Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
29/18.2PCFAR-A.E1
Relator: CARLOS BERGUETE COELHO
Descritores: PROCESSO ABREVIADO
REQUERIMENTO PARA ABERTURA DA INSTRUÇÃO
REJEIÇÃO
ERRO DA SECRETARIA
Data do Acordão: 03/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I – Não comportando o processo abreviado a fase da instrução, a circunstância da arguida, por lapso dos serviços do Ministério Público, ter sido notificada de que dispunha o prazo de 20 dias para, querendo, requerer a abertura da instrução, não impede o tribunal de rejeitar o pedido apresentado.

II – Tal rejeição não viola os princípios da confiança, da igualdade ou das garantias de defesa.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

1. RELATÓRIO

Nos autos em referência, deduzida acusação pelo Ministério Público, para julgamento em processo abreviado de AA, imputando-lhe a prática de um crime de detenção de arma proibida, veio a mesma a ser notificada, bem como o seu defensor nomeado, de que, além do mais, dispunha do prazo de vinte dias para, querendo, requerer a instrução.

Não tendo a instrução sido admitida, a arguida invocou irregularidade por ausência de pronúncia acerca de questões que suscitou.

No Juízo de Instrução Criminal de Faro, proferiu-se, então, o seguinte despacho:

«Veio a arguida invocar a irregularidade do despacho que não admitiu o requerimento de abertura de instrução, alegando em síntese que o mesmo não apreciou as questões suscitadas no aludido requerimento como pressuposto para a admissão do mesmo, não obstante a forma de processo abreviada.

Assiste razão à arguida.

De facto, previamente à rejeição da abertura de instrução, deveriam ter sido apreciados os respectivos argumentos, já que nos mesmos se suscita a inconstitucionalidade de diversas normas do Cód. Proc. Penal.

Assim, a decisão em causa padece não de irregularidade, mas de nulidade por omissão de pronúncia (cfr. art.º 379.º do Cód. Proc. Penal, considerando-se tal preceito legal aplicável ao despacho em causa), motivo pelo qual urge desde já sanar tal vício processual.

Deste modo, infra será cabalmente apreciada a pretensão da arguida de ver admitido o seu requerimento de abertura de instrução.
*
Em primeiro lugar, fundamenta a arguida a admissibilidade de requerer a abertura de instrução atento o facto de, na notificação que lhe foi remetida (em língua portuguesa, constante de fls. 9 e na língua alemã a fls. 25), ter a mesma sido notificada de tal possibilidade.

Considera, por conseguinte, a arguida, que lhe foi criada uma legítima expectativa de poder contar com tal fase processual, sendo que a não admissão da instrução violaria, neste momento, o princípio da protecção da confiança consagrado no art.º 2.º da nossa Lei Fundamental.

Salvo o devido respeito por diversa opinião, discorda-se de tal entendimento.

O princípio da protecção da confiança, desde logo pela sua consagração constitucional, protege os mais elementares deveres de respeito que o Estado, como ente Institucional, deve deter não só perante os seus cidadãos, como igualmente face a cidadãos estrangeiros que se encontrem no país.

Assim, estabelece o art.º 2.º da Constituição da República Portuguesa que “A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa”.

O princípio da protecção da confiança é, por conseguinte, uma consagração do Estado de Direito Democrático.

Para que haja violação do aludido princípio, é necessário que a recusa da legítima expectativa seja de tal modo intensa, que coloque em causa, no caso em concreto, os princípios fundamentais de consagração do Estado Português como de Direito Democrático.

Ou seja, apenas os casos mais gravosos de violação das expectativas de determinada pessoa poderão levar à violação do princípio da confiança. Casos haverá, porém, em que tal frustração não afronte a própria estrutura axiológica-normativa do Estado de tal modo que coloque em causa o princípio constitucional em análise.

Como corolário do princípio da protecção da confiança, o art.º 157.º, n.º 6, do Cód. Proc. Civil, aplicável “ex vi” do art.º 4.º do Cód. Proc. Penal, prevê precisamente que “os erros e omissões dos atos praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes”.

Ora, no caso em análise, é manifesto que o acto da secretaria foi eivado de lapso já que, conforme se referiu no despacho declarado nulo, o processo abreviado não admite a fase de instrução.

Todavia, a efectiva ocorrência de tal lapso não invalida a inadmissibilidade legal de fase de instrução, e muito menos coloca em causa o aludido princípio da protecção da confiança.

É que o lapso da secretaria, por si só, não origina a que a visada pela respectiva notificação seja, ainda que involuntariamente, compelida a praticar ou a não praticar um acto que legalmente lhe assistia – o que sucede, por exemplo, nos casos em que a secretaria concede um prazo superior ao legalmente previsto e, baseado nesse prazo, a parte pratica o acto respectivo, sendo posteriormente o mesmo indeferido por, afinal, o prazo legal ter sido excedido.

No caso em apreço, e previamente à própria decisão da secretaria, o art.º 286.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal, não prevê a existência de fase de instrução nos processos abreviados. Assim, a referência, pela secretaria, à possibilidade de requerer a abertura de instrução não causa, face à lei vigente, qualquer prejuízo à arguida, já que a mesma, afinal, não a podia sequer requerer.

Por outro lado, sempre se considera manifestamente desproporcional que a existência de um mero erro da secretaria pudesse levar à possibilidade de uma fase processual que não é admitida pela lei. Assim, atento o princípio da proporcionalidade e da ponderação de interesses, considera-se igualmente que, ainda que se pudesse considerar violado o princípio da confiança – que, como se disse, não se admite – tal princípio esbarraria, desde logo, com o princípio da igualdade, ao permitir uma única e concreta excepção à inadmissibilidade da fase de instrução em processo abreviado.

Refira-se, para além do mais, que a arguida tem mandatário nomeado – que, naturalmente, detém pleno conhecimento das disposições legais que regem o Processo Penal – e que o mesmo foi notificado do despacho que deduziu acusação, sabendo necessariamente de antemão que a referência à fase de instrução, referida na notificação em apreço, resultou de lapso manifesto e podendo, em consequência, advertir a arguida de tal situação.

Relativamente à segunda causa de inconstitucionalidade invocada pela arguida – a violação das suas garantias de defesa, por impossibilidade de requerer a suspensão provisória do processo – vem sendo jurisprudencialmente entendido, de forma constante, que o requerimento de tal instituto processual, no processo abreviado, apenas pode ser realizado em fase de inquérito.

Assim, conforme se refere no Acórdão do Venerando Tribunal da Relação do Porto de 6 de Novembro de 2013, proc. n.º 30/13.2GTBRG.P1, disponível in www.dgsi.pt: Se o agente do crime apenas adquire a qualidade de arguido com a acusação, não tem legitimidade para requerer a suspensão provisória do processo antes dessa fase, sendo-lhe imputável a falta de diligência bastante para antes da possível dedução da dita acusação requerer que fosse constituído arguido (ao abrigo do art. 59º, nº 2, do CPP), para então poder requerer a suspensão provisória do processo. Não o tendo feito, não pode “queixar-se” de terem sido violados direitos ou garantias de defesa que então (antes de deduzida a acusação) não tinha.”

Conclui-se, por conseguinte, que caso a arguida pretendesse requerer a suspensão provisória, deveria, ainda em fase de inquérito, ter solicitado a sua constituição como arguida e apresentado tal requerimento. E tal actuação assume particular interesse quando não é admitida a fase de instrução, como sucede na forma abreviada do processo.

Porém, o que se conclui é que a inadmissibilidade de fase instrutória, embora limite o momento em que pode ser requerida a suspensão provisória, não retira à arguida tal possibilidade. Deste modo, igualmente não se vislumbra qualquer violação dos direitos de defesa do arguido, consagrado nos art.ºs 2.º, 20.º e 32.º da Lei Fundamental.

Poder-se-á argumentar, conforme a arguida refere, que não lhe foi nomeado qualquer intérprete ou constituído mandatário, pelo que – conclui-se – não lhe poderia ser imputada a ausência oportuna do recurso àquele mecanismo processual.

Todavia, a inexistência de intérprete ou de mandatário em actos que dizem respeito a pessoa estrangeira e que não compreenda a língua portuguesa suscita uma questão que é prévia à admissibilidade ou inadmissibilidade da fase de instrução, e que se prende com a eventual nulidade prevista no art.º 120.º, n.º 2, alínea c), do Cód. Proc. Penal, que foi já invocada pela arguida.
Deste modo, não existe qualquer inconstitucionalidade, quer geral, quer no âmbito do caso em apreço, na aplicação do art.º 286.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal, motivo pelo qual não poderá ser admitida a requerida abertura de instrução.

Assim, nos termos do art.º 287.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal, “O requerimento [de abertura de instrução] só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução”.

Ora, ao abrigo do disposto no art.º 286.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal, “Não há lugar a instrução nas formas de processo especiais”.

Deste modo, uma vez que não é admitida a fase de instrução no processo abreviado, vai desde já rejeitado o requerimento de abertura de instrução apresentado pela arguida.

Em consequência, devolvam-se os autos para apreciação das diversas nulidades suscitadas pela arguida, assim como pela manutenção da forma abreviada ou remessa para outra forma que lhe caiba.

Notifique.».

Inconformada com tal decisão, a arguida interpôs recurso, formulando as conclusões:

A. Recorrente é estudante alemã, residente na Alemanha e não tem qualquer conhecimento da língua portuguesa.

B. Na data dos factos, a Recorrente encontrava-se de regresso ao seu país, depois de uma semana de férias, quando foi abordada na zona de controlo de bagagem, por deter um spray pimenta (de aquisição livre no seu país) que lhe foi retirado, não tendo esta sido constituída arguida, desconhecendo que contra si se iniciaria um processo penal por detenção de arma proibida.

C. Foi deduzida acusação contra a Recorrente, em processo abreviado, por detenção de arma proibida.

D. Apenas com a dedução de acusação foi nomeado defensor à Recorrente, sendo impossível existir contacto com o mesmo antes da dedução de acusação.

E. A notificação da acusação enviada à Recorrente, apenas na versão alemã, estava acompanhada de um ofício em língua portuguesa, sem qualquer menção à forma de processo abreviado, do qual constava que a arguida disporia do prazo de vinte dias para, querendo, requerer a abertura da fase de Instrução, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 287.º do Código de Processo Penal, tendo a Recorrente apresentado o respectivo requerimento.

F. Pelo despacho impugnado, de 1 de Outubro de 2018, foi a Recorrente notificada de que o requerimento de abertura de instrução por si apresentado fora rejeitado, por ser inadmissível a instrução nas formas de processo especiais, nos termos dos arts. 286.º, n.º 3, e 287.º, n.º 3, do CPP.

G. A Recorrente discorda com a aplicação de tais normativos, desde logo pois, no caso concreto, criou-se uma situação de confiança digna de tutela quanto à existência do direito de requerer a abertura da instrução, com vista a obter o controlo judicial da decisão de acusar e inclusivamente de não aplicar a suspensão provisória do processo, requerendo a aplicação deste instituto em fase de instrução, evitando a potencial inscrição de condenação no registo criminal, consequência extremamente gravosa para uma jovem estudante, sem quaisquer antecedentes criminais.

H. A notificação da acusação é uma notificação pessoal que reveste importância fulcral para a posição do arguido e para o exercício dos direitos de defesa, destinada a dar conhecimento do teor de um acto e do termo inicial ou final de um prazo legalmente estipulado, como neste caso o direito de requerer a instrução, criando assim na Recorrente uma situação de confiança legítima e digna de tutela.

I. Reputa-se inconstitucional a interpretação dos artigos 57.º, n.º 1, 58.º, n.º 1, 59.º, n.º 2, 61.º, n.º 1, al. g), 64.º, n.º 1, al. d), 92.º, n.º 2, 112.º, n.º 3, al. a), 113.º, n.º 10, do Código de Processo Penal, 281.º, n.º 1, 283.º, n.º 5, 277.º, n.º 3, e 286.º, n.º 3, 287.º, n.º 1 e 3, 391.º-B, n.º 4, do Código de Processo Penal, e ainda do art. 157.º, n.º 6, do Código de Processo Civil, ex vi art. 4.º do Código de Processo Penal, no sentido de que não pode requerer a abertura da fase de instrução em processo abreviado a pessoa estrangeira, desconhecedora da língua portuguesa e da pendência do processo e que não tenha antes sido constituída arguida e beneficiado da assistência de defensor, mesmo quando seja enviada notificação pessoal da acusação deduzida em processo abreviado acompanhada da indicação de que tem o direito de requerer a abertura da instrução no prazo legal.

J. Esta interpretação viola o princípio da protecção da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa, e do processo equitativo e das garantias de defesa em processo criminal, em particular da garantia judicial sobre a “instrução”, consagrados nos artigos 20.º, n.º 4, e 32.º, n.º 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa, porquanto, tal notificação gera no arguido uma legítima expectativa de existência de um direito de defesa contra a acusação através da abertura da fase de instrução e do controlo judicial da decisão de acusar, incluindo em particular a decisão de aplicação de suspensão provisória do processo, que esta permite e que não é admissível após a prolação do despacho de acusação em processo abreviado.

K. O despacho recorrido, ao considerar que a situação do presente processo não é merecedora da tutela da confiança, consagrada no art. 2.º, da CRP, incorreu em erro de direito, porquanto interpretou erradamente a norma constitucional em causa e efectuou errado juízo de ponderação de interesses, nos termos expostos nas motivações.

L. Em face da concreta rejeição do requerimento de abertura de instrução, vê-se a Recorrente, erradamente, impedida e impossibilitada de sindicar a acusação e de dar a conhecer e demonstrar a sua versão dos factos em momento que lhe permita evitar o julgamento e até mesmo de requerer a suspensão provisória do processo, o que consubstancia uma afectação demasiado onerosa de expectativas legitimamente criadas e fundadas.

M. Em termos processuais, uma vez findo o inquérito, a via formal para a aplicação do instituto da suspensão provisória do processo é o requerimento de abertura da instrução, pois só esse requerimento concede a possibilidade ao juiz de instrução de proferir a decisão a que se refere o artigo 307.º do Código de Processo Penal.

N. Apesar de não existir fase de instrução nas formas de processo especiais (cf. artigo 286.º, n.º 3 do Código de Processo Penal), tal não significa que não seja aplicável a suspensão provisória do processo.

O. Porém, segundo a interpretação aparentemente dominante na jurisprudência – adoptada pelo despacho recorrido – a suspensão provisória em processo abreviado só pode ser requerida pelo arguido até à dedução de acusação, recaindo sobre a pessoa em causa um dever de diligência no sentido de requerer a sua constituição de arguido, nos termos do art. 59.º, n.º 2, do CPP, para poder requerer a aplicação da suspensão provisória do processo na fase de inquérito.

P. Sendo a arguida uma mera turista que esteve em Portugal por apenas uma semana e não tendo qualquer domínio da língua portuguesa e do direito português (tendo-se mostrado genuinamente surpreendida por estar a praticar um acto que em Portugal é considerado ilegal, como descrito nos autos) e a quem nem sequer foi explicado que estava pendente um processo ou entregue documentação de onde tal constasse, não poderá ser considerado expectável que a própria requerente, que apenas viaja para Portugal de férias, tivesse um advogado constituído ou requeresse a nomeação de advogado e requeresse que fosse constituída como arguida (cf. artigo 59.º do Código de Processo Penal), ou que, prevendo que o Ministério Público pudesse vir a deduzir acusação para julgamento em processo abreviado, sem usar da suspensão provisória do processo e sem a interrogar previamente como arguida, viesse requerer a aplicação desse instituto (cuja existência aliás desconhecia).

Q. Outrossim, a Recorrente não pode usufruir da assistência de advogado que a pudesse informar desses direitos antes da dedução de acusação, já que o defensor apenas foi nomeado imediatamente antes da prolação desse despacho.

R. Não pode assim concluir-se que sobre ela recaísse qualquer dever de diligenciar a sua constituição como arguida, nos termos do art. 59.º, n.º 2, do CPP, pelo que, ao decidir nesse sentido, incorreu o Tribunal a quo em erro de direito. Na verdade, ao não ser constituída arguida no momento legalmente previsto – aquando da intercepção no aeroporto (já que, segundo o Ministério Público, haveria flagrante delito) – não só foi severamente prejudicada, como foram violadas de forma flagrante as suas garantias de defesa, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 32.º, n.º 1, 3 e 4, da Constituição da República Portuguesa, na medida em que, apesar de estarem reunidos os pressupostos de aplicação do instituto da suspensão provisória do processo, não teve qualquer oportunidade de requerer a sua aplicação, antes do magistrado do Ministério Público ter prosseguido com a acusação.

S. Tendo em consideração que a Recorrente não tem qualquer conhecimento da língua portuguesa e do direito português, que não teve qualquer intervenção ao longo do inquérito, não tendo sido previamente constituída arguida, interrogada, nem prestado TIR, nem tendo tido sequer conhecimento da existência do processo até à recepção da referida notificação da acusação, entende-se como inconstitucional a impossibilidade de sindicar a acusação deduzida perante juiz, inclusivamente sindicando a decisão de não aplicação da suspensão provisória do processo.

T. É inconstitucional a interpretação dos artigos 57.º, n.º 1, 58.º, n.º 1, 59.º, n.º 2, 61.º, n.º 1, al. g), 64.º, n.º 1, al. d), 92.º, n.º 2, 281.º, n.º 1, 286.º, n.º 3, 287.º, n.º 1 e 3, e 391.º-A, n.º 1, 391.º-B, n.º 4, do Código de Processo Penal, no sentido de que não é admissível em processo abreviado o exercício do direito de requerer a abertura da instrução pelo arguido quando no “inquérito sumário” realizado nos termos do artigo 391.º-A, do Código de Processo Penal, o arguido não tenha sido constituído como tal ou tido intervenção em qualquer acto processual, seja estrangeiro e desconheça a língua portuguesa e não tenha tido acompanhamento por intérprete ou advogado antes da dedução de acusação, nem tendo sequer conhecimento da existência do processo até à recepção da referida notificação da acusação.

U. Esta interpretação viola o princípio do Estado de direito democrático, e dos direitos ao processo equitativo e às garantias de defesa e de assistência por advogado, bem como à garantia de controlo judicial sobre a “instrução”, previstos nos artigos 2.º, 20.º, n.º 4, e 32.º, n.º 1, 3 e 4, da Constituição da República Portuguesa.

V. Em face de uma interpretação nos termos supra descritos e pelos motivos enunciados na motivação, o arguido fica privado de exercer qualquer direito de defesa antes da dedução da acusação, nomeadamente de requerer a suspensão provisória do processo, e de sindicar judicialmente a decisão de acusar, incluindo em particular a decisão de aplicação de suspensão provisória do processo, que esta permite.

W. Mais, a interpretação dos artigos 57.º, n.º 1, 58.º, n.º 1, 59.º, n.º 2, 61.º, n.º 1, al. g), 64.º, n.º 1, al. d), 92.º, n.º 2, 281.º, n.º 1, 286.º, n.º 3, 287.º, n.º 1 e 3, e 391.º-A, n.º 1, 391.º-B, n.º 4, do Código de Processo Penal, no sentido de que não é admissível em processo abreviado o exercício do direito de requerer a abertura da instrução pelo arguido quando no “inquérito sumário” realizado nos termos do artigo 391.º-A, do Código de Processo Penal, o arguido não tenha sido constituído como tal, não tenha tido intervenção em qualquer acto processual, seja estrangeiro e desconheça a língua portuguesa e não tenha tido acompanhamento por intérprete ou advogado antes da dedução de acusação, nem tendo sequer conhecimento da existência do processo até à recepção da referida notificação da acusação, é violadora do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, conjugado com o princípio do Estado de direito democrático, e dos direitos ao processo equitativo e às garantias de defesa, bem como à garantia de controlo judicial sobre a “instrução”, previstos nos artigos 2.º, 20.º, n.º 4, e 32.º, n.º 1, 3 e 4, da Constituição da República Portuguesa.

X. Em face de uma interpretação nos termos supra descritos, um arguido nesta situação fica em claramente desfavorecido na sua posição processual e no exercício dos seus direitos de defesa relativamente a outros arguidos visados noutras formas de processo ou em processo abreviado mas em que tenha havido a constituição de arguido com informação sobre os seus direitos ou o seu interrogatório, sem que para tal exista qualquer fundamento, porquanto nestes casos o arguido teve, ao menos, a possibilidade de ponderar o exercício e de exercer atempadamente os seus direitos processuais, em particular requerer a suspensão provisória do processo, e suscitar o controlo judicial das decisões a este respeito.

Y. Em síntese, poderia elevar-se o nível de abstracção conceptual das questões normativas invocadas neste segmente, no seguinte sentido:

a. É inconstitucional a interpretação normativa dos arts. 286.º, n.º 3, 287.º, n.º 1 e 3, e 391.º-B, n.º 4, conjugada com os arts. 57.º, n.º 1, 58.º, n.º 1, 59.º, n.º 2, 61.º, n.º 1, al. g), 64.º, n.º 1, al. d), 92.º, n.º 2, 281.º, n.º 1, todos do CPP, da qual resulte que a pessoa que não domine a língua portuguesa, não constituída arguida em fase de inquérito e nesta não assistida por advogado não pode requerer a fase de instrução em processo abreviado com vista ao exercício do direito de requerer a aplicação da suspensão provisória do processo, sobre ela recaindo um dever de diligência de requerer a sua constituição de arguido na fase de inquérito com vista ao exercício deste direito;

b. É inconstitucional a interpretação normativa dos arts. 286.º, n.º 3, 287.º, n.º 1 e 3, e 391.º-B, n.º 4, conjugada com os arts. 57.º, n.º 1, 58.º, n.º 1, 59.º, n.º 2, 61.º, n.º 1, al. g), 281.º, n.º 1, todos do CPP, da qual resulte que a pessoa não constituída arguida em fase de inquérito não pode requerer a fase de instrução em processo abreviado com vista ao exercício do direito de requerer a aplicação da suspensão provisória do processo, sobre ela recaindo um dever de diligência de requerer a sua constituição de arguido na fase de inquérito com vista ao exercício deste direito.

Z. As inconstitucionalidades em causa devem ser aferidas à luz dos seguintes parâmetros constitucionais:

c. Princípio do Estado de direito democrático e dos direitos ao processo equitativo e às garantias de defesa e de assistência por advogado, bem como à garantia de controlo judicial sobre a “instrução”, previstos nos artigos 2.º, 20.º, n.º 4, e 32.º, n.º 1, 3 e 4, da Constituição da República Portuguesa.

d. Princípio da igualdade, consagrado no art. 13.º da Constituição da República Portuguesa, conjugado com o princípio do Estado de direito democrático, e dos direitos ao processo equitativo e às garantias de defesa e de assistência por advogado, bem como à garantia de controlo judicial sobre a “instrução”, previstos nos artigos 2.º, 20.º, n.º 4, e 32.º, n.º 1, 3 e 4, da Constituição da República Portuguesa; ambos os princípios e direitos entendidos no sentido supra descrito na presente motivação.

AA. Ao concluir de forma diferente, incorreu o Tribunal a quo em erro de direito.

BB. Deve ser revogado o despacho recorrido e ser substituído por outro que afaste, por inconstitucional, a aplicação das normas referidas, nos termos do disposto no art. 204.º da CRP, em particular dos artigos n.º 286.º, n.º 3, e 287.º, n.º 3, do CPP, considerando legalmente admissível a abertura da fase de instrução, com a consequente prolação de despacho de abertura da instrução (e consequentemente a aplicação do art. 391.º-B, n.º 4, do CPP, nesta fase, permitindo que seja apreciado o requerimento de aplicação da suspensão provisória do processo).

Termos em que, admitido o presente recurso, deve ser o mesmo ser conhecido e julgado procedente, revogando-se o despacho recorrido e substituindo-se este por outro que, com fundamento nas conclusões expostas, considere legalmente admissível a abertura da fase de instrução, ordenando-a.

O recurso foi admitido.

O Ministério Público apresentou resposta, sem extrair conclusões, no sentido que o despacho recorrido deve manter-se.

Neste Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, manifestando concordar, no essencial, com a argumentação do despacho em causa e, em conformidade, pugnando pela total improcedência do recurso.

Observado o disposto no n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal (CPP), a arguida nada veio acrescentar.

Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso define-se pelas conclusões que a recorrente extraiu da motivação, como decorre do art. 412.º, n.º 1, do CPP, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

Assim, consubstancia-se em apreciar se a instrução deveria ter sido admitida e, não o tendo sido, se incorreu em interpretação inconstitucional à luz dos princípios e preceitos legais invocados.

Com relevo, de acordo com os elementos disponíveis, resulta dos autos:

A ora recorrente, cidadã alemã, foi interceptada no aeroporto de Faro, em 02.05.2018, quando ia seguir para o seu país, por deter na sua bagagem de mão um aerossol, consistente num contentor portátil de gases comprimidos, que foi objecto de apreensão.

Lavrou-se auto de notícia, tendo a recorrente seguido viagem, sem que outra formalidade tivesse sido efectuada.

Em face desse auto de notícia e de relatório pericial, o Ministério Público deduziu acusação contra a recorrente para julgamento em processo abreviado, imputando-lhe, em autoria material e na forma consumada, um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 2.ºº, n.º 1, alínea a), 3.º, n.º 2, alínea h), e 86.º, n.º 1, alínea d), da Lei n.º 5/2006, de 23.02.

Foi emitida notificação da acusação dirigida à recorrente, por via postal simples e com prova de depósito, devidamente traduzida para a língua alemã, da mesma constando que dispõe do prazo de VINTE DIAS, nos termos do disposto no art.º 287º do mesmo diploma (CPP), para requerer, caso queira, a abertura da INSTRUÇÃO.

Idêntica notificação foi dirigida ao seu defensor nomeado.

Proferiu-se despacho nos termos do art. 391.º-C do CPP, designando-se dia para audiência.

Notificada da acusação, a recorrente apresentou requerimento, para que se operasse reenvio do processo para a forma comum, manifestando não prescindir de requerer a abertura da instrução.

Dias depois, apresentou requerimento para abertura da instrução, sustentando a admissibilidade desta fase e a discordância com a decisão de acusar.

Considerando as suas duas pretensões incompatíveis, determinou-se, por despacho, a notificação da recorrente para esclarecer o que pretendia que efectivamente fosse apreciado, se o reenvio para forma de processo comum, se a remessa dos autos para instrução.

Veio, então, esclarecer que pretendia a abertura da instrução, sem prejuízo de apreciação de nulidades e vícios invocados.

Sobre a admissibilidade da instrução, se pronunciou o referido despacho, ora sob censura, segundo o qual se entendeu não existir qualquer inconstitucionalidade e decidiu rejeitar a requerida instrução.

Apreciando:

A recorrente, não obstante implicitamente reconheça a previsão do art. 286.º, n.º 3, do CPP, de que “Não há lugar a instrução nas formas de processo especial”, em que se inclui a forma de processo abreviado (previsto nos arts. 391.º-A a 391.º-G do CPP, sob o Título II do Livro VIII), insurge-se contra a decidida rejeição da instrução, fundando-se, como invoca, na existência de contornos e circunstâncias específicas no caso concreto, que concretiza como justificando diversa interpretação.

Reporta-se a que (1) não foi detida, (2) não lhe foi concedido nenhum intérprete, (3) não assinou qualquer documento para a constituição formal de arguido, (4) não prestou termo de identidade e residência (TIR), (5) não foi informada de quaisquer direitos ou deveres e também (6) não soube que contra si se iniciaria um processo penal por detenção de arma proibida e Só no momento da dedução de acusação foi nomeado defensor.

E manifesta discordância quanto às razões por que o despacho recorrido enveredou por diferente perspectiva, no caso, alegando que a rejeição da instrução implica violação do princípio da confiança, das suas garantias de defesa e do princípio da igualdade.

Assim, no que concerne ao princípio da confiança, sublinha que adquiriu uma expectativa perfeitamente legítima quanto à existência do direito de apresentar o requerimento de abertura de instrução e, confiando na veracidade da mesma, optou por requerer a abertura dessa fase, sendo que a notificação do despacho de acusação é uma notificação que reveste importância fulcral para a posição do arguido e o exercício dos seus direitos de defesa.

Acrescenta que não só a expectativa em causa foi induzida por comportamentos dos poderes públicos, como foi fundada em boas razões (já que se trata de uma cidadã alemã sem qualquer domínio da língua portuguesa ou do direito português que recebeu uma notificação emitida por um órgão público e judicial, confiando na sua veracidade, e que até então desconhecia a pendência do inquérito), como ainda orientou a arguida a sua vida com base na expectativa de poder requerer a abertura da fase de instrução e, consequentemente, formular pedido de despacho de não pronúncia ou de suspensão provisória do processo.

Por isso, conclui que o despacho recorrido incorreu em erro de direito, porquanto interpretou erradamente a norma constitucional em causa (artigo 2.º, da CRP), preconizando, pois, seja tida por inconstitucional a interpretação no sentido de que não pode requerer a abertura da fase de instrução em processo abreviado a pessoa estrangeira desconhecedora da língua portuguesa e da pendência do processo e que não tenha antes sido constituída arguida e beneficiado da assistência de defensor, mesmo quando seja enviada notificação pessoal da acusação deduzida em processo abreviado acompanhada da indicação de que tem o direito de requerer a abertura da instrução no prazo legal, fazendo menção aos artigos 57.º, n.º 1, 58.º, n.º 1, 59.º, n.º 2, 61.º, n.º 1, al. g), 64.º, n.º 1, al. d), 92.º, n.º 2, 112.º, n.º 3, al. a), 113.º, n.º 10, do Código de Processo Penal, 281.º, n.º 1, 283.º, n.º 5, 277.º, n.º 3, e 286.º, n.º 3, 287.º, n.º 1 e 3, do Código de Processo Penal, 391.º-B, n.º 4, e ainda do artigo 157.º, n.º 6, do Código de Processo Civil, ex vi art. 4.º do Código de Processo Penal.

Vejamos.

Acompanhando Gomes Canotilho, in “Direito Constitucional”, Almedina, Coimbra, 1991, 5.ª edição, pág. 375, a propósito do princípio do Estado de direito democrático, consagrado no art. 2.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), e aos subprincípios concretizadores, refere que Partindo da ideia de que o homem necessita de uma certa segurança para conduzir, planificar e conformar autónoma e responsavelmente a sua vida, desde cedo se considerou como elementos constitutivos do Estado de direito os dois princípios seguintes:

- o princípio da segurança jurídica,
- o princípio da confiança do cidadão.

E mais adiante, ob. cit., pág. 377, Os princípios da protecção da confiança e da segurança jurídica podem formular-se assim: o cidadão deve poder confiar em que aos seus actos ou às decisões públicas incidentes sobre os seus direitos, posições jurídicas e relações, praticados de acordo com as normas jurídicas vigentes, se ligam os efeitos jurídicos duradouros, previstos ou calculados com base nessas mesmas normas.

A jurisprudência do Tribunal Constitucional (TC) tem-se debruçado sobre esse princípio da protecção da confiança (acórdãos que vão indicados acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt).

Assim, conforme ao acórdão do TC n.º 413/2014, de 30.05, No que respeita ao princípio da proteção da confiança, corolário do princípio do Estado de direito democrático, e que constitui o lado subjetivo da garantia de estabilidade e segurança jurídica, este Tribunal tem uma jurisprudência constante e reiterada (cfr., em especial, a formulação do Acórdão n.º 128/2009, reiterada em numerosas decisões posteriores).

A aplicação do princípio da confiança deve partir de uma definição rigorosa dos requisitos cumulativos a que deve obedecer a situação de confiança, para ser digna de tutela: em primeiro lugar, as expectativas de estabilidade do regime jurídico em causa devem ter sido induzidas ou alimentadas por comportamentos dos poderes públicos; elas devem, igualmente, ser legítimas, ou seja, fundadas em boas razões, a avaliar no quadro axiológico jurídico-constitucional; por fim, o cidadão deve ter orientado a sua vida e feito opções, precisamente, com base em expectativas de manutenção do quadro jurídico.

E em sintonia com o acórdão do TC n.º 186/2009, de 21.04, Este Tribunal tem entendido que o princípio da confiança é violado quando haja uma afectação inadmissível, arbitrária ou demasiadamente onerosa de expectativas legitimamente fundadas dos cidadãos (cf., entre muitos outros, Acórdãos n.º 287/90, 303/90, 625/98 e 634/98 …).

Por seu lado, segundo este citado acórdão n.º 287/90, de 30.10, esclarecendo em que se traduz esta «inadmissibilidade, arbitrariedade ou onerosidade excessiva», refere:

A ideia geral de inadmissibilidade poderá ser aferida, nomeadamente, pelos dois seguintes critérios:

a) afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda

b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, desde a 1.ª revisão).

Pelo primeiro critério, a afectação de expectativas será extraordinariamente onerosa. Pelo segundo, que deve acrescer ao primeiro, essa onerosidade torna-se excessiva, inadmissível ou intolerável, porque injustificada ou arbitrária.

Os dois critérios completam-se, como é, de resto, sugerido pelo regime dos n.ºs 2 e 3 do artigo 18.º da Constituição. Para julgar da existência de excesso na «onerosidade», isto é, na frustração forçada de expectativas, é necessário averiguar se o interesse geral que presidia à mudança do regime legal deve prevalecer sobre o interesse individual sacrificado, na hipótese reforçado pelo interesse na previsibilidade de vida jurídica, também necessariamente sacrificado pela mudança. Na falta de tal interesse do legislador ou da sua suficiente relevância segundo a Constituição, deve considerar-se arbitrário o sacrifício e excessiva a frustração de expectativas.

Transpondo estas considerações para o caso em análise, pese embora a argumentação da recorrente, não se descortina que o aludido lapso na notificação tenha a virtualidade para justificar que esse princípio não deva ceder perante a regra de que a instrução não é admissível.

Com efeito, tal como se sublinhou no despacho recorrido, a recorrente, através da notificação, “não se viu compelida a praticar ou a não praticar um acto que legalmente lhe assistia”, mas apenas foi informada (incorrectamente) da faculdade de praticar determinado acto que, afinal, nem sequer podia requerer.

Se bem que a notificação lhe tivesse criado essa expectativa, mesmo que anteriormente não tivesse intervindo nos autos, se trate de cidadã estrangeira e a quem foi nomeado defensor aquando da dedução da acusação, afigura-se que a ponderação dos interesses subjacentes à previsão legal e à situação da recorrente não consente que esse lapso se imponha e, ao invés, a prevalência dos efeitos do mesmo seria deveras desproporcional.

A subjacente proporcionalidade implica a proibição do excesso e, como tal, a restrição legal relativa à instrução consubstancia medida que se justifica, porque se compadece com adequada avaliação (art. 18.º, n.º 2, da CRP), sob pena de, se assim não fosse, se criar expediente que o legislador não pretendeu acolher, dada a natureza e as características desse processo, não por acaso, designado de “abreviado”.

Tal forma de processo foi criada pela Lei n.º 59/98, de 25.08, e segundo a Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 157/VII que a antecedeu, Trata-se de um procedimento caracterizado por uma substancial aceleração nas fases preliminares, mas em que se garante o formalismo próprio do julgamento em processo comum com ligeiras alterações de natureza formal justificadas pela pequena gravidade do crime e pelos pressupostos que o fundamentam (…) Julga-se que, por esta via, se possibilitará uma considerável aceleração do processamento da criminalidade menos grave (…), sem deixar, porém, de assinalar as particulares exigências ao nível dos pressupostoso juízo sobre a existência de prova evidente do crime e a frescura da prova, tratando-se, em síntese, de casos de prova indiciária sólida e inequívoca que fundamenta, face ao auto de notícia ou perante inquérito rápido, a imediata sujeição do facto ao juiz, concentrando-se, desta forma, o essencial do processo na sua fase crucial, que é o julgamento.

E sempre se entendeu que a instrução é fase processual que os processos especiais não comportam.

Relativamente à invocada violação das suas garantias de defesa e do princípio da igualdade, por referência aos arts. 2.º, 13.º, 20.º, n.º 4, e 32, n.ºs 1, 3 e 4, da CRP, a recorrente situa-a, por um lado, nessa quebra da analisada confiança e, por outro, em que se viu privada de, através da instrução, requerer a suspensão provisória do processo.

Preconiza, então, a inconstitucionalidade, como refere, da interpretação dos artigos 57.º, n.º 1, 58.º, n.º 1, 59.º, n.º 2, 61.º, n.º 1, al. g), 64.º, n.º 1, al. d), 92.º, n.º 2, 281.º, n.º 1, 286.º, n.º 3, 287.º, n.º 1 e 3, e 391.º-A, n.º 1, 391.º-B, n.º 4, do Código de Processo Penal, no sentido de que não é admissível em processo abreviado o exercício do direito de requerer a abertura da instrução pelo arguido quando no “inquérito sumário” realizado nos termos do artigo 391.º-A, do Código de Processo Penal, o arguido não tenha sido constituído como tal ou tido intervenção em qualquer acto processual, seja estrangeiro e desconheça a língua portuguesa e não tenha tido acompanhamento por intérprete ou advogado antes da dedução de acusação, nem tendo sequer conhecimento da existência do processo até à recepção da referida notificação da acusação; inconstitucionalidade por violação do princípio do Estado de direito democrático, e dos direitos ao processo equitativo e às garantias de defesa e de assistência por advogado, bem como à garantia de controlo judicial sobre a “instrução”.

Ora, a circunstância de que devam ser asseguradas as garantias de defesa (art. 32.º, n.º 1, da CRP) e, assim, todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação (Gomes Canotilho/Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Coimbra Editora, 2007, volume I, pág.516), não significa que o legislador ordinário não possa modelar o regime processual com certas limitações desde que não seja atingido o núcleo essencial dessas garantias e, por maioria de razão, quando em presença de forma de processo com os contornos específicos a que se aludiu.

A não admissão da instrução representa, no caso, restrição que, conforme referido, não é excessiva, uma vez que não inviabiliza que a recorrente exerça a sua defesa no julgamento (art. 391.º-E do CPP) e, deste modo, através de meio adequado e proporcional para a efectiva tutela dos seus direitos.

Neste sentido, subjacente ao direito geral à protecção jurídica, em que se insere o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva (art. 20.º da CRP), estes não ficam abalados pela alegada situação da recorrente não ter sido constituída arguida anteriormente à dedução da acusação e não lhe ter sido nomeado defensor em momento prévio àquele em que se verificou.

Na verdade, não obstante o previsto na alínea d) do n.º 1 do art. 58.º do CPP (obrigatoriedade de constituição de arguido, logo que for levantado auto de notícia que dê uma pessoa como agente de um crime e aquele lhe for comunicado, salvo se a notícia for manifestamente infundada), a sua articulação com as garantias de defesa, como sublinham Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., pág. 517, deve ser interpretado como decorrente de uma indiciação suficiente, e não com base, como referem, apenas em denúncia ou participação, independentemente de qualquer actividade judicial de averiguação prévia da verosimilhança, atendibilidade e fundamento destas denúncias ou participações.

Por seu lado, a nomeação de defensor respeitou a obrigatoriedade de ter ocorrido quando deduzida a acusação (art. 64.º, n.º 3, do CPP), sem que, por via de o não ter sido anteriormente, se alcance que a recorrente tenha visto a sua posição nos autos prejudicada.

E desde então, passou a ter a posição processual definida no art. 60.º do CPP, bem como a gozar dos direitos e deveres processuais consagrados no art. 61º do mesmo Código, tendentes à efectiva defesa que pretenda fazer, em obediência ao desiderato de um processo equitativo.

No tocante à alegada violação do princípio da igualdade (art. 13.º da CRP), a concessão à recorrente da realização da instrução, para além do que se deixou explicitado no âmbito da protecção da confiança, “esbarraria, desde logo, com o princípio da igualdade, ao permitir uma única e concreta excepção à inadmissibilidade da fase de instrução em processo abreviado”, como bem se fundamentou no despacho recorrido.

Com efeito, a igualdade pressupõe tratamento igual na possibilidade de acesso e de “armas”, em presença de determinado tipo de processo com regras específicas, como no caso sucede, o que equivale a dizer que a recorrente não poderia gozar de privilégio ou benefício não concedido legalmente, com fundamento em ser cidadã estrangeira e sem contacto anterior com os autos.

Por seu lado, na vertente da invocada inviabilidade em requerer a suspensão provisória do processo, o citado (no despacho recorrido) acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06.11.2013, no proc. n.º 30/13.2GTBRG.P1 (rel. Maria do Carmo Silva Dias), in www.dgsi.pt, é bem esclarecedor, justificando, afinal, o que ora, dele, se transcreve:(…) sobre as características do processo abreviado, atenta a sua natureza especial, não tem aqui aplicação o disposto no art. 272º[4] do CPP. Isso significa que, mesmo quando há inquérito sumário, não existe a obrigação de interrogar o agente do crime como arguido previamente à dedução da acusação para julgamento em processo abreviado.
(…)
Também neste caso o Ministério Público não era obrigado, previamente à dedução da acusação nos moldes em que o fez, a usar do mecanismo previsto no art. 281º do CPP, ou seja, a suspensão provisória do processo.

O Ministério Público pode oficiosamente, desde que se verifiquem os seus pressupostos, determinar a suspensão provisória do processo, com a concordância do juiz de instrução, mas não é obrigado a usar esse mecanismo (…).

Também não é pelo facto de quem é arguido poder requerer a aplicação do disposto no art. 281º do CPP que se passa a impor a suspensão provisória do processo (…)
(…)
Atenta a natureza da suspensão provisória do processo não pode a mesma ser configurada como uma garantia de defesa, ainda para mais em momento em que o recorrente ainda não era arguido.

Nem sequer a lei determina que os arguidos (ou os assistentes) sejam notificados para, querendo, requererem a suspensão provisória do processo (logicamente desde que existam indícios suficientes da prática do crime mas antes do Ministério Público deduzir acusação).

Não existe o alegado “direito a exercitar” a faculdade (requerimento) concedida pelo art. 281º do CPP para quem ainda não assumiu a qualidade de arguido.

Neste caso concreto, como o agente do crime apenas adquiriu a qualidade de arguido com a acusação a requerer o julgamento em processo abreviado, não tinha o mesmo legitimidade para requerer a suspensão provisória do processo.


Ou seja, antes de deduzida a referida acusação (não tendo o Ministério Público entendido ser caso de recorrer ao disposto no art. 281º do CPP), uma vez que o recorrente ainda não era arguido, não tinha qualquer direito de requerer a suspensão provisória do processo.


Assim se compreende também que não tivesse sido violado o disposto no art. 32º, nº 1, da CRP, nem tivessem sido minimamente afectadas as ditas garantias de defesa.

O que mostra bem que, neste caso concreto, não pode ser encarado como garantia de defesa, nem como um eventual direito, o facto do agente do crime (que ainda não era arguido) não ter requerido (fosse por que motivo fosse, designadamente, por não se ter informado do andamento dos autos até ter sido notificado da acusação, altura em que adquiriu a qualidade de arguido …) a suspensão provisória do processo
.

Ainda que sob os contornos concretos que a recorrente assinala, a interpretação sobre a questão não deixa de ser plenamente idêntica.

Se bem que não tivesse tido possibilidade de intervenção prévia à dedução da acusação, isso deveu-se a contingência inerente ao processo abreviado, e em concreto verificada, assente nas condicionantes que decorrem do explicitado no mencionado acórdão – ausência de obrigatoriedade de prévia realização de inquérito sumário, de constituição de arguido anteriormente à dedução da acusação e de interrogatório de arguido -, relativamente ao que, considerando que ocorra fundamento para a suspensão provisória do mesmo, porque reunindo os pressupostos necessários, certamente o Ministério Público não o descuraria.

Só que, ao invés, tendo deduzido acusação, implicitamente afastou essa suspensão, que, em si mesmo, constitui alternativa à acusação.

À luz do que se tem de considerar, pois, que o despacho recorrido enveredou por solução correcta, pautando-se pela rejeição da instrução e mediante interpretação consentânea com os parâmetros constitucionais que nele ficaram adequadamente reflectidos.

3. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se:
- negar provimento ao recurso interposto pela arguida e, assim,

- manter o despacho recorrido.

Custas pela recorrente, com taxa de justiça de 4 UC (arts. 513.º, n.º 1, do CPP, e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais).

Processado e revisto pelo relator.

12.Março.2019

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(Carlos Jorge Berguete)
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(João Gomes de Sousa)