Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
66/21.0T8VVC.E1
Relator: ANA MARGARIDA LEITE
Descritores: PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
ENCERRAMENTO POR FALTA DE BENS
ADMINISTRADOR JUDICIAL
REMUNERAÇÃO
Data do Acordão: 10/28/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - A existência de um bem imóvel inscrito na titularidade do insolvente e de sua ex-cônjuge, o qual integra o património comum do dissolvido casal, impede se conclua que não existem bens ou direitos a liquidar no âmbito do processo de insolvência;
II - A falta de apreensão pela administradora da insolvência do património do devedor não permite, sem mais, concluir pela insuficiência da massa insolvente, antes impõe se diligencie pelo cumprimento da apreensão determinada na sentença que declarou a insolvência;
III - A eventual inobservância pelo administrador da insolvência dos deveres que lhe incumbem pode constituir fundamento de justa causa de destituição ou, mesmo, de responsabilidade civil pelos danos causados, mas não de privação do pagamento, pelo organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça, da remuneração ou do reembolso das despesas do administrador da insolvência, em caso de encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 66/21.0T8VVC.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Évora
Juízo de Competência Genérica de Vila Viçosa


Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:


1. Relatório

Por sentença de 06-04-2021, foi declarada a insolvência de (…), divorciado, melhor identificado nos autos, tendo sido nomeada administradora da insolvência a Sr.ª Dr.ª (…) e, além do mais, determinada a apreensão, para entrega à administradora da insolvência, de todos os bens do devedor, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos, sem prejuízo do disposto no artigo 150.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
A administradora da insolvência apresentou, a 26-05-2021, o relatório a que alude o artigo 155.º do CIRE, sobre a situação do devedor, ao qual se encontra anexado, entre outros elementos, um documento intitulado AUTO DE INVENTÁRIO DE BENS, pela mesma subscrito, do qual consta que procedeu, a 26-05-2021, ao inventário dos bens do insolvente, elencando a seguinte verba única: produto da venda, na proporção de ½ (metade) da fração autónoma designada pela letra “B”, destinada a habitação, de tipologia T4, correspondente ao primeiro andar do prédio localizado na Rua (…), n.º 35-A, 7159-160, da freguesia de Borba (S. Bartolomeu), concelho de Borba, distrito de Évora, descrito na Conservatória do Registo Predial de Borba sob o n.º (…) e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…), da freguesia de Borba (S. Bartolomeu), concelho de Borba, distrito de Évora, proveniente do processo de insolvência n.º 45/21.7T8VVC, que corre termos no Juízo de Competência Genérica de Vila Viçosa do Tribunal Judicial da Comarca de Évora, em que figura como insolvente (…), ex-cônjuge do aqui insolvente.
Por despacho de 23-06-2021, por se ter entendido que a apreensão apenas se pode reportar a bens ou direitos penhoráveis que existam na esfera do insolvente e não a hipotéticos saldos de uma venda, que não compõem o seu património atual e se ter considerado que não se mostra válida a apreensão do «saldo» da venda, constatando-se que o bem em causa se encontra apreendido, na totalidade, no âmbito da insolvência conexa, foi ordenada a notificação da administradora da insolvência para informar se vai intentar ação de separação de bens.
Notificada, a administradora da insolvência informou que não tem intenção de instaurar ação de separação de bens, pelos motivos que expõe.
Foi proferido despacho datado de 15-07-2021, do qual consta, além do mais, o seguinte:
(…)
Atento tudo o exposto, e como já referido no despacho supra transcrito, a apreensão apenas pode incidir sobre bens ou direitos penhoráveis que existam na esfera do insolvente e não sobre hipotéticos saldos de uma venda, que não compõem o seu património actual – e relativamente aos quais não existe sequer uma expectativa de aquisição.
Perante tal circunstância, a «apreensão» descrita não pode produzir qualquer efeito jurídico, uma vez que o sistema não a prevê enquanto atribuição jurídica autónoma, tendo de se concluir pela inexistência de bens apreendidos na presente insolvência.
*
III. Atento o exposto, e considerando que a Sr.ª A.I. manifestou que «não tem intenção de instaurar a competente ação de separação de bens, no âmbito do presente processo de insolvência», notifiquem-se a Sr.ª A.I., o insolvente e os credores para se pronunciarem sobre o encerramento do processo por insuficiência da massa – cfr. artigo 232.º do CIRE.
*
Mais se consigna que, em caso de encerramento por insuficiência da massa, não será adiantado nenhum valor à Sr.ª A.I. a título de remuneração, uma vez que a ausência de bens que a suportem lhe é integralmente imputável (sob pena de abuso do direito – venire contra factum proprium).
Notifique.
A administradora da insolvência veio aos autos requerer a substituição do auto anteriormente apresentado por documento intitulado AUTO DE ARROLAMENTO E APREENSÃO DE BENS, pela mesma subscrito, do qual consta que procedeu, a 22-07-2021, ao arrolamento dos bens do insolvente, elencando a seguinte verba única: direito de crédito (em numerário), correspondente ao valor de metade do produto da venda da fração autónoma designada pela letra “B”, destinada a habitação, de tipologia T4, correspondente ao primeiro andar do prédio localizado na Rua (…), n.º 35-A, 7150-160, da freguesia de Borba (S. Bartolomeu), concelho de Borba, distrito de Évora, descrito na Conservatória do Registo Predial de Borba sob o n.º (…) e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…), da freguesia de Borba (S. Bartolomeu), concelho de Borba, distrito de Évora, com o valor patrimonial atribuído de € 15.275,75 (quinze mil, duzentos e setenta e cinco euros e setenta e cinco cêntimos), sendo que corresponde ao direito aqui apreendido o valor de € 7.637,88 (sete mil, seiscentos e trinta e sete euros e oitenta e oito cêntimos). Mais requereu a administradora da insolvência que não seja ordenado o encerramento do processo de insolvência, considerando a existência de um direito de crédito a favor da massa insolvente.
A credora Caixa Geral de Depósitos, S.A. declarou não se opor ao encerramento do processo por insuficiência da massa, se o produto da venda do bem apreendido no processo de insolvência n.º 45/21.7T8VVC se destinar apenas ao pagamento dos créditos desse processo, caso em que será paga na totalidade no âmbito do aludido processo; acrescenta que o presente processo não deverá ser encerrado por insuficiência da massa se vier a ser transferida para estes autos metade do produto da venda do imóvel a realizar naquele processo.
Foi proferida decisão, datada de 12-08-2021, nos termos seguintes:
Dando-se por reproduzido o fundamento jurídico plasmado nos despachos proferidos nos autos, já transcritos, do qual decorre a inexistência jurídica da «apreensão» pretendida pela Sr.ª A.I., que «incide» sobre um «direito» não previsto na lei, considerando-se que inexistem outros bens apreendidos nos autos, em consequência do regime transcrito (sem prejuízo do já disposto quanto à exoneração do passivo restante):
(i) Declara-se encerrado, por insuficiência da massa insolvente, nos termos dos artigos 230.º, n.º 1, alínea d) e 232.º, n.º 2, do CIRE, o presente processo de insolvência;
(ii) Adverte-se o(a) Sr.(a) Administrador(a) da Insolvência para o disposto no artigo 232.º, n.º 4, do CIRE;
(iii) Declara-se que cessam todos os efeitos decorrentes da declaração de insolvência, designadamente recuperando o devedor o direito de disposição dos seus bens – artigo 233.º, n.º 1, alínea a), sem prejuízo dos efeitos decorrentes do despacho inicial de exoneração do passivo restante;
(iv) Declara-se que cessam as atribuições do(a) Administrador(a) da Insolvência, excepto as relativas à apresentação de contas – artigo 233.º n.º 1, alínea b), do CIRE, ao apenso de reclamação de créditos e, bem assim, as decorrentes do despacho inicial de exoneração do pedido restante;
(v) Nos termos do art.º 233.º, n.º 6, do CIRE, qualifica-se como fortuita a insolvência.
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Registe e notifique os credores conhecidos – artigo 230.º, n.º 2, do CIRE.
Remeta certidão à Conservatória do Registo Civil competente, no prazo de 5 dias, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 38.º, n.º 2, alínea a) e n.º 5 do CIRE, com a menção de que o encerramento se deve à insuficiência da massa insolvente – artigo 230.º, n.º 2, do CIRE.
Dê publicidade à presente decisão nos termos das disposições conjugadas dos artigos 37.º, n.º 7, 38.º, n.º 7 e 230.º, n.º 2, do CIRE.
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O/A Administrador(a) da Insolvência deve proceder à entrega no tribunal, para arquivo, de toda a documentação relativa ao processo em seu poder, bem como os elementos da contabilidade do devedor que não hajam de ser restituídos ao próprio – artigo 233.º, n.º 5, do CIRE.
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Remuneração do Administrador Judicial
Nos termos dos artigos 60.º, n.º 1, do CIRE e 22.º, 23.º, n.º 1, 29.º, n.ºs 2 e 10 e 30.º, n.º 1, da Lei n.º 22/13, de 26-02 (Estatuto do Administrador Judicial) e dos artigos 1.º, n.º 1 e 3.º, n.ºs 1 e 2, da Portaria n.º 51/2005, de 20-01, o pagamento da remuneração e despesas do Sr. Administrador da Insolvência são suportados pelo Instituto de Gestão Financeira e de Infra- Estruturas da Justiça, IP.
Sem prejuízo do exposto, como decorre do despacho que antecede e resulta do histórico já supra enunciado, qualquer pretensão da Sr.ª A.I. ao adiantamento de tal quantia, uma vez que a insuficiência da massa lhe é directamente imputável, atendendo à postura que assumiu nos autos – mesmo depois de advertida do entendimento deste Tribunal, inclusivamente quanto ao direito à remuneração –, constituiria um manifesto abuso do direito, na vertente venire contra factum proprium – artigo 334.º do CC; razão pela qual não se determina qualquer pagamento pelo IGFEJ.
Notifique.
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Prestação de contas
Fixa-se o prazo de 10 dias para o Sr. Administrador(a) de Insolvência prestar contas, ou se inexistirem receitas apreendidas, ou despesas que excedam a provisão legal, com esse fundamento requerer a dispensa da mesma.
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Oportunamente vão os autos à conta para apuramento das custas do processo, a pagar, nos termos do disposto no artigo 241º, n.º 1, alínea a), do CIRE.
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II. Do apenso de reclamação de créditos:
Sem do encerramento do processo de insolvência e, bem assim, do disposto no artigo 233.º, n.º 2, alínea b), considerando o previsto no artigo 241.º, n.º 1, alínea d) e 173.º, todos do CIRE, afigura-se que o apenso de reclamação de créditos mantém interesse processual.
Assim, notifique a Sr.ª A.I. para dar cumprimento nos autos ao disposto no artigo 129.º, do CIRE, dando início ao apenso respectivo no prazo de 10 dias.

Inconformada, a administradora da insolvência interpôs recurso desta decisão, na parte relativa ao encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente e à não determinação do pagamento pelo IGFEJ de qualquer quantia a título de remuneração e de compensação de despesas, terminando as alegações com as conclusões que se transcrevem:
«A) Do encerramento do processo
A Decisão do Tribunal a quo, determinou o encerramento do processo de insolvência, por insuficiência da massa insolvente nos termos dos artigos 230.º, n.º 1, alínea d) e 232.º, n.º 2, do CIRE.
No entanto o insolvente é proprietário de ½ de um prédio que se encontra apreendido no processo 45/21.7T8VVC a correr os seus termos no Tribunal Judicia da Comarca de Évora, Juízo de Competência Genérica de Vila Viçosa, e em fase de venda.
Acordou a Administradora de insolvência, aqui Apelante, com o administrador do referido processo a divisão do produto da venda em partes iguais, a fim de evitar processo de separação de bens, e por esse motivo indicou no Auto de Arrolamento e Apreensão de bens: “produto da venda, na proporção de ½ da fração autónoma (…)”, Tendo posteriormente corrigido para “direito de crédito (em numerário), correspondente ao valor de metade do produto da venda da fração autónoma (…)
O tribunal a quo, não aceitou tal indicação com o fundamento “(…), a apreensão apenas pode incidir sobre bens ou direitos penhoráveis que existam na esfera do insolvente aos quais não existe sequer uma expectativa de aquisição. Perante tal circunstancia, a «apreensão» descrita não pode produzir qualquer efeito jurídico, uma vez que o sistema não prevê enquanto atribuição jurídica autónoma, tendo de se concluir pela inexistência de bens apreendidos na presente insolvência.
No entanto, a aqui Apelante, não concorda com o mesmo, pois no âmbito do processo de insolvência vigora o princípio de que todos os bens que o insolvente for adquirindo após a declaração de insolvência até ao encerramento do processo (isto é, os bens futuros) revertem para a massa insolvente, e no caso existe um direito de crédito a favor da massa insolvente.
Direito de crédito que é real, pois o bem já se encontrava à venda e existe um acordo para divisão do valor pelos dois processos, sendo esta uma prática comum entre os administradores de insolvência que se tem mostrado bastante proveitosa e célere, sendo que a alternativa é ficar o processo de insolvência suspenso até partilha do bem, sendo que a posterior a venda de metade do mesmo, é, praticamente, impossível.
E essa dificuldade da venda, vem do facto de só o ex-cônjuge é que poderá ter interesse em adquirir. No caso em concreto a mesma não dispõem meios financeiros para tal pois encontra-se insolvente, e qualquer outro possível comprador terá apenas interesse na aquisição do bem na sua totalidade.
Pelo que a solução apresentada pela Apelante é a que melhor se adequa e responde às consequências de ordem prática observadas.
Face ao exposto, o acordo celebrado entre a Apelante e o administrador de insolvência, sobre a divisão do valor da venda do prédio, consubstancia um o “direito de crédito (em numerário) correspondente ao valor de metade do produto da venda da fração autónoma”. Razão pela qual não deve ser declarada o encerramento do processo de insolvência.
Independentemente da decisão do tribunal em relação ao encerramento do processo, o tribunal a quo determinou a cessação das funções de administradora de insolvência e a perda de remuneração.
B) Da perda do direito de remuneração
10º
Ora, com esta decisão o tribunal a quo desconsiderou todo o trabalho efetuado pela Administrada de insolvência, aqui apelante, fez no processo, nomeadamente todo o descrito no artigo 3.º da alínea B.
11º
E ao faze-lo está em clara violação do artigo 60.º, n.º 1, do CIRE e 22.º, 23.º, n.º 1, 299.º, nºs 2 e 10 e 30.º, n.º 1, da Lei n.º 22/13, de 26 de fevereiro e ainda o artigo 59.º da Constituição da República Portuguesa.
12º
O que consubstancia numa decisão injusta e discriminatória com o único propósito de punir a administradora de insolvência, aqui apelante, por a mesma não ter o mesmo entendimento que o tribunal a quo.
13º
O tribunal a quo, não fundamenta a perda do direito de remuneração, dando apenas uma breve indicação de que se trataria de abuso de direito.
14º
No entanto os pressupostos para essa modalidade de abuso de direito, que a doutrina e jurisprudência tem seguido, não se encontram preenchidos, pelo que o tribunal a quo, não pode usar o conceito de forma ambígua e genérica como o fez, para justificar um direito constitucionalmente consagrado.
15º
E ainda determina que a mesma efetue trabalhos no processo de insolvência, sem que para isso venha a ser devidamente remunerada, novamente em clara violação do direito à retribuição pelo o seu trabalho.
16º
Não deve o tribunal retirar o direito à remuneração sem considerar todo o trabalho efetuado pela Apelante, e fundamentando de forma abstrata com abuso de direito, o que constituiu uma clara violação do disposto nos artigos 60.º, n.º 1, do CIRE e 22.º, 23.º, n.º 1, 299.º, nºs 2 e 10 e 30.º, n. º 1, da Lei n.º 22/13 de 26 de fevereiro e do artigo 59.º da CRP.
TERMOS EM QUE, E NOS MAIS DE DIREITO, DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, POR VIA DELE, SER CONSIDERADO NULO O DESPACHO, PROFERIDO PELO TRIBUNAL A QUO,
QUE:
- DECLARA ENCERRADO, POR INSUFICIÊNCIA DA MASSA INSOLVENTE, NOS TERMOS DOS ARTIGOS 230,º, N.º 1, Alínea D) e 232.º N.º 2, DO CIRE;
-DECLARA QUE CESSAM TODOS OS EFEITOS DECORRENTES DA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA, DESIGNADAMENTE RECUPERANDO O DEVEDOR O DIREITO DE DISPOSIÇÃO DOS SEUS BENS – ARTIGO 233,º N.º 1, AL. A), SEM PREJUÍZO DOS EFEITOS DECORRENTES DO DESPACHO INICIAL DE EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE;
- DECLARA QUE CESSAM AS ATRIBUIÇÕES DA ADMINISTRADORA DE INSOLVÊNCIA, EXPETO AS RELATIVAS À APRESENTAÇÃO E DE CONTAS – ARTIGO 233.º, n.º 1, Alínea B), DO CIRE, AO APENSO DE RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS E, BEM ASSIM, AS DECORRENTES DO DESPACHO INICIAL DE EXONERAÇÃO DO PEDIDO RESTANTE;
E, CASO ASSIM NÃO SE ENTENDA, DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, POR VIA DELE, SER CONSIDERADO NULO O DESPACHO, PROFERIDO PELO TRIBUNAL A QUO QUE DECLARA A PERDA DO DIREITO DE REMUNERAÇÃO, PERMITINDO À ADMINISTRADORA DE INSOLVÊNCIA, AQUI APELANTE, RECEBER PELO TRABALHO EFETUADO NO PROCESSO.»
Não foram apresentadas contra-alegações.
Face às conclusões das alegações da recorrente, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre apreciar as questões seguintes:
- do encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente;
- do pagamento da remuneração da administradora da insolvência e do reembolso das despesas.
Corridos os vistos, cumpre decidir.


2. Fundamentos

2.1. Decisão de facto
Com interesse para a apreciação das questões suscitadas, extrai-se dos autos, além dos elementos indicados no relatório supra, ainda o seguinte:
a) consta da certidão de registo predial relativa à fração autónoma designada pela letra B, correspondente ao 1.º andar, do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Borba sob o n.º (…) e inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo (…), da freguesia de Borba (S. Bartolomeu), concelho de Borba, além do mais, o seguinte:
- pela apresentação 1 de 2000/11/06, foi inscrita a aquisição, por compra, a favor de (...) e de (…), casados entre si no regime de comunhão de adquiridos;
- pelas apresentações 4 de 2002/05/13, 2 de 2006/05/30 e 1 de 2007/07/23, foram inscritas hipotecas voluntárias a favor de Caixa Geral de Depósitos, S.A., para garantia de empréstimos;
- pela apresentação 1996 de 2021/04/01, foi inscrita declaração de insolvência de … (divorciada), por sentença de 2021/02/18, transitada em julgado a 2021/03/09, proferida no processo de insolvência n.º 45/21.7T8VVC, do Juízo de Competência Genérica de Vila Viçosa do Tribunal Judicial da Comarca de Évora.

2.2. Apreciação do objeto do recurso

2.2.1. Encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente
Declarada nos presentes autos a insolvência do devedor, o processo prosseguiu, vindo a ser declarado encerrado com fundamento em insuficiência da massa para a satisfação das custas do processo e das restantes dívidas da massa insolvente, por se ter entendido não haver património a liquidar, dado inexistirem bens apreendidos nos autos.
Esta declaração de encerramento do processo, com fundamento em insuficiência da massa, vem posta em causa na apelação intentada pela administradora da insolvência, que sustenta não se verificar a razão determinante da decisão proferida.
A apelante invoca a existência de um bem imóvel comum do casal constituído pelo insolvente e sua ex-cônjuge, divorciados sem que tenha havido partilha dos bens comuns; acrescenta que a ex-cônjuge do devedor foi declarada insolvente no processo n.º 45/21.7T8VVC, que corre termos no Juízo de Competência Genérica de Vila Viçosa do Tribunal Judicial da Comarca de Évora, no âmbito do qual foi apreendido o imóvel comum, que será vendido nesses autos, cabendo ao ora insolvente o direito a metade do produto a obter com a aludida venda; sustentando que a indicada verba será transferida para os presentes autos, afirma a recorrente que não se verifica a insuficiência da massa insolvente, pelo que defende a revogação da decisão de encerramento do processo.
Vejamos se se verifica a causa que baseou a declaração de encerramento do processo de insolvência.
As causas de encerramento do processo, nos casos em que os autos tenham prosseguido após a declaração de insolvência, encontram-se elencadas no n.º 1 do artigo 230.º do CIRE, com a redação seguinte: 1 - Prosseguindo o processo após a declaração de insolvência, o juiz declara o seu encerramento: a) Após a realização do rateio final, sem prejuízo do disposto no n.º 6 do artigo 239.º; b) Após o trânsito em julgado da decisão de homologação do plano de insolvência, se a isso não se opuser o conteúdo deste; c) A pedido do devedor, quando este deixe de se encontrar em situação de insolvência ou todos os credores prestem o seu consentimento; d) Quando o administrador da insolvência constate a insuficiência da massa insolvente para satisfazer as custas do processo e as restantes dívidas da massa insolvente. e) Quando este ainda não haja sido declarado, no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante referido na alínea b) do artigo 237.º
Estando em questão o encerramento por insuficiência da massa insolvente, cumpre atender ao disposto no artigo 232.º do CIRE, preceito que estatui, além do mais, o seguinte: 1 - Verificando que a massa insolvente é insuficiente para a satisfação das custas do processo e das restantes dívidas da massa insolvente, o administrador da insolvência dá conhecimento do facto ao juiz, podendo este conhecer oficiosamente do mesmo. 2 - Ouvidos o devedor, a assembleia de credores e os credores da massa insolvente, o juiz declara encerrado o processo, salvo se algum interessado depositar à ordem do tribunal o montante determinado pelo juiz segundo o que razoavelmente entenda necessário para garantir o pagamento das custas do processo e restantes dívidas da massa insolvente. (…) 7 - Presume-se a insuficiência da massa quando o património seja inferior a € 5.000,00.
Importa aferir, no presente recurso, se ocorre a situação prevista na alínea d) do n.º 1 do citado artigo 230.º, oficiosamente conhecida pelo tribunal de 1.ª instância, isto é, se constam dos autos elementos que permitam concluir que a massa insolvente não é suficiente para a satisfação das custas do processo e das restantes dívidas da massa insolvente.
A massa insolvente abrange, salvo disposição em contrário, todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo, conforme dispõe o n.º 1 do artigo 46.º do CIRE; esclarece o n.º 2 do indicado preceito que os bens isentos de penhora só são integrados na massa insolvente se o devedor voluntariamente os apresentar e a impenhorabilidade não for absoluta.
Abrangendo a massa insolvente, em princípio, todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos pelo mesmo adquiridos na pendência do processo, cumpre averiguar se o património do devedor não se mostra suficiente para a satisfação das custas do processo e das restantes dívidas da massa insolvente.
No caso presente, encontrando-se assente que a fração autónoma identificada na alínea a) de 2.1. está inscrita na titularidade do insolvente e de sua ex-cônjuge, assim constituindo um bem comum do dissolvido casal, não pode concluir-se que inexistam bens ou direitos a liquidar.
Verificando-se que o mencionado bem imóvel integra o património comum do dissolvido casal, tal impede se considere demonstrado, nesta fase processual, que o património do devedor se mostra insuficiente para satisfazer as custas do processo e as restantes dívidas da massa insolvente, o que impõe a revogação da decisão recorrida.
Conforme decorre do relatório supra, por sentença de 06-04-2021, foi declarada a insolvência do devedor e, além do mais, determinada a apreensão, para entrega à administradora da insolvência, de todos os bens do devedor, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos, sem prejuízo do disposto no artigo 150.º, n.º 1, do CIRE.
Ora, não se vislumbra que tal determinação tenha sido cumprida, não se encontrando apensado ao processo principal qualquer auto de arrolamento ou balanço, nos termos estatuídos no artigo 151.º do CIRE, sendo certo que se concluiu que o aludido bem imóvel integra o património comum do dissolvido casal, do qual é titular o devedor.
Quanto à apreensão dos bens, dispõe o n.º 1 do artigo 149.º do CIRE o seguinte: 1 - Proferida a sentença declaratória da insolvência, procede-se à imediata apreensão dos elementos da contabilidade e de todos os bens integrantes da massa insolvente, ainda que estes tenham sido: a) Arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos, seja em que processo for, com ressalva apenas dos que hajam sido apreendidos por virtude de infração, quer de carácter criminal, quer de mera ordenação social; b) Objeto de cessão aos credores, nos termos dos artigos 831.º e seguintes do Código Civil. Acrescenta o n.º 2 do preceito que: 2 - Se os bens já tiverem sido vendidos, a apreensão tem por objeto o produto da venda, caso este ainda não tenha sido pago aos credores ou entre eles repartido.
Esclarece o artigo 150.º do CIRE, no n.º 2, que a apreensão é feita pelo próprio administrador da insolvência, assistido pela comissão de credores ou por um representante desta, se existir, e, quando conveniente, na presença do credor requerente da insolvência e do próprio insolvente; acrescenta o n.º 4 que a apreensão é feita mediante arrolamento, ou por entrega direta através de balanço, de harmonia com as regras constantes das alíneas a) a f) do preceito. Dispõe o artigo 151.º que o administrador da insolvência junta, por apenso ao processo de insolvência, o auto do arrolamento e do balanço respeitantes a todos os bens apreendidos, ou a cópia dele, quando efetuado em comarca deprecada.
Decorre deste regime que devem ser apreendidos todos os bens integrantes da massa insolvente – isto é, todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos pelo mesmo adquiridos na pendência do processo – ou, se já tiverem sido vendidos, o produto da respetiva venda.
Tendo-se concluído que o aludido bem imóvel integra o património comum do dissolvido casal e não resultando dos autos que tenha sido vendido, impõe-se constatar a existência de património pertencente ao insolvente não apreendido à ordem dos presentes autos.
A falta de apreensão pela administradora da insolvência do património do devedor não permite, sem mais, concluir pela inexistência de bens ou direitos a liquidar e consequente insuficiência da massa insolvente, antes impondo se diligencie no sentido do cumprimento da apreensão determinada na sentença que declarou a insolvência do devedor.
É certo que está em causa uma situação de insolvência de ambos os ex-cônjuges antes da partilha dos bens comuns, sendo que correm termos processos de insolvência distintos, o que levanta diversas dificuldades, designadamente nos casos em que existam bens comuns do dissolvido casal, como sucede no caso presente, em que a fração autónoma identificada na alínea a) de 2.1. se encontrava inscrita na titularidade de ambos os ex-cônjuges.
Porém, não está em causa apreciar, no âmbito da presente apelação, a forma de concretizar a apreensão e a subsequente liquidação do bem comum do casal – assim não havendo que tomar posição sobre se deve ser apreendido o direito à meação do cônjuge insolvente nos bens comuns ou se a apreensão deve incidir sobre determinado bem comum, com a posterior notificação do outro cônjuge para requerer, querendo, a separação de meações[1] –, mas sim as consequências da constatação da existência de património, em sede da verificação da insuficiência da massa insolvente para a satisfação das custas do processo e das restantes dívidas da massa insolvente.
Nesta conformidade, cumpre revogar a decisão recorrida, na parte em que declarou o encerramento do processo com fundamento em insuficiência da massa para a satisfação das custas do processo e das restantes dívidas da massa insolvente, determinando-se o prosseguimento dos autos, nos termos expostos.
Procede, assim, nesta parte, a apelação.

2.2.2. Pagamento da remuneração da administradora da insolvência e reembolso das despesas
Vem ainda posta em causa no recurso a decisão de não determinar o pagamento pelo IGFEJ de qualquer quantia a título de remuneração da administradora da insolvência e de reembolso de despesas, na sequência da declaração de encerramento do processo por insuficiência da massa para a satisfação das custas do processo e das restantes dívidas da massa insolvente.
Consta da decisão recorrida o seguinte:
Nos termos dos artigos 60.º, n.º 1, do CIRE e 22.º, 23.º, n.º 1, 29.º, n.ºs 2 e 10 e 30.º, n.º 1, da Lei n.º 22/13, de 26-02 (Estatuto do Administrador Judicial) e dos artigos 1.º, n.º 1 e 3.º, n.ºs 1 e 2, da Portaria n.º 51/2005, de 20-01, o pagamento da remuneração e despesas do Sr. Administrador da Insolvência são suportados pelo Instituto de Gestão Financeira e de Infra-Estruturas da Justiça, IP.
Sem prejuízo do exposto, como decorre do despacho que antecede e resulta do histórico já supra enunciado, qualquer pretensão da Sr.ª A.I. ao adiantamento de tal quantia, uma vez que a insuficiência da massa lhe é directamente imputável, atendendo à postura que assumiu nos autos – mesmo depois de advertida do entendimento deste Tribunal, inclusivamente quanto ao direito à remuneração –, constituiria um manifesto abuso do direito, na vertente venire contra factum proprium – artigo 334.º do CC; razão pela qual não se determina qualquer pagamento pelo IGFEJ.

Discordando deste entendimento, a administradora da insolvência apelante defende que lhe assiste o direito a ser remunerada pelo trabalho que desenvolveu no âmbito dos presentes autos e que a decisão em causa foi proferida com o propósito de a punir, mostrando-se a respetiva fundamentação ambígua e genérica.
É sabido que o administrador da insolvência nomeado pelo juiz tem direito à remuneração prevista no seu estatuto e ao reembolso das despesas que razoavelmente tenha considerado úteis ou indispensáveis, conforme expressamente dispõe o artigo 60.º, n.º 1, do CIRE; o artigo 22.º do Estatuto do Administrador Judicial (EAJ) – Lei n.º 22/2013, de 26-02, alterada pela Lei n.º 17/2017, de 16-05, e pelo DL n.º 52/2019, de 17-04 –, por seu turno, dispõe que o administrador judicial tem direito a ser remunerado pelo exercício das funções que lhe são cometidas, bem como ao reembolso das despesas necessárias ao cumprimento das mesmas, estabelecendo no artigo 23.º os critérios de determinação do montante remuneratório.
As remunerações do administrador da insolvência e as despesas deste constituem dívidas da massa insolvente, nos termos estatuídos no artigo 51.º, n.º 1, alínea b), do CIRE; como tal, em princípio são suportadas pela massa insolvente, conforme dispõe o artigo 29.º do EAJ, salvo nas situações a que alude o artigo 30.º do mesmo estatuto.
Nas situações previstas nos artigos 39.º e 232.º do CIRE, em que é declarado o encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente, dispõe o artigo 30.º do EAJ que a remuneração do administrador da insolvência e o reembolso das despesas são suportados pelo organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça.
A 1.ª instância entendeu afastar a aplicação desta regra ao caso presente, pelos motivos constantes do excerto supra transcrito, em consequência do que decidiu não determinar o pagamento pelo IGFEJ da remuneração da administradora da insolvência e do reembolso das despesas, apesar de ter declarado o encerramento do processo com fundamento em insuficiência da massa insolvente, nos termos previstos nos artigos 230.º, n.º 1, alínea d) e 232.º do CIRE.
A revogação da decisão que declarou o encerramento do processo com fundamento em insuficiência da massa insolvente, com o consequente prosseguimento dos autos, nos termos determinados em 2.2.1., importa a revogação da decisão ora em apreciação, a qual tem como pressuposto o encerramento baseado na indicada causa.
No entanto, sempre se dirá que, estando em causa uma situação de encerramento do processo de insolvência por insuficiência da massa insolvente, o citado artigo 30.º do EAJ dispõe que a remuneração do administrador da insolvência e o reembolso das despesas deste são suportadas pelo aludido organismo, não fazendo depender tal pagamento de quaisquer critérios de avaliação qualitativa da atividade por aquele desenvolvida no exercício das respetivas funções.
A lei prevê a fiscalização pelo juiz do exercício da atividade do administrador da insolvência e a destituição deste por justa causa, nos termos previstos nos artigos 56.º e 58.º do CIRE, bem como define, no artigo 59.º deste código, o regime da responsabilidade civil do administrador da insolvência por danos causados no exercício das respetivas funções.
É neste âmbito, e não em sede do pagamento da remuneração e do reembolso das despesas suportadas, que se impõe apreciar a eventual inobservância pelo administrador da insolvência dos deveres que lhe incumbem, a qual poderá constituir fundamento de justa causa de destituição ou, mesmo, de responsabilidade pelos danos causados, mas não de privação dos pagamentos que lhe forem devidos.
Em suma, cumpre revogar a decisão ora em apreciação, o que importa a total procedência da apelação.


Em conclusão:
(…)


3. Decisão

Nestes termos, acorda-se em julgar procedente a apelação, em consequência do que se decide revogar a decisão recorrida e determinar o prosseguimento dos autos.
Custas pela massa insolvente.
Notifique.

Évora, 28-10-2021
(Acórdão assinado digitalmente)
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite
(Relatora)
Vítor Sequinho dos Santos
(1.ª Adjunto)
José Manuel Barata
(2.º Adjunto)


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[1] Sobre esta questão, cf. Diana Raposo, “Património indiviso após divórcio – apreensão e liquidação em processo de insolvência (com menção à questão da graduação dos créditos hipotecários)”, Julgar, n.º 31, janeiro/abril 2017, p. 75-85.