Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
106/10.8GHSTC.E1
Relator: RENATO BARROSO
Descritores: OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA POR NEGLIGÊNCIA
CULPA DO LESADO
DIRECTIVA COMUNITÁRIA
Data do Acordão: 12/21/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I - A Directiva da União Europeia, sendo um dos instrumentos jurídicos utilizados como meio de harmonização das legislações nacionais, não é, ao contrário do Regulamento, imediatamente aplicável na ordem jurídica interna dos Estados membros após a sua entrada em vigor, carecendo, para tal aplicação, da necessária recepção e transposição para o direito nacional, sendo que, enquanto esta não ocorrer, mais não traduz que um objecto programático, de mero alcance de jure constituendo.

II - A matéria tratada nessas Directivas só se constitui lei quando o respectivo Estado Membro a transporta para o direito nacional, sufragando-a então como de jure constituto. Até esse momento, qualquer tribunal está obrigado a aplicar o direito vigente, o qual, in casu, compreende as normas dos artsº 503, 505 e 570 nº2 do C.Civil, segundo as quais, há exclusão da responsabilidade da seguradora do veículo interveniente em acidente de viação quando este é imputável, de forma exclusiva, ao lesado condutor de uma bicicleta.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

1.RELATÓRIO

A – Decisão Recorrida

No processo comum singular nº 106/10.8GHSTC, do Comarca de Setúbal, Juízo de Competência Genérica de Santiago do Cacém, Juiz 2, foi decidido:

- Absolver o arguido NS, da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p.p., pelo Artº 148 nsº1 e 3, com referência ao Artº 144 al. d), ambos do C. Penal, que lhe era imputado pelo M.P.

- Julgar totalmente improcedentes, por não provados, os pedidos de indemnização civil formulados pelos demandantes civis, Unidade Local de Saúde do Litoral Alentejano EPE e FE, e em consequência, absolver a demandada,…Seguros, SA, de tais pedidos.

B – Recurso

Inconformado com o assim decidido, recorreu o demandante FE tendo concluído as respectivas motivações da seguinte forma (transcrição):

A)Cada vez mais as ordens jurídicas tendem a desvalorizar a culpa como fundamento do direito de indemnização pelos danos decorrentes de acidentes de viação.

B ) Em acidente de viação entre um veículo automóvel e uma bicicleta e do qual resultem, para o condutor da bicicleta, danos pessoais e materiais, a exclusão da indemnização por tais danos quando o evento danoso seja imputável a conduta do ciclista, é contrária ao direito comunitário, particularmente aos art.ºs 3º nº 1 da primeira directiva, (72/166/CEE) 2º nº 1 da segunda directiva (84/5/CEE) e 1º-A da terceira directiva ((90/232/CEE) inserida pelo artº 4º da quinta directiva (2005/14/CE), (todas relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de automóveis), considerando a jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades no que concerne às circunstâncias em pode ser limitada a indemnização pelo seguro obrigatório de responsabilidade automóvel

C) Havendo nexo de causalidade e danos provados no demandante/assistente, resultantes do acidente, ao caso em apareço aplicou o Juiz as regras do artigo 505º e 570, nº 2 do Código Civil para excluir a responsabilidade da demandada civil, ----Seguros, S.A,. Não se conformando com tal o Assistente, ora Recorrente.

D) De acordo com tudo o exposto, deve a demandada civil indemnizar o Ofendido pelos danos que sofreu em virtude do acidente em análise nos autos, mercê do contrato de seguro de responsabilidade civil que aquela celebrou com o proprietário e condutor do veículo automóvel interveniente neste acidente, através do qual assumiu a responsabilidade decorrente da respetiva utilização.

E) A causa de pedir, nas ações de indemnização por acidente de viação consiste no próprio acidente e abrange todos os pressupostos da obrigação de indemnizar, deve o tribunal averiguar se o pedido indemnizatório pode proceder com fundamento na responsabilidade pelo risco.

F) Havendo nexo de causalidade entre acidente e os danos físicos (provados) do demandante, todos resultantes do acidente, sendo a demandada uma empresa seguradora no âmbito da cobertura do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, e tendo presente que o lesado conduzia uma bicicleta, Deve o tribunal condenar, com fundamento na responsabilidade pelo risco da Demandada, artigo 503º, nº1 do Código Civil. Sob pena de se estar aplicar legislação (designadamente artigo 505º e 570º do CC), não conforme e desrespeitante das disposições comunitárias relativas ao seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.

Nestes termos e no demais de direito que Vossas Ex.as doutamente suprirão, deve a douta sentença ser revogada e substituída por outra que se coadune com a pretensão exposta:

Condenando a demandada civil, …SEGUROS, S.A, a pagar indemnização ao Recorrente, ofendido nos autos, na exata medida do pedido e de acordo com as regras de equidade, i.e, no valor indemnizatório peticionado, no total de 137 409EUR(cento e trinta e sete mil quatrocentos e nove euros), acrescido de juros legais a contar da data da notificação do pedido até integral e efetivo pagamento assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!

C – Respostas ao Recurso

Só a demandada civil respondeu a este recurso, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):

1. Nos termos da douta sentença recorrida, foi o Arguido absolvido da prática do crime de ofensa à integridade física por negligência de que vinha acusado e, em consequência desse facto, foi julgado improcedente, por não provado, o pedido cível que tinha sido deduzido contra a ora recorrida.

2. Os Recorrentes não põem em causa a decisão quanto à matéria de facto nem recorrem da sentença na que em que absolveu o Arguido da prática do crime de que vinha acusado.

3. A prova produzida na audiência de julgamento foi de tal forma concludente que o Ministério Público, responsável pela acusação que tinha sido deduzida, não teve dúvidas em pedir, em sede de alegações orais, a absolvição do Arguido da prática do crime de homicídio negligente de que vinha acusado.

4. Da análise da prova produzida em sede de audiência de julgamento resulta que não existem razões para alterar a decisão quanto à matéria de facto nem fundamento para alterar a douta sentença recorrida quanto ao crime de ofensa à integridade física por negligência de que o Arguido vinha acusado.

5. Resulta da douta sentença recorrida que o Recorrente conduzia com manifesta falta de cuidado e de atenção e/ou em desrespeito pelas regras elementares de condução rodoviária e que a sua conduta foi leviana ou mesmo muito grave.

6. Tendo ficado claramente demonstrado que a imputação culposa se deveu em exclusivo ao próprio lesado não podia acusação contra o Arguido proceder como também não podia deixar de ser julgado totalmente improcedente, por não provado, o pedido de indemnização que foi deduzido, porquanto resulta do artigo 505º do Código Civil que a responsabilidade é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado.

7. Improcedendo a acusação quanto ao crime de ofensa à integridade física por negligência é forçoso concluir que não pode proceder o pedido de indemnização cível porquanto os factos essenciais em que assentava este pedido não resultaram provados.

8. O acidente que aqui se discute já tinha sido apreciado no âmbito do processo cível nº --/11/7T2STC que correu termos no Juízo de Média e Pequena Instância Cível de Santiago do Cacém da Comarca do Alentejo Litoral e que terminou com o trânsito em julgado do Acórdão da Relação de Évora de 20.12.2012, a fls. 563 a 581.

9. Concluíram os Srs. Juízes Desembargadores que subscreveram esse Acórdão que o condutor do velocípede, ora Recorrente, foi o único e exclusivo responsável pela ocorrência do acidente que aqui está em causa, pelo que a Ré …, ora recorrida, foi absolvida no pedido que, no âmbito desse processo cível, tinha sido contra si deduzido.

10. Estamos perante uma situação de autoridade de caso julgado que tem o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito no prestígio dos tribunais e numa razão de certeza ou segurança jurídica

11. A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em acção anterior, que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença, não sendo exigível a coexistência da tríplice identidade prevista no artigo 581º do Código Civil (vidé Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.03.2013 - processo 3210/07.6TCLRS.L1.S1).

12. O Recorrente não invoca, nas suas alegações, que o Tribunal violou a lei aplicável que está em vigor em Portugal, mas defende tão somente que o citado artigo 505º do Código Civil, que prevê a exclusão da responsabilidade quando o acidente é imputável ao lesado, não está conforme com disposições previstas em Directivas comunitárias relativas ao seguro de responsabilidade civil automóvel.

13. Ao contrário do Regulamento, que é imediatamente aplicável na ordem jurídica interna dos Estados membros após a sua entrada em vigor, a Directiva não é directamente aplicável e, para que as pessoas possam recorrer ou invocar uma Directiva, esta deve ser objecto de transposição para o direito nacional.

14. Improcedendo a acusação quanto a este crime de ofensa à integridade física por negligência é forçoso concluir que não pode proceder o pedido de indemnização cível porquanto os factos essenciais em que assentava este pedido não resultaram provados.

15. Assim sendo, conclui-se no sentido de que a douta sentença recorrida não merece quaisquer reparos ou censuras pelo que merece ser confirmada na íntegra

Termos em que deve o recurso deve ser julgado totalmente improcedente com todas as consequências daí decorrentes por ser de J U S T I Ç A

D – Tramitação subsequente

Aqui recebidos, foram os autos com vista à Exmª Procuradora-Geral Adjunta, que não emitiu parecer por se tratar apenas de uma questão civil.

Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.

Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

A – Objecto do recurso

De acordo com o disposto no Artº 412 do CPP e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. I-A de 28/12/95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/"www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria), o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

Na verdade e apesar do recorrente delimitar, com as conclusões que extrai das suas motivações de recurso, o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, este, contudo, como se afirma no citado aresto de fixação de jurisprudência, deve apreciar oficiosamente da eventual existência dos vícios previstos no nº2 do Artº 410 do CPP, mesmo que o recurso se atenha a questões de direito.

As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem, assim, da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no nº 2 do Artº 410 do CPP, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no nº1 do Artº 379 do mesmo diploma legal.

In casu e cotejando a decisão em crise, não se vislumbra qualquer uma dessas situações, seja pela via da nulidade, seja ainda, pelos vícios referidos no nº2 do Artº 410 do CPP, os quais, recorde-se, têm de resultar da decisão recorrida considerada na sua globalidade, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum, sem possibilidade de recurso a quaisquer elementos que à mesma sejam estranhos, ainda que constem dos autos.

Efectivamente, do seu exame, não ocorre qualquer falha na avaliação da prova feita pelo Tribunal a quo, revelando-se a mesma como coerente com as regras de experiência comum e conforme à prova produzida, na medida em que os factos assumidos como provados são suporte bastante para a decisão a que se chegou, não se detectando incompatibilidade entre eles e os factos dados como não provados ou entre a fundamentação e a decisão.

Assim sendo, considera-se definitivamente fixada a decisão proferida pela 1ª Instância sobre a matéria de facto.

Também não se verifica a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada (Artº 410 nº3 do CPP).

Posto isto, inexistindo qualquer questão merecedora de aferição oficiosa, o objecto do recurso cinge-se, às conclusões do recorrente, em que solicita a condenação da demandada em sede de indemnização civil, como peticionando, por força da aplicação de várias directivas comunitárias, segundo as quais, só em casos muito excepcionais é que os lesados de um acidente de viação não devem ter direito a indemnização, quando sejam condutores de velocípedes ou peões, e ainda que tenham sido considerados culpados do mesmo.

B – Apreciação

Definida a questão a tratar, importa considerar, antes de mais, o que se mostra fixado, em termos factuais, pela instância recorrida.

Aí, foi dado como provado e não provado, o seguinte (transcrição):

2. Fundamentação

2.1. Matéria de facto provada
Da instrução e discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:

No dia 2 de Dezembro de 2009, pelas 19h50m, o arguido NS conduzia o veículo automóvel, ligeiro de passageiros, com a matrícula --FH---, na Avenida D. Pedro I, em Sines, no sentido Avenida D. Pedro I – Rotunda de Sines, em Sines.

O local a que nos reportamos e em que o arguido circulava, é uma recta, sendo que a estrada é composta por duas hemi-faixas, ambas com o mesmo sentido de trânsito.

O arguido circulava na via de trânsito à direita e entrou na rotunda que ali se encontra, na faixa mais à direita, em direcção à saída de Santiago/Lisboa, a cerca de 40 km/hora.

Em tal rotunda circulava o velocípede conduzido pelo aqui assistente FE sem qualquer iluminação no velocípede, sem capacete de protecção e sem qualquer equipamento reflector.

O embate entre ambas as viaturas (parte frontal dianteira do veículo automóvel e traseira do velocípede) ocorreu quando a viatura conduzida pelo arguido se preparava para sair da rotunda, encontrando-se o velocípede a circular na mesma, na direcção do Intermarché e na mesma faixa de rodagem do veículo automóvel conduzido pelo arguido.

O condutor do velocípede, na sequência do embate, foi projectado para cima do veículo conduzido pelo arguido e depois caiu ao solo.

O arguido foi surpreendido pela presença do velocípede tanto assim que não travou, nem conseguiu encetar qualquer manobra de recurso, de forma a evitar o embate.

O acidente ocorreu de noite, em momento em que o trânsito rodoviário era reduzido, num local com pouca iluminação pública.

Como consequência directa e necessária da colisão, FE sofreu traumatismo torácico, fractura exposta da rótula do joelho esquerdo, contusão frontal e temporal esquerdos.

A data da consolidação médico-legal das lesões sofridas foi fixado em 13.07.2010.

O período de défice funcional temporário total foi fixado em 224 dias.

O período de repercussão temporária na actividade profissional total foi estabelecido num período total de 224 dias.

O quantum/doloris foi fixado no grau 5/7.

O défice funcional permanente da integridade físico-psíquica foi fixado em 42 pontos, sendo de admitir a existência de dano futuro.

As sequelas descritas em termos de repercussão permanente na actividade profissional são incapacitantes.

O demandado civil a título de ajudas técnicas permanentes: necessita de ajuda de terceira pessoa.

10º Para além disso, devido ao acidente ficou o demandante civil com síndrome póstraumática manifestada por cefaleias, hipoacúsia esquerda, dificuldade de concentração e associação de ideias, alterações mnésticas e alterações de humor e comportamento.

11º Agiu o arguido de forma livre.

Mais se apurou que:
12º A demandante civil Unidade Local de Saúde do Litoral Alentejano EPE é uma pessoa colectiva de direito público integrada no serviço nacional de saúde.

No exercício da sua actividade, prestou cuidados de saúde ao ora assistente FE.

A referida prestação de cuidados de saúde consistiu na realização de meios complementares de diagnóstico e de terapêutica, derivados das lesões sofridas pelo assistido, em consequência do supra mencionado acidente de viação (colisão de veículos).

A responsabilidade pelos danos emergentes da circulação do veículo ---FH-- encontrava-se, à data do acidente, transferida para a demandada civil --- Seguros, SA, através do contrato de seguro do ramo automóvel titulado pela apólice 10493168.

Em virtude dos serviços prestados a demandante civil emitiu a facturas nº 10000679 de 26/02/2010.

Tal quantia ainda não se mostra paga.

13º O assistente/demandante civil nasceu no dia 07.02.1962.

Por via das lesões sofridas esteve internado nos hospitais durante 67 dias; tem cicatrizes resultantes das cirurgias ao seu joelho esquerdo; sente-se diminuído na sua pessoa, o que lhe causa tristeza e profundo desgosto.

14. O arguido trabalha como operador de cais auferindo mensalmente a quantia líquida de € 1 000,00. Vive com uma companheira e com uma filha com 7 anos de idade, em casa dos seus pais, a quem auxilia com cerca de € 200,00 por mês para a ajuda do sustento da casa

O arguido possui como habilitações escolares, o 12º ano de escolaridade.

Não tem antecedentes criminais.
*
2.2. Factos não provados
Para além dos que ficaram descritos não se provaram quaisquer outros factos, nomeadamente, não se provou que:

1. Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 2.1 supra o arguido circulasse distraído e/ou a uma velocidade não concretamente apurada e/ou que circulasse a uma velocidade que de modo algum lhe permitisse fazer parar em segurança o veículo que tripulava na extensão da faixa de rodagem que à sua frente tinha livre e visível.

2. Antes do embate, o arguido tivesse visto o velocípede conduzido pelo queixoso FE e/ou este último e/ou que este – imediatamente antes do embate – seguisse à sua frente, ocupando a mesma faixa de rodagem.

3. A colisão entre o veículo automóvel, ligeiro de passageiros, com a matrícula --FH-- conduzido pelo arguido e o velocípede conduzido pelo ora assistente FE e as suas consequências que para este advieram se ficassem a dever à circunstância do arguido – na ocasião descrita em 2.1 – conduzir com manifesta falta de cuidado e de atenção e/ou em desrespeito pelas regras elementares de circulação rodoviária e/ou que o arguido no exercicío da condução do veículo automóvel --FH-- tivesse imprimido uma tal velocidade que não lhe permitia imobilizar o veículo que tripulava no espaço que tinha livre e visível à sua frente e/ou que o arguido tivesse inobservado quaisquer regras e cuidados e/ou que pudesse ter adoptado qualquer outra conduta de modo a evitar o resultado ocorrido e/ou que pudesse ou devesse ter previsto tal resultado que não previu mas devia prever, dando assim causa às lesões descritas e sofridas pelo queixoso FE.

4. Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 2.1 supra estivesse a chover.

5. À data do acidente de viação o demandante civil trabalhasse como pintor da construção civil – ocasionalmente ou de empreitada – e que de tal actividade retirasse um rendimento superior ao salário mínimo.
Os factos não compreendidos em 2.1. (factos provados) e em 2.2. (factos não provados) ou são conclusivos, ou mostram-se prejudicados pelos ali expendidos ou não revelam qualquer interesse para a boa decisão da causa cível ou criminal.

Apreciando da bondade do peticionado:

B.1. Da condenação em sede civil
Alega o recorrente que em acidente de viação entre um veículo automóvel e uma bicicleta e do qual resultem, para o condutor da bicicleta, danos pessoais e materiais, a exclusão da indemnização por tais danos quando o evento danoso seja imputável à conduta do ciclista, é contrária ao direito comunitário, particularmente, aos Artsº 3º nº1 da primeira directiva, (72/166/CEE) 2º nº1 da segunda directiva (84/5/CEE) e 1º-A da terceira directiva (90/232/CEE) inserida pelo artº 4º da quinta directiva (2005/14/CE), todas relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de automóveis, sendo de notar que a jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades só em casos muito excepcionais é que admite a limitação de tal indemnização.

Nessa medida, havendo nexo de causalidade entre o acidente e os danos dele provocados no demandante, deve haver lugar à condenação da demandada - mercê do contrato de seguro de responsabilidade civil que celebrou com o proprietário e condutor do veículo automóvel interveniente neste acidente - ainda que, nos termos do Artº 503 e 570 nº2 do C. Civil, aquele seja exclusivamente imputável ao lesado.

A aplicação destas normas viola o teor daquelas disposições comunitárias relativas ao seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, tendo em conta que o lesado conduzia uma bicicleta, devendo ainda o tribunal averiguar se o pedido indemnizatório pode proceder com fundamento na responsabilidade pelo risco.

Apreciando esta argumentação, há que dizer que, com o devido respeito, não assiste razão ao recorrente.

Nos autos, atenta a factualidade apurada e que atrás se descreveu, concluiu-se que o acidente era imputado, exclusivamente, à conduta imprudente e negligente do lesado, razão pela qual se absolveu o arguido da prática do crime de ofensa à integridade física por negligência que lhe era imputado e em consequência, se julgou totalmente improcedente, por não provado, o pedido de indemnização deduzido pelo demandante civil, aqui recorrente, contra demandada, ora recorrida.

É sabido que por força da aplicação conjugada dos Artsº 503, 505 e 570 nº2, todos do C. Civil, a responsabilidade é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado.

Nessa medida, a responsabilidade civil da demandada – por via do contrato de seguro de responsabilidade civil que celebrou com o arguido e proprietário do veículo interveniente no dito acidente – foi excluída, conclusão que, em termos de mera aplicação factual e de direito, nem sequer é contestada pelo recorrente no seu recurso, onde apenas levanta uma outra questão que se prende com a inaplicabilidade daqueles normativos por força de quatro directivas comunitárias que mandam atender à aplicação de uma eventual indemnização, em casos de acidente de viação, como o dos autos, em que, apesar da culpa ser do lesado, este conduzia uma bicicleta e teve um acidente com um carro.

Ora, a este nível, importa ter em conta a natureza jurídica de uma directiva comunitária.

Como ensina José Luís Cruz Vilaça, em Directivas Comunitárias, Direito da União, Faculdade de Direito da UNL, 2010/2011, as directivas comunitárias fazem parte do “…outro direito comunitário derivado resultante da adopção pelas Instituições Comunitárias de actos normativos diversos (regulamentos, directivas e decisões e outros actos atípicos), que representam o que nós designamos como fontes do Direito Comunitário, também chamado acto unilateral da Autoridade Comunitária.

No art. 249º… refere-se que «a directiva vincula o Estado-membro destinatário quanto ao resultado a alcançar, deixando no entanto às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios». A partir desta disposição podemos definir as directivas como “actos pelos quais a autoridade comunitária competente, ao mesmo tempo que fixa aos respectivos destinatários um resultado que no interesse comum deve ser alcançado, permite que cada um deles escolha os meios e as formas mais adequadas – do ponto de vista do direito interno, da realidade nacional ou dos seus interesses próprios – para alcançar o objectivo visado”

Desde logo pode dizer-se que cabe às Instituições Comunitárias determinar o resultado que vai ser atingido, depois são os Estados-Membros que escolhem ou determinam quais os meios e as formas para alcançar o objectivo ou os resultados previstos pelas Instituições Comunitárias.

Do art. 249º resulta uma obrigatoriedade no que toca ao resultado a atingir. Com esta obrigatoriedade os Estados-membros estão obrigados: a interpretar o direito nacional à luz do texto e da finalidade da directiva, para que seja atingido o resultado pretendido; e a excluir, por força do princípio da primazia do Direito Comunitário, a aplicação das normas internas contrárias ao dispositivo da directiva.

A directiva é um acto obrigatório de âmbito geral. O artigo 288.º do Tratado sobre o Funcionamento da UE estabelece que a directiva é obrigatória. Tal como o regulamento europeu e a decisão, a directiva é vinculativa para os Estados-Membros seus destinatários.

A directiva distingue-se da decisão e do regulamento. Enquanto o regulamento é aplicável no direito interno dos Estados-Membros logo após a sua entrada em vigor, a directiva deve primeiro ser transposta pelos Estados-Membros. Assim, a directiva não inclui modalidades de aplicação; impõe apenas uma obrigação de resultado aos Estados-Membros, que têm a liberdade de escolherem a forma e os meios para aplicar a directiva.

A directiva entra em vigor uma vez notificada aos Estados-Membros ou publicada no Jornal Oficial.

É um acto jurídico que deve ser transposto. Trata-se de um acto jurídico com dois níveis que inclui: • a directiva propriamente dita, adoptada pelas instituições europeias; • as medidas nacionais de execução, adoptadas pelos Estados Membros. A entrada em vigor não tem, em princípio, efeito directo nos direitos nacionais. Para tal, é necessária uma segunda operação: a transposição. A transposição é um acto realizado pelos Estados-Membros que consiste na adopção de medidas nacionais destinadas a permitir-lhes conformar-se com os resultados fixados pela directiva.

Como se vê, a Directiva da União Europeia, sendo um dos instrumentos jurídicos utilizados como meio de harmonização das legislações nacionais, não é, ao contrário do Regulamento, imediatamente aplicável na ordem jurídica interna dos Estados membros após a sua entrada em vigor, carecendo, para tal aplicação, da necessária recepção e transposição para o direito nacional, sendo que, enquanto esta não ocorrer, mais não traduz que um objecto programático, de mero alcance de jure constituendo.

A matéria nas mesmas tratada só se constitui lei quando o respectivo Estado Membro a transporta para o direito nacional, sufragando-a então como de jure constituto.

Até esse momento, qualquer tribunal está obrigado a aplicar o direito vigente, o qual, in casu, compreende as normas dos Artsº 503, 505 e 570 nº2 do C.Civil, segundo as quais, há exclusão da responsabilidade da seguradora do veículo interveniente em acidente de viação quando este é imputável, de forma exclusiva, ao lesado condutor de uma bicicleta.

Não há, assim, ao contrário do invocado, qual violação daqueles artigos em relação às mencionadas Directivas, na medida em que estas, não tendo sido ainda transportas para o direto nacional, não constituem lei vigente, não sendo, por isso, aplicáveis.

É certo que qualquer directiva deve ser transporta no prazo para tanto fixado pela respectiva instituição – em regra, de 6 meses a 2 anos – decorrido o qual, a não ter acontecido a referida recepção no ordenamento nacional, justifica que qualquer particular accione o Tribunal de Justiça no sentido de condenar o seu Estado pela não transposição atempada da dita directiva.

Mas até essa transposição se verificar, a mesma, como o próprio Tribunal de Justiça das Comunidades tem reconhecido, não pode ser invocada em tribunal por particulares contra outros particulares – o denominado efeito horizontal – sendo que a invocação contra o Estado em causa (chamado de efeito vertical), apenas pode ser efectuada no termo do prazo de transposição.

Por fim, importa relembrar que é entendimento pacífico na doutrina e jurisprudência, que tendo-se provado a culpa exclusiva do próprio lesado, afastada está a eventual configuração da responsabilidade pelo risco, na medida em que, nos termos do Artº 505 do C. Civil, é inconciliável a concorrência entre o risco de um e a culpa de outro, para efeitos de responsabilização dos dois.

Nesta medida, a improcedência do recurso é inevitável.

3. DECISÃO

Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso e em consequência, manter, na íntegra, a sentença recorrida.

Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça, atendendo ao trabalho e complexidade das questões suscitadas, em 3 UC, ao abrigo do disposto nos Artsº 513 nº1 e 514 nº1, ambos do CPP e 8 do Regulamento das Custas Processuais e tabela III anexa.

Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o mesmo foi elaborado pelo relator e integralmente revisto pelos signatários.

Évora, 21 de Dezembro de 2017

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Renato Barroso
(Relator)

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Maria Leonor Botelho
(Adjunta)