Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2240/19.0T8FAR.E1
Relator: TOMÉ RAMIÃO
Descritores: CASAMENTO
UNIÃO DE FACTO
DISTINÇÃO
ESTATUTO PESSOAL
CÔNJUGE
DISPOSIÇÃO TESTAMENTÁRIA
CADUCIDADE DO TESTAMENTO
Data do Acordão: 09/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1. No atual quadro legal vigente o casamento e a união de facto são situações materialmente diferentes, não se justificando equiparar o estatuto dos cônjuges aos unidos de facto.
2. A caducidade das disposições testamentárias mencionada na previsão da alínea d) do n.º1 do art.º 2317.º do Código Civil aplica-se exclusivamente aos cônjuges, estatuto que se adquire pelo casamento, não abrangendo a sua letra, espírito ou ratio legis a cessação da união de facto. (sumário do relator)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Évora

I. Relatório.
F… intentou a presente ação declarativa comum, contra M…, ambos com os demais sinais identificadores constantes dos autos, na qual peticionou:
a) se declare a caducidade do testamento outorgado por S…. a favor da ré;
b) se declare inoponível aos herdeiros da S…, incluindo o autor, a escritura de habilitação de herdeiros de 20.09.2017 no cartório notarial de M…, em Lisboa;
c) subsidiariamente, caso se entenda que o testamento não caducou, se declare que a sua invocação pela ré é um ato ilícito, por configurar abuso de direito, em gritante violação da boa-fé, dos bons costumes e do fim económico e social do direito sucessório, condenando-a a não o poder invocar.
Alega, em suma, que é pai da falecida S…, a qual viveu em união de facto com a ré e durante esse período, outorgou testamento, através do qual a instituiu herdeira de todos os bens que à data da sua morte pudesse dispor, testamento que caducou a morte daquela, considerando que se encontravam há muito separadas.
Caso assim não se considere, entende que a ré atua em abuso de direito, ao pretender beneficiar do testamento outorgado por causa da convivência amorosa e da união de vida, situação que cessou anos antes do óbito, em prejuízo da família de sangue, atentando contra a boa-fé, os bons costumes e o fim económico e social da vocação sucessória
A ré contestou, invocando a exceção dilatória de ilegitimidade ativa, por o autor se encontrar desacompanhado dos demais herdeiros, e impugnou os factos alegados, concluindo pela improcedência da ação.
O autor pronunciou-se pela improcedência da referida exceção dilatória de ilegitimidade.
Foi realizada audiência prévia e proferido saneador sentença, no qual foi julgada improcedente a invocada exceção de ilegitimidade e improcedente a ação, absolvendo a ré do pedido.
Desta sentença veio o Autor interpor o presente recurso, concluindo as alegações nos seguintes termos:
a. O art.º 2317º do Cód. Civil determina a caducidade dos testamentos cuja base negocial tenha cessado.
b. Estão nesses casos os diversos exemplos das várias alíneas do artigo, os quais não esgotam os casos aos quais se deve aplicar o mesmo remédio.
c. A razão de ser da caducidade é o facto de se poder com segurança presumir que, uma vez ausentes os pressupostos em que assentou o testamento, a vontade conjetural do testador é a de que o testamento deve caducar.
d. É assim, por exemplo, no caso do cônjuge que testa a favor do seu cônjuge, quando cessa o casamento, pois entende-se que a vida familiar conjugal foi a razão pela qual o testamento foi feito, ou seja, a circunstância essencial que constituiu a base do negócio, e que a vontade que a ele presidiu deixa de existir quando o casamento acaba.
e. A mesma regra deve ser aplicada ao caso do testamento de fls. 17, pois também ele foi feito porque a sua autora vivia com a Recorrida como se fosse casada, e, tendo essa relação cessado muito antes da morte da testadora, deixaram de estar presentes as circunstâncias que motivaram o testamento, devendo presumir-se que a vontade da testadora é a de fazer caducar o testamento.
f. A bondade desta presunção em que se baseia o art.º 2317º, e da sua aplicação também ao caso dos autos, pode ser confirmada pela experiência de vida de qualquer pessoa: o normal é que quem se separa (casado ou vivendo como se fosse casado) não queira manter o testamento feito a favor do ex cônjuge ou ex companheiro(a).
g. Reforça essa ideia o facto de a separação da testadora e da Recorrida ter terminado com a partilha/divisão de bens, não fazendo sentido que S… tenha querido pôr termo à comunhão dos bens, mas quisesse manter a Recorrida como sua sucessora na titularidade desses mesmos bens.
h. Do mesmo modo, tendo constituído nova família com outra pessoa, não faz sentido que tenha querido manter a Recorrida como sua sucessora.
i. Sendo assim, a douta sentença recorrida violou o art.º 2317º do Cód. Civil.
j. Deste modo, havendo motivos de sobra para justificar a aplicação do art.º 2317º ao caso dos autos, determinando a caducidade do testamento de fls. 17, requerendo-se a reforma da douta sentença recorrida, e a sua substituição por outra que julgue a ação totalmente procedente.
Juntou um Parecer Jurídico em abono da sua tese.
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Não foram juntas contra-alegações.
O recurso foi admitido como sendo de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II – Âmbito do Recurso.
Perante o teor das conclusões formuladas pelos recorrentes – as quais (excetuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso - arts. 608.º, nº2, 609º, 620º, 635º, nº3, 639.º/1, todos do C. P. Civil, constata-se que a única questão a decidir consiste em saber se com a cessação da união de facto caducou o testamento outorgado por um dos membros da união em benefício do outro.
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III – Fundamentação fáctico-jurídica.
1. Matéria de facto.
A factualidade provada pela 1.ª instância, inquestionada pelo recorrente e que se mantém, é a seguinte:
1- S…, filha de F… e de C…, nascida em 05.07.1958, faleceu em 05.06.2017.
2- A mesma possuía nacionalidade portuguesa e brasileira.
3- Entre meados de 1990 até 2008 viveu em comunhão de cama, mesa e habitação com a ré, residindo ambas na mesma casa, no Sítio do Canal, Santa Bárbara de Nexe, Faro.
4- Durante esse período foram proprietárias, em comum, de vários bens imóveis e sócias de uma sociedade comercial, P…, Lda., na qual ambas exerciam atividade profissional, da qual viviam, dedicada ao setor turístico.
5- Em 16 de junho de 1997, a S… outorgou testamento, no Segundo Cartório Notarial de Faro, através do qual instituiu a ré como herdeira de todos os seus bens que à data da sua morte puder dispor.
6 - Em 19.04.2011 o autor e C… outorgaram escrituras de doação, através das quais doaram à S…, com reserva de usufruto, bens imóveis, situados no Estado de São Paulo, no Brasil.
7 - Em 13.07.2012 S…e L… outorgaram escritura pública, no Brasil, na qual declararam ter iniciado a convivência de uma vida comum, que desejam que seja duradoura e pública, com a firme e inabalável intenção que figure como uma união estável, portanto, uma entidade familiar, estabelecida com o objetivo de constituição de família.
8 - Esta união estável foi registada em 08.01.2014.
9- Em 29.10.2013 S… e a ré acordaram proceder à divisão dos bens que direta ou indiretamente possuíam, nos termos constantes do documento de fls.15/16, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
10- Por óbito de S… foi instaurado processo judicial de inventário, requerido por L… contra o autor e C…, a correr termos na 4ª Vara de Família e Sucessões da Comarca de Campinas, no estado de São Paulo, Brasil, com o n.º 1020327-68.2018.8.26.0114 (cf. doc. de fls.31/33, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
11- A ré intentou ação de abertura do testamento outorgado por S… em 16.06.1997, a qual corre termos na mesma 4ª Vara de Família e Sucessões da Comarca de Campinas, no estado de São Paulo, Brasil, com o n.º 1019300-50.2018.8.26.0114.
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2. O direito.
O recorrente reafirma a tese de que o testamento outorgado pela filha, em 16 de junho de 1997, através do qual instituiu a Ré como herdeira de todos os seus bens que à data da sua morte pudesse dispor, caducou com a cessação da união de facto que a filha com ela mantinha há vários anos, por aplicação do regime prescrito art.º 2317.º, n.º1, al. d) do Código Civil.
Sustenta que, tal como sucede com a cessação do casamento, por se entender que a vida familiar conjugal foi a razão pela qual o testamento foi feito, ou seja, a circunstância essencial que constituiu a base do negócio, e que a vontade que a ele presidiu deixa de existir quando o casamento acaba, também na cessação da união de facto ocorrida antes da morte da testadora deixaram de estar presentes as circunstâncias que motivaram o testamento, devendo presumir-se que a vontade da testadora é a de fazer caducar o testamento.
Porém, assim não se entendeu na sentença recorrida, expondo a seguinte argumentação:
“(…) Entretanto, é publicada a Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, que continua a não definir a união de facto, mas que veio alargar o âmbito de aplicação a duas pessoas do mesmo sexo que passassem a viver como marido e mulher, em comunhão duradoura de mesa, leito e habitação, como se fossem, de facto, cônjuges, assimilando o modo como normalmente estes viviam, mas que não são.
Com a Lei n.º 23/2010, de 30 de agosto intensifica-se a adoção de medidas de proteção às uniões de facto, estabelecendo-se que “A união de facto é a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges, há mais de dois anos”.
Como explicam Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, in “Curso de Direito da Família”, p. 52, as pessoas vivem em comunhão de leito, mesa e habitação (tori, mansae et habitacionis), como se fossem casadas, apenas com a diferença de que não o são, pois não estão ligadas pelo vínculo formal do casamento.
A circunstância de viverem como se fossem casadas cria uma aparência externa de casamento, em que terceiros podem confiar, o que explica alguns efeitos atribuídos à união de facto.
Do art.º 1576.º do Código Civil, que apenas considera relações de família o casamento, o parentesco, a afinidade e a adoção, conclui-se que a união de facto não é uma relação de família para a generalidade dos efeitos.
Apesar disso, a lei confere às pessoas nessas situações de facto alguma proteção, conferindo-lhes direitos que, normalmente, são atribuídos aos cônjuges, nomeadamente na área das prestações sociais, proteção da casa de morada de família e residência comum.
De qualquer modo, entendemos, na senda da mencionada disposição legal, que a união de facto só tem os efeitos que a lei lhe atribuir, não sendo legítimo estender-lhe as disposições referentes ao casamento.
Na realidade, a união de facto não gera, ao contrário do casamento, efeitos patrimoniais para além dos previstos no citado diploma, mormente a nível de proteção na habitação e direitos sociais.
Aliás, da não equiparação da união de facto ao casamento resulta claro que não lhe são aplicáveis os efeitos patrimoniais que vigoram entre os cônjuges, consoante o regime de bens do casamento.
E como referem Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, não há aqui um regime de bens, nem têm aplicação as regras que disciplinam os efeitos patrimoniais do casamento independentes do regime de bens, o chamado regime primário (artºs 1678.º - 1697.º do Código Civil): administração dos bens dos cônjuges, dívidas dos cônjuges e bens que respondem por elas, partilha dos bens do casal, etc.
Deste modo, finda a união de facto, não tem aplicação o disposto nos artºs 1688.º e 1689.º, pois não há bens comuns sujeitos a partilha, ao contrário do que se passa no casamento.
E será de aplicar a norma relativa à caducidade invocada pelo autor, prevista no art.º 2317.º, n.º1, al.d) do Código Civil?
Segundo este preceito legal “As disposições testamentárias, quer se trate da instituição de herdeiro, quer da nomeação de legatário, caducam, além de outros casos: (…) se o chamado à sucessão era cônjuge do testador e à data da morte deste se encontravam divorciados ou separados judicialmente de pessoas e bens ou o casamento tenha sido declarado nulo ou anulado, por sentença já transitada ou que venha a transitar em julgado, ou se vier a ser proferida, posteriormente àquela data, sentença de divórcio, separação judicial de pessoas e bens, declaração de nulidade ou anulação do casamento”.
Na ótica do que está estabelecido para as restantes modalidades de sucessão (sucessão legitimária, sucessão legítima e sucessão contratual) também na sucessão testamentária o legislador português, para efeitos de caducidade das disposições testamentárias, considera a existência, no momento da abertura da sucessão, de uma situação de rutura da convivência marital, por entender ser essa a vontade presumível do testador e por razões de moral social (vide, neste sentido, Capelo de Sousa, in “Sucessões”, vol. I , p. 234).
Contudo, o preceito em causa é diretamente aplicável aos cônjuges, unidos pelo casamento, pelo que a sua aplicação a uma situação de união de facto apenas poderia resultar da sua aplicação por analogia.
Porém, entendemos que por serem diversas as situações (casamento e união de facto), não existe analogia, nem existe lacuna a suprir, na medida em que se evidencia do quadro legal acima enunciado ter sido intenção do legislador tratar de modo diverso situações distintas e quando pretendeu conferir direitos equivalentes aos que eram conferidos aos cônjuges, fê-lo de modo expresso, o que não é o caso.

Daqui que se entenda que, apesar de ter existido uma situação de comunhão de cama, mesa e habitação, entre a ré e a filha do autor, S…, a qual havia cessado à data do óbito desta, o testamento outorgado não caduca, por efeito do disposto no art.º 2317.º, n.º1, al.d) do Código Civil, pois este não é aplicável ao caso”.
Ora, a verdade é que não podemos deixar de acompanhar esta interpretação.
No caso concreto, é aplicável o regime prescrito na Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, na sua versão originária, ou seja, na sua versão anterior às alterações introduzidas pela Lei n.º 23/2010, de 30 de agosto, tendo em conta que a cessação da união de facto ocorreu em 2008 (antes da publicação e entrada em vigor deste diploma legal), pois provado ficou que entre meados de 1990 até 2008 a filha dos Autores viveu em comunhão de cama, mesa e habitação com a Ré, residindo ambas na mesma casa, no Sítio do Canal, Santa Bárbara de Nexe, Faro ( facto n.º1).
O art.º 1.º, n. º1, da Lei 7/2001, de 11.05, na sua versão primitiva, estabelecia como seu objeto a regulação da situação jurídica de duas pessoas, independentemente do sexo, que vivam em união de facto há mais de dois anos, atribuindo-lhe certos direitos, nomeadamente na proteção da casa de morada de família, no gozo de férias, bem como em IRS – seu art.º 3.º.
O art.º 1º, nº 2, na redação dada pela Lei 23/2010, de 30/8, veio estabelecer a noção da união de facto como a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos.
A união de facto consiste, assim, numa convivência de habitação de duas pessoas, independentemente do sexo, ou seja, numa comunhão de leito, mesa e habitação, numa vivência análoga às dos cônjuges.
Estamos perante uma realidade análoga ou semelhante à do casamento. Porém, não pode ser tratada, quanto aos seus efeitos jurídicos, na sua plenitude, nos mesmos termos, dado que se trata de realidades jurídicas distintas.
Com efeito, o casamento consiste num contrato entre duas pessoas, independentemente do sexo, que pretendam constituir família mediante uma plena comunhão de vida, do qual emergem direitos e obrigações para os cônjuges, com efeitos jurídicos a nível pessoal e patrimonial, cuja celebração obedece à forma escrita, e é fonte das relações jurídicas familiares, sendo os cônjuges considerados herdeiros legitimários – cf. art.ºs 1576.º, 1577.º, 1610.º e segs., e 2157.º, todos do C. Civil, e art.º 1.º da Lei n. º 9/2010, de 31 de maio.
Diferentemente, a união de facto não implica a existência de qualquer contrato escrito, não constitui fonte de relações familiares entre os seus membros, não afeta ou interfere quanto aos respetivos patrimónios e não tem relevância em termos sucessórios, pois que na união de facto o membro sobrevivo não é herdeiro legal do convivente falecido, não integra qualquer uma das classes de sucessíveis prescritas na lei.
Estamos, pois, perante uma realidade social semelhante ao casamento, podendo até ser considerada uma relação jurídica familiar, constitucionalmente garantida, em particular o direito de constituir família (art.º 36º, nº 1, da CRP), mas que juridicamente não é tratada como uma relação conjugal, pois a lei não trata de mesmo modo, na plenitude dos seus efeitos, os unidos de facto e os cônjuges.
Os constitucionalistas Gomes Canotilho e Vital Moreira [1] partilham a opinião de que a união de facto constitui uma relação familiar, sustentando: “O conceito constitucional de família não abrange, portanto, apenas a «família jurídica», havendo assim uma abertura constitucional – se não mesmo uma obrigação – para conferir o devido relevo jurídico às uniões «de facto». Constitucionalmente, o casal nascido da união de facto também é família, e ainda que os seus membros não tenham o estatuto de cônjuges, seguramente que não há distinções quanto às relações de filiação daí decorrentes”.
No mesmo sentido se pronunciam Jorge Miranda e Rui Medeiros [2], para quem “o legislador constitucional, ao proibir a discriminação dos filhos nascidos fora do casamento no art.º 36.º, parece inviabilizar uma leitura que faça depender a constituição de família da celebração de um casamento, revelando assim abertura à pluralidade e diversidade das relações familiares no nosso tempo”.
Mas acrescentam (a pág. 819) que a abertura constitucional a uma tutela direta das uniões de facto não significa que deva haver um mesmo tratamento legal para cônjuges e pessoas que vivam em união de facto, e que o Tribunal Constitucional tende a considerar que o legislador está autorizado a “prever um regime jurídico específico para os cônjuges, visando, por exemplo, a prossecução de objetivos políticos de incentivo ao matrimónio (cf. Acs. n.ºs 275/2002, 195/03 e 410/08)”.
Assim, o casamento e união de facto são situações materialmente diferentes, não se justificando equiparar o estatuto dos cônjuges aos unidos de facto.
No entanto, reconhece-se que o regime legal da união de facto instituído pelo citado diploma legal tem «carácter fragmentário e disperso», embora não «necessariamente lacunoso», por ser de admitir ter sido intenção do legislador conferir efeitos limitados às uniões de facto [3].
Com efeito, detetam-se normas pontuais dispersas de proteção das uniões de facto, em diversas áreas (trabalho, fiscal, funcionalismo público e segurança social), mas são totalmente omissas quanto às relações patrimoniais entre os seus membros, nomeadamente, ao contrário dos cônjuges, inexiste um regime de bens, sendo inaplicável as disposições que estabelecem os efeitos patrimoniais do casamento, independente do regime de bens – administração de bens, dívidas, liquidação e partilha.
Como se exarou em recente Acórdão desta Relação, proferido em 13/02/2020, no Proc. nº 305/16.9T8EVR.E1[4] “afastada a possibilidade de aplicação analógica das normas reguladoras das relações patrimoniais do casamento, as relações patrimoniais entre estes ficam sujeitas ao regime geral das relações obrigacionais e reais [5], exceto se os membros da união de facto tiverem acordado nesse sentido, nomeadamente através dos designados contratos de coabitação [6], pois nada impede que quando cessa aquela união, os seus membros não possam livremente acordar na divisão dos bens que integram o acervo patrimonial constituído no seio da união de facto”.
Deste modo, no casamento, o legislador definiu um conjunto de regimes de bens, permitindo aos casais a opção por um deles, aí se regulando toda relação patrimonial entre os cônjuges e entre estes e terceiros, enquanto que na união de facto não existe um regime legal de bens pré-definido com o objetivo de regular o seu património comum, pelo que aos unidos de facto aplica-se o regime geral das relações obrigacionais e reais – cf. Guilherme Oliveira (com a colaboração de Rui Moura Ramos), in “Manual de Direito da Família”, Almedina, 2020, pág., 347.
No âmbito da sucessão contratual (art.º 2028.º do C. Civil) resta aos membros da união de facto a faculdade de, dentro dos limites da quota disponível de cada um, dispor, por testamento, de “todos os seus bens ou de parte deles” (artigo 2179.º do C. Civil) em proveito do membro supérstite.
“Num cenário em que o convivente tenha morrido solteiro, viúvo ou divorciado, e não tenha deixado herdeiros legitimários – em virtude da inexistência de ascendentes ou descendentes sobrevivos (artigo 2157.º do C. Civ) –, não haverá legítima, pelo que o convivente poderá deixar validamente, através de testamento, todos os seus bens a favor do companheiro sobrevivo (ou a favor de terceiros)” – cf. Tiago Nuno Pimentel Cavaleiro [7].
Como é consabido, para a interpretação e compreensão do sentido e alcance da lei, o intérprete não deve cingir-se apenas à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
A unidade do sistema jurídico, ou elemento sistemático, compreende a consideração de outras disposições legais que formam o contexto normativo do instituto em que se integra a norma interpretada, isto é, que regula a mesma matéria. O seu sentido há de ser compreendido em consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico, e, como ensina Batista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, pág. 183, “ baseia-se este subsídio interpretativo no postulado da coerência intrínseca do ordenamento, designadamente no facto de que as normas contidas numa codificação obedecem por princípio a um pensamento unitário”. E, quanto ao elemento racional ( ratio legis), ensina o mesmo Mestre, consiste na razão de ser da lei, no fim visado pelo legislador ao elaborar a norma (ibidem).
E não pode “ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”. Assim como “na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” - art.º 9.º do C. Civil.
Por outro lado, a letra da lei é o ponto de partida e o limite de toda a interpretação.
Em consequência dessas regras interpretativas, o regime prescrito no art.º 2317.º, n.º1, al. d) do Código Civil, aplica-se exclusivamente aos cônjuges, estatuto que se adquire pelo casamento, não cabendo na letra, no espírito ou ratio legis deste preceito legal, os unidos de facto.
Acresce inexistir qualquer lacuna na lei, como vem defendido na sentença recorrida, pois que perante o quadro legal descrito é manifesto ter sido intenção do legislador tratar de modo diverso situações distintas e quando pretendeu conferir direitos equivalentes aos que eram conferidos aos cônjuges, fê-lo de modo expresso.
Daí não ser legítimo o recurso à analogia, nos termos do art.º 10.º do C. Civil.
Citando Oliveira Ascensão, in “O Direito”, Almedina, 13.ª edição, 2005, pág. 446/447, a analogia repousa na ideia do “tratamento igual de casos semelhantes”, pois “se uma regra estatui de certa maneira para um caso, é natural que um caso análogo seja resolvido da mesma forma, apesar de lacunoso”. E acrescenta, “O que a analogia supõe é que as semelhanças são mais relevantes que as diferenças. Há um núcleo fundamental nos dois casos que exige a mesma estatuição. Se esse núcleo fundamental pesar mais que as diversidades, podemos então afirmar que há analogia”.
Ora, como se deixou dito, as diversidades entre o estatuto legal dos cônjuges e os unidos de facto pesam mais do que o seu núcleo fundamental, ou seja, a simples convivência em situação idêntica à dos cônjuges pesa menos do que as substanciais diferenças do estatuto legal de cada uma dessas realidades.
Acresce que a norma legal em causa ao estabelecer os casos de caducidade das disposições testamentárias configura uma norma excecional à regra geral de validade e manutenção dos efeitos jurídicos dessas disposições, o que proíbe a sua aplicação analógica – art.º 11.º do C. Civil.
Resta sublinhar que cessada a união de facto, a testadora podia, e devia, se assim o entendesse, revogar o testamento, faculdade que manteve (durante cerca de 9 anos) depois da cessação da união de facto até à sua morte (desde 2008 até 5/6/2017) – art.º 2311.º do C. Civil.
Mas a verdade é que a filha do autor não revogou o testamento, querendo manter a disposição, beneficiando a Ré da sua quota disponível (1/2), cabendo o remanescente (1/2) ao autor, nos termos dos art.ºs 2156.º, 2157.º e 2161.º/2 do C. Civil.
Resumindo, improcedem todas as conclusões e consequente apelação, devendo ser mantida a sentença recorrida, por fazer adequada e correta aplicação da lei aos factos apurados.
Vencidos no recurso, suportarão os apelantes as custas respetivas – art.º 527.º/1 do C. P. C.
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V. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e manter a decisão recorrida.
Custas da apelação pelos recorrentes. Évora, 2020/09/10

Este Acórdão vai ser assinado digitalmente, pelos Juízes Desembargadores:
Tomé Ramião (Relator)
Francisco Xavier (1.º Adjunto)
Maria João Sousa e Faro (2.º Adjunto)
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[1] ) Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª Edição Revista, pág.220.
[2] ) Constituição Portuguesa, T-I, 2.ª Edição, pág. 812/813.
[3] ) Neste sentido, Júlio Gomes, O enriquecimento sem causa e a união de facto, em Cadernos de Direito Privado, 58-5, citado no acórdão do STJ a que se alude na nota 3, que aqui seguimos de perto.
[4] ) Relatado por Manuel Bargado, em que o ora relator interveio como adjunto.
[5] ) Neste sentido Pereira Coelho e Guilherme Oliveira, Curso de Direito da Família, Vol. I, 5ª ed., p. 82.
[6] ) Sobre a celebração de contratos de coabitação nas uniões de facto, vide Ana Rita Ferraz Laranja Pontes, Os efeitos patrimoniais decorrentes da cessação da união de facto: a divisão do património no final da vida em comum, in https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/16339/1/TESE%20DOC.%201.pdf.
[7] ) A União de Facto no Ordenamento Jurídico Português, 2015, FDUC, pág. 45.