Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
384/13.0TVPRT.E1
Relator: ACÁCIO NEVES
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL POR ACIDENTES DE VIAÇÃO
PRESCRIÇÃO DO DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 03/26/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Com a publicação da Lei nº 24/2007, de 18.07, face às presunções de culpa estabelecidas no seu art. 12º, é de considerar que a responsabilidade civil das concessionárias de auto-estradas tem natureza extracontratual.
Sumário do Relator
Decisão Texto Integral: Procº. Nº. 384/13.0TVPRT.E1 (1ª Secção Cível)
Acordam nesta Secção Cível os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

(…) Automóveis, S.A., intentou, em 21.05.2013, acção declarativa ordinária contra (…), (…) – Auto-Estradas de Portugal, (…) – Sociedade de Construções, S.A., entretanto incorporada, por fusão, na Sociedade de Construções (…), S.A. e (…) – Sociedade de Empreitadas, S.A., pedindo a condenação dos réus no pagamento da quantia de € 32.251,03 (€ 25.295,97 relativos à reparação do veículo + € 5.455,06 de juros de mora vencidos desde 30.12.2007 + € 1.500,00 de desvalorização do veículo), acrescida de juros de mora vincendos, até integral pagamento.

Alegou, para tanto e em resumo, que no dia 08.06.2007 ocorreu um acidente de viação no qual interveio um seu veículo automóvel, conduzido pelo 1º réu (e que lhe havia sido cedido pela autora, em substituição de um veículo que aquele mandara reparar nas instalações desta) na auto-estrada A1, concessionada à ré (…), num local em que, por contrato com a ré (…), as 3ª e 4ª rés procediam a obras, e que o acidente consistiu no despiste da viatura e se terá devido ao facto de o condutor do veículo ter embatido em perfis móveis de plástico (barreiras de plástico) que se encontravam na faixa de rodagem. Citados, contestaram os réus. A ré (…) invocou a prescrição do direito da autora, por estar em causa responsabilidade extracontratual, tendo já decorrido o prazo de 3 anos a que alude o art. 498º do C. Civil, invocou a incompetência territorial do Tribunal Judicial da Comarca do Porto (onde foi intentada a acção – excepção essa que veio a ser julgada procedente, sendo os autos remetidos à Comarca de Alcanena, área onde teve lugar o acidente) e defendeu-se por impugnação. E requereu a intervenção acessória da Companhia de Seguros (…) Portugal, S.A., para quem havia transferido a sua responsabilidade.

Contestou também a ré Sociedade de Construções (…), S.A., a qual se defendeu por impugnação e deu por reproduzida a contestação da ré (…), à qual aderiu integral e plenamente.

Contestou ainda o réu (…), o qual, para além de declinar a sua responsabilidade na produção do acidente, invocou igualmente a prescrição do direito da autora.

Contestou, por último, a ré (…), a qual também invocou a prescrição do direito da autora, para além de se defender por impugnação.

E requereu também a intervenção da Companhia de Seguros (…), S.A., para quem transferiu a responsabilidade civil decorrente da sua actividade.

A autora respondeu às contestações, pugnando pela falta de verificação das excepções invocadas.

Seguidamente foi proferido despacho a deferir a intervenção acessória provocada da Companhia de Seguros (…) e (…).

A seguradora (…), para além de reproduzir a contestação da (…), invocou a ilegitimidade da ré (…) e bem assim a sua ilegitimidade, invocou a prescrição do direito da autora e defendeu-se por impugnação.

A seguradora (…), por sua vez, invocou igualmente a prescrição do direito da autora, para além de se defender por impugnação.

A autora respondeu a tais articulados, pugnando pela improcedência das invocadas excepções.

Foi designada e teve lugar uma audiência prévia, no âmbito da qual foi proferido despacho-saneador, no qual se julgou improcedente a invocada excepção de ilegitimidade e se julgou procedente a invocada excepção de prescrição, absolvendo-se os réus e intervenientes do pedido.

Inconformada, interpôs a autora o presente recurso de apelação, em cujas alegações, pedindo a revogação da decisão recorrida e o prosseguimento dos autos, apresentou as seguintes conclusões:

1ª - Consubstancia um contrato de comodato o negócio mediante o qual a ora recorrente confia um veículo de substituição ao 1º réu, enquanto repara um outro veículo - propriedade do mesmo 1º réu – na sua oficina, que lhe foi entregue para o efeito ainda que sem retribuição, mediante a assinatura por aquele de um termo de responsabilidade no qual figura:

a. Que o 1º réu declara assumir total responsabilidade por todos os actos não cobertos pelo seguro da viatura, ... “nomeadamente ao que se refere a multas, coimas, contra-ordenações em geral e todo o tipo de pagamentos legais ...” que viessem a ser reclamados por força da utilização, circulação e parqueamento da viatura (conforme doc. nº 1 que ora se junta e que aqui se dá por integralmente reproduzido para os legais fins).

2ª - Considerando que constitui obrigação do comodatário, nomeadamente, guardar e conservar a coisa emprestada, não fazer dela uma utilização imprudente e restitui-la findo o contrato (Artigo 1135º do CC), bem como suportar as despesas de manutenção da coisa (art. 1137º/3 do CC), este é responsável se a coisa emprestada perecer ou se deteriorar casualmente, se estava no seu poder tê-lo evitado, ainda que mediante o sacrifício de coisa própria de valor não superior (Artigo 1136º do CC).

3ª - Está-se perante responsabilidade contratual sempre que por erro ou omissão de quem é parte num contrato se verifique incumprimento do mesmo.

4ª - Neste quadro, subsumindo-se esta situação jurídica a um comodato, a responsabilidade pelo seu incumprimento tem natureza contratual, pelo que o respectivo prazo prescricional é de 20 anos (art. 309º do CC), sendo inaplicáveis os arts. 498º e 499º do CC, destinados à responsabilidade aquiliana.

5ª - A norma reguladora do prazo de prescrição da responsabilidade civil, ou seja, o art. 498º do CCivil que prevê um prazo curto de três anos é apenas aplicável à dita responsabilidade civil aquiliana e não à responsabilidade contratual, posição que é sustentada pela generalidade da doutrina (v. A Varela e P de Lima, Anotado I Vai, 4ª ed, 505, Jorge Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, Vol. I, 1990, 530/531, Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, 3ª ed., 405 e Miguel Teixeira de Sousa, Concurso de Títulos de Aquisição e de Prestação, 1988) recolhendo adesão amplamente maioritária da jurisprudência (cfr Acs do Supremo de 20/06/1975, BMJ 2482, 402, de 5/04/1979, RU 112º, 285, de 19/03/1985, BMJ 345º, 405, de 25/08/1986, BMJ 358º, 570 e de 27/05/ 2003, CJ/S de 2003, Tº IIº, 78 e desta Relação de 15/10/91, CJ T4º, 108 e de 24/03/ 1992, BMJ 415º, 739, podendo ainda citar-se o Ac da RP de 31/10/2002, CJ 2002, Tº42, 195).

6ª - Assim sendo, deverá a douta sentença proferida pelo tribunal a quo ser revogada, seguindo o processo os seus ulteriores termos com vista a apurar se o 1º Réu podia ter evitado o acidente, ainda que mediante o sacrifício de coisa própria de valor não superior, sendo que sobre o mesmo impende esse ónus da prova.

7ª - Destarte, foram violados pelo tribunal a quo os arts. 309.º, 1135.º, 1136.º e 1137.º/3 do CC, que deveriam ter sido aplicados in casu, e não o foram.

Contra-alegaram a interveniente (…) e bem assim o réu (…), pugnando pela improcedência do recurso.

Dispensados os vistos, cumpre decidir:

Em face do conteúdo das conclusões das alegações da apelante, enquanto delimitadoras do objecto do recurso, a questão de que cumpre conhecer consiste em saber se se verifica ou não a prescrição do direito da autora, ora apelante.

Apreciando:

Conforme se alcança da decisão recorrida o tribunal considerou como verificada a excepção peremptória de prescrição que havia sido invocada por todos os réus e intervenientes, defendendo para tanto que, contrariamente ao que defendera a autora, a responsabilidade dos réus tinha natureza extracontratual e não contratual.

E daí a aplicação ao caso dos autos, e em relação a todos os réus e intervenientes, do prazo de prescricional de 3 anos, a que alude o art. 498º do C. Civil.

Embora a recorrente peça, a final das suas alegações de recurso, a revogação da decisão recorrida, o certo é que, conforme se alcança das respectivas conclusões (mormente da conclusão 6ª), a mesma apenas questiona o entendimento do tribunal “a quo” e a decisão recorrida na parte respeitante ao 1º réu, defendendo que em relação a este, tendo sido invocado um contrato de comodato, a sua responsabilidade tem natureza contratual.

Assim, é manifesto que, em relação aos demais réus, a recorrente acaba por aceitar a tese (e consequente decisão) do tribunal “a quo”, no sentido, quanto aos mesmos, estar em causa responsabilidade extracontratual e, por consequência a verificação da prescrição (de 3 anos).

É de resto a posição que se nos afigura ser hoje em dia dominante – e que acolhemos.

Com efeito, com a publicação da Lei nº 24/2007, de 18.07, face às presunções de culpa estabelecidas no seu art. 12º, é de considerar que a responsabilidade civil das concessionárias de auto-estradas tem natureza extracontratual (vide, para além da jurisprudência mencionada na decisão recorrida, os acórdãos do STJ de 09.09.2008, em que é relator Garcia Calejo, e desta Relação de 30.04.2009, em que é relator Manuel Marques, de 27.10.2010, em que é relator Bernardo Domingos, e de 31.05.2012, em que é relator Mata Ribeiro, todos in www.dgsi.pt).

Importa assim verificar se, atenta a forma como foi configurada a acção, a responsabilidade civil do 1º réu, (…):

Conforme se alcança da decisão recorrida, o tribunal considerou que os factos concretos que a autora alegou na petição inicial e que servem de fundamento ao efeito jurídico pretendido contra o 1º réu se situam réu no âmbito da responsabilidade civil extracontratual (a que a autora explicitamente enunciou naquela peça processual), pelo que em relação ao 1º réu é aplicável o prazo prescricional de três anos previsto no artigo 498º, n.º 1 (por remissão do artigo 499º) do Código Civil.

É contra tal entendimento que se manifesta a autora apelante, defendendo que, em relação ao 1º réu, o que está em causa é uma situação de responsabilidade contratual – a que corresponde o prazo prescricional de 20 anos, previsto no art. 309º do C. Civil, sendo inaplicáveis os arts. 498º e 499º do mesmo diploma, destinados à responsabilidade aquiliana.

E isto porque, segundo a mesma, relativamente a tal réu, o pedido formulado é feito com base na responsabilidade emergente de um contrato de comodato.

É certo que a mesma na p.i. alegou que “por ocasião da reparação do veículo automóvel do 1º réu, a autora cedeu a este o veículo… por um período correspondente ao da reparação… (art. 1º) e que “tal cedência por cortesia da autora visava facilitar a deslocação do 1º réu enquanto a sua viatura era reparada (art. 2º) e que “foi emitido um termo de responsabilidade…que foi assinado pelo Exmo Sr. (…) em que o mesmo declarou assumir total responsabilidade por todos os actos não cobertos pelo seguro,… “nomeadamente no que se refere a multas, coimas, contra-ordenações em geral e todo o tipo de pagamentos legais…” que viessem a ser reclamados por força da utilização, circulação e parqueamento da viatura” (art. 16º).

E mais alegou que “responsabilizou-se o 1º réu à entrega da viatura nas exactas condições em que a mesma lhe havia sido entregue, mormente com total aptidão para a circulação, responsabilizando-se ainda pro quaisquer despesas inerentes à sua utilização, à circulação e parqueamento” (art. 19º).

É assim manifesto que a alegada cedência do veículo ao 1º réu, por parte da autora integra um contrato de comodato, enquanto “contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir” (art. 1129º do C. Civil) – do qual resulta o dever de restituição integral da coisa (restitutio in integrum).

E também é certo que, constituindo obrigação do comodatário, nos termos do art. 1135º do mesmo diploma (para além do mais, ora sem interesse) “guardar e conservar a coisa emprestada;…não fazer dela uma utilização imprudente;… restituir a coisa, findo o contrato”, estabelece o n.º 1 do art. 1136º do mesmo diploma que “quando a coisa emprestada perecer ou se deteriorar casualmente, o comodatário é responsável se estava no seu poder tê-lo evitado, ainda que mediante o sacrifício de coisa própria de valor não superior”.

Tal disposição estabelece assim o princípio de que, em caso de deterioração da coisa (como é o caso da deterioração resultante de acidente de viação, relativamente ao empréstimo de viatura automóvel) recai sobre o comodatário a obrigação de indemnizar o comodante no valor correspondente à deterioração, ou seja, no valor dos danos da coisa.

E é inquestionável que tal responsabilidade tem natureza contratual, porque decorrente da violação dos supra referidos deveres contratuais.

Todavia, tal obrigação deixa de existir se o comodatário tiver procedido a uma diligente utilização da coisa, sendo certo que é sobre o comodatário que recai o ónus de provar que agiu de modo diligente ou prudente (vide acórdãos desta Relação de 03.02.1997, in CJ 1997, II, 156) e da Relação do Porto de 25.02.2002, in CJ, 2002, I, 214).

É o caso de se provar que a deterioração ocorreu por culpa exclusiva de terceiros.

Todavia, o certo é que, nos termos em que a autora configurou a acção, foi precisamente por culpa (omissão de deveres na sinalização das obras na auto estrada) das restantes rés que o acidente (de que resultaram danos para o veículo) teve lugar – e daí a razão pela qual estas foram demandadas.

E, assumindo a culpa das sociedades rés (vide artigos 96º e seguintes da p.i.) a autora coloca a responsabilidade do 1º réu apenas “no quadro da responsabilidade objectiva ou pelo risco, que nos remete para o regime dos acidentes causados por veículos previsto no nº 1 do art. 503º do C. Civil…” (vide arts. 90º e sgs da p.i.).

Basta ver a forma como foram descritas as circunstâncias em que decorreu o acidente.

E, nesse sentido, a autora descarta mesmo de forma expressa a culpa do 1º réu quando (art. 90º) afirma “… não obstante a possível culpa que poderia o 1º réu ter tido e não teve, enquanto condutor do veículo…”

Desta forma, ao aceitar expressamente que o 1º réu (condutor) não teve culpa na produção do acidente e que essa culpa recai sobre as demais rés (e ao invocar expressamente que a responsabilidade do 1º réu assentava apenas na responsabilidade objectiva ou pelo risco nos termos do n.º 1 do art. 503º do C. Civil), a autora aceitou desde logo ter havido por parte do 1º réu uma utilização (condução) diligente do veículo e que a responsabilização deste não decorria da violação das obrigações emergentes do contrato de comodato, assentando apenas na responsabilidade objectiva.

Nestes termos, em consonância com a posição defendida pelo tribunal “a quo”, haveremos de concluir que, face aos termos em que foi configurada a acção, relativamente ao 1º réu, os factos e fundamentos alegados na p.i., com vista ao efeito jurídico pretendido contra o mesmo, se situam no âmbito da responsabilidade civil extracontratual – ao qual é aplicável o prazo prescricional de três anos previsto no artigo 498º, nº 1 do C. Civil, “ex vi” do art. 499º do mesmo diploma – prazo esse que foi largamente ultrapassado (o que nem sequer é posto em causa pela apelante).

Improcedem assim as conclusões do recurso. Em síntese:

Com a publicação da Lei nº 24/2007, de 18.07, face às presunções de culpa estabelecidas no seu art. 12º, é de considerar que a responsabilidade civil das concessionárias de auto-estradas tem natureza extracontratual.

O nº 1 do art. 1136º do C. Civil estabelece assim o princípio de que, no âmbito do contrato de comodato, em caso de deterioração da coisa recai sobre o comodatário a obrigação de indemnizar o comodante no valor correspondente à deterioração, ou seja, no valor dos danos da coisa, tendo tal responsabilidade natureza contratual, porque decorrente da violação dos supra referidos deveres contratuais.

Todavia, tal obrigação deixa de existir se o comodatário tiver procedido a uma diligente utilização da coisa, sendo certo que é sobre o comodatário que recai o ónus de provar que agiu de modo diligente ou prudente – o que é o caso de se provar que a deterioração ocorreu por culpa exclusiva de terceiros.

Tendo a autora aceite expressamente que o 1º réu, comodatário (condutor do veículo), não teve culpa na produção do acidente (e auto-estrada) e que essa culpa recai sobre as demais rés e ao invocar expressamente que a responsabilidade do 1º réu assentava apenas na responsabilidade objectiva ou pelo risco nos termos do nº 1 do art. 503º do C. Civil), a autora aceitou desde logo ter havido por parte do 1º réu uma utilização (condução) diligente do veículo e que a responsabilização deste não decorria da violação das obrigações emergentes do contrato de comodato, assentando apenas na responsabilidade objectiva.

E assim, mesmo em relação ao 1º réu há também que atender ao prazo prescricional de 3 anos: Termos em que se acorda em julgar improcedente a apelação e em confirmar a decisão recorrida.

Custas pela apelante.

Évora, 26 de Março de 2015

Acácio Luís Jesus das Neves

José Manuel Bernardo Domingos

João Miguel Ferreira da Silva Rato