Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
60/21.0GDABF.E1
Relator: BEATRIZ MARQUES BORGES
Descritores: ANTECEDENTES CRIMINAIS
CANCELAMENTO
CONHECIMENTO OFICIOSO
MEDIDA DA PENA
Data do Acordão: 06/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. O Tribunal a quo aproveitou-se, contra a arguida, da informação constante do CRC para determinar a medida das penas principal e acessória.
II. Essa informação não podia, todavia, relevar para a determinação do quantum das penas, pois ocorrera, por imposição legal, motivo para o cancelamento do registo criminal.
III. O cancelamento do registo criminal não averbado no CRC do arguido, quando o devia ter sido, produz efeitos ipso facto desde a extinção efetiva da pena.
IV. O ponto dos factos provados relativo aos antecedentes criminais tem de ser eliminado daquele elenco.
V. O Tribunal da Relação ao apreciar o cancelamento do registo não está a conhecer oficiosamente de uma questão nova, mas sim a pronunciar-se sobre um dos fundamentos da questão suscitada expressamente pela arguida (errada dosimetria da medida das penas).
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
1. Da decisão
No Processo Sumário n.º 60/21.0GDABF da Comarca de Faro, Juízo Local Criminal de Albufeira, Juiz 3, submetida a julgamento, foi a arguida AAA:
1.1. Condenada pela prática, no dia 24/11/2021, em (…), de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, nos termos do artigo 292.º, n.º 1 do CP, na pena de 90 dias de multa à taxa diária de 6 € num total de 540 €;
1.2. Condenada na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 8 meses, ao abrigo do artigo 69.º, n.º 1, alínea a) do CP.

2. Do recurso
2.1. Das conclusões da arguida
Inconformada com a decisão a arguida interpôs recurso extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):
“A douta sentença “a quo”, não fez uma correcta aplicação do direito vigente, designadamente no que segue:
1- O M.º Juiz “a quo”, começou por determinar a pena principal a aplicar e na qual o arguido não apresenta qualquer oposição.
2- parece que a meretissima Juiz aquo não fez uma correcta apreciação dos critérios exigidos pelo artigo 71.º do C. P., para a determinação da medida da pena de multa aplicada. Pois tendo em consideração que:
a) a arguida apenas tem um antecedente criminal que se reporta a factos de 2013.
b) que se encontra bem inserido social, familiarmente e profissional sendo que, profissionalmente exerce apenas um part-time num restaurante, necessitando da sua carta de condução para se deslocar para o trabalho, dado que reside afastada da cidade e dos transportes públicos.
3- Assim, se por um lado para a determinação da medida da pena deverá ter-se em conta todos os factos anteriormente expostos, por outro lado, nos termos do artigo 71.º do Código Penal «a determinação da medida da pena dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção».
4- No tocante á determinação da medida da pena de multa e da sanção acessória de inibição de conduzir, salvo melhor opinião, afigura-se como demasiado severa e excessiva,
5- mostrando-se suficientes e adequadas ás finalidades da punição, a aplicação ao arguido no que respeita á multa e da sanção acessória fixada próxima dos limites mínimos ou seja nunca superior a 60 dias de multa e para a sanção acessória de inibição de conduzir nunca superior a 4 meses e isto atendendo a toda uma panóplia de factos invocados anteriormente e que em muito relevam para que ao ora recorrente lhe seja aplicada uma pena fixada nos seus limites minimos,
6- A ameaça com as sanções ao mesmo aplicadas, por si só, bastará para que o ora recorrente conduza o seu comportamento futuro longe da criminalidade, e assegurando as finalidades da punição.
7- Deste modo foi violado, o artigo 71.º do C. P., no que diz respeito à ponderação dos critérios para determinação da medida da pena de multa aplicada.
8- De acordo com os referidos critérios do artigo 71.º C. P. temos por conveniente e adequado a condenação do ora recorrente, numa pena de multa fixada num prazo nunca superior a 60 dias e para a pena acessória a fixação da proibição de conduzir veículos motorizados pelo período nunca superior a 4 meses.
9 – Assim, entende-se que o Tribunal “a quo”, na aplicação da medida concreta da pena aplicada ao arguido, violou as disposições dos artºs 2º, 40º, 69º, 71º e 77.º do C. Penal
Termos em que, nos mais de direito e com o sempre mui douto suprimento de V. Ex.ªs, deve o presente recurso ser julgado procedente e provado e, em consequência, ser aplicada ao arguido uma pena de multa nunca superior a 60 dias, e uma inibição de conduzir nunca superior a 4 meses, (…)”.

2.2. Das contra-alegações do Ministério Público
Motivou o Ministério Público defendendo o acerto da decisão recorrida, concluindo nos seguintes termos (transcrição):
“1.ª A arguida foi condenada por crime de condução de veículo em estado de embriaguez nas penas de 90 dias de multa e 8 meses de pena acessória de proibição de condução.
2.ª A medida da pena principal e da pena acessória, dentro dos limites mínimos e máximos legais, é determinada de acordo com os critérios legais estabelecidos no artigo 71.º do Código Penal, em função da gravidade do ilícito, da culpa, das exigências de prevenção especial e da necessidade geral de manutenção da confiança da comunidade na segurança rodoviária.
3.ª Em concreto, há a considerar a atuação como dolo direto e a taxa de álcool de 2,26 gramas por litro, a qual é uma taxa elevada.
4.ª As circunstâncias descritas em 3.º concorrem para a culpa e a ilicitude e não permitem dizer que as penas ultrapassam a medida da culpa.
5.ª O crime praticado é muito frequente, mormente em ZZZ, e com elevada sinistralidade associada por todo o país,
6.ª A arguida já havia sido condenada pelo mesmo crime,
7.ª Por isto, as necessidades de prevenção geral, elevadas, e a necessidade de prevenção especial, tornam adequadas ambas as penas concretas fixadas.
8.ª As penas estão criteriosamente fixadas e devem ser mantidas.
Pelo exposto, espera-se se conforme a douta sentença recorrida negando-se provimento ao recurso da arguida (…).”.


2.3. Do Parecer do MP em 2.ª instância
Na Relação o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido de ser julgada a improcedência total do recurso interposto pela arguida.
“2. OBJETO DA DECISÃO. QUESTÕES DE FUNDO:
2.1. Relatório e âmbito do recurso (402.º e 403.º CPP):
Considerando que os recursos são concebidos como remédios jurídicos e não como instrumentos de refinamento jurisprudencial;
Considerando que o recurso, através do ónus da motivação e conclusões, consubstancia um pedido dirigido ao tribunal ad quem com as razões através das quais se justifica onde e porquê se discorda do decidido e se pede como deve ser reponderada a decisão impugnada;
Considerando que é pacífica a jurisprudência de que as conclusões da motivação do recurso, deduzidas por artigos, não só resumem as razões do pedido, mas delimitam, em princípio, o objeto do recurso, sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, e se fixam os limites cognitivos do tribunal ad quem;
Considerando que na fase de recurso persistem princípios do processo penal, designadamente o da verdade material, com os limites impostos pelo reformatio in pejus
2.1.1. O recurso vem interposto pela arguida AAA da sentença que, nos termos do respetivo dispositivo, além do mais, a condenou “…pela prática no dia 24/11/2021, em AAA, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, nos termos do artigo 292º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 90 (noventa) dias de multa à taxa diária de 6,00€ (seis euros) o que perfaz um total de 540,00€ (quinhentos e quarenta euros). Condenar a arguida na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 8 (oito) meses, ao abrigo do artigo 69º, n.º1, al. a), do C.Penal.”.
2.1.2. O recurso impugna a dosimetria, tanto da pena de multa como da pena acessória, que pretende ver reduzida a metade do fixado tanto numa como noutra.
2.2. Parecer sobre as questões a decidir. Quadro factual. Enquadramento jurídico. Análise.
A recorrente não questiona nem a escolha da pena de multa, nem o montante diário fixado em 6.00€.
Afigura-se-nos que a decisão recorrida teve na devida conta os critérios fixados no artigo 71.º, n.º 2 do Código Penal.
No que à ilicitude respeita, o TAS era superior em 1,06g/l ao valor mínimo a partir do qual existe crime nos termos do artigo 292.º, n.º 1 do Código Penal, fator a justificar que a pena não se situasse próximo do mínimo.
Se as necessidades de prevenção geral são manifestas quanto ao tipo de crime cometido e aos bens jurídicos protegidos pela proibição da conduta, as necessidades de prevenção especial também o são no caso dos autos, pois a arguida já contava com condenação homóloga, ainda que com cerca de 8 anos, o que acentua essas necessidades de prevenção e um acréscimo na graduação já encontrada. Daí que nos pareça que uma prognose positiva justifique ainda a escolha de uma pena de multa, mas também justifique que a respetiva medida se afaste do limite médio da moldura abstrata (30 dias a 120 dias). Teve-se em conta o grau de dolo (referido como eventual), a condução ziguezagueante do veículo na via pública, as condições de vida (cozinheira em part-time, auferindo 500 €uros de rendimento, que vive sozinha, paga renda de 320€, proprietária de veículo automóvel) e a ausência de autocensura ou arrependimento demonstrada em julgamento.
Quanto à pena acessória aplicada, ela está abaixo do primeiro terço da moldura abstrata e não nos parece merecer reparo, tendo em conta os fatores atrás referidos.
Em termos de considerações gerais, o artigo 71.º do Código Penal estabelece no seu n.º 1 a orientação base para a medida da pena a aplicar: “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”. No n.º 2 do preceito faz-se referência às “circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuseram a favor do agente ou contra ele.” O n.º 3, por último, obriga a explicitar na sentença os fundamentos da medida da pena que se elegeu.
Importa, pois, notar que a confluência entre os fins das penas, a escolha e a sua determinação concreta encontram-se precisamente na transição entre os princípios e o seu exercício pragmático. É aqui - operacionalizando os critérios que o legislador estabelece - que a arte de julgar se afere. Não a arte que se confunde com intuição, discricionariedade, orientações morais do julgador ou com o recurso a fórmulas estereotipadas que apenas reproduzem os critérios legais, mas arte justamente porque o juiz deve saber resistir a toda a possibilidade de arbítrio, tendo por fundamento a legalidade, o facto e a culpa que não podem ser esquecidos quando se trata de graduar a pena ou quando se trata também de determinar a forma do seu cumprimento.
Essa graduação deverá ter fundamentos explícitos que possibilitem a discussão racional e o controlo da decisão em limites compatíveis com o Estado de Direito. Aí reside a legitimidade da sentença penal condenatória.
O que é determinar uma pena? Não é outra coisa senão quantificar a culpa numa pena justa. Culpa que tanto é constitutiva da pena como é um conceito graduável. É nessa graduação que se encontra parte da complexidade, principalmente quando se têm que identificar os parâmetros concretos – (quase sempre valorativos e de contornos difusos) - e saber quanto valem, para depois determinar qual a pena que, quanto ao limite mínimo, já é adequada à culpa e aquela que, quanto ao máximo, ainda é adequada à culpa no confronto entre a culpa, a gravidade do facto e os fins preventivos da pena. É por isso importante saber explicitar os fatores que se valoram contra e a favor do arguido. Um pouco ainda mais complicado é saber onde se encontra o ponto fixo a partir do qual se valora a favor ou contra (o mais e o menos, que expressam uma grandeza aritmética onde só parece ser possível uma ponderação aproximada). Claro que temos o quadro da pena abstrata. Mas esse é apenas o ponto de partida. É necessário o tal ponto fixo e ele não pode ser nenhum dos fatores legais, pois não se pode comparar usando por parâmetro o mesmo objeto a ser comparado. Qual será esse parâmetro de referência? Estará ele apenas implícito na decisão? É aqui que a arte e a experiência do juiz – o fiel calibrador – se jogam como fatores determinantes. A solução do caso deve ser a mais exata possível, sem contradições na avaliação dos diversos fatores, sempre apoiada no ordenamento jurídico e nas valorações normativas.
Decisivo – parece-nos - é a motivação que permite valorar, controlar e modificar.
As decisões dos tribunais superiores são muito claras, quanto à necessidade de os acórdãos ou sentenças recorridos fundamentarem, sempre, a opção pela pena privativa ou não privativa de liberdade e a sua determinação concreta, sob pena de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do art.º 379º nº 1 al. a) do Código de Processo Penal.
Tendo-se procedido à audição do julgamento e decisão oral, afigura-se que, de forma suficiente, tanto na escolha, como na medida da pena, o tribunal a quo alicerçou-se corretamente na consideração da culpa e da prevenção como princípios regulativos dessa medida, e foi fiel à medida da necessidade de tutela de bens jurídicos face ao caso concreto.
Acompanham-se, assim, as alegações do Ministério Público na 1.ª instância.
2.3. Conclusão:
Em conformidade, somos de parecer que o recurso deverá improceder, confirmando-se integralmente a sentença recorrida.”.

2.4. Da tramitação subsequente
Foi observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos teve lugar a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Objeto do recurso
De acordo com o disposto no artigo 412.º do CPP e atenta a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28/12/95 o objeto do recurso define-se pelas conclusões apresentadas pelo recorrente na respetiva motivação, sem prejuízo de serem apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

2. Questão a examinar
Analisadas as conclusões de recurso a questão a conhecer é a de saber se ocorreu, erro de julgamento quanto à matéria de direito (artigo 412.º, n.º 2 do CPP), por incorreta dosimetria das penas principal e acessória.

3. Apreciação
3.1. Da decisão recorrida
Definida a questão a tratar, importa considerar o que se mostra decidido pela instância recorrida (transcrição):
“Nos presentes autos de processo sumário, vem acusada a arguida AAA, (…) nascida em vinte e oito de janeiro de 1972, residente (…), pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez previsto e punido pelos artigos 292.º número 1 e 69.º número 1, alínea a), ambos do Código Penal. Procedeu-se a julgamento com observância do formalismo legal.
Discutida a causa, o Tribunal apurou que:
1- No dia vinte e quatro de novembro de 2021, cerca das duas horas e quarenta e três minutos, na estrada municipal (…), a arguida guiava um veículo ligeiro de passageiros de matrícula XXX, quando submetida a teste de alcoolemia por ar expirado acusou uma taxa de álcool no sangue de 2,263, efetuado o desconto legalmente admissível.
2- A arguida tinha ingerido bebidas alcoólicas antes do exercício da condução, o que sabia, ainda assim a arguida decidiu conduzir depois de ingestão de bebidas alcoólicas, admitindo a possibilidade de estar a conduzir com uma taxa de álcool não permitida por lei penal.
3- Agiu a arguida de modo deliberado, livre e consciente, bem sabendo que praticava ato proibido e punido por lei. A arguida não demonstrou qualquer autocensura perante a sua conduta.
4- A arguida foi condenada por sentença transitada em julgado em 2014 pela prática de um crime idêntico ao (…) que está em causa nos presentes autos, na pena de setenta dias de multa, que pagou.
5- A arguida aquando do exercício da condução do veículo, apresentava condução irregular ziguezagueando com a mesma.
6- A arguida é cozinheira de profissão em regime de part-time, auferindo o rendimento aproximado de quinhentos euros. Vive sozinha em casa arrendada, pela qual paga a renda de trezentos e vinte euros. Ainda é proprietária de uma viatura automóvel matriculada no ano de 2007.
A convicção do Tribunal assentou no depoimento firme e credível da testemunha policial que procedeu à detenção da arguida em flagrante delito, por contraponto com as declarações da arguida que denotou bastantes incoerências no seu discurso e contradições, começou por dizer a arguida que só bebeu dois copos de vinho, pelo que a taxa de álcool no sangue não poderia ser superior a 1,2, como se técnica de laboratório de polícia científica se tratasse, depois referiu a arguida que assinou documentos sem ler os mesmos, designadamente o documento referente à dispensa de contraprova, ora, a arguida no seu discurso não foi nada convincente, pelo contrário, mostrou (…) não ter autocensura perante a sua conduta.
Quanto ao facto de a arguida saber que a sua conduta era punida por lei e saber que tinha ingerido bebidas alcoólicas em excesso e ter decidido conduzir nessas condições, o Tribunal teve em consideração os factos objetivamente desenvolvidos pela arguida, conjugados com regras de experiência comum. O Tribunal teve ainda em conta o CRC que se encontra junto aos autos, o talão de alcoolímetro de folhas onze e a notificação assinada pela arguida, nos termos do artigo 152.º do Código da Estrada.
A factualidade dada como provada integra a prática pela arguida de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigos 292.º, n.º 1 e 69.º n.º 1, alínea a), ambos do CP, tendo agido com dolo e com culpa.
O crime praticado é punível com pena de prisão até um ano, ou com pena de multa até cento e vinte dias, e com a pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período compreendido entre três meses e três anos.
O Tribunal entende que, não obstante a postura da arguida em julgamento, e o seu antecedente criminal, o facto é que o referido antecedente criminal diz respeito a facto praticado há cerca de oito anos, em 2013, (…) a pena de multa ainda se mostra suficiente para acautelar as necessidades de prevenção.
Na determinação da medida da pena de multa há que ter em conta o disposto no artigo 71.º do Código Penal. Assim e partindo da factualidade apurada teve-se em conta, o elevadíssimo grau de ilicitude dos factos concretizado na taxa de álcool com que a arguida conduzia o veículo, praticamente o dobro da taxa de álcool que já é proibida por lei e punida com prática, punida como crime.
A intensidade (…) do agente, a arguida agiu com dolo eventual, a forma como a arguida conduzia a viatura, ziguezagueando pela via pública, não obstante a ausência de consequências graves da conduta da arguida, as suas condições de vida, a ausência de autocensura demonstrada pela arguida em julgamento e mais uma vez, o seu antecedente criminal.
Tudo ponderado, tem-se como proporcional, adequado e suficiente a aplicar a arguida, a pena de noventa dias de multa à taxa diária de seis euros, no total de quinhentos e quarenta euros.
Relativamente à pena acessória, deverá também a mesma ser aplicada nos termos do artigo 69.º número 1, alínea a) do Código Penal, que no mínimo são três meses e o máximo são três anos. Tendo mais uma vez em conta a elevadíssima taxa de álcool com que conduzia a arguida e também o seu antecedente criminal, o Tribunal condena a arguida na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de oito meses.
Dispositivo, tudo visto e ponderado, o Tribunal condena a arguida AAA, pela prática em vinte e quatro de novembro de 2021, pelas duas horas e quarenta e três, na estrada municipal (…), pelo crime de condução de veículo em estado de embriaguez previsto e punido pelos artigos 292.º número 1 e 69º número 1, alínea a), ambos do Código Penal, na pena de noventa dias de multa à taxa diária de seis euros o que perfaz o total de quinhentos e quarenta euros e na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de oito meses.
(…) Após trânsito, comunique à DCIC, comunique à ANSR e ao IMT.
Notifique-se a arguida de que deverá proceder à entrega dos seus títulos de condução no prazo de dez dias a contar do trânsito em julgado da presente sentença, na secretaria do Tribunal, ou em qualquer posto policial, com a cominação que não o fazendo incorrerá na prática de um crime de desobediência previsto e punido pelo artigo 348.º número um, alínea a), do Código Penal. (…)”.

3.2. Da apreciação do recurso interposto pela arguida
Passamos, então, a conhecer as questões suscitadas pela recorrente e assinaladas em II. ponto 2. deste Acórdão.
A recorrente questiona a dosimetria das penas principal (multa) e acessória (proibição de condução de veículos motorizados), pretendendo que ambas sejam reduzidas a metade, embora não discuta o montante diário da multa, fixado em 6 €.

No caso em apreciação a arguida não confessou os factos, nem revelou arrependimento e apresentava uma TAS de 2,263 g/l. Em todo o caso, facilmente se conclui da leitura da sentença que o Tribunal a quo se aproveitou judicialmente, contra a arguida, da informação constante do CRC para optar pela aplicação de uma pena de multa fixada em 90 dias, quando o mínimo legal é de 10 dias e o máximo 120 dias, e na pena acessória de 8 meses, quando o mínimo legal são 3 meses.

Do certificado de registo criminal da arguida resulta, efetivamente, que pela prática, em 16.10.2013, do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, foi aquela condenada, por decisão transitada em julgado em 6.6.2014, na pena de 70 dias de multa à taxa diária de 5,50 €, num total de 385 € e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados em 4 meses e 15 dias. A pena foi declarada extinta em 30.6.2016 (cf. CRC de fls. 32 e 34).

O registo criminal, todavia, não podia ter sido valorado pelo Tribunal a quo, como passaremos a explicar em seguida.

Nos termos do disposto no artigo 10.º, n.º 1, alíneas b) e g) da Lei 37/20015 as decisões inscritas cessam a sua vigência no registo criminal quando:

- Tendo sido aplicada pena principal de multa a pessoa singular haja decorrido cinco anos sobre a extinção da pena e desde que, entretanto, não tenha ocorrido nova condenação por crime de qualquer natureza (alínea b) do artigo 10.º, n.º 1).

- Tendo sido aplicada pena acessória haja decorrido o prazo para esta fixado na respetiva sentença condenatória ou tratando-se de pena acessória sem prazo, após a decisão de reabilitação (alínea g) do artigo 10.º, n.º 1).

Como se depreende da leitura do mencionado artigo 10.º da Lei 37/2015 o cancelamento dos registos é uma imposição legal desde que:

- Hajam decorrido determinados prazos sobre a data da extinção das penas;

- O arguido não volte a delinquir.

Ordenando a lei o cancelamento do registo em certas circunstâncias, quando estas se verifiquem, o arguido tem de ser considerado reabilitado, encontrando-se vedado ao Tribunal a quo valorar os antecedentes criminais.

Tendo a extinção da pena ocorrido em 30 de junho de 2016 a decisão deveria ter sido cancelada em 30 de junho de 2021, porquanto a arguida apenas foi condenada, neste processo, em 9 de dezembro de 2021.

Face à redação da lei, verificando-se que o cancelamento do registo criminal não foi averbado no CRC do arguido, devendo tê-lo sido, aquele tem de produzir efeitos ipso facto desde a extinção efetiva da pena (30.6.2021).

A arguida requereu que, em sede de recurso, fossem reponderadas as medidas das penas principal e acessória. O cancelamento do registo criminal configura apenas um dos fundamentos a apreciar no conhecimento da questão suscitada pela arguida. Por outras palavras, o Tribunal da Relação ao conhecer do cancelamento do registo não está a conhecer oficiosamente de uma questão nova, mas sim a pronunciar-se sobre um dos fundamentos da questão suscitada expressamente pela arguida (errada dosimetria da medida das penas).

A propósito do cancelamento do registo criminal pronunciaram-se, designadamente dois acórdãos: um do Tribunal da Relação de Évora de 10.5.2016 e outro do Tribunal da Relação de Coimbra de 13.9.2017 [1] [2].

No Acórdão do TRE refere-se que “(…) O aproveitamento judicial de informação que por inoperância do sistema se mantenha no CRC é ilegal, e viola o princípio constitucional da igualdade, pois permite distinguir um arguido de um outro que, nas mesmas condições, tenha o CRC devidamente “limpo” (…) Se o CRC visa informar o tribunal do passado criminal do condenado, e se a lei ordenou o cancelamento dos registos, o arguido tem de ser considerado integralmente reabilitado e os seus antecedentes criminais que indevidamente permaneçam “ativos”, são de tratar como inexistentes e de nenhum efeito.”[3].

Já no Acórdão do TRC concluiu-se que “Um certificado do registo criminal que certifique decisões que, nos termos legais, dele já não deveriam constar, implica uma verdadeira proibição de valoração de prova, estando vedado ao Tribunal ter em conta tais decisões. (…) Apesar do cancelamento não ter sido averbado, o mesmo deve produzir efeitos ipso facto, ou seja, desde a extinção efetiva da pena, independentemente do seu registo/averbamento no CRC.”.

Assim, em síntese:

- A condenação transcrita no ponto 4. dos factos provados da sentença não pode relevar na determinação da pena, pois tendo ocorrido motivo para o cancelamento (por imposição legal) não podia ter sido valorada para a determinação da pena, como o foi pelo Tribunal a quo;

- O ponto 4. dos factos tem de ser eliminado daquele elenco, por ser evidente que não deveria constar do CRC;

Em consequência do decidido há que ter em conta os critérios fixados no artigo 71.º, n.º 2 do CP, para encontrar a medida da pena principal. A este nível cumpre assinalar as manifestas necessidades de prevenção geral quanto ao tipo de crime cometido e aos bens jurídicos protegidos pela proibição da conduta e, ainda:

- O elevado grau de ilicitude dos factos concretizado na taxa de álcool com que a arguida conduzia o veículo, praticamente o dobro da taxa de álcool que já é proibida por lei e punida como crime;

- A intensidade do dolo que é o menos grave (dolo eventual);

- A forma como a arguida conduzia a viatura, ziguezagueando pela via pública, embora em período coincidente com uma menor intensidade de tráfego (cerca das 3 da madrugada), e sem terem sido assinaladas consequências graves da sua conduta;

- A ausência de autocensura ou arrependimento demonstrada em julgamento, por parte da arguida;

- As condições de vida da arguida que é cozinheira em part-time, auferindo 500 € de rendimento, vive sozinha, paga uma renda de 320 € e é proprietária de veículo automóvel;

Tendo em consideração que aplicação da pena de multa mais próxima do seu limite mínimo deve ser reservada para situações em que o agente tenha agido com negligência inconsciente ou consciente, se tenha mostrado arrependido, tenha confessado os factos e em que a taxa de álcool no sangue coincida com o mínimo de 1,2 g/l, decide-se, assim, condenar a arguida na pena de 70 dias de multa à taxa diária de 6 €, num total de 420 €.

Quanto à pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, deverá, pelas mesmas razões afastar-se do limite mínimo (3 meses), considerando-se equitativa a sua fixação em 5 meses.

III. DECISÃO

Nestes termos e com os fundamentos expostos acordam os juízes da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso interposto pela arguida e, em consequência:
1. Determinar a eliminação do ponto 4. dos factos provados por ser evidente que não deveria constar do CRC.
2. Condenar a arguida AAA, pela prática no dia 24.11.2021, em (…), de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, nos termos do artigo 292.º, n.º 1 do CP, na pena de 70 dias de multa à taxa diária de 6 € o que perfaz um total de 420 €;
3. Condenar a arguida na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 5 meses, ao abrigo do artigo 69.º, n.º 1, alínea a) do CP.
4. Sem custas.

Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 94.º, n.º 2 do CPP consigna-se que o presente Acórdão foi elaborado pela relatora e integralmente revisto pelos signatários.
Évora, 21 de junho de 2022.

Beatriz Marques Borges - Relatora
Maria Clara Figueiredo
Gilberto da Cunha

__________________________________________________
[1] O primeiro proferido no processo n.º 216/14.2GBODM.E1 em que foi relatora Ana Barata Brito e o segundo no processo n.º 27/16.0GTCBR.C1 em que foi relator Luís de Brito, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
[2] Em sentido contrário a título ilustrativo, confronte-se o Acórdão da Relação de Évora, de 14.7.2015, Processo 208/14.1GBODM.E1 em que foi relator Clemente Lima.
[3] Neste mesmo sentido pronunciaram-se os Acórdãos: da RE de 10.01.2012 em que foi relatora Ana Barata Brito (citado pela própria Desembargadora no processo 92/15.8GCSTC.E1); da RP de 29-2-2012, proferido no âmbito do Proc. 123/10.8GAVLP.P1 em que foi relatora Lígia Figueiredo; da RE de 11/7/2013 em que foi relator João Amaro, proferido no âmbito do Proc. 510/11.4GGSTB.E1; da RL de 28.01.2016, proferido no âmbito do Processo 14/14.3JBLSB.L1-9 (citado no processo 22/16.0GBODM.E1); da RE de 21-02-2017, proferido no processo 22/16.0GBODM.E1 em que foi relatora Ana Barata Brito; da RE de 2-7-2019 proferido no processo 92/15.8GCSTC.E1 em que foi relatora Ana Barata Brito.