inclusive descoberto em contas bancárias, podendo proceder à compensação com quaisquer saldos credores, independentemente da verificação dos respetivos pressupostos legais.» – cl. Sexta, ponto 2;
- que a mutuária entrega uma livrança por si subscrita em branco, com o aval a seguir previsto, à Caixa Agrícola, para titular as obrigações emergentes deste contrato e de eventuais alterações, e para assegurar o pagamento, sem que tal constitua novação.

5. A livrança não foi preenchida.

B – O Direito

O processo executivo alicerça-se no título executivo, no documento que lhe serve de base (cfr. art. 703.º do CPC), cabendo ao exequente instruir o requerimento executivo com cópia ou o original do título executivo (cfr. art. 724.º, n.º 4, do CPC). Toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva – art. 10.º, n.º 5, do CPC. «O título executivo constitui pressuposto de caráter formal da ação executiva, destinado a conferir à pretensão executiva um grau de certeza reputado suficiente para consentir a subsequente agressão patrimonial aos bens do devedor. Constitui, assim, a base da execução, por ele se determinando o tipo de ação e o seu objeto, assim como a legitimidade ativa e passiva para a ação.»[2] A execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor – art. 53.º, n.º 1, do CPC.

Os títulos executivos são documentos (escritos) constitutivos ou certificativos de obrigações que, mercê da força probatória especial de que estão munidos, tornam dispensável o processo declaratório para certificar a existência do direito do portador. O título executivo reside no documento e não no ato documentado, por ser na força probatória do escrito, atentas as formalidades para ele exigidas, que radica a eficácia executiva do título (quer o ato documentado subsista, quer não)[3]. Trata-se do documento do qual resulta a exequibilidade de uma pretensão e, portanto, a possibilidade de realização coativa da correspondente pretensão através de uma ação executiva; esse título incorpora o direito de execução, ou seja, o direito do credor a executar o património do devedor ou de um terceiro para obter a satisfação efetiva do seu direito à prestação (cfr. arts. 817.º e 818.º do CC).[4]

As espécies de títulos executivos estão enunciadas no art. 703.º do CPC. Entre elas, constam os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva – cfr. al. d) do n.º 1 do referido normativo legal. A intervenção legislativa decorrente da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho implicou que os documentos particulares deixassem de poder sustentar as ações executivas.

Estabelece o art. 33.º n.º 1 do Regime Jurídico do Crédito Agrícola Mútuo e das Cooperativas de Crédito Agrícola Mútuo, aprovado pelo DL n.º 24/91, de 11.01 e republicado pelo DL n.º 142/2009, de 16.6, que «Para efeito de cobrança coerciva de empréstimos vencidos e não pagos, seja qual for o seu montante, servem de prova e título executivo as escrituras, os títulos particulares, as letras, as livranças e os documentos congéneres apresentados pela caixa agrícola exequente, desde que assinados por aquele contra quem a ação é proposta, nos termos previstos no Código de Processo Civil.»

Ora, a remissão deste preceito para os «termos previstos no Código de Processo Civil» não acarreta a importação total dos requisitos previstos no Código de Processo Civil para a exequibilidade dos documentos com idêntica natureza, pois se assim fosse tal preceito não alcançaria qualquer efeito útil (a natureza de título executivo aferir-se-ia em face das regras insertas no CPC). Por conseguinte, o referido segmento apenas aponta os requisitos de exequibilidade atinentes à assinatura, versados no art. 708.º do CC.[5]

Sendo certo que tal preceito legal não foi revogado pelo art. 4.º da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho (diploma que, alterando o regime legal até aí inserto no art. 46.º do CPC, retirou força executiva aos documentos particulares – cfr. art. 703.º do CPC aprovado pela citada Lei), cabe atentar na jurisprudência emanada do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 408/2015, de 23 de setembro, com força obrigatória geral, declarando «a inconstitucionalidade da norma que aplica o artigo 703.º do CPC, aprovado em anexo à Lei n.º 41/2013, de 26.6, a documentos particulares emitidos em data anterior à sua entrada em vigor, então exequíveis por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do CPC de 1961, constante dos artigos 703.º do CPC, e 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, de 26.6, por violação do princípio da proteção da confiança (artigo 2.º da Constituição).»

No presente caso, na execução instaurada a 09/10/2013, foi apresentado como título executivo o contrato denominado de mútuo, celebrado a 28 de setembro de 2012, figurando como mutuante a exequente Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…), CRL. Acresce que as partes contratantes expressamente declararam atribuir força executiva ao referido contrato de mútuo.

Em face do exposto, norteados pela salvaguarda do princípio da proteção da confiança, cabe concluir que o documento em causa, enquanto documento particular, reveste a natureza de título executivo.

A questão que se coloca respeita à (i)legitimidade passiva da ação executiva, cumprindo apreciar se a exequibilidade daquele título se impõe aos Recorrentes Embargantes.

É certo que os Recorrentes assinaram o contrato de mútuo, do qual consta, designadamente, a disponibilização da quantia mutuada em favor da sociedade mutuária, e a assunção por parte desta da obrigação de reembolso e de pagamento de outras quantias.

Analisando, porém, todas as cláusulas contratuais, não consta que os Recorrentes tenham assumido com a mutuária o cumprimento integral de todas as obrigações pecuniárias decorrentes do referido contrato. Inexiste declaração negocial donde resulte que assumiram aquelas obrigações como suas, que se vincularam ao cumprimento integral do contrato de mútuo.

Importa notar que o facto de se terem constituído avalistas, apondo a respetiva assinatura na livrança em branco[6], bem como a circunstância de existir ainda garantia hipotecária não alcança relevo para a questão em apreço, porquanto o título dado à execução como título executivo consiste tão só no contrato de mútuo.

Por outro lado, a cláusula por via da qual os Recorrentes, em caso de incumprimento, bem como se a mutuária optar pela resolução do contrato, autorizam a Caixa Agrícola a movimentar e debitar a Conta D.O. e quaisquer outras contas, de qualquer natureza, de que sejam titulares ou co-titulares, nela ou em qualquer Caixa Agrícola do Sistema Integrado do Crédito Agrícola, para efetivar e obter o pagamento das obrigações emergentes deste contrato ou de qualquer outra operação de crédito, ato ou título, inclusive descoberto em contas bancárias, podendo proceder à compensação com quaisquer saldos credores, independentemente da verificação dos respetivos pressupostos legais, tem tão só o alcance que dela se retira: a autorização para a Caixa Agrícola movimentar e debitar contas bancárias na referida instituição para efetivar e obter pagamento de obrigações emergentes do contrato; o que implica que, existindo saldo da titularidade dos Recorrentes em conta bancária da Caixa Agrícola, esta pode pagar-se por meio dele. Não consubstancia, no entanto, a declaração de que se assume o pagamento integral de todas as obrigações emergentes do contrato, em termos de todo o seu património resultar afeto ou adstrito à satisfação daquelas mesmas obrigações, nomeadamente por via da ação executiva.

Termos em que se conclui que, tal como invocado pelos Recorrentes[7], o contrato de mútuo, em relação a si mesmos, não alcança exequibilidade. Por conseguinte, dado que não assumem a qualidade de devedores em face do título executivo dado à execução, impõe-se a extinção da execução quanto aos Recorrentes – art. 732.º, n.º 4, do CPC.

Procedem, assim, as conclusões da alegação do recurso.

As custas recaem sobre a Recorrida – art. 527.º, n.º 1, do CPC.

Ao abrigo do disposto no art. 6.º n.º 7 do RCP, dispensa-se o pagamento do remanescente da taxa de justiça, atenta a simplicidade da questão em apreço, cuja apreciação não implicou sequer a prossecução de diligências de instrução.

Concluindo: a autorização concedida a entidade bancária mutuante para movimentar, designadamente a débito, contas bancárias de que o autorizante seja titular ou co-titular junto dela, não consubstancia a assunção de pagamento integral de todas as obrigações emergentes do contrato de mútuo para a mutuária, em termos tais que todo o património do autorizante fique afeto à satisfação daquelas obrigações.

IV – DECISÃO

Nestes termos, decide-se pela procedência do recurso, em consequência do que se revoga a decisão recorrida, extinguindo-se a ação executiva relativamente aos Recorrentes.

Custas pela Recorrida.
Évora, 12 de Outubro de 2017
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria da Conceição Ferreira
Rui Machado e Moura

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[1] Cfr. arts. 637.º, n.º 2 e 639.º, n.º 1, do CPC.
[2] Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC Anotado, vol. 1.º, 3.ª edição, p. 33.
[3] Antunes Varela, Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, pág. 78 e 79.
[4] Ac. STJ de 14/10/2014 (Fernandes do Vale).
[5] Neste sentido, cfr. Ac. TRC de 16/03/2016 (Fonte Ramos).
[6] Como é sabido, a obrigação cambiária quer do aceitante quer do avalista de letra em branco surge desde logo com a aposição da respetiva assinatura nessa qualidade; a letra/livrança em branco é válida, mas só se torna eficaz depois de preenchida de harmonia com o acordo de preenchimento.
[7] Cfr. ponto n.º 25 das alegações de recurso.