Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
9/13.4GAADV.E2
Relator: ANTÓNIO JOÃO LATAS
Descritores: DANOS CONTRA A NATUREZA
CONSTITUIÇÃO DE ARGUIDO
AQUISIÇÃO DA QUALIDADE DE ARGUIDO
INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 03/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I - Distinguindo os artigos 57.º e 58.º, do CPP, entre aquisição da qualidade de arguido por mero efeito da dedução de acusação ou requerimento de instrução, e constituição de arguido, deve interpretar-se estritamente a referência do art. 121.º/1 a) do C. Penal à constituição de arguido, pelo que o prazo de prescrição não se interrompe com a mera aquisição da qualidade de arguido nos termos do art. 57º nº1 CPP.

Sumariado pelo relator
Decisão Texto Integral:
Em conferência, acordam os Juízes na 2ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

I. Relatório

1. – Nos presentes autos de processo comum com intervenção do tribunal singular que correm termos no Juízo de Competência genérica de Ourique do Tribunal Judicial da Comarca de Beja, a Associação de Caçadores e Pescadores “X”, com sede em Mértola, foi pronunciada pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de danos contra a natureza, previsto e punido pelos artigos 278.º, n.ºs 1, al. a) e 5, e 11.º, n.º 2, al. b), ambos do Código Penal.

2. A “Liga para a Protecção da Natureza” constitui-se assistente nos autos.

3. Realizada a audiência de discussão e julgamento, o tribunal singular decidiu julgar a pronúncia improcedente, por não provada e, consequentemente, absolver a arguida “Associação de Caçadores e Pescadores ‘X’”, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de danos contra a natureza, previsto e punido nos termos dos artigos 278.º, n.ºs 1, al. a) e 5, e 11.º, n.º 2, al. b), ambos do Código Penal.

- 4. – Inconformada, veio a assistente interpor recurso da sentença absolutória, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:

«CONCLUSÕES:
A. O presente recurso tem por objeto a Sentença proferida a 04.06.2018, com a referência 29628173 que absolveu a Arguida “Associação de Caçadores e Pescadores “X” pela prática, em autoria material e na forma consumada, de quatro crimes de dano contra a natureza.

B. A Sentença proferida, ao decidir como decidiu, violou os preceitos legais constantes dos artigos 379.º, artigo 399.º, alínea b) do n.º 1 do artigo 401.º, n.º 1 do artigo 402.º, n.º 1 do 403.º, n.º 1 do artigo 406.º, n.º 1 do artigo 407.º, n.ºs 1 e 3 do artigo 410.º, n.ºs 1 e 3 do artigo 411.º, e 412.º, todos do Código de Processo Penal (doravante como “CPP”).

C. Na medida em que absolveu a arguida da morte de três águias imperais, não se pronunciando, porém, sobre a morte da raposa, mediante a utilização de métodos ilegais de controlo de predadores.

D. Da Sentença resulta evidente: (i) a existência da caixa armadilha ilegal encontrada na zona de caça gerida pela Arguida; (ii) da raposa encontrada morta a poucos metros da caixa-armadilha; (iii) e o controlo de predadores pela Arguida através de métodos ilegais.

E. Da prova carreada nos autos, resulta provado (i.,e, o plano de ordenamento e exploração cinegético apresentado pela Arguida) - que a caça de Raposa é permitida entre Outubro a Fevereiro e não em Agosto – data da sua morte.

F. O exercício da caça daquela espécie cinegética apenas é permitido através dos seguintes meios de caça: (a) armas de caça; (b) pau; (c) negaças e chamarizes; (d) aves de presa; (e) cães de caça; (f) furão; (g) barco; (h) cavalo, e nos meses de Outubro a Fevereiro – cfr. n.º 1 do artigo 78.º e n.º 3 do artigo 94.º, ambos do DL n.º 202/2004, de 18 de Agosto G. Por outro lado, e atento o disposto no n.º 1 do artigo 90.º do referido diploma, há que considerar que a caça apenas pode ser exercida mediante os seguintes processos, (a) de salto; (b) à espera; (c) de batida; (d) com furão; (e) a corricão; (f) de centraria; (g) de aproximação; (h) de montaria; (i) com lança.

H. Ora tendo a raposa sido encontrada morta na zona de caça gerida pela Arguida perto de uma caixa armadilha ilegal, é forçoso concluir que a Arguida levava a cabo métodos de controlo de predadores ilegais.

I. O que constitui a prática de um crime ao abrigo do artigo 30.º da Lei da Caça (Lei n.º 173/99, de 21 de setembro)

J. Recordamos que as entidades gestoras das zonas de caça, no âmbito do contrato de concessão celebrado com o Estado, estão obrigadas ao cumprimento de uma serie de premissas, como resulta do artigo 19.º do DL 202/2004, de 18 de agosto.

K. Recorrendo ao áudio da audiência de julgamento, questionado no minuto 15:12, JB, Presidente da Associação, da existência das armadilhas, declara que “nos anteriores anos, sempre recorreram à utilização de armadilhas, todavia, desde 2010, quando o guarda se fora embora, que deixaram de as usar”. (transcrição do áudio da audiência de julgamento)

L. Questionado por V. Exa, no minuto 16:33, se a zona de caça fora sujeita a manutenção, mais uma vez, o Presidente da Associação responde “não”, declarando assim “que não havia necessidade disso, não era necessário manutenção o ano inteiro”; afirma também neste seguimento, que a zona de caça da Associação, “não era vigiada e que não sabia se haviam caçadas ou não; que se havia caçadores furtivos, não tinha qualquer conhecimento”. (transcrição do áudio da audiência de julgamento)

M. Não restam dúvidas de que estamos perante uma violação do dever de gestão imposto, ao Presidente da zona de caça. A concessão a uma zona de caça, implica a realização de um Plano de Gestão, que também fora violado, estando o mesmo previsto no artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 2/2011, de 6 de Janeiro.

N. Face à morte da raposa através da utilização de métodos de controlo de predadores ilegal, e ainda que se considere não ser de aplicar no caso concreto a punibilidade pelo artigo 278.º do CP, dúvidas não poderão existir, face à prova carreada nos autos, que estarem preenchidos os pressupostos objectivos e subjectivos que determinam a prática do crime previsto no artigo 30.º da Lei da Caça pela Arguida.

O. Resta saber porque razão o Tribunal não se pronunciou sobre estes factos, os quais foram dados como provados, ainda que - a final, decidisse pela absolvição da Arguida.

P. A decisão que ora se recorre limitou-se a absolver a Arguida pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de danos contra a natureza, previsto e punido nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 11.º e alínea a) do n.º 1 e n.º 5 do artigo 278.º do Código Penal, não se pronunciando sobre a violação das normas de Lei de Caça, que constituem crime contra a preservação da fauna e das espécies cinegéticas, de acordo com o previsto no n.º 1 do artigo 30.º da Lei supra mencionada, como de resto foi requerido pela Arguida em sede de alegações.

Q. E nem se argumente com o n.ºs 1 e 3 do artigo 358.º do CPP o qual determina que, «sempre que haja alteração da qualificação jurídica dos factos há que dar oportunidade ao arguido para salvaguardar os seus direitos de defesa e lhe ser proporcionado o exercício do direito ao contraditório».

R. Pois a jurisprudência tem sido unânime em defender, não ser de aplicar aquela disposição legal, quando a alteração da qualificação jurídica redunda na imputação ao arguido de uma infracção que representa um minus relativamente à da acusação ou da pronúncia:

S. Isto é, quando a qualificação jurídica se mantiver dentro do mesmo tipo legal de crime, cuja moldura penal abstracta passa a ser inferior (o exemplo mais comum é a situação em que o arguido vem acusado ou pronunciado por um crime qualificado e vem a ser condenado pelo crime base do tipo um crime simples, como acontece frequentemente nos crimes de furto e homicídio) – Cfr. Ac. STJ de 30/4/1991, in CJ XVI, T. 2, pág. 17.

T. E bem se compreende que assim seja, pois a Arguido não seria surpreendida com a nova qualificação, antes seria beneficiada, ao deixar de ser qualificado o crime como crime de dano contra a natureza, previsto no artigo 278.º do Código Penal, por remissão do artigo 11.º do mesmo diploma, com moldura penal bastante superior ao crime previsto no artigo 30.º da Lei da Caça.

U. Neste sentido escreve o Conselheiro Maia Gonçalves sustentando «não ser necessária a comunicação da alteração da qualificação jurídica, relativamente aos factos que já constavam da acusação, ao arguido é para uma infracção que representa um minus relativamente à da acusação ou da pronúncia, pois que o arguido teve conhecimento de todos os seus elementos constitutivos e possibilidade de os contraditar ou tomar a posição que bem entendesse»

V. Porém, uma vez que a sentença não se pronunciou sobre estes factos, quer condenado quer absolvendo a Arguida, dúvidas não restam de estarmos perante uma nulidade da sentença, consubstanciada numa omissão de pronúncia, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP.

W. A acrescer, a falta de indicação, na sentença, dos meios de prova quer serviram para formar a convicção do tribunal constitui nulidade dependente de arguição, prevista nos artigos 374.º n.º 2 e 379.º alínea a) CPP. 2- (neste sentido, Ac. STJ de 1989.07.05, Processo n.º 40094, disponível em www.dgsi.pt).

X. Recordamos que o Tribunal considerou como provado que (i) a caixa armadilha fora encontrada dentro da zona da caça da arguida e que, (ii) a raposa fora encontrada morta por disparos de caçadeira, também na zona de caça sob gestão da associação arguida.

Y. Atendendo aos factos provados é questionável a razão pela qual o Tribunal não valorou esta questão, não se tendo debruçado, quer absolvendo quer condenado a Arguida pela morte da raposa, existindo uma verdadeira omissão de pronúncia.

Z. Por não o ter feito, violou a alínea c), do n.º 1 e n.º 2 e do artigo 374.º CPP, e por sua vez, a violação da alínea c), do n.º 1 do artigo 379.º, estando preenchidos os requisitos para arguição de nulidade da sentença – cuja declaração se requer.

NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO APLICÁVEIS, DEVE SER DECLARADA NULA A SENTENÇA RECORRIDA E, EM ALTERNATIVA, SER O TRIBUNAL DA PRIMEIRA INSTÂNCIA OBRIGADO A PRONUNCIAR-SE SOBRE A PRÁTICA PELA ARGUIDA DE UM CRIME PREVISTO NO ARTIGO 278.º DO CÓDIGO PENAL, EX VI ARTIGO 11 DO MESMO DIPLOMA POR MORTE DA RAPOSA ATARVÉS DE MÉTODOS DE CONTROLE DE PREDADORES ILEGAIS E, SUBSIDIÁRIAMENTE, CONDENAR A ARGUIDA PELA PRÁTICA DE UM CRIME PREVISTO NO ARTIGO 30.º DA LEI DA CAÇA, NOS TERMOS ACIMA EXPOSTOS, NÃO SENDO APLICÁVEL AO CASO CONCRETO OS N.S 1 3 DO ARTIGO 358.º DO CPP.»

5. – Notificado para o efeito, o MP junto do tribunal a quo apresentou a sua resposta, pugnando pela improcedência do recurso.

6.- Nesta Relação, o senhor Procurador-geral Adjunto emitiu parecer no mesmo sentido, considerando, para além do mais, que o crime ora invocado pela assistente sempre se encontraria prescrito.

7. Cumprido o disposto no art. 417º nº2 CPP, os interessados nada vieram dizer.

8. Transcrição parcial da sentença recorrida:
« (…)

Factos Provados:
Produzida a prova e discutida a causa, o Tribunal julga assente a seguinte factualidade:

1) Em 2013, existia um ninho de Águias Imperiais Ibéricas na localidade de Figueirinha, freguesia de São Marcos da Ataboeira, concelho de Castro Verde.

2) O ninho encontrava-se na Zona de Caça Turística das Carochas, concessionada à associação “F. – Caça Turística, Lda.”.

3) No dia 30 de Julho de 2013, foi encontrada morta uma Águia Imperial Ibérica na zona de caça concessionada à associação “F. – Caça Turística, Lda.”, a cerca de 3 quilómetros do ninho.

4) A águia era uma fêmea, juvenil, nascida em 2013, pertencente ao ninho da localidade de Figueirinha.

5) Não foi concretamente apurada a causa da morte desta águia juvenil.

6) No dia 31 de Julho de 2013, foi encontrada morta outra Águia Imperial Ibérica, também na zona de caça concessionada à associação “F. – Caça Turística, Lda.”, a cerca de 1 quilómetro do ninho.

7) A águia possuía um transmissor terrestre de VHF e uma anilha metálica na pata esquerda com o n.º 1019856.

8) Esta águia era um macho adulto, com 4 anos de idade, pertencente ao ninho da localidade de Figueirinha.

9) Tratava-se de um dos progenitores da águia juvenil descrita nos pontos 3) e 4).

10) A águia provinha da população andaluza, encontrando-se no nosso território desde 2012, e era o segundo ano que se reproduzia.

11) A garra da pata esquerda da águia continha vestígios de sulfóxido de “Aldicarb”.

12) O “Aldicarb” é uma substância da família biológica dos Carbamatos de Oxima e está classificado pela Organização Mundial de Saúde como sendo extremamente tóxico.

13) Os produtos que continham “Aldicarb” eram utilizados como insecticidas, acaricidas, e nematodicidas.

14) O “Aldicarb” não é bioacumulável e a sua degradação no organismo contaminado é relativamente rápida.

15) A causa provável de morte desta águia adulta é o envenenamento por “Aldicarb”.

16) À data em que foi encontrada, a águia encontrava-se morta há cerca de 6 dias.

17) No dia 30 de Outubro de 2013, foi encontrada morta uma outra Águia Imperial Ibérica, em avançado estado de decomposição, na zona de caça concessionada à associação “F. – Caça Turística, Lda.”, muito perto do ninho da localidade de Figueirinha.

18) Esta águia era um macho adulto.

19) No dia 3 de Agosto de 2013, foi encontrada uma caixa-armadilha destinada a carnívoros, contendo dois iscos, na Zona de Caça Associativa da Figueirinha, Alcaria do Coelho, concessionada à associação arguida “Associação de Caçadores e Pescadores ‘X’”.

20) Perto da caixa-armadilha foi encontrada morta uma raposa, atingida na cabeça por chumbos disparados por uma caçadeira.

21) Desde o ano de 2006 que o ninho das Águias Imperiais na localidade de Figueirinha, freguesia de São Marcos da Ataboeira, concelho de Castro Verde, estava identificado pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas.

22) A partir do ano de 2009 a arguida deixou de ter guarda-florestal, passando os seus associados a desempenhar as funções que cabiam ao guarda-florestal, embora de forma não regular.

23) As Águias Imperiais Ibéricas são espécies animais protegidas, não cinegéticas, e territoriais.

24) No ano de 2013 estavam identificados quatro casais de águias desta espécie no concelho de Castro Verde.

25) Em 2013 a associação arguida tinha a gestão da Zona de Caça Associativa da Figueirinha, Alcaria do Coelho, nos termos da concessão atribuída pelo processo n.º ----AFN, abrangendo prédios rústicos sitos nas freguesias de São Marcos da Ataboeira e Santa Bárbara de Padrões (município de Castro Verde), e nas freguesias de São João dos Caldeireiros e São Miguel do Pinheiro (município de Mértola).

26) Em 2013 a associação “F. – Caça Turística, Lda.” tinha a gestão da Zona de Caça Turística das Carochas, nos termos da concessão atribuída pelo processo n.º ----AFN, abrangendo prédios rústicos sitos na freguesia de São Marcos da Ataboeira (município de Castro Verde), e na freguesia de São João dos Caldeireiros (município de Mértola).

27) As entidades gestoras de zonas de caça têm o dever de monitorizar e a vigiar as suas zonas de caça e as actividades que nelas decorrem.

28) A arguida sabia que as águias imperiais ibéricas eram espécies animais protegidas, não cinegéticas.

29) A arguida, enquanto entidade gestora da Zona de Caça Associativa da Figueirinha, Alcaria do Coelho, tinha o dever de vigiar e monitorizar a actividade da caça e de controlo de predadores nessa zona de caça.

30) A associação arguida tem 26 associados inscritos (21 associados pagantes de quotas, e 5 não pagantes).

31) Cada associado está obrigado a pagar uma quota anual no valor de 650,00 €.

32) Paga anualmente 10000,00 € aos proprietários dos prédios que integram a zona de caça.

33) Paga anualmente 1100,00 € de taxas devidas ao Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas.

34) Tem despesas em electricidade no montante de 50,00 € por mês.

35) A associação arguida não tem antecedentes criminais registados.

Factos Não Provados

1) Que no dia 28 de Julho de 2013 tivesse sido encontrada morta uma Águia Imperial Ibérica perto do ninho na localidade de Figueirinha, freguesia de São Marcos da Ataboeira, concelho de Castro Verde.

2) Que no dia 29 de Julho de 2013, tivesse sido feita a recolha do cadáver na Zona de Caça das Carochas, concessionada à associação “F. – Caça Turística, Lda.”.

3) Que a águia juvenil encontrada em 30 de Julho de 2013 tivesse morrido de inanição.

4) Que a águia macho, identificada pela anilha metálica na pata esquerda com o n.º 1019856, progenitor da águia juvenil, tivesse sido encontrada morta no dia 30 de Julho de 2013.

5) Que a águia macho, identificada pela anilha metálica na pata esquerda com o n.º 1019856, progenitor da águia juvenil, tivesse sido encontrada morta na Zona de Caça Associativa da Figueirinha, Alcaria do Coelho, concessionada à associação arguida “Associação de Caçadores e Pescadores ‘X’”.

6) Que a terceira águia encontrada morta tivesse sido encontrada cerca de um mês depois de ter sido encontrada a caixa-armadilha e a raposa morta, na Zona de Caça Associativa da Figueirinha, Alcaria do Coelho, em 3 de Agosto de 2013.

7) Que a terceira águia encontrada morta tivesse sido encontrada morta na Zona de Caça Associativa da Figueirinha, Alcaria do Coelho concessionada à associação arguida “Associação de Caçadores e Pescadores ‘X’”.

8) Que a terceira águia encontrada morta era uma fêmea e que era a progenitora da águia juvenil.

9) Que o ninho das águias imperiais ibéricas se encontrava na Zona de Caça Associativa da Figueirinha, Alcaria do Coelho, concessionada à associação arguida “Associação de Caçadores e Pescadores ‘X”.

10) Que a associação arguida sabia que o ninho das águias imperiais ibéricas se situava na Zona de Caça Associativa da Figueirinha, Alcaria do Coelho, sob sua gestão.

11) Que a arguida não observou o dever de cuidado que lhe incumbia quando procedeu ao controlo de predadores na Zona de Caça Associativa da Figueirinha, Alcaria do Coelho.

12) Que a arguida violou o seu dever legal de vigilância e monitorização da actividade de controlo dos predadores na Zona de Caça Associativa da Figueirinha, Alcaria do Coelho, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

III – MOTIVAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
A convicção do Tribunal, quanto aos factos provados, alicerçou-se na articulação de todos os meios de prova disponibilizados nos autos, devidamente combinados com as regras de experiência comum, bem como nas declarações do representante legal da arguida e no depoimento das testemunhas ouvidas na audiência de discussão e julgamento.

Analisado o despacho de pronúncia, verificamos que a imputação dos factos incriminadores à associação arguida assenta na seguinte narrativa: a associação arguida tinha a concessão de uma zona de caça que abrangia um território onde existia um ninho de águias imperiais ibéricas, espécie animal protegida, não cinegética; na Primavera de 2013, o casal de águias que ocupava esse ninho reproduziu-se e teve uma cria; por sua vez, a arguida, nesse Verão de 2013, estava a realizar acções de controlo de predadores nesse território (tal como comprovam a caixa-armadilha e a raposa morta por disparos de caçadeira que foram encontradas por essa altura na zona de caça sob sua gestão); entretanto, em finais de Julho, é encontrada morta uma águia juvenil, nascida em 2013, perto do referido ninho; dois dias depois é encontrada morta a águia macho, progenitor daquela águia juvenil, “em avançado estado de decomposição”, com vestígios de veneno “Aldicarb” numa garra; e em Setembro de 2013, é encontrada morta uma outra águia, em avançado estado de decomposição, “tendo-se confirmado ser a fêmea progenitora” da águia juvenil. Com base nestas premissas, chegou-se facilmente à conclusão de que o veneno que matou o progenitor macho foi colocado nos terrenos pela associação arguida, no âmbito de uma acção de controlo de predadores da sua zona de caça (porventura para matar outros predadores, como raposas e saca-rabos); que a progenitora fêmea morreu na mesma altura (porventura também envenenada, embora sem certezas quanto à causa da morte dado o avançado estado decomposição); e quanto à cria, não tendo nenhum dos seus progenitores para lhe trazerem alimento, acabou por morrer de inanição. Ou seja, a responsável pelo desaparecimento desta “família” de águias imperiais ibéricas só podia ser a “Associação de Caçadores e Pescadores ‘X’”, uma vez que, (i) o ninho se encontrava na zona de caça sob sua gestão, (ii) os dois progenitores, macho e fêmea, foram encontrados mortos nessa mesma zona de caça, (iii) sendo que o macho apresentava sinais de envenenamento, e (iv) sendo óbvio que a arguida estava nessa mesma altura a realizar acções de controlo de predadores na sua zona de caça. Portanto, atenta esta narrativa, tudo apontava para a responsabilização da “Associação de Caçadores e Pescadores ‘X”, pela morte daquelas três águias, a título de negligência.

Acontece que boa parte desta narrativa assenta em premissas erradas, porquanto, (i) nem o ninho das águias imperiais ibéricas se situava na zona de caça concessionada à “Associação de Caçadores e Pescadores ‘X’”, (ii) nem as duas águias adultas foram encontradas nessa zona de caça, (iii) nem a águia juvenil foi encontrada perto do ninho, (iv) nem a terceira águia encontrada morta era uma fêmea (o que invalida logo a tese de que as duas águias adultas formavam um casal), e, acrescentaríamos ainda, (v) nem ficou comprovado para além de uma dúvida razoável que a águia juvenil tivesse morrido por falta de alimento. Mas vejamos qual a prova produzida relativamente a cada um destes aspectos.

Em primeiro lugar interessa saber onde se situa o ninho de águias imperiais ibéricas a que a decisão de pronúncia se refere.

O representante legal da associação arguida, JB, presidente da direcção da associação desde 1994, referiu desde logo, nas declarações que prestou, que o ninho em causa estava fora dos limites da zona de caça concessionada à associação de caçadores a que preside. Informação que foi confirmada pela testemunha MC, agricultor, residente em Castro Verde, que até acrescentou que o ninho se encontra num terreno da sua propriedade e que em 2013 esse terreno estava abrangido pela Zona de Caça Turística das Carochas, concessionada à associação “F. – Caça Turística, Lda.”.

Não obstante estas declarações e este depoimento nos indicarem que o ninho afinal não estava situado na zona de caça sob gestão da arguida, continuávamos sem saber qual a sua localização exacta, o que não era de somenos visto que a pronúncia referia-se ao local onde a águia juvenil foi encontrada morta por referência ao local do dito ninho (v. ponto 1. da decisão de pronúncia), pelo que para sabermos a que distância estava a águia juvenil do ninho, era preciso saber onde estava efectivamente o ninho. Foi assim que, ao analisar mais atentamente a prova documental junta aos autos, encontrámos um documento junto com o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente “Liga para a Protecção da Natureza”, que consiste num printscreen de uma imagem guardada num ficheiro de computador onde o ninho em causa aparece num mapa sinalizado com uma estrela (fls. 366).

Tendo sido chamadas novamente a depor as testemunhas RS, bióloga na Liga para a Protecção da Natureza, e CC, biólogo no Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, as mesmas confirmaram que era aquela a localização exacta do ninho das águias imperiais ibéricas em causa nestes autos.

Mas continuávamos sem saber exactamente se esse local se encontrava dentro ou fora dos limites da zona de caça associativa concessionada à associação arguida. A prova inequívoca de que o ninho estava efectivamente fora dos limites dessa zona de caça só foi possível alcançar depois de comparar aquele mapa de fls. 366 com os mapas constantes das Portarias n.º 193/2009, de 23 de Fevereiro, e n.º 142/2009, de 4 de Fevereiro, (fls. 367 e 369, respectivamente), mediante as quais se procedeu à concessão de uma zona de caça turística (Carochas) à associação “F. – Caça Turística, Lda.” (Portaria n.º 193/2009, de 23/02 – fls. 367), e de uma zona de caça associativa (Figueirinha, Alcaria do Coelho) à “Associação de Caçadores e Pescadores ‘C’” (Portaria n.º 142/2009, de 04/02 – fls. 369). Cotejando esses três mapas, foi possível localizar aproximadamente o ninho em causa nos autos e concluir com segurança que o mesmo não se encontrava dentro da zona de caça concessionada à associação arguida, mas sim dentro da Zona de Caça Turística das Carochas, concessionada à associação “F. – Caça Turística, Lda.”.

Passemos agora para a localização de cada uma das águias encontradas mortas.

A primeira águia a ser encontrada foi a águia juvenil. A testemunha MC referiu que encontrou a águia morta na manhã do dia 30 de Julho de 2013, junto a uma barragem, distante do ninho. De seguida a testemunha comunicou a situação à testemunha CC, e este por sua vez alertou as autoridades, que depois compareceram no local para recolher o animal. As coordenadas de GPS de localização desta águia constam do auto de notícia de fls. 17, 18, 27 e 28. Assim, a partir das coordenadas N37`38º14`0”W007º52`56.9” foi possível concluirmos que esta águia juvenil se encontrava a cerca de 3 quilómetros do ninho, e dentro da zona de caça sob gestão da associação “F. – Caça Turística, Lda.”.

A segunda águia foi encontrada no dia seguinte, em 31 de Julho. Tratava-se de uma águia adulta e tinha um transmissor terrestre de VHF e uma anilha metálica na pata esquerda com o n.º 1019856 (documento de fls. 128 a 135). A águia pertencia à população de águias andaluzas e fazia parte de um programa de reintrodução desta espécie na Andaluzia, financiado pelo Estado Espanhol. Por casualidade, a águia acabou por fixar-se no nosso país e nidificar no ninho da localidade de Figueirinha, São Marcos da Ataboeira. Não obstante, continuou a ser monitorizada a partir de Espanha. Daí que não se deva estranhar o facto de esta águia ter sido encontrada por um técnico de nacionalidade espanhola através do sinal emitido pelo transmissor introduzido na ave, que depois contactou a testemunha CC que, por sua vez, alertou as autoridades. As testemunhas CC e RL, militar da GNR do Posto Territorial de Almodôvar, descreveram as circunstâncias em que se deu a descoberta desta águia. O auto de notícia de fls. 17, 18, 27 e 28 é da autoria deste militar da GNR e nele consta a identificação do técnico espanhol que encontrou a águia, bem como as coordenadas de GPS de localização da mesma. Assim, a partir das coordenadas 37º38´49.5N 007º53´45.4W” foi possível concluirmos que esta águia adulta se encontrava a cerca de 1 quilómetro do ninho, e dentro da zona de caça sob gestão da associação “F. – Caça Turística, Lda.”. A testemunha CC também informou que a águia foi encontrada junto a umas rochas que serviam de pouso e de posto de observação da águia. Para a completa identificação desta águia adulta foi também tida em consideração a informação de fls. 128 a 135, elaborada pelo técnico espanhol que monitorizava esta águia em solo nacional.

A terceira águia só foi encontrada em 30 de Outubro de 2013. Tratava-se de uma águia adulta e encontrava-se em avançado estado de decomposição, já só restando os ossos e as penas. A águia foi encontrada pela testemunha CC, que de seguida alertou as autoridades para recolherem o que restava do animal. As coordenadas de GPS de localização desta águia constam do auto de notícia de fls. 279 e 280. Assim, a partir das coordenadas 37º39'00.7"N 7º53'57.2W foi possível concluirmos que esta águia adulta se encontrava muito próxima do ninho da Figueirinha, e dentro da zona de caça sob gestão da associação “F. – Caça Turística, Lda.”.

Aqui chegados, verificamos que nenhuma das águias se encontrava na zona de caça sob gestão da associação arguida nestes autos. Todas as três águias encontravam-se na zona de caça concessionada à associação “F. – Caça Turística, Lda.”.

O próximo passo da nossa análise crítica da prova leva-nos à indagação do género de cada uma das três águias encontradas mortas, visto que a narrativa em que assenta a decisão de pronúncia parte do princípio de que as duas águias adultas formavam um casal e que a águia juvenil era a respectiva cria, ocupando as três o ninho da localidade da Figueirinha.

Advertimos que os documentos que valorámos para a formação da nossa convicção probatória sobre o género dos três animais consistem em relatórios de necrópsias realizadas por um centro de análises e de diagnóstico da fauna selvagem (tradução livre de “Centro de Análisis y Diagnóstico de la Fauna Silvestre”) sediado em Espanha, e que não têm o valor probatório da prova pericial (art. 163.º do Código de Processo Penal) por não terem sido determinadas pelas autoridades judiciárias nacionais, nos termos do art. 154.º, n.º 1 do Código de Processo Penal. Por conseguinte, as conclusões desses relatórios de fls. 256 a 271, 299 a 307, e 316 e 317, só poderão ser valorados como meros pareceres técnicos e jamais como prova pericial.

Assim, tendo em consideração o parecer de fls. 256 a 271, e não se vislumbrando razões objectivas para duvidar das conclusões aí alcançadas, verifica-se que:

- a águia juvenil era uma fêmea (fls. 262v., 269v., e 271);

- a águia adulta encontrada em 31 de Julho era um macho (fls. 263, 269). Resta agora saber se a águia adulta encontrada em 30 de Outubro era um macho ou uma fêmea. Pois bem, de acordo com o parecer de fls. 299 a 307, e não se vislumbrando razões objectivas para se duvidar das conclusões aí alcançadas, verifica-se que essa águia era um macho (fls. 304v., 306v.).

Portanto, as duas águias adultas eram dois machos; querendo isto dizer que não formavam um casal e que a águia juvenil não podia ser uma cria dessas duas águias.

Aqui chegados, importa lembrar as conclusões que já alcançámos até este momento: (i) o ninho da águia juvenil e da águia macho adulta encontrada morta no dia 31 de Julho (com a anilha metálica na pata esquerda com o n.º 1019856) não está localizado na zona de caça sob gestão da arguida; (ii) nenhuma das águias mortas se encontrava na zona de caça sob gestão da arguida; (iii) a águia adulta encontrada morta em 30 de Outubro era um macho. Podemos também concluir que a águia juvenil era efectivamente cria do macho adulto que tinha a anilha metálica na pata esquerda, uma vez que através dessa identificação e do transmissor de VHF que possuía foi possível constatar que esta águia ocupava o ninho da localidade da Figueirinha. E como não havia outro ninho nas proximidades, então aquela águia juvenil, nascida em 2013, só podia pertencer àquele ninho e, assim, ser uma cria deste macho.

Avancemos agora a nossa análise para a questão da causa da morte destas três águias.

Comecemos por aquela cuja causa de morte parece não merecer contestação: a da águia adulta encontrada morta em 31 de Julho de 2013 (identificada pela anilha metálica na pata esquerda com o n.º 1019856), progenitor da águia juvenil. Ora o relatório da necrópsia elaborado pelo centro de análises sedeado em Espanha refere que foi detectado sulfóxido de “Aldicarb” na garra da pata esquerda desta águia (fls. 268, 270, 270v., 271). Refere que este sulfóxido é um resquício que resulta da degradação da substância “Aldicarb”, substância esta não bioacumulável e cuja degradação no organismo contaminado é relativamente rápida, daí não se encontrar vestígios desta substância nos órgãos internos e sistema digestivo. Mais refere que o “Aldicarb” pertence ao grupo dos “Carbamatos” e que foi classificado pela Organização Mundial de Saúde como sendo “extremamente tóxico” (fls. 271). Conclui, por isso, que a causa provável da morte desta águia adulta foi o envenenamento por “Aldicarb”. Como já tivemos oportunidade de dizer em ocasião anterior, este relatório de necrópsia não constitui prova pericial. No entanto, nenhuma objecção foi suscitada contra a seriedade e rigor evidenciados pelos procedimentos adoptados por este centro de análises nem pelas conclusões que alcançou. Da nossa parte, também não vemos razões objectivas para não aceitar as conclusões deste relatório, até porque a informação remetida aos autos pela Direcção Geral de Alimentação e Veterinária, a fls. 276 e 277, confirma as indicações sobre as propriedades altamente tóxicas da substância “Aldicarb”.

Face ao exposto, deu este Tribunal como provado que a águia macho adulta encontrada em 31 de Julho, e identificada pela anilha metálica na pata esquerda com o n.º 1019856, morreu de envenenamento por “Aldicarb”.

Importa ainda referir, em relação a esta águia, que existem elementos nos autos que nos permitem aferir a data provável da sua morte. Como dissemos, esta águia possuía um transmissor de VHF, através do qual era monitorizada a partir de Espanha. Ora, de acordo com a informação de fls. 128 a 135, elaborado pelo técnico espanhol que monitorizava esta águia em solo nacional, a águia foi avistada viva no dia 19 de Julho de 2013; e no dia 25 de Julho o sinal emitido pelo transmissor indicava que o animal estava a voar, logo, que estaria vivo. Donde se concluiu que “presumivelmente no dia 25 de Julho pelas 12:45 horas estava vivo” (fls. 129 – tradução livre). Portanto, é legítimo que também possamos concluir que, pelo menos, no dia 25 de Julho de 2013, esta águia adulta, progenitor da águia juvenil, ainda estava viva.

Em relação à águia macho adulta encontrada em 30 de Outubro – da qual só restavam os ossos e as penas –, não foi possível determinar a causa provável da morte (fls. 307). A inconcludência quanto à causa provável da morte desta águia afigura-se-nos razoável, dado o avançado estado de decomposição deste animal.

As maiores dúvidas colocam-se em relação à causa da morte da águia juvenil encontrada em 30 de Julho.

Esta águia juvenil foi sujeita a três necrópsias.

A primeira foi realizada pelo médico-veterinário do município de Castro Verde no próprio dia em que a águia foi encontrada, em 30 de Julho (fls. 32). Aí se refere que a águia “já se encontrava em estado avançado de decomposição, estando morta há cerca de três dias.

Exteriormente não apresentava lesões visíveis. A ave apresentava-se num estado caquexia (magreza) extrema, o que indica uma causa de morte prolongada no tempo. (…) apresentava restos de terra no esófago e traqueia, com os órgãos internos já putrefactos, não sendo possível a sua caracterização e determinação da causa da morte” (fls. 32).

Após esta primeira necrópsia, a águia foi entregue ao Parque Natural do Vale do Guadiana (fls. 40), e daqui a águia foi enviada para o Centro de Recuperação e Investigação de Animais Selvagens do Parque Natural da Rio Formosa, em Olhão, Algarve, para ser sujeita a uma nova necrópsia com vista a apurar a existência de vestígios de envenenamento. A testemunha CC confirmou a entrega desta águia juvenil a este centro de investigação sedeado em Olhão para exames toxicológicos, e a respectiva “ficha de análise” consta de fls. 319. Desta “ficha de análise” consta que foram extraídos um rim e o músculo peitoral da águia para análises toxicológicas, mas os resultados obtidos não foram concludentes.

Seguidamente, a águia foi então enviada para o já mencionado centro de análises de Espanha, aonde deu entrada no dia 3 de Setembro de 2013, com os órgãos internos expostos e alguns deles incompletos (fígado, rim, e musculatura peitoral), (fls. 256 e 257 – tradução livre).

Este relatório da necrópsia realizada em Espanha também não é conclusivo quanto à causa da morte desta águia juvenil (fls. 270v. e 271). Mas ressalva que não foi possível fazer uma avaliação completa do cadáver devido à falta de alguns órgãos internos e dos músculos peitorais, os quais foram extraídos no Centro de Recuperação e Investigação de Animais Selvagens do Parque Natural da Rio Formosa, em Olhão, para exames toxicológicos. O relatório admite que a águia tenha sofrido um “processo debilitante”, mas não descarta a possibilidade de a águia ter ingerido uma quantidade menor do veneno que foi encontrado no seu progenitor (fls. 270v.).

Coloca-se então a questão de saber qual a causa provável de morte desta águia juvenil.

Apesar de o relatório da necrópsia elaborado pelo médico-veterinário do município de Castro Verde aludir à “magreza extrema” da águia (fls. 32), o certo é que não foi aí indicado o peso que o animal tinha, impossibilitando assim que pudéssemos ajuizar, em audiência de julgamento, sobre a bondade das conclusões a que o médico-veterinário chegou. Felizmente que o centro de análises de Espanha procedeu à pesagem da águia quando a recebeu em 3 de Setembro de 2013. Assim, à data de entrada da águia juvenil neste centro de análises espanhol, o animal pesava 2,25 Kg (fls. 261v.), sendo que já tinha decorrido mais de um mês desde que o animal foi encontrado morto, já tinha sido submetido a duas necrópsias, e já lhe faltavam alguns órgãos internos e a musculatura peitoral. Ainda assim, como dissemos, o animal pesava 2,25 Kg.

Com este elemento, já o Tribunal pôde ajuizar sobre a indicada causa de morte por “inanição”, inquirindo as testemunhas RS e CC, ambos biólogos, sobre a idade provável desta águia juvenil à data da morte e de qual o peso médio de um animal destes nessa idade. Não se afigurando possível precisar exactamente a idade deste juvenil, as testemunhas assentiram que a águia teria entre 60 a 90 dias de vida. Quanto ao peso médio de uma fêmea com estes dias de vida, as testemunhas afirmaram que o peso médio andaria a rondar os 3 e os 4 quilos.

Pois bem, tendo em conta que: (i) esta águia juvenil foi encontrada morta em 30 de Julho e que podia estar morta há já 2 ou 3 dias; que (ii) só deu entrada no centro de análises de Espanha em 3 de Setembro, ou seja, mais de um mês após ter morrido; que (iii) a águia foi sujeita a duas necrópsias antes de dar de entrada neste centro de análises espanhol; que (iv) já lhe tinham sido removidos alguns órgãos internos e a musculatura peitoral quando a águia deu entrada no centro de análises espanhol; e que apesar do estado de decomposição em que se encontrava, ainda pesava 2,25 Kg, então não se nos afigura temerário concluir que esta aguia juvenil teria certamente mais de 3 Kg no momento em que morreu. Por seu turno, se a águia tinha cerca de 3 Kg de peso, então é forçoso concluir que a mesma tinha um peso adequado para a sua idade.

Estamos assim em condições de questionar se esta águia juvenil efectivamente morreu por inanição.

E mais reforçadas ficam as nossas dúvidas depois de constatarmos que a progenitora fêmea desta águia juvenil nunca foi encontrada morta em parte alguma, sendo de admitir que a mesma continuava viva no momento em que a águia juvenil morreu e que, portanto, podia ter continuado a alimentá-la. Ademais, tendo em conta que o progenitor macho ainda estava vivo no dia 25 de Julho (o sinal emitido pelo transmissor VHF indicava que estava a voar neste dia), e que a águia juvenil terá morrido em 27 ou 28 de Julho, não podemos acreditar que uma águia juvenil morresse de inanição ao fim de apenas 2 ou 3 dias sem ser alimentada pelos progenitores. As testemunhas RS e CC disseram, efectivamente, que uma águia juvenil com 60 a 90 dias de vida não morre de inanição por ficar 2 ou 3 dias sem comer.

Posto isto, não podemos dar como provado, acima de uma dúvida razoável, que a águia juvenil morreu por inanição. Em consequência, fica prejudicada a relação causal da morte deste juvenil com a morte anterior do(s) seu(s) progenitor(es).

Chegados a este ponto, vemos que a narrativa em que assentava a decisão de pronúncia falha nas suas premissas mais objectivas.

Todavia há duas que permanecem intocadas. A primeira é a de que efectivamente uma das águias morreu de envenenamento por “Aldicarb”. A segunda é a de que foi encontrada uma caixa-armadilha e uma raposa morta por disparos de caçadeira na zona de caça sob gestão da associação arguida.

Em relação à caixa-armadilha e à raposa encontrada morta, não há como ignorar o facto de elas terem sido encontradas na zona de caça concessionada à arguida na altura em que as duas primeiras águias apareceram mortas, permitindo concluir que a associação estava a realizar acções de controlo de predadores no território da sua zona de caça. Quanto a estes factos o Tribunal valorou os depoimentos das testemunhas RL, RS, CC, em conjugação com a seguinte prova documental: auto de notícia de fls. 3 a 5; autos de exame directo e avaliação de fls. 6 e 26; imagens de fls. 7 a 9, e 25; auto de apreensão de fls. 13. Apesar de o presidente da direcção da associação arguida declarar que se encontrava de baixa médica durante esse Verão de 2013 – situação confirmada pelas testemunhas da contestação penal –, e de que não podia ter sido ele a colocar ali aquela caixa-armadilha e a abater a raposa, o certo é que quem colocou aquela caixa-armadilha nos terrenos da sua zona de caça só podia ser alguém interessado no controlo de predadores dentro daquele território, ou seja, só podia ter sido um associado, fazendo com que a infracção fosse imputada à associação de caçadores.

Sem embargo do que acabamos de dizer, ir mais além com este raciocínio e dar como provado que os mesmos associados também depositaram “Aldicarb” nos terrenos da sua zona de caça para eliminar mais eficazmente os animais que se alimentavam da caça, parece-nos uma clara violação do princípio in dubio pro reo. Por outras palavras, apenas porque foi encontrada uma caixa-armadilha e uma raposa morta com tiros de caçadeira na zona de caça sob gestão da associação arguida isso não significa que também tenham recorrido à utilização de “Aldicarb” para eliminar os predadores na sua zona de caça.

Salienta-se que os terrenos foram palmilhados por cães treinados na detecção de veneno e nenhuns vestígios de “Aldicarb” foram encontrados nos terrenos em redor do ninho das águias, designadamente nos terrenos abrangidos pela zona de caça concessionada à arguida, tal como referiram as testemunhas RS e CC.

Acresce que, sendo o “Aldicarb” uma substância extremamente tóxica e tendo sido referido que os seus efeitos actuam de forma bastante aguda poucos minutos após ser ingerido, é bem mais verosímil que a águia que morreu envenenada tenha tido contacto com o “Aldicarb” num local próximo daquele onde foi encontrada morta, ou seja, dentro do território abrangido pela zona de caça sob gestão da associação “F. – Caça Turística, Lda.” pois foi aí que foi encontrada morta, do que num local abrangido pela zona de caça sob gestão da arguida, situado pelo menos a cerca de 1,5 a 2 quilómetros do local onde a águia foi encontrada morta.

Ponderadas todas estas circunstâncias, nomeadamente o facto de nenhuma das águias mortas se encontrar dentro da zona de caça concessionada à arguida e de não terem sido detectados vestígios de “Aldicarb” nesses terrenos, não podemos inferir, com um grau de certeza para além de uma dúvida razoável, que a arguida tivesse efectivamente utilizado substâncias contendo “Aldicarb” para controlo de animais predadores dentro da zona de caça sob sua gestão.

Razão pela qual entendeu este Tribunal dar como não provados os factos incriminadores da arguida, uma vez que o resultado da valoração da prova produzida em julgamento e da constante dos autos não foi conclusivo. E quando o Tribunal se defronta com dúvidas insanáveis sobre a verificação de tais factos não lhe resta outra alternativa que não seja a de considerá-los como não provados, conforme dispõe o princípio do in dubio pro reo, emanente ao princípio da culpa e do próprio Estado de Direito material.

Em relação ao número de casais desta espécie de águias existentes no concelho de Castro de Verde em 2013, o Tribunal valorou os depoimentos das testemunhas RS e CC.

Foram ainda valorados os documentos de fls. 440 a 446, 447 a 451, 452 a 463, 484 a 513.

Dos depoimentos prestados pelas testemunhas arroladas pela contestação penal, RP, guarda dos recursos florestais, FC, agricultor, e DD, padeiro, todos associados da arguida, cumpre apenas destacar o que relataram sobre as batidas que faziam aos predadores após o fim do período da caça, sendo essa a forma habitual de controlarem os predadores dentro da zona de caça, apenas esporadicamente utilizando caixas-armadilha, as quais eram pedidas de empréstimo à associação da zona de caça vizinha.

Relativamente à situação económica e composição associativa da associação arguida, o Tribunal valorou as declarações prestadas pelo seu representante legal em juízo, JB, presidente da direcção da associação, já que as mesmas se revelaram sinceras e, por isso, dignas de crédito.

Para prova da ausência de antecedentes criminais da associação arguida, atendeu-se ao teor do Certificado do Registo Criminal junto aos autos a fls. 1117.

Factos Não Provados:
Relativamente aos factos considerados como não provados, tal justifica-se por ter sido produzida prova do contrário ou por não ter sido produzida prova que corroborasse tais factos, nos termos acima expostos, nomeadamente, resultou provado que, quer o ninho, quer as três águias encontradas mortas, se encontravam dentro da zona de caça concessionada à associação “F. – Caça Turística, Lda.”, e não resultou provado que a arguida tivesse, por intermédio dos seus associados, recorrido à utilização de venenos compostos por “Aldicarb” para controlar os predadores na zona de caça sob sua gestão.
*
O Tribunal não se pronuncia sobre a demais matéria vertida na decisão de pronúncia, quer por não constituir uma imputação de factos à arguida, quer por constituir factos instrumentais ou se apresentar irrelevante para a decisão da causa.

IV – ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL
Vem a arguida “Associação de Caçadores e Pescadores ‘X’” pronunciada pela prática de um crime de danos contra a natureza, previsto e punido nos termos dos artigos 278.º, n.ºs 1, al. a) e 5, e 11.º, n.º 2, al. b), ambos do Código Penal.

O artigo 278.º, n.º 1 al. a) do Código Penal dispõe: “Quem, não observando disposições legais, regulamentares ou obrigações impostas pela autoridade competente em conformidade com aquelas disposições: a) Eliminar, destruir ou capturar exemplares de espécies protegidas da fauna ou da flora selvagens ou eliminar exemplares de fauna ou flora em número significativo; (…) é punido com pena de prisão até cinco anos”.

Todavia, se a conduta for praticada com negligência, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 360 dias (n.º 5).

O crime de danos contra a natureza constitui um crime de perigo comum, significando que resulta da necessidade de defender o Homem e a sociedade das actividades perigosas, uma necessidade que se torna cada vez mais premente à medida que o progresso tecnológico desenvolve métodos e instrumentos tão eficazes quanto perigosos.

Visa-se proteger com esta incriminação a preservação dos ecossistemas através da manutenção de dois dos seus componentes: a fauna e a flora.

Assim sendo, e atendendo a que dentro cada ecossistema cada espécie de fauna ou flora ocupa um espaço complexo de características próprias, a respectiva eliminação só pode ser adjectivada como “significativa” consideradas que sejam as específicas características do concreto ecossistema onde ocorre.

De acordo com uma orientação do Ministério Público, pode-se considerar como “muito significativa” a eliminação de cinco aves num concreto ecossistema onde a população global seja de vinte, e a eliminação desse mesmo número de aves já não ser qualificável como “muito significativa” num outro ecossistema cuja população global daquela espécie seja muito superior.

Nessa medida, a análise do comportamento criminalmente punível tem, necessariamente, implícito um juízo de valor apenas alcançável mediante o recurso a indicadores de base técnica.

Estando a espécie animal classificada como em vias de extinção, então basta a eliminação de um exemplar para o preenchimento dos elementos objectivos do tipo legal de crime, não intervindo qualquer critério quantitativo.

O crime de danos contra a natureza previsto no n.º 1 do art. 278.º é um crime de perigo comum e abstracto, punível, tanto com base no dolo, mas também, dada a disposição legal contida no n.º 5, com fundamento na negligência.

No caso vertente, rege o Decreto-Lei n.º 140/1999, de 24 de Abril, alterado pelo Decreto-Lei n.º 49/2005, de 24 de Fevereiro, que procede à revisão da transposição para o direito interno das directivas comunitárias n.º 79/409/CEE, do Conselho, de 2 de Abril (directiva aves), e n.º 92/43/CEE, do Conselho, de 21 de Maio (directiva habitats), visa “contribuir para assegurar a biodiversidade, através da conservação e do restabelecimento dos habitats naturais e da flora e fauna selvagens num estado de conservação favorável no território nacional, tendo em conta as exigências económicas, sociais e culturais, bem como as particularidades regionais e locais”.

De acordo com o citado diploma, as águias imperiais ibéricas, além de constituírem uma espécie de ave de interesse comunitário cuja conservação requer a designação de zonas de protecção especial, constituem também uma espécie prioritária.

Nos termos do art. 11.º, n.º 1, al. a) do diploma, é proibido capturar, abater ou deter estes espécimes, qualquer que seja o método utilizado.

Ora, no caso em apreço, e sem mais delongas, diremos que não resultou provado o preenchimento do crime de danos contra a natureza.

Com efeito, não foi dado como provado que a associação arguida, por intermédio dos seus associados, tivesse utilizado substâncias contendo “Aldicarb” para controlo de predadores na Zona de Caça Associativa da Figueirinha, Alcaria do Coelho, sob sua gestão, e que foram causa da morte da águia imperial ibérica adulta, macho, que ocupava o ninho de águias imperiais ibéricas da localidade de Figueirinha, São Marcos da Ataboeira, concelho de Castro Verde, e que era o progenitor de uma águia juvenil nascida na primavera desse ano de 2013, que também veio a morrer, por causas não apuradas.

Não se provou, outrossim, que o referido ninho e as três águias encontradas mortas nos dias 30 e 31 de Julho, e 30 de Outubro de 2013, se encontrassem na Zona de Caça Associativa da Figueirinha, Alcaria do Coelho, concessionada à associação arguida.

Face ao exposto, não estando preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal do crime de danos contra a natureza, impõe-se o juízo absolutório do crime de danos contra a natureza imputado à arguida “Associação de Caçadores e Pescadores ‘X’”, sendo que também não resulta dos factos provados a prática de qualquer outro ilícito criminal, que permitisse a alteração da sua qualificação jurídica.
(…) »

Cumpre agora apreciar e decidir o presente recurso.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso.
É pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

No caso concreto, a assistente e recorrente, Liga Para a Proteção da Natureza (LPN), invoca nulidade da sentença recorrida por omissão de pronúncia, nos termos da al. c) do nº1 do artigo 379º CPP, porquanto o tribunal a quo não se pronunciou sobre a prática pela arguida de um crime previsto no artigo 278.º do Código Penal, ex vi do artigo 11º do mesmo diploma, por morte da raposa mencionada na factualidade provada, através de métodos de controle de predadores ilegais, e, subsidiariamente, de um crime previsto no artigo 30.º da Lei da caça.

É esta a questão suscitada pela assistente recorrente, sendo certo que o senhor Procurador-Geral Adjunto nesta Relação entende que sempre se verificaria prescrição do procedimento criminal.

Vejamos.

2. Decidindo
2.1. Antes de mais, importa ter bem presente que o tribunal a quo absolveu a arguida da prática de um crime de Danos contra a natureza p. e p. pelo art. 278º do C.Penal, e não de 3 ou 4 crimes desta natureza, contrariamente ao referido pela recorrente.

Na verdade, apesar de a Associação recorrente referir em A) das suas conclusões de recurso que a Associação arguida foi absolvida da prática de quatro daqueles crimes e de ter requerido a abertura de instrução por 3 daqueles crimes, a arguida foi pronunciada apenas por um crime «… e não pela prática de três crimes já que sendo este um crime de perigo comum, e o bem jurídico a preservação da natureza, o número de animais mortos apenas relevará em termos de ilicitude e influenciará a pena, eventualmente a aplicar.», conforme se explica no despacho de pronúncia (cf. fls 911).

Assim, independentemente de não se compreender o motivo pelo qual a assistente requereu a abertura de instrução pela prática de 3 crimes (sendo certo que eram quatro os animais mortos mencionados no RAI), a verdade é que a Associação arguida foi pronunciada pela prática de um crime de Danos contra a natureza p. e p. pelo art.278º do C. Penal pelos factos relativos aos quatro animais encontrados, pois como se diz no despacho de pronúncia a pluralidade de animais não implicava pluralidade de incriminações.

Quatro animais, incluindo a raposa encontrada morta em causa no presente recurso, pois consta dos pontos 19 e 20, da factualidade provada (tal como constava já dos pontos de facto 8 e 9, do despacho de pronúncia), que na Zona de Caça Associativa da Figueirinha, Alcaria do Coelho, no dia 3 de agosto de 2013 foi encontrada morta uma raposa, atingida na cabeça por chumbos disparados por uma caçadeira, perto da caixa-armadilha destinada a carnívoros, contendo dois iscos, factos estes que foram objeto das seguintes considerações do tribunal a quo em sede de apreciação crítica da prova:

- « (…) Em relação à caixa-armadilha e à raposa encontrada morta, não há como ignorar o facto de elas terem sido encontradas na zona de caça concessionada à arguida na altura em que as duas primeiras águias apareceram mortas, permitindo concluir que a associação estava a realizar acções de controlo de predadores no território da sua zona de caça. Quanto a estes factos o Tribunal valorou os depoimentos das testemunhas RL, RS, CC, em conjugação com a seguinte prova documental: auto de notícia de fls. 3 a 5; autos de exame directo e avaliação de fls. 6 e 26; imagens de fls. 7 a 9, e 25; auto de apreensão de fls. 13. Apesar de o presidente da direcção da associação arguida declarar que se encontrava de baixa médica durante esse Verão de 2013 – situação confirmada pelas testemunhas da contestação penal –, e de que não podia ter sido ele a colocar ali aquela caixa-armadilha e a abater a raposa, o certo é que quem colocou aquela caixa-armadilha nos terrenos da sua zona de caça só podia ser alguém interessado no controlo de predadores dentro daquele território, ou seja, só podia ter sido um associado, fazendo com que a infracção fosse imputada à associação de caçadores.»

Ora, apesar de este trecho da sentença recorrida inculcar a ideia de que o tribunal a quo entendeu ser a arguida penalmente responsável pela morte daquela raposa, pois este era um dos factos em que o despacho de pronúncia assentava a imputação à arguida de um crime de Danos contra a natureza, como aludido, a verdade é que a sentença recorrida, que absolveu a arguida do crime p. e p. pelo art. 278º do CPP, não voltou a referir-se à raposa que fora encontrada morta e à relevância penal que parece reconhecer-lhe na apreciação crítica da prova, sem que resulte claro qual a posição do tribunal a quo relativamente à incriminação da Associação por aqueles factos, assumida no despacho de pronúncia.

Incorreu, assim, no vício de contradição insanável na fundamentação e também entre esta e a decisão, nos termos do art. 410º nº2 b), o que implicará o seu reenvio para novo julgamento, ainda que parcial, nos termos do art. 426º, ambos do CPP.

Sucede, porém, que a encontrar-se prescrito o procedimento criminal por tais factos, como desenvolvidamente se refere no parecer do senhor Procurador-geral Adjunto nesta Relação, o reenvio do processo constituiria ato inútil que se impõe evitar.

2.2.Vejamos então, se assim é.

Nos termos das disposições conjugadas dos nºs 1 a) e 5, do art. 278º do C.Penal, quem, não observando disposições legais, regulamentares ou obrigações impostas pela autoridade competente em conformidade com aquelas disposições, eliminar, destruir ou capturar exemplares de espécies protegidas da fauna ou da flora selvagens ou eliminar exemplares de fauna ou flora em número significativo, por negligência é punido com pena de prisão até 2 anos ou pena de multa até 360 dias, sendo certo que o artigo 30.º da Lei da Caça (Lei 173/99 de 21 setembro, atualizada pelo DL 2/2011 de 6.01), cuja aplicação é preconizada pela recorrente a título subsidiário, prevê pena de prisão até 6 meses ou pena de multa até 100 dias.

Assim sendo, é de 5 anos (art. 118º nº 1 c), C Penal), o prazo de prescrição do procedimento criminal correspondente ao crime imputado à arguida no despacho de pronúncia, sobre o qual o tribunal a quo terá que pronunciar-se, independentemente da pretensão subsidiária da recorrente.

Não se conhecendo a data em que o animal foi morto, o prazo prescricional de 5 anos pela morte daquele animal, iniciou-se em 3.08.2013, data em que foi encontrada a raposa morta, de acordo com o RAI, o despacho de pronúncia e a sentença recorrida.

Conforme se constata dos autos de inquérito, que tiveram início em 01.08.2013, a Associação de Caçadores e Pescadores “X” não foi autonomamente constituída nos autos como arguida, até que em 19.09.2014 foi apresentado o RAI pela assistente (fls 337), data em que aquela Associação assumiu a qualidade de arguida por mero efeito do RAI, nos termos do art. 57º nº1 CPP.

Uma vez que o art. 121º nº1 a) do C.Penal determina que a prescrição do procedimento criminal interrompe-se com a “constituição de arguido” e que não foi feita formalmente nos autos, por OPC ou autoridade judiciária, a comunicação oral ou escrita com que se opera aquela, nos termos do nº2 do art. 58º CPP, põe-se a questão de saber se deve considerar-se ter havido constituição de arguido para efeitos de interrupção do prazo prescricional, com a mera apresentação de RAI ou em momento posterior.

Ora, antes de mais, distinguindo os artigos 57º e 58º, do CPP, entre aquisição da qualidade de arguido por mero efeito da dedução de acusação ou requerimento de instrução, e constituição de arguido, entendemos dever interpretar-se estritamente a referência do art. 121º/1 a) do C.Penal à constituição de arguido, pelo que o prazo de prescrição não se interrompe com a mera aquisição da qualidade de arguido nos termos do art. 57º nº1 CPP.

Para além do elemento literal, vale, inter alia, o elemento sistemático (muito) próximo, pois todas as causas de interrupção previstas no art. 121º do C. Penal assentam no conhecimento pelo arguido do ato processual em causa (à exceção da declaração de contumácia, por razões óbvias), e este só se verifica com a constituição de arguido e não com a aquisição automática da qualidade de arguido por via da dedução de acusação ou da apresentação de RAI (art. 57/1 CPP).

Assim, apesar de a constituição de arguido não se encontrar sujeita a forma vinculada, pois o art. 58º /2 CPP prevê que a mesma tenha lugar através de comunicação oral ou escrita, e não se prevendo igualmente forma especial para o documento escrito a entregar após a constituição de arguido, nos termos do art. 58º nº4 do CPP, a verdade é que, no caso presente, não consta dos autos que após a apresentação de RAI pela assistente, tenham sido comunicados e, se necessário, explicados, à Associação de Caçadores e Pescadores X quais os direitos e deveres processuais referidos no art. 61º, como determinado no art. 58º nºs 2 e 4, todos do CPP, pelo que não pode considerar-se o prazo prescricional iniciado em 03.08.13, interrompido com a constituição de arguido, nos termos do art. 121º nº 1 a) do C. Penal.

Por outro lado, tão pouco pode considerar-se que a prestação de TIR pela Associação arguida - que teve lugar em 19.05.2015 (cf. fls 428) -, satisfaz a exigência de comunicação formal prevista no art. 58º nºs 2 e 4 do CPP para a constituição de arguido, porquanto o TIR não inclui indicação dos direitos reconhecidos ao arguido no art. 61º do CPP, mas apenas dos seus deveres. Assim, mesmo que considerássemos ultrapassável a exigência de constituição prévia de arguido expressa no art. 192º para todas as medidas de coação (incluindo o TIR), sempre a omissão de comunicação documentada dos direitos reconhecidos ao arguido pelo art. 61º do CPP, impedem que o TIR possa substituir a comunicação a que se reportam os referidos nºs 2 e 4 do art. 58º do CPP.

Concluímos, pois, na linha do entendimento jurídico assumido pelo senhor PG-A nesta relação, que Associação de Caçadores e Pescadores X não foi constituída arguida nos presentes autos, para efeitos do disposto na al. a) do nº1 do art. 120º do C.Penal, pelo que o prazo prescricional de 5 anos iniciado em 02.08.2013 apenas se interrompeu com a notificação da decisão instrutória que pronunciou a arguida, nos termos do art. 121º nº1 b) do C.Penal, data em que igualmente se iniciaria a suspensão da prescrição prevista na al. b) do nº1 do art. 120º CPP.

Uma vez que a arguida foi notificada do despacho de pronúncia em 28.09.2016 (fls 917), ainda não se completara nessa data, nem se mostra atualmente decorrido, o prazo prescricional de 5 anos, iniciado em 03.08.2013, pelo que o procedimento criminal pelos factos relativos à raposa encontrada morta naquela data, conforme descrito sob os nºs 19 e 20 da factualidade provada, não se encontra prescrito.

2.3. Assim sendo, verificando-se o vício de contradição insanável entre a fundamentação e entre esta e a decisão, previsto na al. b) do nº2 do art. 410º do CPP, como vimos, procede o recurso interposto pela Assistente e ordena-se o reenvio dos autos para novo julgamento parcial, nos termos do art. 426º do CPP

III. Dispositivo

Nesta conformidade, acordam os Juízes na 2ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso, determinando-se o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à incriminação da Associação arguida pelos factos descritos sob os nºs 19 e 20 da factualidade julgada provada na sentença recorrida.

Sem custas.

Évora, 12.03.2019

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(António João Latas)

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(Carlos Jorge Berguete