Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2036/15.8T8FAR-A.E1
Relator: RUI MACHADO E MOURA
Descritores: SEGUNDA PERÍCIA
REQUISITOS
Data do Acordão: 03/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A parte que requer, nos termos do artigo 487º do C.P.C., a realização de segunda perícia tem que fundamentar os concretos pontos ou questões da sua discordância relativamente ao relatório pericial, bem como aduzir as razões que motivam essa segunda perícia, a fim de o requerimento poder vir a ser atendido.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: P. 2036/15.8T8FAR-A.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

Nesta acção declarativa, sob a forma de processo comum, que (…) e mulher instauraram contra (…) Vida – Companhia de Seguros, S.A., veio a ser requerida, oportunamente, a realização de uma perícia médico-legal ao A.
Notificado do relatório da perícia (e dos esclarecimentos prestados pelo perito) veio a R. solicitar a realização de uma segunda perícia, fundamentando devidamente as razões da sua discordância quanto ao dito relatório junto aos autos.
Pela M.ma Juiz “a quo” foi proferida decisão que deferiu a realização da segunda perícia, atento o disposto no artigo 487º, nº 1, do C.P.C..

Inconformado com tal decisão dela apelaram os AA., tendo apresentado para o efeito as suas alegações de recurso e terminando as mesmas com as seguintes conclusões:
1. A predita R. requereu, em prazo, uma segunda perícia, após terem sido apresentados pelo perito os esclarecimentos por si pedidos.
2. Dispõe a lei (art. 487º, nº 1, do CPC):
- "Qualquer das partes pode requerer que se proceda a segunda perícia no prazo de 10 dias a contar do conhecimento do resultado da primeira, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado".
3. Ensina a boa e esclarecida jurisprudência:
"I - A prova pericial tem por finalidade a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos relativos às pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial (art.º 388.° do C. Civil).
II - Qualquer das partes pode requerer se proceda a segunda perícia no prazo de 10 dias a contar do conhecimento do resultado da primeira, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado (n°. 1 do art.º 589°. do CPC).
III - A expressão adverbial "fundadamente" significa precisamente que as razões da dissonância tenham de ser claramente explicitadas, não bastando a apresentação de um simples requerimento de segunda perícia.
IV - Trata-se, no fundo, de substanciar o requerimento com fundamentos sérios, que não uma solicitação da diligência com fins dilatórios ou de mera chicana processual. E isto porque a segunda perícia se destina, muito lógica e naturalmente, a corrigir ou suprir eventuais inexactidões ou deficiências de avaliação dos resultados a que chegou a primeira" – Ac. STJ de 25.11.2004, in www.dgsi.pt
4. No caso vertente a R. não deu cumprimento ao disposto no citado ditame legal (art. 487º, nº 1, do CPC).
5. De facto, não alegou, fundadamente, as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial visado.
6. Tal como se deixou dito, ao ora requerente cabia "indicar os pontos de discordância" e "justificar a possibilidade de uma distinta apreciação técnica".
7. Não o fez, tal como decorre do teor do seu douto requerimento.
8. Pelo que a decisão em crise violou frontalmente o disposto no artigo 487º do CPC., devendo em consequência ser revogada, atendendo o julgador, em consequência, aos resultados (conclusões) da perícia já realizada. Tudo conforme a lei e a Justiça.
Pela R. foram apresentadas contra alegações, nas quais pugna pela manutenção da decisão recorrida.
Atenta a não complexidade da questão a dirimir foram dispensados os vistos aos Ex.mos Juízes Adjuntos.

Cumpre apreciar e decidir:
Como se sabe, é pelas conclusões com que os recorrentes rematam a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: artigo 639º, nº 1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem [1] [2].
Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na decisão for desfavorável aos recorrentes (art. 635º, nº 3, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (nº 4 do mesmo artigo 635º) [3] [4].
Por isso, todas as questões que tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação dos recorrentes, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
No caso em apreço emerge das conclusões da alegação de recurso apresentadas pelos AA., ora apelantes, que o objecto do mesmo está circunscrito à apreciação da questão de saber se não estão verificados os requisitos a que alude o art. 487º, nº 1, do C.P.C. para que seja realizada uma segunda perícia ao recorrente.

Apreciando, de imediato, a questão supra referida importa, desde já, dizer a tal respeito que, no processo principal a que estes autos estão apensos, está em causa um contrato de seguro, do ramo vida, celebrado entre as partes, tornando-se essencial que seja apurado, “in casu”, se as patologias do foro respiratório diagnosticadas ao A. em 2006 foram as mesmas que estiveram na origem da sua doença em 2009.
Ora, como sabemos, o processo tem por objectivo o apuramento da verdade e a justa composição do litígio, devendo o Tribunal efectuar e ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências com vista a atingir esse fim (arts. 5º, 6º e 411º, todos do C.P.C.).
Além disso, como decorre do citado art. 411º, “incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”, donde resulta que a lei concede ao juiz a possibilidade (ampla) de averiguar factos, com vista à busca da verdade material.
Quer isto dizer que o juiz, perante esta norma – que consagra o princípio do inquisitório – não deve limitar-se a exercer a figura de mero espectador ou árbitro do litígio, devendo antes intervir no sentido de remover os obstáculos à realização da justiça, que passa, evidentemente, pela procura da verdade material. Daqui resulta claramente, a nosso ver, que a diligência requerida, com vista à clarificação cabal do objecto da peritagem, cabe plenamente nos poderes que o normativo processual concede aos juízes.
Com efeito, a prova pericial destina-se à percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas não devam ser objecto de inspecção judicial (cfr. art. 388º do Cód. Civil).
A respeito de tal prova escreve Manuel de Andrade o seguinte:
- “Traduz-se na percepção, por meio de pessoas idóneas para tal efeito designadas, de quaisquer factos presentes, quando não possa ser directa e exclusivamente realizada pelo juiz, por necessitar de conhecimentos científicos ou técnicos especiais, (...), que não fazem parte da cultura geral ou da experiência comum que pode e deve presumir-se no juiz, como na generalidade das pessoas instruídas e experimentadas” – cfr. Noções Elementares de Processo Civil, pág. 262.
Ora, o resultado da perícia é expresso num relatório, no qual o perito – se a perícia for singular – ou peritos – se a perícia for colegial – se pronunciam, fundamentadamente, sobre o respectivo objecto (art. 484º, nº 1, do C.P.C.).
Por sua vez a apresentação do relatório da perícia é notificada às partes, que podem reclamar, se entenderem que há nele qualquer deficiência, obscuridade ou contradição ou que as conclusões não se mostrarem devidamente fundamentadas (art. 485º, nºs 1 e 2, do C.P.C.).
Ora, a reclamação consiste em apontar a deficiência e pedir que a resposta seja completada, ou em denunciar a obscuridade e solicitar que o ponto obscuro seja esclarecido, ou em notar a contradição e exprimir o desejo de que ela seja desfeita, ou em acusar a falta de fundamentação das conclusões e pedir que sejam motivadas, devendo sempre fundamentar quais as razões da discordância quanto ao relatório pericial apresentado.
No caso em apreço constata-se que, após a reclamação apresentada pela R., veio o perito prestar esclarecimentos adicionais, assim complementando ou completando o relatório por si anteriormente efectuado.
Porém, sucede que a R. discorda do resultado daquele exame pericial e dos esclarecimentos posteriormente prestados tendo, por via disso, solicitado a realização de uma segunda perícia colegial, estando devidamente alegadas e fundamentadas quais as razões da sua discordância.
Com efeito, no caso em apreço, o que está a sustentar a razão para que a R. tivesse requerido a realização de uma segunda perícia é que a mesma considera (através do seu corpo clínico) que se trata da mesma e única doença do A., quer em 2006, quer em 2009.

Na verdade, o requerimento a solicitar uma 2ª perícia foi apresentado de forma tempestiva e foi devidamente fundamentado pela R, ou seja, a sua discordância relativamente ao facto de o nexo causal entre a doença diagnosticada em 2006 e os problemas de saúde que o A. marido apresenta na presente data ter sido declarado como “ténue” e de ser apenas uma “possibilidade” e, ainda, relativamente ao facto da tabela de incapacidades para o trabalho não poder ser utilizada para avaliação da Incapacidade Permanente Geral (IPG) do A. marido nos presentes autos.
Assim sendo, havendo fundadas dúvidas acerca do relatório pericial apresentado nos autos – e não apenas uma mera discordância no resultado – a R. requereu uma segunda perícia com os fundamentos acima referidos, de acordo, aliás, com o estipulado no nº 1 do art. 487º do C.P.C..
Nestes termos o requerimento apresentado pela R., com vista à efectivação de uma segunda perícia, mostra-se devidamente fundamentado, no sentido de “fundadamente” se poderem apurar resultados diferentes da primeira perícia. Ou seja, a R. aduziu razões suficientes e motivação bastante para a eventual inversão do juízo pericial primitivamente emitido e, por isso, o requerimento em causa veio (e bem) a ser deferido pela M.ma Juiz “a quo”.
Com efeito, o que justifica a segunda perícia é a necessidade ou a conveniência de submeter à apreciação de outro perito ou peritos os factos que já foram apreciados, atendendo à eventual inexactidão dos resultados da primitiva perícia já realizada (nomeadamente pelo facto do respectivo perito ter emitido juízos de valor que não merecem confiança, ou porque as respostas dadas não satisfazem as questões elencadas).
Na verdade, a segunda perícia visa fornecer ao tribunal um novo elemento de prova, relativo aos factos que foram objecto da primitiva perícia, cuja indagação e apreciação técnica pelo(s) perito(s) pode(m) contribuir, inexoravelmente, para a formação de uma mais adequada convicção judicial.
Isto porque, a avaliação médico-legal do dano corporal (traduzido em doenças do foro respiratório de que o A. marido padece há vários anos), constitui uma matéria de particular complexidade, sendo que a prova pericial destina-se – como qualquer outra prova – a demonstrar a realidade dos enunciados de facto produzidos pelas partes, com a peculiaridade de que tal factualidade exige, indubitavelmente, conhecimentos especiais que o Julgador, de todo, não pode dominar por completo.
Nestes termos, dado que o recurso em análise não versa outras questões, entendemos que a decisão recorrida não merece qualquer censura ou reparo, sendo, por isso, de manter integralmente. Em consequência, improcedem, “in totum”, as conclusões de recurso formuladas pelos AA., ora apelantes, não tendo sido violados os preceitos legais por eles indicados.
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Por fim, atento o estipulado no nº 7 do art. 663º do C.P.C., passamos a elaborar o seguinte sumário:
- A parte que requer, nos termos do art. 487º do C.P.C., a realização de segunda perícia tem que fundamentar os concretos pontos ou questões da sua discordância relativamente ao relatório pericial, bem como aduzir as razões que motivam essa segunda perícia, a fim de o requerimento poder vir a ser atendido.
- Trata-se, no essencial e acima de tudo, de substanciar o requerimento com fundamentos e razões sérias – o que a R., inexoravelmente, veio a fazer no caso em apreço – que não uma solicitação de diligência com fins meramente dilatórios ou de chicana processual.
- E isto porque a segunda perícia se destina, muito lógica e naturalmente, a corrigir ou a suprir eventuais inexactidões ou deficiências de avaliação dos resultados a que veio a chegar a primitiva perícia.

Decisão:

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o presente recurso de apelação interposto pelos AA., confirmando-se inteiramente a decisão proferida pelo tribunal “a quo”.
Custas pelos AA., ora apelantes.
Évora, 22 de Março de 2018
Rui Machado e Moura
Eduarda Branquinho
Mário Canelas Brás
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[1] Cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363.
[2] Cfr., também neste sentido, os Acórdãos do STJ de 6/5/1987 (in Tribuna da Justiça, nºs 32/33, p. 30), de 13/3/1991 (in Actualidade Jurídica, nº 17, p. 3), de 12/12/1995 (in BMJ nº 452, p. 385) e de 14/4/1999 (in BMJ nº 486, p. 279).
[3] O que, na alegação (rectius, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso anteriormente definido (no requerimento de interposição de recurso).
[4] A restrição do objecto do recurso pode resultar do simples facto de, nas conclusões, o recorrente impugnar apenas a solução dada a uma determinada questão: cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 308-309 e 363), CASTRO MENDES (in “Direito Processual Civil”, 3º, p. 65) e RODRIGUES BASTOS (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. 3º, 1972, pp. 286 e 299).