Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
41/17.9GCPTG.E1
Relator: MARTINHO CARDOSO
Descritores: MONOPARENTALIDADE
INSERÇÃO SOCIAL
DETERMINAÇÃO DA MEDIDA DA PENA
Data do Acordão: 06/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Ser solteiro, não ter filhos, viver sozinho em casa arrendada, encontrar-se reformado por invalidez, ter apenas o 4.º ano de escolaridade e um rendimento mensal de 413€ não significa, só por isso, que se esteja socialmente desinserido da comunidade.
Decisão Texto Integral:
I
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
Nos presentes autos de Processo Comum com intervenção de tribunal singular acima identificados, do Juízo Local Criminal de Portalegre, em que AA se constituiu assistente e a ULS, deduziu pedido cível contra o arguido BB, este foi, na parte que agora interessa ao recurso, condenado pela prática de:
Ø Um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos art.º 145.º, n.º 1 al.ª a) e 2, 143.º e 132.º, n.º 2 al.ª h), do Código Penal, na pena de 1 ano e 5 meses de prisão, de execução suspensa por idêntico período mediante regime de prova, consistente em se sujeitar à frequência do programa dirigido a agressores de violência doméstica, não residir no bairro da ofendida e não frequentar o seu local de trabalho, atento o disposto nos art.º 50.º, n.º 1, 2 e 5, 52.º, n.º 1 al.ª b) e 2 al.ª b) e c), e 53.º, do Código Penal;
Ø Um crime de ameaça simples, p. e p. pelo art.º 153.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 50 dias de multa, à razão diária de 5,00 €; e
Ø Um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos art.º 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1 al.ª a), do Código Penal, na pena de 100 dias de multa, à razão diária de 5,00 €.
Ø Em cúmulo jurídico destas penas de multa, pena única de multa de 125, à razão diária de 5,00 €, o que perfaz o montante global de 625,00;
Ø Mais foi o arguido condenado a pagar à ULS, a quantia total de 1.773,81 €, acrescida de juros à taxa legal.
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Inconformado com o assim decidido, o arguido interpôs o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões:
a. Os factos 1 e 2 da matéria de facto provado, não estão provados por não existir prova testemunhal nem outra que os suporte e o depoimento da assistente não ser credível, pelas contradições que contém
b. Assim deverá o arguido ser absolvido da prática dos crimes de ameaças simples e de ameaças agravadas em que foi condenado
c. Atendendo ao depoimento das testemunhas CC e DD que foram as primeiras pessoas a chegarem junto da assistente e a socorrem-na logo após ter sofrido a agressão, afirmaram que estava consciente, pelo que o facto 5. da matéria de facto provada, terá de ser alterado, passando a ter a seguinte redação: 5 – A ofendida caiu ao chão e foi socorrida por populares
d. Os dois relatórios das perícias médico-legais, realizados em alturas diferentes e por médicos diferentes, o primeiro durante o inquérito e o segundo durante a instrução requerida pela assistente, são bem claros e objetivos nas suas conclusões ao referirem a inexistência de sequelas para além da cicatriz no couro cabeludo. Pelo que o facto 8 dos factos provados deverá ser alterado, passando a ter a seguinte redação: 8 – Ausência de outras sequelas permanentes, para além da cicatriz do couro cabeludo
e. A conduta do arguido não revelou especial censurabilidade porque ficou provado que não agrediu a assistente pelas costas, nem a deixou inconsciente.
f. A Meritíssima Juíza a quo na medida da pena aplicada ao arguido pela prática do crime de ofensa à integridade física qualificada, não ponderou o previsto nas alíneas d) e c) do nº 2 do artigo 71º do C.P., os factos do arguido não ter antecedentes criminais, de estar inserido socialmente, de ter sido um ato isolado, de não ter tido qualquer atuação criminosa posterior à agressão e de nunca mais ter havido qualquer contacto entre o arguido e a assistente
g. Pelo que a pena de prisão aplicada deverá ser reduzida para quatro meses de prisão, suspensa a sua execução pelo mesmo período de quatro meses, por permitir acautelar a finalidade da punição
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A Exma. Magistrada do M.º P.º do tribunal recorrido respondeu, concluindo da seguinte forma:
1. Todos os factos dado por provados na sentença proferido pelo Tribunal “a quo”, mormente os factos 1, 2, 5 e 8, assentaram na apreciação crítica da prova produzida em sede de julgamento e, em resultado de uma avaliação englobante do contexto probatório, designadamente ponderando os relatórios periciais e os documentos constantes dos autos.
2. As declarações da assistente, bem como as das demais testemunhas inquiridas mostraram-se espontâneas e congruentes, nada tendo sido apurado que lhes retirasse credibilidade e as infirmasse.
3. Assim, a decisão recorrida mostra-se devidamente fundamentada, de modo escorreito, congruente e lógico e a prova foi avaliada, ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova no processo penal, de acordo com as regras da experiência e livre convicção do julgamento.
4. Denota, ainda, de forma transparente, o exame critico e objectivo efectuado pela julgadora, com base nas regras da experiência e de critérios lógicos, os quais mais não constituem do que o seu substrato racional.
5. Nessa medida, a matéria de facto dada por provada não merece qualquer censura, porque assenta efectivamente na prova produzida, devendo manter-se, por isso, na íntegra a condenação proferida pelo Tribunal “a quo”.
6. A medida concreta da pena tem subjacente um juízo de censura global pelo crime praticado, pelo que o Tribunal deve atender, na sua graduação, à culpa do agente e às exigências de prevenção (geral e especial), bem como a todas as circunstâncias que depuserem a favor ou contra este, tudo conforme artigo 40.º e artigo 71º do Código Penal.
7. Nessa medida, a pena aplicada ao arguido afigura-se adequada a realizar as exigências de prevenção especial de socialização e intimidação, mostrando-se ainda indispensável face ao grau de culpa demonstrado pelo arguido, bem como para que não sejam irremediavelmente postas em causa a necessária tutela do bem jurídico violado, a realização contrafáctica da norma e as expectativas comunitárias.

Atento tudo quanto aqui vertido, o Ministério Público pugna para que o Tribunal da Relação de Évora mantenha a sentença proferida pelo Tribunal a quo e pela improcedência do recurso.
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Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Cumpriu-se o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

II
Na sentença recorrida e em termos de matéria de facto, consta o seguinte:
-- Factos provados:
1 No dia 15 de Julho, cerca das 16 horas, no Largo ..., junto ao café “...”, o arguido fez, em direcção à Assistente, AA, um gesto de que lhe cortava o pescoço.
2 – Nesse mesmo dia, e pouco tempo após o facto ante escrito, o arguido, na estrada junto à porta de sua casa e com uma moca na mão, dirigindo-se à assistente que ali ia a passar de carro com o seu companheiro disse “Está aqui para ti, minha puta”, “Era para ter sido no dia 22”.
3 - No dia 16 de Julho de 2017, cerca das 13 horas, no Largo ..., a ofendida AA foi estender a roupa no arame, que fica a cerca de 30 metros da sua casa.
4 - Enquanto a ofendida estava a estender a roupa, surgiu o arguido, munido com um pau em madeira com cerca de 89 cm de comprimento, e com 3 cm de diâmetro numa das extremidades, e na outra extremidade com 4,5cm de diâmetro, tendo desferido, de imediato, com o mesmo uma pancada na ofendida AA, atingindo-a na cabeça do lado direito junto à orelha.
5 - A ofendida caiu ao chão, tendo ficado desmaiada e foi socorrida por populares.
6 - O arguido abandonou o local.
7 - Com a conduta supra descrita, causou o arguido na AA dores e ferimentos, nomeadamente traumatismo crânio encefálico com perda de conhecimento, uma ferida incisa da região retroauricular direita com otorragia activa homolateral, dores de cabeça, tonturas e zumbido unilateral, amnésia para o sucedido, e “vestígios cicatriciais de ferida do couro cabeludo na região temporal direita; fractura linear do rochedo directo já coaptada”, lesões que determinaram 62 dias para cura, com afectação de 10 dias para o trabalho geral e 45 de afectação para o trabalho profissional.
8 – Actualmente, consolidadas tais lesões, a assistente padece, designadamente de cefaleias reincidentes e regulares, tonturas, zumbido unilateral permanente, apresenta vestígios cicatriciais da ferida do couro cabeludo na região temporal direita, e fractura linear do rochedo direito já coaptada.
9 - O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, com o propósito concretizado de atingir a saúde e bem-estar da ofendida, o que quis, bem sabendo que a sua conduta era adequada a causar dores, ferimentos e mal-estar, como efectivamente causou.
10 - O arguido bem sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal e mesmo assim não se coibiu de a praticar.
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11 - A ofendida AA deu entrada e foi observada na Urgência da ULS, a qual é uma pessoa colectiva de direito público, originando despesas no montante global de 1.773,81€ pelos tratamentos médicos hospitalares a que foi submetida, sendo a conduta do arguido a causa directa e necessária da assistência médica hospitalar que lhe foi prestada.
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Mais se provou com relevo para a determinação da sanção, que:
12 - O arguido não tem antecedentes criminais.
1 O arguido é solteiro, não tem filhos, vive sozinho numa casa arrendada, suportando a renda mensal de 145€, encontra-se reformado por motivos de invalidez, não se encontrando apto para o trabalho, e aufere o rendimento mensal no valor de 413€, tem como habilitações escolares o 4.º ano de escolaridade.
2 – Após a ocorrência dos factos, a assistente mudou de casa, não tendo voltado a ter qualquer contacto com o arguido.
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-- Factos não provados:
Com interesse para a decisão sobre o mérito da acção penal e do pedido de indemnização civil, não resultaram provados quaisquer outros factos.
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O Tribunal não se pronuncia quanto às restantes afirmações constantes do pedido de indemnização civil, na medida em que consubstanciam matéria de direito, conclusiva ou irrelevante para a decisão do caso concreto.
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Fundamentação da decisão de facto:
O tribunal formou a sua convicção relativamente à matéria de facto, com base na apreciação crítica da prova produzida em sede de julgamento e, em resultado de uma avaliação englobante do contexto probatório, designadamente ponderando os relatórios periciais e os documentos constantes dos autos.
Em particular, a convicção do tribunal baseou-se, quanto aos factos considerados como provados na apreciação conjugada e de acordo com as regras de experiência comum, nos seguintes elementos de prova:
- nas declarações da assistente, AA as quais se revelaram inteiramente claras, escorreitas e credíveis e corroboradas pela restante prova testemunhal produzida nos autos.
- no depoimento das testemunhas CC, 50 anos, DD, 24 anos, EE, 77 anos, vizinhos da assistente e do arguido (sem no entanto terem qualquer relação de amizade com nenhum deles), que se encontravam a passar junto à residência da assistente pouco depois da ocorrência dos factos, tendo-a socorrido a assistente, chamado o INEM, e verificado a presença no local do arguido; e FF, 56 anos, militar da GNR, o qual, no exercício das suas funções, tomou nota da ocorrência, e procedeu à apreensão do pau de madeira, que se encontrava na posse do arguido; as quais, com conhecimento directo dos factos, e o referido conhecimento de causa, depuseram de forma isenta, segura, serena e equidistante, merecendo inteira credibilidade por parte do Tribunal, pois que relataram os factos tais como lhes foram dados a conhecer.
Tais elementos de prova conjugados com o teor da prova pericial constante dos autos, mormente o teor do relatório pericial de clínica médico-legal de fls. 71-74, o relatório pericial junto aos autos em sede de instrução a 22/06/2020; e alicerçados nos documentos juntos aos autos, designadamente, o teor do auto de notícia de fls. 19 a 21, o auto de apreensão de fls. 22, a fotografia de fls. 27, e o relatório do episódio de urgência de fls. 75 a 89, e as facturas de fls. 118 a 123, permitiram dar como provados os factos constantes do despacho de pronúncia, e os do pedido de indemnização civil constantes da matéria de facto provada.
De referir ainda que nenhum dos elementos documentais ou periciais juntos ao processo foi impugnado pelo arguido.
Relativamente aos antecedentes criminais o tribunal teve em conta o certificado de registo criminal constantes dos autos, não considerando em obediência ao disposto no artigo 15.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3 da Lei n.º 57/98, de 18 de Agosto, as condenações que constam do certificado do arguido, dado que, à data da prática dos factos sub judice, já tinham decorrido mais de cinco anos sobre a extinção da última pena aplicada sem que entretanto ocorresse nova condenação por outro crime.
Quanto às condições pessoais do arguido expressas na matéria de facto provada o tribunal teve em consideração as suas declarações a esse respeito prestadas na audiência de julgamento, por se afigurarem plausíveis.
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Com efeito, face aos referidos elementos de prova, o tribunal não teve quaisquer dúvidas ao decidir a aludida matéria de facto, pois é manifesto que, pese embora nenhuma testemunha presenciasse a agressão, é evidente que a mesma ocorreu face às lesões apresentadas pela assistente, assim como é manifesto que as mesmas foram causadas pelo arguido face às declarações credíveis da assistente, a presença do arguido à porta de sua casa que ainda insultava a assistente, tal como presenciado pelas testemunhas, cuja idoneidade está acima de suspeita, e a apreensão do pau de madeira, pelo militar da GNR que tomou nota da ocorrência, o qual se encontrava na posse do arguido, e é idóneo a ter produzido as lesões sofridas pela assistente e documentalmente comprovadas.
Por outro lado, pese embora os relatórios periciais sejam omissos quanto a sequelas, entende o tribunal que estas existem na realidade e atenta a sua natureza não puderam ser observadas pelos peritos médicos.
Efectivamente a assistente, que nem sequer deduziu pedido de indemnização civil nos autos, foi inteiramente espontânea nas suas declarações e as sequelas que refere são absolutamente compatíveis com a agressão que sofreu, atento o local da cabeça tão próximo ao ouvido como se vê na foto constante dos autos, e a perigosidade do tipo de arma utilizada.

III
De acordo com o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação e é por elas delimitado, sem prejuízo da apreciação dos assuntos de conhecimento oficioso de que ainda se possa conhecer.
De modo que as questões postas ao desembargo desta Relação são as seguintes:
1.ª – Que não foi produzida em julgamento prova que permita ao tribunal "a quo" ter dado como provado o teor dos pontos 1, 2, 5 e 8 dos factos provados; e
2.ª – Que é exagerada a pena aplicada pelo crime de ofensa à integridade física qualificada.
Vejamos.
No tocante à 1.ª das questões postas:
Os pontos 1, 2, 5 e 8 dos factos provados têm o seguinte teor:
1 - No dia 15 de Julho, cerca das 16 horas, no Largo ..., junto ao café “...”, o arguido fez, em direcção à Assistente, AA, um gesto de que lhe cortava o pescoço.
2 – Nesse mesmo dia, e pouco tempo após o facto ante escrito, o arguido, na estrada junto à porta de sua casa e com uma moca na mão, dirigindo-se à assistente que ali ia a passar de carro com o seu companheiro disse “Está aqui para ti, minha puta”, “Era para ter sido no dia 22”.
5 - A ofendida caiu ao chão, tendo ficado desmaiada e foi socorrida por populares.
8 – Actualmente, consolidadas tais lesões, a assistente padece, designadamente de cefaleias reincidentes e regulares, tonturas, zumbido unilateral permanente, apresenta vestígios cicatriciais da ferida do couro cabeludo na região temporal direita, e fractura linear do rochedo direito já coaptada.
Pretende então e em resumo o recorrente de que não se fez prova em julgamento de que o arguido proferiu as ameaças descritas nos pontos 1 e 2, que a ofendida não desmaiou como consta do ponto 5 e que a única sequela com que ela ficou foi com a cicatriz no couro cabeludo na região temporal direita.
Temos pois que ir ouvir as gravações da prova produzida em julgamento, designadamente a indicada pelo recorrente, para aferir o que se passou.
Sobre as ameaças descritas nos pontos 1 e 2, a única prova produzida em julgamento foi o depoimento da ofendida, uma vez que ninguém mais as ouviu e o arguido não prestou declarações em julgamento.
Ora acreditar ou não num depoente é uma questão de convicção. Essencial é que a explicação do tribunal porque é que acredita ou não no mesmo seja racional e tenha lógica.
E quem está numa posição privilegiada para avaliar essa credibilidade é, sem dúvida, o tribunal da 1.ª Instância, que beneficiou da oralidade e da imediação que teve com a prova.
A actividade judicatória na valoração dos depoimentos há-de atender a uma multiplicidade de factores, que têm a ver com as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sócio-cultural, a linguagem gestual (como por exemplo os olhares) e até saber interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para poder perceber e aquilatar quem estará a falar a linguagem da verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá a verdade estar a ser distorcida, ainda que, muitas vezes, não intencionalmente.
Aliás, segundo recentes pesquisas neurolinguísticas, numa situação de comunicação presencial, apenas 7% da capacidade de influência é exercida através da palavra, sendo que o tom de voz e a fisiologia, ou seja, a postura corporal dos interlocutores, representam, respectivamente, 38% e 55% desse poder – vide Lair Ribeiro, “Comunicação Global”, Lisboa, 1998, pág. 14. Ora se a audição de uma gravação permite fruir com fidelidade aqueles 7% de capacidade de influência exercida através da palavra e ainda, mas nem sempre, os 38% referentes ao tom de voz, sobram os 55% referentes à fisiologia, ou seja, a postura corporal dos interlocutores, a que o tribunal de 2.ª Instância nunca terá acesso.
É que há sempre coisas que os juízes de julgamento viram enquanto ouviam e não ficaram na gravação e das quais, por isso, o tribunal de recurso nunca se aperceberá, sendo por vezes precisamente essas que fazem a diferença e levam o tribunal a quo a tombar para o lado do provado em vez do não provado ou vice-versa.
Isto é, a percepção dos depoimentos só é perfeitamente conseguida com a oralidade e a imediação das provas, sendo certo que, não raras vezes, o julgamento da matéria de facto não tem correspondência directa nos depoimentos concretos, resultando antes da conjugação lógica de outros elementos probatórios, que tenham merecido a confiança do tribunal.
A prova testemunhal não é, pois, para ser avaliada aritmeticamente. Ou como se o depoimento de uma testemunha fosse para ser considerada com o rigor de uma escritura de um notário.
A propósito das objecções apostas pelo arguido ao depoimento da ofendida, apontando-lhe inconsistências e atrapalhações, já Enrico Altavilla, em “Psicologia Judiciária, Personagens do Processo Penal”, 4° vol., Arménio Amado, Editor, Sucessor-Coimbra, 1959, a pág. 112, explicitava que «(...) às vezes, um depoimento sem lógica, contraditório, é considerado pouco fiel, porque se julga que a testemunha não se recorda bem, ou então insincero, ao passo que os testemunhos correntes dão uma impressão de fidelidade e de veracidade, e pode ser o contrário, provindo o primeiro de uma dificuldade em se exprimir, ou de um fenómeno de timidez, ao passo que a naturalidade do segundo pode derivar de uma hábil preparação (...)».
«Há, portanto, um certo coeficiente pessoal na percepção e na evocação mnemónica, que torna, necessariamente, incompleta a recordação, de forma que não há maior erro que considerar a testemunha como uma chapa fotográfica, deduzindo de não ser completo o seu depoimento que ela é reticente.»
Por isso é que o art.º 127.º, do Código de Processo Penal, dispõe que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente; salvo quando a lei dispuser diferentemente, o que não é o caso.
Conforme refere o Prof. Cavaleiro Ferreira (Curso de Processo Penal, II-27) as regras ou normas da experiência "são definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto, sub judice, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade” e a livre convicção "é um meio da descoberta da verdade, não uma afirmação infundamentada da verdade, portanto, uma conclusão livre porque subordinada à razão e à lógica e não limitada por prescrições formais exteriores".
Certo que a livre apreciação da prova não é livre arbítrio ou valoração puramente subjectiva, mas apreciação que, liberta do jugo de um rígido sistema de prova legal, se realiza de acordo com critérios lógicos e objectivos, que determina dessa forma uma convicção racional e, portanto, objectivável e motivável – acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4-11-98, Colectânea de Jurisprudência dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 1998, III-201.
Mas quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum – acórdãos do STJ de 6-3-02, Colectânea de Jurisprudência dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 2.002, II-44 e da Relação de Évora de 25-5-04, Colectânea de Jurisprudência, 2.004, III-258.
No caso dos autos e em última análise, o que o recorrente pretende é substituir a convicção do tribunal pela sua. E embora desenvolva um quadro argumentativo com o qual pretende demonstrar, através da análise das provas por si especificadas, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados, é impossível ou desprovida de razoabilidade, não logrou convencer-nos disso, ou seja, de que a decisão do tribunal "a quo" em matéria de facto não é possível ou não é plausível.
É que não basta que o recorrente pretenda fazer uma “revisão” da convicção obtida pelo tribunal "a quo" por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção ‘era possível’. Exige-se-lhe que indique a prova que imponha uma outra convicção.
De resto, do que o art.º 412.º, n.º 3 al.ª b), do Código de Processo Penal, fala é da indicação pelo recorrente das provas que imponham uma decisão diversa da recorrida, não de provas que eventualmente também permitam outra decisão de facto.
Contudo e em relação à impugnação dos pontos 1, 2 e 5 da matéria de facto assente como provada, nada no fundo alega o arguido que retire credibilidade ao depoimento da ofendida, sendo que, relativamente ao facto 5, a assistente é peremptória ao afirmar que com o impacto do golpe desferido pelo arguido, tombou ao chão, “desmaiada”. E apesar de as testemunhas CC e DD terem declarado que a encontraram já acordada, isso não significa só por si que se possa retirar credibilidade ao depoimento da assistente e que a mesma não tenha estado efectivamente “desmaiada” momentos antes daquelas terem chegado ao local. Aliás, a testemunha DD referiu, entre os minutos 1:58 e 2:17, que aquela se encontrava atordoada.
Quanto ao segmento do ponto 8 dos factos provados, em que o arguido impugna que o tribunal "a quo" pudesse ter dado como provado que a assistente padece de cefaleias reincidentes e regulares, tonturas e zumbido unilateral permanente (uma vez que as demais, ou seja, os vestígios cicatriciais da ferida do couro cabeludo na região temporal direita e fractura linear do rochedo direito já coaptada, constam dos relatórios e exames médicos constantes dos autos), concordamos com o tribunal "a quo" quando na fundamentação da decisão da matéria de facto a propósito dessas sequelas explicou que, pese embora os relatórios periciais sejam omissos quanto a sequelas, entende o tribunal que estas existem na realidade e atenta a sua natureza não puderam ser observadas pelos peritos médicos. Efectivamente a assistente, que nem sequer deduziu pedido de indemnização civil nos autos, foi inteiramente espontânea nas suas declarações e as sequelas que refere são absolutamente compatíveis com a agressão que sofreu, atento o local da cabeça tão próximo ao ouvido como se vê na foto constante dos autos, e a perigosidade do tipo de arma utilizada.
Assim, analisando o teor das provas apontadas pelo tribunal "a quo" na fundamentação da decisão da matéria de facto, bem como o conteúdo das gravações da prova testemunhal produzida em julgamento, conjugadas entre si e com as regras da experiência e da normalidade, e confrontando-os com o teor das indicadas pelo recorrente e entendemos estar correcto o acervo de factos dados como provados na sentença recorrida.
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No tocante à 2.ª das questões postas, a de que é exagerada a pena aplicada pelo crime de ofensa à integridade física qualificada:
Discorda o arguido do quantum da pena de prisão suspensa na sua execução que lhe foi aplicada, porquanto, no seu entender, a sua conduta não revelou especial censurabilidade e, ademais, não foi ponderado o previsto nas al.ª c) e d), do n.º 2 do art.º 71.º, do Código Penal, razão pela qual deve ser reduzida a pena de prisão de um ano e cinco meses para quatro meses, suspensa por igual período.
Bem, antes de mais, não vislumbramos como poderia o tribunal "a quo" ter atendido aos sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram, a que refere a mencionada al.ª c), uma vez que o arguido não prestou declarações em julgamento e ninguém mais parece ter falado sobre o assunto.
Quanto às condições pessoais do agente e a sua situação económica, a que refere a mencionada al.ª d), a elas o tribunal "a quo" se referiu por diversas vezes, como já de seguida veremos.
Contudo, tem o arguido flagrante razão quando se queixa de que o facto do arguido ser solteiro, viver sozinho numa casa e estar reformado por invalidez não implica que não esteja inserido socialmente.
E não só.
Mas vamos por partes.
No segmento da sentença referente à determinação da medida das penas, teceu o tribunal "a quo", além doutros, os seguintes considerandos, a págs. 16-17, e no qual assinalaremos a sublinhado os pontos em relação aos quais estamos em desacordo que tenham sido utilizados, por entendermos que não prestam para graduar uma pena e por isso levaram à deturpação do quantum fixado na 1.ª Instância para a mesma:
(…)
Aplicando-se agora as regras expostas ao caso que nos ocupa, salienta-se que:
- O grau de ilicitude é de elevada gravidade quanto ao ilícito de ofensa à integridade física qualificada, e moderada gravidade quanto aos restantes dois ilícitos, face ao modo de execução dos crimes (ocorrido em público, e pelas costas), havendo ainda que ponderar as consequências originadas pela actuação do arguido;
- O arguido actuou com dolo directo e intenso em todos os ilícitos;
- As condições pessoais do arguido expressas nos factos provados;
- As exigências de prevenção geral são elevadas quanto a estes tipos de crime, devido à ocorrência frequente de crimes desta natureza nesta comarca, provocando justificado alarme social.
- Sopesando o juízo de reprovação e os elementos recolhidos sobre a personalidade do arguido, designadamente o comportamento anterior e posterior aos factos, relevando neste caso contra a atitude do arguido ter deixado a ofendida inconsciente no chão e a sangrar, não tendo chamado uma ambulância, deixando-a inteiramente à sua mercê.
- Deve atender-se ainda às exigências de prevenção especial que, no caso concreto, se mostram moderadas, atento o facto de a ofendida ter mudado de residência e nunca mais ter tido contacto com o arguido; sendo que contra si milita a falta de inserção familiar e profissional.
- Tudo ponderado, entende o tribunal como justas e equilibradas as seguintes penas:
(…)
Vejamos:
ilícito de ofensa à integridade física qualificada … ocorrido em público, e pelas costas
Tendo presente que o art.º 358.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, determina que se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa, do qual o tribunal "a quo" não se socorreu – e temos que o ponto 4 da matéria de facto provada, que descreve a agressão, não refere que o arguido a tenha cometido pelas costas da ofendida.
contra si milita a falta de inserção familiar e profissional
Ficou assente como provado no ponto 13 que o arguido é solteiro, não tem filhos, vive sozinho numa casa arrendada, suportando a renda mensal de 145 €, encontra-se reformado por motivos de invalidez, não se encontrando apto para o trabalho, aufere o rendimento mensal no valor de 413 € e tem como habilitações escolares o 4.º ano de escolaridade.
Como nesta situação bem diz o recorrente, o facto do arguido ser solteiro, viver sozinho numa casa e estar reformado por invalidez não implica que não esteja inserido socialmente. É evidente que – acrescentamos nós agora – os viúvos e viúvas, divorciados e demais chamadas «famílias monoparentais», que vivam sozinhos e estejam reformados por invalidez, se delinquirem não têm de ser punidos mais severamente em comparação com quem viva em famílias numerosas e esteja no vigor da sua força laboral.
Mas há mais.
A fls. 19-21, escreveu também o tribunal "a quo" o seguinte e no qual assinalaremos a sublinhado os pontos que nos merecem censura:
Ora, tendo em atenção a natureza do presente ilícito e a ausência de antecedentes criminais do arguido, permite-nos concluir, numa perspectiva dos fins das penas e tendo em atenção a protecção dos bens jurídicos legalmente consagrada, pela adequação da suspensão da pena de prisão.
Contudo, atendendo à reiteração da actuação do arguido e à sua falta de inserção familiar e profissional, tal suspensão deverá inelutavelmente ser sujeita a regime de prova e a uma condição susceptível de provocar no arguido uma consciencialização e interiorização mais eficaz do desvalor da sua conduta, pois que a experiência comum e funcional da aplicação de penas de prisão suspensas na sua execução demonstram que, frequentemente, a suspensão singela da pena de prisão induz no espírito dos arguidos uma certa desresponsabilização da sua actuação, sendo, não raras vezes, entendida como mais benéfica e vantajosa que a pena de multa, e até, por vezes, confundida com uma absolvição, mercê da falta de consequências imediatas para os arguidos do ponto de vista pessoal e patrimonial, assim minorando significativamente o fim e o alcance da aplicação de uma pena de prisão suspensa no tocante às necessidades de prevenção especial e correlativamente de prevenção geral.
E nesse sentido, afigurara-se decisiva a circunstância de o arguido não ter voltado a ter contacto com a ofendida após esta ter mudado de residência.
Efectivamente, considera-se que a simples censura dos factos, a ameaça de execução da pena de prisão aliada às regras de conduta de não residir, nem frequentar a localidade de residência da vítima, e de se sujeitar a adequado tratamento médico e psicológico contra o alcoolismo, numa perspectiva dos fins das penas e tendo em atenção a protecção dos bens jurídicos ameaçados, a suspensão da pena de prisão sujeita às regras de conduta supra descritas é suficientemente adequada para a responsabilização eficaz do arguido, pois que se consideram bastantes para afastar o arguido da criminalidade, satisfazendo simultaneamente as necessidades de reprovação e prevenção do crime (cfr. artigo 50.º, n.º 1 do CP).
Certo é que uma pena de natureza criminal, tem necessariamente de constituir um sacrifício real ao arguido, de modo a criar-lhe um sentimento de segurança, utilidade, punibilidade e justiça, sob pena de esvaziamento das finalidades punitivas da concreta condenação aplicada ao arguido.
E neste aspecto, uma vez que o arguido tem uma pobre condição económica e não está apto para trabalhar, não poderá deixar de se reputar como benéfico que o mesmo frequente o programa dirigido a agressores de violência doméstica, pois pese embora se desconheça se entre o arguido e a ofendida chegou a existir algum envolvimento físico ou emocional, o mesmo claramente necessita de trabalhar as suas ferramentas sociais no que respeita a gestão de conflitos sem o recurso à violência contra membros do sexo oposto.
Vejamos:
sua falta de inserção familiar e profissional
Foi de novo levado em consideração um item erradamente valorado como depreciativo para o arguido.
se sujeitar a adequado tratamento médico e psicológico contra o alcoolismo
Se em nenhum lado da matéria de facto assente como provada é referida a existência de qualquer problema com o álcool do arguido, não se percebe a que propósito é usado o assunto como razão para a imposição do regime de prova.
uma vez que o arguido tem uma pobre condição económica e não está apto para trabalhar
Sobre isto diremos apenas que o ser pobre e inválido não pode servir nunca por nunca para justificar o aumento da carga punitiva de um arguido com a imposição de um regime de prova.
pese embora se desconheça se entre o arguido e a ofendida chegou a existir algum envolvimento físico ou emocional
O que se desconhece não pode também jamais servir para justificar o que quer que seja em termos de escolha e graduação de uma pena.
Não podia pois o tribunal "a quo" ter considerado a sua falta de inserção familiar e profissional, que a agressão foi pelas costas, nem a alusão a qualquer problema do arguido com o álcool que não consta dos factos provados, nem à pobre condição económica e à invalidez do arguido, nem a qualquer envolvimento físico ou emocional entre o arguido e a ofendida que também não consta dos factos provados, como elementos a valorar na graduação da pena concreta a aplicar pela ofensa à integridade física qualificada e também como causas ou razões justificativas de lhe impor regime de prova, consistente em se sujeitar à frequência do programa dirigido a agressores de violência doméstica, não residir no bairro da ofendida e não frequentar o seu local de trabalho.
Mais uma vez se relembra não ter o tribunal "a quo" aditado quaisquer factos ao abrigo do art.º 358.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, sendo que, nos termos do art.º 340.º, n.º 1, do mesmo código, o tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.
Ou seja, se por detrás dos factos descritos na matéria de facto assente como provada há uma estória que tenha influenciado o tribunal "a quo" no doseamento daquela pena e depois também no tipo de regime de prova e de deveres que impôs ao condenado, nada dessa estória transpirou para a matéria de facto assente como provada e não pode pois servir para dosear uma pena ou determinar o tipo de regime de prova e de deveres a impor ao condenado.
Daí que se entenda mais justo e adequado fixar a pena pelo crime de ofensa à integridade física qualificada em um ano de prisão, de execução suspensa por idêntico período.
E o regime de prova e a obrigação de não residir no bairro da ofendida e não frequentar o seu local de trabalho (sendo que a ofendida até já mudou de casa, não tendo voltado a haver qualquer contacto com o arguido – ponto 14 dos factos provados) serão eliminados como condições da suspensão da pena, a qual deixa assim de ficar sujeita a qualquer obrigação.

IV
Termos em que, concedendo parcial provimento ao recurso, se decide:
1.º
Baixar a pena parcelar aplicada pelo crime de ofensa à integridade física qualificada para um ano de prisão, cuja execução se suspende por idêntico período.
2.º
Revogar o regime de prova e os demais deveres impostos pela 1.ª Instância como condição da suspensão daquela pena.
3.º
Manter no mais a decisão recorrida.
4.º
Não é devida tributação (art.º 513.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
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Évora, 21-6-2022
Martinho Cardoso
Maria Leonor Esteves
Gilberto da Cunha
(assinaturas digitais)