Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
258/14.8TBELV.E1
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANO BIOLÓGICO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 05/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
I - A reapreciação do julgamento de facto pela Relação destina-se primordialmente a corrigir invocados erros de julgamento que se evidenciem a partir dos factos tidos como assentes, da prova produzida ou de um documento superveniente, por forma a imporem decisão diversa.
II - Significa esta formulação legal que não basta que a prova produzida nos autos permita decisão diversa, necessário é que a imponha. Por isso se exige ao Recorrente que motive as alegações de recurso, dizendo as razões que determinam, em seu entender, diverso juízo probatório, para que a Relação possa aquilatar se os meios de prova por aquele indicados impõem ou não decisão diversa da recorrida quanto aos concretos pontos de facto impugnados.
III - A convicção do Tribunal, quer de primeira instância, quer da Relação, assenta na apreciação conjugada de todos os meios de prova, sendo evidentemente apreciada segundo as regras de experiência e a livre convicção do julgador, de acordo com um exame crítico de todas as provas produzidas, quando não estamos em presença de prova vinculada.
IV - Não tendo a Apelante colocado em crise a credibilidade dos demais meios de prova em que se formou a convicção do julgador, e fundando a sua pretensão de modificação da matéria de facto, num único depoimento, tal não impõe decisão diversa da recorrida.
V - De facto, apreciada toda a prova oral produzida, cotejada com os demais elementos de prova documental e pericial juntos aos autos, e todos eles sopesados de harmonia com as regras da experiência comum, algumas afirmações produzidas por alguma(s) testemunha(s) não basta(m) para firmar uma convicção segura do tribunal de que os factos da vida tenham ocorrido como relatados ou percepcionados por esse e não por outro depoente.
VI - A limitação funcional, ou dano biológico, em que se traduz uma incapacidade é apta a provocar no lesado danos de natureza patrimonial e de natureza não patrimonial. Por isso que, em situações similares à presente, temos cindido a apreciação do quantum indemnizatório devido nas vertentes do dano biológico e dos danos não patrimoniais, ambas avaliadas segundo a equidade.
VII - Precisamente por ser com recurso à equidade que os tribunais se esforçam por encontrar a justa indemnização que o caso concreto demanda, apesar de não ter sido essa a opção efectuada em primeira instância, que sopesou conjuntamente os danos sofridos pela Recorrente em decorrência do acidente de viação em apreço, o certo é que o julgador chegou a um resultado que se mostra em consonância com os padrões indemnizatórios médios que os tribunais, mormente os superiores, têm arbitrado para casos com contornos e consequências semelhantes às dos presentes autos, pelo que, a apelação não pode proceder.
Decisão Texto Integral:
Processo n.º 258/14.8TBELV.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre[1]

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Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[2]:

I - RELATÓRIO
1. AA, instaurou a presente acção declarativa, com processo comum, contra BB, Companhia de Seguros, S.A, actualmente CC - Companhia de Seguros, S.A., pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de 251.555,15€, acrescida de juros de mora contados desde a data de citação até efectivo e integral pagamento, sendo 250.000,00€ a título de danos não patrimoniais e o resmanescente a título de danos patrimoniais, presentes e futuros, bem como na condenação da R. a suportar todas as despesas médicas, medicamentosas, de transporte e alimentação, enquanto for possível a evolução clínica normal.
Em fundamento alegou, em síntese, ter sido interveniente em acidente de viação que se deveu exclusivamente à conduta do condutor do veículo segurado na ré, que decidiu ultrapassar o veículo que seguia à sua frente, invadindo a faixa contrária, onde seguia a A, embatendo no veículo conduzido por esta, projectando-o para a direita, para fora da estrada, onde se imobilizou numa vala adjacente.
Mais alegou que em consequência daquele embate sofreu e sofrerá as perdas patrimoniais e os danos não patrimoniais que descreveu e cujo ressarcimento reclama.

2. Contestou a R., por impugnação, alegando no essencial o desconhecimento da matéria relativa ao acidente e aos danos patrimoniais invocados, aduzindo que o seu segurado alega ter sofrido uma perda súbita de consciência, e que é exagerado o valor reclamado a título de danos não patrimoniais, concluindo pela improcedência da acção.

3. Realizada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, procedeu-se à identificação do objecto do litígio e enunciaram-se os temas de prova.

4. Realizada a audiência final, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
«julgo a acção parcialmente procedente, porque provada apenas em parte, e, em consequência, decido condenar a CC – Companhia de Seguros, S.A. (anteriormente BB - Companhia de Seguros, S.A.), no pagamento à A. AA da quantia de € 55.000 (cinquenta e cinco mil euros), a titulo de danos não patrimoniais, acrescido de juros calculados à taxa legal desde a data da presente decisão e até efectivo e integral pagamento, absolvendo-a do demais peticionado».

5. Inconformada, a Autora apelou, finalizando a sua minuta recursória com as seguintes conclusões:
«I-) O pedido formulado nos presentes autos, a título de danos não patrimoniais, é consequência todo ele do grave acidente de viação de que a apelante foi vítima - em consequência do descrito acidente a Autora sofreu fratura complexa da extremidade distal do rádio direito e fratura dupla do fémur esquerdo, nomeadamente a nível do colo e diafisária na união do terço médio com o terço proximal do fémur, traumatismo dos membros superiores e inferiores e do abdómen, que determinaram 551 dias para consolidação com afectação da capacidade de trabalho geral (180 dias), e 551 dias com afectação da capacidade de trabalho profissional, perna esquerda partida, no fémur e no cólo do fémur, pulso direito partido, queimaduras no pé esquerdo, múltiplas nódoas negras no corpo, costelas for ado sítio; realização de seis operações, transfusões de sangue, permanência nos cuidados intensivos, drenada abaixo da axila direita, comer com máscara de oxigénio, entubação pelo nariz, higienização na cama com necessidades a serem feitas numa arrastadeira, realização de fisioterapia, necessidade de ajuda permanente de terceira pessoa durante largo tempo, perda de contacto com o filho, necessidade de mudar de residência do campo para a cidade com grande desgosto, toma de diversa medicação, desgosto pelo corpo disforme que passou a ter e em consequência disso termo da relação afectiva com grave prejuízo de afirmação pessoal, stresse pós traumático, passando a padecer de síndrome de ansiedade e passando a ser tratada em psiquiatria com o diagnóstico de reação ansio-depressiva a acontecimentos de vida traumáticos, insegurança, humor depressivo e lábil, baixa auto-estima, e necessidade de acompanhamento psicológico e psiquiátrico no futuro com recurso a fármacos.
II-) Do qual resultou a condenação de DD, condutor de outro veículo envolvido no acidente de viação.
III-) O Tribunal deu como não provados, no que ao presente recurso interessa, os factos constantes dos factos não provados em 9 e 10.
IV-) Tal juízo merece censura perante a prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão julgamento, relativamente à qual o tribunal fez tábua rasa no que a ela concerne.
V-) Quanto ao final do seu relacionamento ter tido causa no acidente e nas consequências que o mesmo causou na recorrente (Pontos 9 e 10) o testemunho da irmã da recorrente, que sempre foi sua confidente, revela a angústia de uma pessoa que se sentiu, como ainda hoje sente “Defeituoso(a)(...)disforme”.
VI-) Fica patente neste relato a dor que a recorrente sente em relação ao seu corpo, hoje marcado pelas cicatrizes, cujas marcas não só externas como internas a impedem de viver a sua vida de forma natural
VII-) Foi com base neste mesmo sentimento que afastou seu companheiro de 20 anos, pois como narra a sua irmã “(...)ficou revoltada(...) não deixava, ela não se conseguia, devido as marcas que ela tem no corpo, ela não se conseguia despir na frente dele(...) aquilo mexeu muito com ela, e ela começou a afastar-se do marido”.
VIII-) Tal realidade torna-se ainda mais clara quando, questionada pelo mandatário da apelante se a sua irmã teria secado, afirma: “Completamente(...)ela não quer ninguém” afiançando ainda que a apelante ” (...) diz que não quer, ela diz “eu nunca mais vou conseguir estar com uma pessoa””. Como assim, a recorrente em parte “morreu”; parte dela é uma “morta-viva”…
IX-) Mais, o tribunal poderia ainda ter aferido dos pontos 51, 54, 60 e 64 da factualidade provada o que aqui se alega e, em consequência disso, valorizar o sofrimento psíquico, motivado pelas ofensas à imagem, sentimentos, intimidade, sexualidade, ou a mais direitos pessoalíssimos da recorrente.
X-) Deveria a douta sentença ter considerado que o final do relacionamento da recorrente foi causado directa e necessariamente pelo acidente que está na génese deste processo, e valorizado o padecimento dele decorrente.
XI-) Antes do acidente havia relação afectiva, de amor; depois deixou de existir, sendo a recorrente uma mulher ainda nova!
XII-) Quanto a conseguir realizar as tarefas de casa com o prazer que anteriormente tinha nas mesmas (Ponto 10) bastava ao tribunal ter cotejado o relato da testemunha Ana … com o manancial de documentação referente às seis intervenções cirúrgicas e às sequelas resultantes do acidente.
XIII-) Resulta, à saciedade, que a recorrente se encontra hoje impossibilitada de poder fazer a vida de casa como anteriormente a fazia, porquanto simples tarefas que impliquem algum esforço, o subir de um mero escadote ou algo tão simples como ajoelhar-se lhe, são muito penosas, se não mesmo inexequíveis.
XIV-) Termos pelos quais, salvo melhor opinião e sempre com o devido respeito, deveria a douta sentença ter dado os pontos 9 e 10 da factualidade como provados.
XV-) Neste seguimento, e considerando que a tese aqui defendida pela recorrente é acolhida, devem ser também alteradas as redacções dos pontos 50 e 55 da matéria de facto dada como provada.
XVI-) Passando o ponto 50 a enunciar “Antes do acidente, cuidava do filho, fazia as refeições, lavava a roupa, passava-a a ferro, limpava a casa, ajudava a mãe; depois do acidente não mais conseguiu realizar tais tarefas domésticas sozinha”;
XVII-) E o 55 que “Tal degradou o relacionamento com o pai do seu filho, e foi causa directa e necessária do fim da relação, não mais tendo mantido como ele relações sexuais e dormindo com ele.”.
XIX-) A obrigação de indemnizar tem como finalidade primária a reconstituição natural, como dispõe o nº 1 do art.º 566 do CC, não sendo esta possível deve fixar-se em dinheiro uma indemnização, realizada por referência à medida da diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem dano.
XX-) In casu estamos peranto danos não patrimoniais, que não são pela sua própria natureza passíveis de reconstituição natural e, em bom rigor, não são indemnizáveis mas apenas compensáveis pecuniariamente.
XXI-) O montante a ser atribuído nestas situações deve ser calculado por juízos de equidade.
XXII-) Tendo-se firmado o entendimento de que, em razão da extrema dificuldade e delicadeza da operação de “quantificação” dos danos não patrimoniais e não obstante a infinita diversidade das situações, dever-se-ão ter presentes os padrões usuais de indemnização estabelecidos pela jurisprudência corrigidos por outros factores em que se atenda à época em que os factos se passaram, à desvalorização monetária, etc.
XXIII-) Realizando então este percurso, conclui-se que tanto a doutrina como a jurisprudência apontam para indemnizações mais elevadas em casos semelhantes ao dos autos.
XXIV-) Atendendo a que a apelante foi alvo de 6 cirurgias bastante complexas em 18 meses, que lhe foi atribuído um quantum doloris de 5 numa escala que vai até 7 e um dano estético fixado em 4 numa escala que vai até 7, como ainda que sofreu prejuízos de afirmação pessoal desconsiderados na sentença em crise, nomeadamente os que se reclamam na primeira parte desta peça processual, a quantia atribuída a titulo indemnizatório de 55.000€ é manifestamente insuficiente.
XXV-) E mesmo que não tenham provimento as pretensões da recorrente, manifestadas na primeira parte da presente peça processual, o que só por mera cautela de patrocínio se considera, continua o valor indemnizatório atribuído a ser insuficiente para ressarcir a recorrente dos danos tal como provados pela douta sentença.
XXVI-) Consequentemente, revogando a sentença no que tange ao quantum indemnizatório e, indemnizando conforme o pedido farão V.Exªs Justiça».

6. A Ré apresentou contra-alegações, pugnando pela confirmação da sentença recorrida.

7. Observados os vistos, cumpre decidir.
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II. O objecto do recurso.
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil[3], é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, evidentemente sem prejuízo daquelas questões cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Assim, vistas as alegações de recurso apresentadas pela Apelante, as questões a apreciar, pela sua ordem lógica, consistem em saber se deve ser modificada a matéria de facto nos termos por si pretendidos; e se, em qualquer caso, atenta a matéria de facto provada, deve concluir-se pela atribuição à Autora de quantum indemnizatório superior ao fixado na sentença recorrida.
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III – Fundamentos
III.1. – De facto
Os factos considerados como provados na sentença recorrida foram os seguintes:
«1 – No dia 20 de Abril de 2011, pelas 17:00 horas, na Estrada Nacional 373, ao Km. 9662, ocorreu um acidente de viação envolvendo os veículos de matrícula …-…-ZM, conduzido por DD, e o veículo de matrícula …-…-ND, conduzido pela sua proprietária, a autora.
2- A autora circulava conduzindo o veículo de matrícula …-…-ND, no sentido Campo Maior/Elvas e, DD, conduzia o veículo de matrícula …-…-ZM, no sentido de Elvas/Campo Maior.
3 - À frente do veículo …-…-ZM, seguiam dois veículos ligeiros e um veículo pesado.
4 - A autora circulava pela hemi-faixa de rodagem direita atento o seu sentido de marcha – Campo Maior/Elvas.
5 - Quando, ao chegar ao km 9,662 da referida Estrada Nacional 373, o condutor do veículo …-…-ZM decidiu ultrapassar o veículo que seguia à sua frente transpondo a marca rodoviária longitudinal contínua (MI) que no local separava as duas hemi-faixas de rodagem ou duas vias de trânsito, saindo da hemi-faixa direita da faixa de rodagem atento o sentido em que circulava – Elvas/Campo Maior – invadindo a hemi-faixa de rodagem esquerda, por onde seguia o veículo de matrícula …-…-ND, nele embatendo na parte lateral esquerda e dianteira esquerda com a parte frontal esquerda do …-…-ZM.
6 – Projectando-o para a direita, atento o respectivo sentido de marcha de …-…-ND, para fora da estada, onde se imobilizou na vala adjacente à faixa de rodagem e, próximo da placa que indicava o fim da vila de Campo Maior.
7 – O tempo estava bom e o piso seco.
8 – No local do embate a via descreve uma recta, com boa visibilidade.
9 – A estrada nacional 373 no local do embate tem 6 metros de largura, com duas vias de trânsito de sentidos opostos, com 3 metros cada e, com pavimento betuminoso.
10 – A estrada estava sinalizada com uma marcha rodoviária contínua (MI) que separa as duas vias de trânsito.
11 - DD, condutor do veículo …-…-ZM, aquando do acidente, conduzia sem atenção e cuidado; invadiu, atento o seu sentido de marcha, a hemi-faixa esquerda de rodagem, por onde passou a circular, não atendendo, como podia e lhe era exigível, que circulavam veículos em sentido contrário com os quais podia colidir, como colidiu.
12 – Por sentença proferida no dia 21 de Março de 2014, no processo 102/11.8GFELV, ainda não transitada em julgado, DD foi condenado pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punível pelo art. 291º, nº 1, al. b), do Código Penal, na pena de 180 dias de multa, à razão diária de €7,00 (sete euros) e pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física negligente, previsto e punível pelo art. 148º, nº1 do Código Penal, na pena de 90 dias de multa, à razão diária de € 7.00 (sete euros), relativamente aos factos subjacentes também à presente acção.
13 – O condutor do veículo …-…-ZM, DD, aquando do acidente, era o seu proprietário, conduzia-o no seu interesse e por sua conta, havendo transferido para a BB, Companhia de Seguros, SA, a responsabilidade civil decorrente da sua utilização, através do contrato titulado pela apólice nº 4580452717.
14- O acidente provocou à autora ferimentos e o seu veículo de matrícula …-…-ND ficou danificado.
15 - Em consequência do descrito acidente a Autora sofreu fractura complexa da extremidade distal do rádio direito e fractura dupla do fémur esquerdo, nomeadamente a nível do colo e diafisária na união do terço médio com o terço proximal do fémur, traumatismo dos membros superiores e inferiores e do abdómen, que determinaram 551 dias para consolidação com afectação da capacidade de trabalho geral (180 dias) e, 551 dias com afectação da capacidade de trabalho profissional.
16 -[4].
17 – Após, a A. foi transportada para o Hospital de Elvas.
18 - Ali chegada, foi constatado que tinha a perna esquerda partida, no fémur e no colo do fémur, o pulso direito partido, queimaduras no pé esquerdo, múltiplas nódoas negras no corpo, costelas fora de sítio.
19 - No dia seguinte foi transferida para o Hospital Distrital de Portalegre, com indicação para ser operada, vindo a ser operada a 24 de Abril.
20 - Na madrugada seguinte à operação, porque muito agitada, foi amarrada à cama e foi sujeita a transfusões de sangue; foi transferida, então, para os cuidados intensivos e, a meio da tarde do dia 25 de Abril foi novamente transferida para a Unidade de Cuidados Intensivos Intermédios.
21 – Nessa altura teve que ser drenada, com dreno colocado abaixo da axila direita, operação realizada sem anestesia, porque tinha que estar a respirar normalmente; teve muitas dores, foi tratamento muito doloroso.
22 - Então, fazia as refeições, sendo que, por cada colher de sopa que ingeria, logo de seguida era-lhe posta a máscara de oxigénio.
23 - Depois, foi transferida para o serviço de ortopedia, recebendo oxigénio, estando entubada pelo nariz.
24 - A 6 de Maio de 2011 foi operada ao punho direito com anestesia geral; então passava os dias deitada na cama; na cama, era-lhe feita a higiene, comia, e fazia as necessidades numa arrastadeira.
25 - Passava as noites com muitas dificuldades porque tinha que dormir sempre na mesma posição de costas já que não se podia voltar.
26 - No final de Maio iniciou fisioterapia à perna e ao tórax; porém não podia usar canadianas porque tinha o pulso partido e, socorreu-se de muletas.
27 - A 30 de Maio de 2011, foi-lhe dada alta hospitalar; como, então, a Ré ainda não havia assumido a responsabilidade pelo pagamento das despesas provocadas pelo acidente de viação e, como o Hospital Distrital de Portalegre não podia manter o internamento foi transferida para a Casa de Repouso da Penha; ali permaneceu cerca de duas semanas.
28 - Em finais do mês de Junho de 2011 foi para casa dos pais porque necessitava de auxÍlio para ir ao quarto de banho, fazer a higiene, vestir-se, despir-se, deitar-se, levantar-se, comer.
29 - Entretanto, o filho da A., pela ausência da mãe, foi obrigado a viver na casa dos avós maternos em Portalegre que, dele passaram a cuidar, durante todo o período em que a A. não o pode fazer.
30 - A casa de habitação da A., então, situava-se fora da cidade de Portalegre e, foi fechada; o filho da A., porque em idade escolar, não tinha transporte para vir para a escola sita na cidade de Portalegre e, por essa razão, também se mudou para a casa dos avós maternos.
31 - No início de Agosto de 2011, a A. voltou a ter dores muito fortes na perna e, a não conseguir andar, nem de canadianas; a 6 de Agosto, deslocou-se às urgências do Hospital Distrital de Portalegre onde foi examinada e, onde lhe fizeram vários exames; foi medicada.
32 - Voltou no dia seguinte e efectuou mais exames; foi-lhe detectada infecção na perna. Ficou novamente internada e, durante 10 dias, foi submetida a tratamento com antibióticos e anti-inflamatórios.
33 - A 19 de Agosto, foi novamente operada, com anestesia geral, tendo-lhe sido retirado parafuso que tinha sido implantado na zona do joelho.
34 - Teve, de novo, muitas dores e grande sofrimento físico e psicológico.
35 - A 2 de Setembro de 2011, foi novamente operada, com anestesia geral, para lhe ser retirada cavilha que lhe havia sido implantada na perna, efectuada limpeza e implantada nova cavilha.
36 - A 12 de Setembro de 2011, foi-lhe dada nova alta hospitalar; a 15 de Setembro, a Ré marcou-lhe consulta no Hospital da Misericórdia de Évora. A médica que a consultou aconselhou a colocação da A. numa Unidade de Cuidados Continuados para recuperação e, que continuasse a ser seguida em ortopedia no Hospital Distrital de Portalegre.
37 - A A. continuava com dores na perna, a rejeitar pontos, a ter muitas dores, a deitar pus da costura.
38 - A 24 de Outubro de 2011, foi-lhe efectuada a 1ª consulta em ortopedia pelos serviços da Ré e, ali passou a ser seguida, sendo-lhe tratada a infecção na perna (osteomielite), efectuados exames e análises, medicada com antibióticos e anti-inflamatórios, bem como, suplementos de cálcio para ajudar a consolidar a fractura da perna.
39 - Em Março do ano de 2012, surgiram novos sinais de infecção na perna, deitando pus por buracos que nela se abriam.
40 - No dia 12 de Abril de 2012 a Autora foi internada no Hospital da Misericórdia de Évora e operada novamente para lhe ser retirada a cavilha da perna e lhe ser feita limpeza cirúrgica. Durante a operação sofreu brusca descida de tensão, tendo ficado no pós operatório várias horas na sala de recobro, onde foi medicada e sujeita a transfusões de sangue.
41 - A 18 de Abril teve alta e voltou a caminhar com o auxílio de duas canadianas.
42 - A 30 de Abril de 2012 foi-lhe feita nova limpeza cirúrgica e colocado dreno na costura.
43 - A 14 de Maio de 2012, a ferida foi novamente drenada, bem como a 28 de Maio, tendo-lhe sido retirado o dreno a 11 de Junho; durante todo este período de tempo, era-lhe feito penso em casa, porque tinha dificuldade em locomover-se.
44 - A partir de Julho de 2012, efectuou 15 sessões de fisioterapia; e a 27 de Agosto de 2012, como a Autora já não apresentava sinais de infecção na perna, foi-lhe marcada cirurgia para retirar o material de osteossíntese da mão.
45 - No dia 13 de Setembro de 2012 a Autora foi novamente internada e operada à mão, sujeita a nova anestesia geral, e esteve internada durante 2 dias.
44 - A 8 de Outubro de 2012, foi consultada pelo médico da Autora que referiu que a mesma tinha limitação da mobilidade do joelho esquerdo e suspeita de tenossinovite (inflamação do tendão e do tecido que recobre os tendões), do 5º dedo da mão direita; nessa ocasião foi-lhe dada alta para avaliação de incapacidade.
45 - A 22 de Outubro de 2012, a Autora deslocou-se à consulta da Ré em Lisboa, e ali foi informada que podia retomar o trabalho; no entanto, a junta médica do seu serviço no dia 26 de Outubro de 2012, entendeu que ainda não estava apta para o trabalho e manteve a baixa por um período de mais 4 meses.
46 - A 22 de Fevereiro de 2013, a Autora foi novamente consultada pela junta médica e mandada apresentar ao serviço a 4 de Março do mesmo ano.
47 - Foi então colocada noutra secção da Câmara Municipal de Portalegre, onde trabalha, com a categoria de assistente técnica, nas mesmas funções, mas com menos exigência física, por não conseguir estar levantada muito tempo.
48 - Em consequência do acidente, e desde a data do mesmo, e até ter tirado o gesso do braço nos finais de Junho do ano de 2011, a Autora necessitou de ajuda para todo o tipo de tarefas, desde a higiene, deslocações ao quarto de banho, vestir, despir-se, deitar-se, levantar-se, confeccionar comida e comer.
49 - Depois de ter tirado o gesso do braço, continuou a ter necessidade de ter apoio de terceira pessoa para poder tomar banho, vestir, despir-se, deitar-se, levantar-se, confeccionar comida e comer.
50 - Antes do acidente, cuidava do filho, fazia as refeições, lava a roupa, passava-a a ferro, limpava a casa, ajudava a mãe; depois do acidente, e durante cerca de 1 ano e meio, não conseguiu realizar tais tarefas domésticas sozinha.
51 - Também, em consequência do acidente, a Autora passou a olhar para o seu corpo com outros olhos, pois ficou com várias cicatrizes – cicatrizes verticais na coxa, uma anterior com 18,5cm e outra, posterior, com 34 cm, a nível do joelho apresenta 2 cicatrizes arredondadas com diâmetros, na face interna, com 3 cm e outra com 2,5cm, a nível do tornozelo apresenta 2 queimaduras, na face interna, com 2 cm de diâmetro cada uma -, deprimiu, passou a ter choro fácil, foi obrigada a mudar de casa – vivia fora da cidade, passou a ter que viver na cidade -, o que lhe provocou grande desgosto porque gostava de viver na casa que habitou até ao acidente.
52 - A Autora, depois do acidente, passou a dormir mal, passou a ter dores e a viver ansiosa.
53 - Subir e descer escadas, levantar-se após ter estado sentada, escrever no computador, ajoelhar-se para apanhar qualquer objecto, são tarefas dolorosas.
53 – Passou a ter dificuldade em tarefas como varrer, lavar o chão, aspirar e limpar o pó, porque ao efectuar movimentos tem dores na perna, na anca e no joelho, e costas; confeccionar refeições, passar a ferro, carregar pesos.
54 - A Autora passou a dormir mal e a não gostar do seu corpo.
55 – Tal degradou o relacionamento com o pai do seu filho, e contribuiu para o fim da relação, não mais tendo mantido com ele relações sexuais ou dormido com ele.
56 - O acidente provocou-lhe stress pós-traumático (síndrome depressivo arrastado), que se revela nomeadamente no comportamento de evitamento da condução automóvel, sendo que padece de síndrome de ansiosidade e passou a ser tratada no Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital Doutor José Maria Grande em Portalegre, com o diagnóstico de reacção ansio-depressiva a acontecimentos de vida traumáticos.
57 – Em 19/11/2013, foi-lhe efectuada no Centro de Radiodiagnóstico de Portalegre Ldª., uma mamografia e eco-mamária, tendo o estudo ecográfico confirmado a existência de inúmeras lesões quísticas, com tamanho infracentimétrico e distribuição dispersa.
58 - A Autora, por causa do acidente, passou a ser uma pessoa insegura, ansiosa, com humor depressivo e lábil.
59 - O acidente provocou na Autora, por causa dos ferimentos graves de que padeceu, medo intenso e sentimento de desproteção; deixou de conduzir.
60 - A Autora passou a isolar-se mais e a conviver menos.
61 - Tem baixa auto-estima.
62 - Dorme pouco e recorre frequentemente a fármacos para as dores.
63 – No futuro necessitará de acompanhamento psicológico e psiquiátrico e de recorrer a fármacos.
64 - Sente-se diminuída.
65 - Teve que efectuar inúmeras deslocações a Lisboa e Évora e ao Hospital Distrital de Portalegre e foi internada e operada várias vezes.
66 – Em 15/05/2006, a A. era portadora de incapacidade de 35%, pela Tabela Nacional de Incapacidades.
67 – A data da consolidação médico-legal das lesões sofridas pela A. é fixável em 22/10/2012.
68 – O Défice Funcional Temporário Total é fixável em 41 dias.
69 – O Défice Funcional Temporário Parcial é fixável em 510 dias.
70 – A repercussão temporária na actividade profissional total é fixável em 551 dias.
71 – O Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica é fixável em 6 pontos.
72 – As sequelas sofridas pela A. são, em termos de repercussão permanente na actividade profissional, compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas implicam esforços suplementares.
73 – O dano estético permanente é fixável no grau 4/7.
74 – O “quantum doloris” é fixável no grau 5/7
75 – A A. nasceu em 10/02/1967.
E foram considerados não provados os seguintes factos:
«1 – Após o acidente, a A. ficou encarcerada na viatura, com o veículo a deitar fumo, ardendo, tendo sido desencarcerada pelos bombeiros, após cortarem a viatura; foi retirada pela porta traseira.
2 – Nas circunstâncias referidas em 10 dos factos provados estava com problemas de oxigenação.
3 - A falta de oxigénio na irrigação cerebral deveu-se à deslocação das costelas e acumulação de líquido em torno dos pulmões.
4 - Em meados de Maio de 2011 fez o 1º levante para o sofá.
5 - Na Casa de Repouso da Penha, diariamente, fisioterapeuta fazia-lhe tratamento.
6 – Que nas circunstâncias referidas em 47 dos factos provados a A. tenha sido colocada a efectuar um serviço completamente diferente daquele que realizava até ao acidente, e porque tem que estar sentada muito tempo começa a ter dor na anca e costas e ao escrever no computador, fica com dores no pulso e braço.
7 – Que o período referido em 50 dos factos provados tivesse sido de 2 anos.
8 – Que passou a estar completamente impossibilitada de realizar as tarefas descritas em 53 dos factos provados.
9 – Que o descrito em 54 e 55 dos factos provados tenha sido a causa exclusiva do fim do relacionamento da A. com o pai do seu filho.
10 - Em consequência do acidente, deixou de poder fazer a vida de casa, com prazer, como anteriormente fazia – confeccionar refeições, lavar a roupa, passar roupa a ferro, limpar o pó, lavar o chão, aspirar a casa, cuidar do jardim; deixou de ter relacionamento afectivo por não ter disponibilidade mental para tal, porque deixou de gostar do seu corpo, passou a ter medo de ter dores, ao ter relações sexuais e passou a rejeitar o companheiro que tinha há vários anos.
11 - A Autora suportou as despesas de transporte, pensos, medicamentos, exames, subsídio de refeição e retribuição mínima mensal garantida de Setembro/Outubro, ao período de assistência de 3ª pessoa, no montante mensal de 485€, o que totaliza a quantia de 1.555,15€».
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III.2. – O mérito do recurso
III.2.1. – Impugnação da matéria de facto
Pretende a Recorrente que os factos 9. e 10. constantes do elenco dos factos não provados sejam, na sua essência, considerados provados com a consequente alteração aos artigos 50 e 55 da matéria de facto provada, nos seguintes termos:
«50 - Antes do acidente, cuidava do filho, fazia as refeições, lavava a roupa, passava-a a ferro, limpava a casa, ajudava a mãe; depois do acidente não mais conseguiu realizar tais tarefas domésticas sozinha.
55 - Tal degradou o relacionamento com o pai do seu filho, e foi causa directa e necessária do fim da relação, não mais tendo mantido com ele relações sexuais e dormido com ele».
Isto porque, em seu entender, o juízo formulado pelo Senhor Juiz a respeito da parte desta matéria que considerou não demonstrada «não tem sustentabilidade face à prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão julgamento, nomeadamente, atendendo ao testemunho de Ana …, do qual o tribunal fez tábua rasa no que a estes factos concerne».
A impugnação da matéria de facto efectuada pela Autora, ora Recorrente, deve considerar-se efectuada com observância dos ónus a respectivo cargo previstos no artigo 640.º do Código de Processo Civil, cumprindo consequentemente verificar se existem ou não razões para modificar a matéria de facto nos termos pretendidos.
Como é sabido, nesta apreciação, os poderes conferidos por lei à Relação quanto ao princípio fundamental da apreciação das provas previsto no artigo 607.º, n.º 5, do CPC, têm amplitude idêntica à conferida ao tribunal de 1.ª instância, devendo a 2.ª instância expressar a respectiva convicção acerca da matéria de facto impugnada no recurso, e não apenas conferir a lógica e razoabilidade da convicção firmada pelo tribunal a quo[5].
De facto, nas palavras do Conselheiro URBANO LOPES DIAS[6], os amplos poderes que o actual CPC comete aos juízes desembargadores no que diz respeito à questão-de-facto, estão consagrados no artigo 662.º, n.ºs 1, 2 e 3, do CPC, devendo a Relação «apreciar as provas produzidas, formulando a sua própria convicção para, de seguida, a confrontar com a que chegou o juiz da 1.ª instância, e em resultado de tal actividade, manter ou alterar o julgado, tornando-o, em princípio, definitivo[7].
Não pode, pois, a Relação limitar-se a um mero controlo da decisão proferida na 1.ª instância. Tem de formular o seu próprio juízo. Esta é a solução que resulta da lei, unanimemente seguida pelo STJ»[8].
Ademais, relativamente à reapreciação do julgamento de facto pela Relação cumpre ainda ter presente que a mesma se destina primordialmente a corrigir invocados erros de julgamento que - atento o preceituado no artigo 662.º, n.º 1, do CPC, que rege sobre a modificabilidade da decisão de facto -, se evidenciem a partir dos factos tidos como assentes, da prova produzida ou de um documento superveniente, por forma a imporem decisão diversa. Significa esta formulação legal que não basta que a prova produzida nos autos permita decisão diversa, necessário é que a imponha. Por isso se exige ao Recorrente que motive as alegações de recurso, dizendo as razões que determinam, em seu entender, diverso juízo probatório, para que a Relação possa aquilatar se os meios de prova por aquele indicados impõem ou não decisão diversa da recorrida quanto aos concretos pontos de facto impugnados.
Assim, - conforme, aliás, foi sublinhado pela Recorrida -, temos vindo a salientar que a convicção do Tribunal, quer de primeira instância, quer da Relação, assenta na apreciação conjugada de todos os meios de prova, sendo evidentemente apreciada segundo as regras de experiência e a livre convicção do julgador, de acordo com um exame crítico de todas as provas produzidas, quando não estamos em presença de prova vinculada.
Acresce que, o referido artigo 607.º, n.ºs 4 e 5, impõe ainda ao juiz que na fundamentação da sentença tome em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documento ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida, analisando criticamente a prova não vinculada segundo a sua livre convicção acerca de cada facto, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais elementos que foram decisivos para a sua convicção, tendo em vista as questões que ao tribunal cumpre solucionar, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas por lei ou por regras de experiência, preceito este que, com as devidas adaptações, se aplica à elaboração do acórdão, por força da remissão efectuada pelo artigo 663.º, n.º 2, do CPC.
Tendo presente o que vimos de referir, iniciaremos a pretendida reapreciação da fundamentação de facto da decisão recorrida, pela questão colocada pela Recorrente que se reconduz a saber se o depoimento prestado pela indicada testemunha, sua irmã, impõe que aquela matéria de facto, dada como não provada, seja considerada provada por este Tribunal da Relação.
E, perdoando-se-nos o juízo antecipatório, avançaremos, desde já, que a resposta não pode deixar de ser negativa.
Efectivamente, na motivação da respectiva convicção a respeito da matéria de facto impugnada, afirmou o julgador que «O referido em 8 e 10 resulta contrariado pela prova pericial realizada de onde resulta uma dificuldade acrescida, mas não uma impossibilidade.
O constante em 9, quanto aos motivos do fim do relacionamento da A. resulta do relato que do relacionamento fizeram as testemunhas, referindo a forma afastada como os mesmos viviam, em virtude da vida profissional do companheiro, que era motorista. Dos mesmos resulta que, ainda que as sequelas tenham contribuído para o fim da relação, não terão sido a causa exclusiva. Da mesma forma, de tal prova testemunhal, ainda que a A. tenha sofrido estados de angústia e tristeza, e em certa medida deixado de conviver da mesma forma, nomeadamente porque deixou de conseguir andar de carro de forma tranquila, nunca deixou, citamos a testemunha Cláudia …, de “sair com as suas amigas”».
Da fundamentação expressa pelo Senhor Juiz avulta de imediato que a sua convicção não se fundou apenas no depoimento da indicada testemunha, mas antes, na conjugação do depoimento prestado pelas demais testemunhas, cotejados ainda com outros meios de prova, designadamente a pericial. Assim, não tendo a Apelante colocado em crise a credibilidade dos demais depoimentos prestados e nem sequer os tendo convocado para confirmar o referido pela sua irmã, não se vê onde o depoimento desta terá sido desvalorizado. O que se passou com a convicção formada em primeira instância - e que assim consideramos pelo juízo que pudemos efectuar, auditado que foi todo este indicado depoimento, e não apenas os segmentos do mesmo que foram reproduzidos pela Recorrente -, como, aliás, amiúde ocorre em casos semelhantes, é que, apreciada toda a prova oral produzida, cotejada com os demais elementos de prova documental e pericial juntos aos autos, e todos eles sopesados de harmonia com as regras da experiência comum, algumas afirmações produzidas pelas testemunhas não bastam para firmar uma convicção segura do tribunal de que os factos da vida tenham ocorrido como relatados ou percepcionados pelo depoente. De facto, o depoimento da testemunha Ana …, não foi desvalorizado pelo julgador. Ao invés, conforme o Senhor Juiz afirmou, «a factualidade vertida em 48 a 55 resultou igualmente dos depoimentos de Maria …, Ana … e Cláudia …, que no essencial foram coincidentes, e descreveram uma realidade consonante com os resultados da prova pericial realizada, quer físico, quer psicológica, o que lhes atribui especial credibilidade». Acontece é que aquele depoimento, mesmo sendo credível - como igualmente o consideramos -, não impõe que se conclua «quanto ao final do seu relacionamento - que era de 20 anos e cessou após o acidente -, ter tido causa no acidente e nas consequências que o mesmo causou na recorrente».
Vejamos, então.
É certo que a testemunha, irmã mais velha da Recorrente, a instâncias do Ilustre Advogado desta, afirmou que a Apelante actualmente vive aqui na cidade, ao lado da minha mãe, e perguntada sobre a razão para tal ocorrer respondeu: porque a minha irmã depois acabou com um relacionamento que ela tinha, de quase 20 anos. Acabou porque ela ficou num estado (...) de revolta que não permitia o toque, aduzindo ainda que foi ela que acabou o relacionamento. É igualmente verdade que a testemunha, solicitada para o efeito, explicou a razão pela qual a irmã não permitia o toque, afirmando que a minha irmã ficou revoltada (...) não deixava, ela não se conseguia, devido às marcas que ela tem no corpo, ela não se conseguia despir na frente dele. Para nós também ela fica com um (...) aquilo mexeu muito com ela, e ela começou a afastar-se do marido (…). A minha irmã ficou com cicatrizes no corpo, nas pernas, a minha irmã coxeia coisa que a minha irmã não coxeava (...) Ela vê-se que está defeituosa, vê-se de tanta operação que ela teve(...) Em Évora ela fez rejeição às próteses, infectavam e tinha que lá ir tirar tudo aquilo, aquelas infecções. Daí ela rejeitar às pessoas (o toque). Adiantou ainda que se pode considerar que a irmã ficou com o corpo defeituoso, sim, disforme e que a minha irmã não era uma pessoa magra (...) mas desde que teve o acidente a minha irmã modificou-se por completo (...) engordou. E perguntada sobre se terão sido as cicatrizes, a gordura, isso tudo que fez com que ela rejeitasse o toque, respondeu afirmativamente, o mesmo ocorrendo quanto à pergunta sobre se ela tinha vergonha de se despir na frente do companheiro e se secou, depois de a testemunha ter referido que ela diz que não quer ninguém na vida dela. É também correcto que perguntada sobre se a Autora relaciona-se com as outras pessoas ou fechou-se, a testemunha respondeu muito pouco, além de duas ou três colegas que tem de se relacionar no trabalho, mas é uma pessoa que vai até ao pé de mim no restaurante (local de trabalho), que as vezes digo anda um bocadinho até ao pé de mim para não estares aí, mas é uma pessoa que não vai a uma festa para se divertir (...) Porque muitas vezes as colegas estão com os maridos e ela não tem e não se sente bem (...) trabalho casa e casa trabalho (…).
Não custa sequer admitir, antes pelo contrário, a afirmação efectuada na motivação das alegações de recurso de que é «patente no discorrer deste relato a rejeição que a recorrente sente em relação ao seu corpo, hoje marcado pelas cicatrizes, cujas marcas não só externas como internas a impedem de viver a sua vida de forma natural», tanto mais que tal decorre, ainda que dito de outra forma, mormente dos pontos 51, 54, 60 e 64 da factualidade provada, donde resulta que a apelante “(...) passou a olhar para o seu corpo com diferentes olhos”, que “(...)passou(...) a não gostar do seu corpo”, tem hoje “(...) baixa auto-estima”, e “sente-se diminuída”, materialidade aliás consonante com a prova pericial produzida, e documentada, para além do mais, na resposta aos esclarecimentos lavrada em 20.07.2017 pelo perito médico do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital Dr. José Maria Grande, Portalegre.
Porém, já assim não acontece quanto à conclusão de que «foi com base neste mesmo sentimento que afastou seu companheiro de 20 anos», e de que «os danos que do mesmo advieram foram consequência directa e necessária do final do relacionamento da recorrente, que era de 20 anos e cessou após o acidente».
Em primeiro lugar, porque desde logo não é isso que decorre das regras da experiência comum da vida - que, aliás, se encontram espelhadas em tantos casos que a jurisprudência publicada retrata. Na verdade, sendo comum que situações de diminuição da auto-estima, designadamente provocadas por alterações no aspecto físico, amiúde decorrentes - para o que nos importa em concreto -, de embates em sinistros rodoviários, tenham reflexos profundos na vida familiar e social das vítimas daqueles, já não será óbvio que estes acontecimentos nefastos, como outros eventos traumáticos da vida, sejam a «causa directa e necessária» do final de um relacionamento. De facto, sendo certo que a adversidade põe à prova a solidez das relações afectivas, não é menos verdade que quando os laços de afecto que unem os indivíduos são fortes, o infortúnio pode ser motivo de uma ainda maior união, assente num profundo carinho e compreensão, já que a vida em comum não se esgota, como parece ser sempre acentuado pela Recorrente, na sua componente física.
Em segundo lugar, porque o depoimento da irmã da Apelante, por si só, não impõe decisão diversa da recorrida, e isto por várias ordens de razões, para além do antedito. De facto, tal decorre logo de outros momentos do depoimento da mesma testemunha - não transcritos nas alegações de recurso -, quando, ao explicar a relação da irmã e do companheiro, mesmo quanto ao filho de ambos, referiu que ela “foi sempre mãe e pai”; “ele levava muito tempo a trabalhar fora, mas estava com ela”, “ela achou que era melhor assim, eu acho que ele até gostava dela” e perguntada: “Mas ela deixou de gostar dele?”, respondeu “revoltada com tudo, deixou”. Depois, porque existiram outros depoimentos a firmar a convicção do julgador que não foram indicados pela Recorrente, mas, sobretudo, e na essência, porque destes, concretamente - para nos centrarmos em relações de idêntica proximidade com aquela -, do depoimento prestado pela mãe da Apelante quanto ao motivo do final do relacionamento da filha com o então companheiro, decorre coisa diversa do afirmado por aquela testemunha. Efectivamente, pese embora tenha sido interrompida, à pergunta do Ilustre Advogado da Autora “o que é que ela fez ao companheiro”, a testemunha respondeu que “não foi ela que fez, foi ele”. E noutros passos do depoimento: “ela tinha um companheiro mas que não estava cá, só vinha de vez em quando”; “ele acabou por ir indo”… e já não voltou.
Deste modo, cremos ter ficado demonstrada a falta de razão da Recorrente quando pretende que se deva considerar provado que o acidente foi a única causa da ruptura da sua relação com o companheiro e pai do seu filho, quando, por um lado, não transparece do depoimento das testemunhas sequer que antes houvesse uma relação de plena comunhão entre o casal, apesar da distância justificada pela situação profissional, e, por outro lado, na vertente física da relação, acentuada pela Apelante, dos autos consta designadamente que, em 15.05.2006, a Recorrente tinha já uma incapacidade de 35% de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades. É certo que este tipo de avaliação não tem ponderação correspondente à avaliação do dano corporal em direito civil. Porém, não deixámos igualmente de observar que, nos exames médicos que juntou com a petição inicial, mormente o de Imagiologia efectuado no Centro de Radiodiagnóstico de Portalegre, consta que a Recorrente foi submetida a histerectomia total aos 38 anos, com a consequente menopausa. Assim, desconhecendo-se quais as consequências que em concreto lhe advieram da subsequente alteração hormonal, mas acentuando a Apelante a componente do relacionamento sexual entre o casal, não é sequer de excluir a possibilidade de este já estar afectado anteriormente ao acidente.
Pelo exposto, conclui-se que nada há a alterar relativamente ao ponto 9 dos factos considerados não provados, e consequentemente ao ponto 55 dos factos provados, o qual conjugado com o ponto 54, espelha correctamente o que resultou da prova produzida em audiência, ou seja, que em consequência do acidente, a Autora passou a não gostar do seu corpo, sendo que tal degradou o relacionamento com o pai do seu filho, e contribuiu para o fim da relação, não mais tendo mantido com ele relações sexuais ou dormido com ele.
Finalmente, também quanto à pretensão da Recorrente de ver alterado o ponto 10 da matéria de facto não provada, e, em consequência, ver demonstrado no ponto 50 da matéria de facto provada que depois do acidente não mais conseguiu realizar tais tarefas domésticas sozinha, igualmente entendemos que a prova produzida pela indicada testemunha, não impõe decisão diversa da recorrida, tanto mais que a própria testemunha não referiu que a irmã não mais conseguiu realizar as tarefas domésticas sozinha, mas sim à sua dificuldade em levá-las a cabo, dizendo: é assim, as tarefas domésticas são feitas muito lentamente, por exemplo ela não consegue fazer como eu consigo ou outra pessoa varrer, por exemplo, duas ou três casas, e quando perguntada ela pode ajoelhar-se, subir e descer escadas, escadotes em casa, pode fazer essas tarefas, a testemunha referiu muito dificilmente.
Ora, é isso mesmo que se encontra provado designadamente nos dois pontos 53 (por lapso existem dois n.ºs 53), onde se encontra espelhado que depois do acidente a autora passou a ter dificuldades em várias tarefas do dia-a-dia como subir e descer escadas, levantar-se após ter estado sentada, escrever no computador, ajoelhar-se para apanhar qualquer objecto, são tarefas dolorosas. Passou a ter dificuldade em tarefas como varrer, lavar o chão, aspirar e limpar o pó, porque ao efectuar movimentos tem dores na perna, na anca e no joelho, e costas; confeccionar refeições, passar a ferro, carregar pesos.
Portanto, não só o que foi dito de relevante a este respeito se mostra provado, como nem sequer a testemunha indicada pela Recorrente como fundamento para a pretendida alteração, disse aquilo que aquela agora pretende ver dado como provado. Acresce que, como afirmou o Senhor Juiz, esta alegação também não se mostra suportada, designadamente pela prova pericial produzida, que contraria a pretensão da Recorrente, dado que aquela impossibilidade de realização das tarefas domésticas não se encontra demonstrada. Mas, sobretudo, a modificação para uma total impossibilidade de realização das tarefas domésticas, agora pretendida pela Recorrente não foi sequer alegada oportunamente. De facto, no artigo 56.º da petição inicial a Autora apenas alegou que durante cerca de dois anos não conseguiu realizar as tarefas domésticas que ali discriminou.
O Senhor Juiz, tendo presente essa alegação, deu como provado que durante cerca de ano e meio a Recorrente não conseguiu realizar tais tarefas sozinha, e fê-lo motivando o indicado período temporal nestes termos «o referido em 7 [onde foi considerado não provado que o período referido em 50 dos factos provados tivesse sido de 2 anos], resulta do teor dos depoimentos de Maria … e Ana …, que referiram um ano e tal e um ano respectivamente, sendo que tal resulta em conformidade com o período assinalado no relatório pericial e constante em 70 dos factos provados.
Deste modo, nem sequer em face do alegado oportunamente a este respeito pela Recorrente, se poderia retirar as consequências pretendidas em face de decisão diversa da recorrida.
Pelo exposto, e tendo presente que um exame crítico da prova produzida, apreciada conjugadamente, segundo as regras de experiência e do normal acontecer, não impõe decisão diversa da recorrida, antes a suporta, concluímos não haver qualquer razão para proceder à pretendida alteração dos dois referidos factos da matéria não provada, para a factualidade provada, mantendo, em consequência, a matéria de facto - provada e não provada - tal como vem fixada da primeira instância.
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III.2.2. Responsabilidade civil
Na presente acção a autora, ora Recorrente, alegou factos tendentes a demonstrar a culpa efectiva e exclusiva do condutor do veículo segurado na ré na produção do acidente de viação objecto dos autos, alegando ainda factos tendentes a demonstrar que em consequência do mesmo sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais cujo ressarcimento reclama.
Nos termos do disposto no artigo 483.º do Código Civil[9] “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação".
Acresce que, nos termos genéricos do artigo 342.º do CC, também afirmados a propósito da matéria referente à responsabilidade civil, no artigo 487.º, n.º 1 do mesmo diploma legal, ao lesado incumbe a prova dos factos constitutivos do direito invocado, no caso, “a culpa do autor da lesão”, apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso - n.º 2 do citado artigo 487.º - incumbindo, ao invés, à ré seguradora a prova de que o acidente ocorreu por culpa daquele.
Ora, a matéria de facto alegada pela autora relativamente à dinâmica do acidente veio a ser aceite pela ré seguradora no início da audiência de julgamento, não estando consequentemente em causa no presente recurso o facto de a responsabilidade pelo sinistro se dever a culpa exclusiva do condutor do veículo segurado, nem os danos decorrentes do mesmo para a autora e constantes da matéria de facto provada e supra descrita nos termos que vimos de confirmar.
Importa igualmente lembrar que, não tendo a seguradora recorrido, encontra-se já obrigada a satisfazer à lesada a indemnização arbitrada na sentença proferida em primeira instância.
Vejamos, pois, a segunda questão colocada à apreciação por este Tribunal da Relação, relativa ao quantum da indemnização.
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III.2.2.1. – Dos Danos
Conforme antedito, a autora peticionou o pagamento de uma indemnização na quantia de € 250.000,00€[10], para ressarcimento dos danos por si alegados, que neste segmento do pedido qualificou como não patrimoniais, nuns momentos, e como patrimoniais, em outros.
Na sentença recorrida foram analisados globalmente os danos cujo ressarcimento foi peticionado, tendo sido entendido computar a obrigação de indemnizar a cargo da seguradora em 55.000,00€ relativa aos danos decorrentes do acidente de viação em causa, que foram qualificados como não patrimoniais, e globalmente apreciados nessa vertente.
Pretende a autora por via do presente recurso que a indemnização seja fixada no montante peticionado, ou em valor superior ao fixado na sentença, não colocando em causa o enquadramento jurídico efectuado quanto aos mesmos.
Porém, como é sabido, a limitação funcional, ou dano biológico, em que se traduz uma incapacidade é apta a provocar no lesado danos de natureza patrimonial e de natureza não patrimonial[11]. Por isso que, em situações similares à presente, temos cindido a apreciação do quantum indemnizatório devido nas vertentes do dano biológico e dos danos não patrimoniais[12], ambas avaliadas segundo a equidade.
E, precisamente por ser com recurso à equidade que os tribunais se esforçam por encontrar a justa indemnização que o caso concreto demanda, apesar de não ter sido essa a opção efectuada em primeira instância, que sopesou conjuntamente os danos sofridos pela Recorrente em decorrência do acidente de viação em apreço, o certo é que o julgador chegou a um resultado que se mostra em consonância (até ligeiramente superior, como veremos), com os padrões indemnizatórios que os tribunais, mormente os superiores, têm arbitrado para casos com contornos e consequências semelhantes às dos presentes autos.
Senão, vejamos, fazendo nestes autos o percurso decisório que temos vindo a seguir.
Assim, iniciaremos a apreciação pela indemnização devida à Recorrente pelo denominado dano biológico, posto que não restam dúvidas de que, em consequência do acidente, ficou a padecer de um défice funcional permanente da Integridade Físico-Psíquica, fixado em 6 pontos, sendo as sequelas sofridas compatíveis com o exercício da sua actividade habitual, no caso de assistente técnica, mas implicando esforços suplementares.
Ora, a afectação da capacidade funcional de uma pessoa, traduzida pela atribuição de um determinado grau de incapacidade físico-psíquica constitui um dano que importa reparar, independentemente de se traduzir ou não em perda efectiva ou imediata de salários, isto é, ainda que à data do acidente o sinistrado não estivesse a trabalhar ou fosse ainda menor[13].
Não obstante, só «há relativamente poucos anos tem vindo a entrar na terminologia da doutrina e da jurisprudência nacionais o conceito de “dano biológico” ou de “dano corporal”. (…) Ao nível da jurisprudência o conceito tem vindo a ser utilizado sobretudo a respeito da fixação de indemnizações em caso de acidentes de viação, suscitando, em primeira linha, a dificuldade da relação com a dicotomia tradicional da avaliação de danos patrimoniais versus danos não patrimoniais»[14].
Na verdade, sendo inicialmente sempre qualificada como indemnização por danos patrimoniais futuros[15], foi sendo efectuada uma evolução do conceito no sentido de que, quando não existia uma efectiva perda de vencimento e apenas estava em causa indemnizar um esforço acrescido para o desempenho das tarefas do dia-a-dia, quer na vertente da vida profissional quer na vertente da vida pessoal, que a existência de uma incapacidade, por si só representa, melhor se enquadraria a qualificação de tal indemnização como sendo atribuída pelo dano biológico, concluindo-se em alguns casos que este era ainda um dano patrimonial e em outros que constituía um dano não patrimonial.
Exemplificativamente, considerou-se que “nos casos em que a percentagem de IPP se não traduz, na prática, numa efectiva perda de ganhos ou de capacidade de ganho proporcional ao montante dos vencimentos previsivelmente a auferir no futuro, a repercussão negativa da IPP centra-se apenas numa diminuição de condição física, resistência, e capacidade de esforços por parte do lesado, o que se traduzirá numa deficiente ou imperfeita capacidade de utilização do corpo no desenvolvimento das actividades pessoais em geral, e numa consequente e igualmente previsível maior penosidade na execução das suas diversas tarefas.
É neste agravamento da penosidade (de carácter fisiológico) para a execução, com regularidade e normalidade, das tarefas próprias e habituais do respectivo múnus que deve radicar-se o arbitramento da indemnização por danos patrimoniais futuros”[16], considerando-se ainda nesse agravamento a repercussão da incapacidade na execução das normais tarefas do dia-a-dia.
Na mesma vertente da qualificação como danos patrimoniais, tem-se entendido que este denominado “dano biológico”, enquanto “diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com substancial e notória repercussão na vida pessoal e profissional de quem o sofre”, é sempre ressarcível, como dano autónomo, independentemente do seu específico e concreto enquadramento nas categorias normativas do dano patrimonial ou do dano não patrimonial (…); tal compensação do dano biológico tem como base e fundamento, quer a relevante e substancial restrição às possibilidades de exercício de uma profissão e de futura mudança ou reconversão de emprego pelo lesado, enquanto fonte actual de possíveis e eventuais acréscimos patrimoniais, frustrada irremediavelmente pelo grau de incapacidade que definitivamente o vai afectar, quer da acrescida penosidade e esforço no exercício da sua actividade diária e corrente, de modo a compensar e ultrapassar as graves deficiências funcionais que constituem sequela irreversível das lesões sofridas; a perda relevante de capacidades funcionais – mesmo que não imediatamente reflectida no valor dos rendimentos pecuniários auferidos pelo lesado – constitui uma verdadeira «capitis deminutio» num mercado laboral exigente, em permanente mutação e turbulência, condicionando, de forma relevante e substancial, as possibilidades de exercício profissional e de escolha de profissão, eliminando ou restringindo seriamente qualquer mudança ou reconversão de emprego e, nessa medida, o leque de oportunidades profissionais à disposição, erigindo-se, deste modo, em fonte actual de possíveis e futuros lucros cessantes, a compensar, desde logo, como verdadeiros danos patrimoniais”[17].
Por seu turno, qualificando o dano biológico, como sendo exclusivamente um dano não patrimonial, afirmou-se que «levando os factos provados a excluir que a incapacidade permanente geral de 5% tenha repercussões funcionais directas ou indirectas, imediatas ou longínquas, não é devida indemnização, a título de danos patrimoniais futuros, esgotando-se a sua valoração e ressarcimento em sede de dano não patrimonial»[18].
Ainda noutra perspectiva, autonomizando a indemnização pelo dano biológico, entende-se que «deverá aditar-se ao lucro cessante, decorrente da previsível perda de remunerações, calculada estritamente em função do grau de incapacidade permanente fixado, uma quantia que constitua justa compensação do referido dano biológico, consubstanciado na privação de futuras oportunidades profissionais, precludidas irremediavelmente pela capitis deminutio de que passou a padecer (o lesado), bem como pelo esforço acrescido que o já relevante grau de incapacidade fixado irá envolver para o exercício de quaisquer tarefas da vida profissional ou pessoal»[19].
Concordamos com a citada autora, quando afirma que «o dano biológico, sendo um dano real ou dano-evento, não deve, em princípio, ser qualificado como dano patrimonial ou não patrimonial, mas antes como tendo consequências de um e/ou outro tipo; e também por isso, em nosso entender, o dano biológico não deve ser tido como um dano autónomo em relação à dicotomia danos patrimoniais/danos não patrimoniais».
Assim, sendo certo que «a atribuição de uma indemnização a título de danos patrimoniais pela perda de capacidade de ganho, ao abrigo do art. 566.º, n.ºs 2 e 3, do CC, não dispensa a prova da existência de danos futuros», sendo determinante nessa vertente aquilatar se o lesado ficou com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica, e não se sabendo se «em consequência do acidente de viação de que foi vítima, deixou de trabalhar, ou, trabalhando, qual o grau de dificuldade existente no desempenho das suas tarefas como vidraceiro, se o seu rendimento laboral deixou de ser o mesmo e em que medida ou se deixou de auferir o mesmo salário e em que montante, não existem elementos fácticos que permitam avaliar a existência de um dano patrimonial futuro»[20].
Tudo para dizer que, é sempre possível indemnizar, mesmo complementarmente, o dano biológico, quando o lesado «tem de suportar a onerosidade com a execução de tarefas materiais de índole pessoal, mormente no âmbito das suas lides domésticas, a qual representará, para além da respetiva penosidade anímica, uma diminuição da capacidade geral de ganho fora do âmbito profissional», já que «o chamado dano biológico abrange um espectro alargado de prejuízos incidentes na esfera patrimonial do lesado, desde a perda do rendimento total ou parcial auferido no exercício da sua atividade profissional habitual até à frustração de previsíveis possibilidades de desempenho de quaisquer outras atividades ou tarefas de cariz económico, passando ainda pelos custos de maior onerosidade no exercício ou no incremento de quaisquer dessas atividades ou tarefas, com a consequente repercussão de maiores despesas daí advenientes ou o malogro do nível de rendimentos expectáveis»[21].
Como já resulta do sobredito, o dano biológico pode «projectar-se em duas vertentes:
- por um lado, a perda total ou parcial da capacidade do lesado para o exercício da sua atividade profissional habitual ou específica, durante o período previsível dessa atividade, e consequentemente dos rendimentos que dela poderia auferir;
- por outro lado, a perda ou diminuição de capacidades funcionais que, mesmo não importando perda ou redução da capacidade para o exercício profissional da atividade habitual do lesado, impliquem ainda assim um maior esforço no exercício dessa atividade e/ou a supressão ou restrição de outras oportunidades profissionais ou de índole pessoal, no decurso do tempo de vida expetável, mesmo fora do quadro da sua profissão habitual»[22].
No caso em apreço, movemo-nos apenas no âmbito desta última vertente, posto que, a lesada não aduziu nestes autos quaisquer factos relativos àquela primeira vertente, nem sequer alegando o vencimento auferido - que, não obstante, se retira do despacho que em 15.01.2014, deferiu o respectivo pedido de apoio judiciário, com base num rendimento anual de 7.758,15€ - e, atento o seu vínculo funcional, sendo facto notório que não sofreu perda de rendimento.
Ora, o critério fundamental para a fixação da indemnização devida pelo dano biológico, tanto das indemnizações atribuídas por danos patrimoniais futuros (vertente patrimonial do chamado dano biológico) como especialmente por danos não patrimoniais (dano biológico e demais danos não patrimoniais), é a equidade[23].
Por isso se afirma que os critérios definidos na Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, bem como nas alterações introduzidas pela Portaria n.º 679/2009, de 25 de Junho, destinam-se expressamente a um âmbito de aplicação extrajudicial. Consequentemente, os mesmos não se sobrepõem ao sobredito critério fundamental para a determinação judicial das indemnizações, a equidade. Apesar disso, podem evidentemente ser ponderados pelo julgador, mormente porque se lhe impõe a prossecução do princípio da igualdade, o que, sem deixar de atender às especificidades do caso concreto, implica a procura, tanto quanto possível, de uma uniformização de critérios, tarefa para a qual as indicadas tabelas podem contribuir, atenta a objectividade dos factores ali referidos.
Efectivamente, na determinação desta indemnização, à luz de um juízo de equidade, devem levar-se em conta, a idade do lesado à data do acidente, o tempo provável da sua vida activa, o salário auferido, a depreciação da moeda e, evidentemente o grau de incapacidade sofrido em consequência do acidente e a sua repercussão na vida do lesado, tanto profissionalmente como nas tarefas do dia-a-dia, sendo ainda certo que há que ter em atenção que findo o período de vida activa deste, não é possível ficcionar que desapareçam instantaneamente todas as necessidades decorrentes da sua vida física, sendo ainda de considerar a respectiva esperança média de vida, se o acidente de que foi vítima se deveu a qualquer conduta que lhe fosse parcialmente imputável, ou sendo-o antes e apenas à conduta do condutor do veículo segurado, que no exercício da respectiva condução não observou as regras estradais a que se encontrava sujeito.
Acresce que, e como vem sendo uniformemente reconhecido, o valor estático alcançado através da automática aplicação de uma tabela «objectiva» - e que apenas permitirá alcançar um «minus» indemnizatório - terá de ser temperado através do recurso à equidade[24].
Finalmente, diga-se, que a indemnização a encontrar num juízo equitativo há-de ser tendencialmente consentânea com a que tem vindo a ser encontrada pelos Tribunais Superiores, designadamente pelo Supremo Tribunal de Justiça para situações muito semelhantes à dos autos, pelo que deve cumprir-se ainda o que dispõe o artigo 8.º do CC, de acordo com o qual a justiça do caso concreto há-de procurar-se também recorrendo a casos de natureza semelhante que já tenham sido apreciados pelos Tribunais.
No caso vertente, tudo ponderado por referência ao referido rendimento auferido pela Autora, e tendo presentes outras situações similares[25], designadamente em casos recentes e muito próximos em termos de défice funcional temporário e de défice funcional permanente, num juízo parcelar a este respeito, reputar-se-ia equitativo fixar a indemnização pelo dano biológico sofrido pela Recorrente, em € 15.000,00 (quinze mil euros).
Vejamos agora a vertente estrita dos danos não patrimoniais sofridos pela Recorrente.
Nos termos do disposto no artigo 496.º n.º 1 do CC na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais, que pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, sendo que, por força do n.º 3 do mesmo preceito legal, “o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º.”
O que deve entender-se por danos não patrimoniais há muito se encontra sedimentado na mais autorizada doutrina que tem sido seguida pela jurisprudência.
Assim, “danos não patrimoniais são os prejuízos (como dores físicas, desgostos morais, vexames, perda de prestígio ou de reputação, complexos de ordem estética) que, sendo insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens (como a saúde, o bem estar, a liberdade, a beleza, a honra, o bom nome) que não integram o património do lesado, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma satisfação do que uma indemnização”[26].
À questão de como serão indemnizáveis estes danos de natureza não pecuniária, responde-nos a lei afirmando que o cálculo da indemnização devida será efectuado com base na equidade, assim se indemnizando apenas os danos que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito – citados n.ºs 1 e 3 do art. 496.º do CC.
Também para a formulação do referido juízo de equidade, que balizará a fixação da compensação pecuniária neste tipo de dano, podemos recolher o ensinamento dos Professores Pires de Lima e Antunes Varela, que nos dizem que: “o montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado em qualquer caso (haja dolo ou mera culpa do lesante) segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e às do lesado e do titular da indemnização, às flutuações do valor da moeda, etc.
E deve ser proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida.”[27].
Como podemos verificar um dos aspectos a ter em conta, a culpa do lesante, tem sido realçado pelos tratadistas que acentuam a importância da componente punitiva da compensação por danos não patrimoniais.
Assim, Menezes Cordeiro ensina que “a cominação de uma obrigação de indemnizar danos morais representa sempre um sofrimento para o obrigado; nessa medida, a indemnização por danos morais reveste uma certa função punitiva, à semelhança aliás de qualquer indemnização”[28].
Por seu turno, Galvão Telles, sustenta que “a indemnização por danos não patrimoniais é uma “pena privada, estabelecida no interesse da vítima – na medida em que se apresenta como um castigo em cuja fixação se atende ainda ao grau de culpabilidade e à situação económica do lesante e do lesado”[29].
Para Menezes Leitão a reparação por danos morais assume-se “como uma pena privada, estabelecida no interesse da vítima, de forma a desagravá-la do comportamento do lesante”[30].
Nestes moldes, desde há muito vem decidindo o Supremo Tribunal de Justiça que «(...) no caso dos danos não patrimoniais, a indemnização reveste uma natureza acentuadamente mista, pois “visa reparar, de algum modo, mais que indemnizar os danos sofridos pela pessoa lesada”, não lhe sendo, porém, estranha a “ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente»[31]; e que a quantia devida por estes danos não tem por fim «a reconstrução da situação anterior ao acidente, mas principalmente compensar o autor, na medida do possível, das dores e incómodos que suportou e se mantém como resultado da situação para que o acidente o arrastou, e deve a mesma ser calculada pondo em confronto a situação patrimonial do lesado (real) e a que teria se não tivessem existido danos»[32], jurisprudência que se mantém actual conforme as inúmeras decisões que se podem consultar a propósito no caderno de jurisprudência temática disponível no sítio do STJ[33], e espelhada no recente acórdão citado, nos seguintes termos: «ante a imaterialidade dos interesses em jogo, a indemnização dos danos não patrimoniais não pode ter por escopo a sua reparação económica. Visa sim, por um lado, compensar o lesado pelo dano sofrido, em termos de lhes proporcionar uma quantia pecuniária que permita satisfazer interesses que apaguem ou atenuem o sofrimento causado pela lesão; e, por outro lado, servir de sancionamento da conduta do agente».
No caso que nos ocupa, o dano violado foi a integridade física e psicológica da Autora, que viu o acidente causar-lhe danos corporais com significativa gravidade, que deixaram sequelas permanentes, a nível físico, psicológico e estético, que se têm reflectido, e continuarão a reflectir, na sua vida.
Dir-se-á, pois, que o mero elenco destes indicados factos sofridos pela Autora em consequência do acidente, revela à evidência que estamos perante dano não patrimonial indemnizável, subtraindo-se, como é evidente, à aplicação do princípio da reposição natural, previsto nos artigos 562.º e 566.º do CC, em virtude da incompatibilidade de correspondência económica entre o dano e a sua expressão monetária, por estarmos em planos valorativos diferentes, relevando aqui somente a equidade.
Assim, com relevância nesta avaliação temos que o acidente foi causado por culpa exclusiva do segurado da Ré, que provocou o embate entre o veículo que conduzia e o veículo automóvel tripulado pela autora, do qual resultaram lesões para esta, geradoras de um défice funcional temporário total fixável num período de 551 dias, sendo o défice temporário geral fixado em 41 dias e o parcial em 510 dias, com repercussão na actividade profissional, entre a data do acidente ocorrido em 20-04-2011 e a data da consolidação das lesões que foi fixada em 22-10-2012, portanto, durante cerca de ano e meio. Este período, conforme definido no relatório médico-legal, corresponde ao período durante o qual a autora, em virtude do processo evolutivo das lesões no sentido da cura ou consolidação, viu condicionada a sua autonomia na realização dos actos correntes da vida diária, familiar e social, correspondendo com os períodos de internamento e/ou repouso absoluto. Neste mesmo período foi considerado ainda um quantum doloris sofrido pela Autora, fixável no grau 5, numa escala de sete graus de gravidade crescente.
Depois, seguindo ainda o mesmo relatório, no âmbito do período de danos permanentes são valorizáveis, entre os diversos parâmetros do dano, o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica, que se refere à afectação definitiva da integridade física e/ou psíquica da pessoa, com repercussão nas actividades da vida diária, independente das actividades profissionais, e que relativamente à capacidade integral do indivíduo, de 100 pontos, considerando a globalidade das sequelas (corpo, funções e situações de vida), e sendo causa de sofrimento físico, limitando a autora em termos funcionais, foi fixada em 6 pontos.
Por seu turno, no mesmo âmbito dos danos permanentes, foi considerado o dano estético permanente, correspondente à repercussão das sequelas, numa perspectiva estética e dinâmica, envolvendo uma avaliação personalizada da afectação da imagem da vítima quer em relação a si próprio, quer perante os outros, o qual, tendo em conta as cicatrizes e o claudicar, foi fixado no grau 4 duma escala de sete graus de gravidade crescente.
Finalmente, há-de ser considerada a dependência permanente de ajuda, isto porque, se provou que no futuro necessitará de acompanhamento psicológico e psiquiátrico e de recorrer a fármacos (ponto 63).
De facto, em decorrência do acidente, a autora que tinha à data do acidente 44 anos de idade, sofreu as impressivas lesões e sequelas que a matéria de facto descrita nos pontos 17 a 74 evidencia, tendo sido submetida a 6 intervenções cirúrgicas no espaço temporal de 18 meses, com as inerentes anestesias, sentido dores intensas, numa escala de 5 mais próxima do grau máximo (7) do que do mínimo; foi submetida a vários tratamentos, sofreu ainda naturalmente dores e incómodos nos internamentos hospitalares, na realização dos exames médicos, nos tratamentos de fisioterapia, nas deslocações a instituições hospitalares e esperas; e sofreu obviamente com as alterações de hábitos de vida, com a necessidade que teve de se mudar juntamente com o filho para casa dos pais, e nesta de ser auxiliada por terceira pessoa para todas as situações básicas da vida, como a alimentação e higiene pessoal, com o inerente sentimento de diminuição que tais limitações envolvem. Acresce que, pese embora a Apelante não tenha ficado impossibilitada de realizar as habituais tarefas domésticas e o seu trabalho habitual, é indubitável pelo tipo de lesões sofridas que a mesma passou a ter dificuldades acrescidas, que antes não tinha, necessitando de um maior esforço para fazer as tarefas que antes faria mais facilmente.
Ademais, cumpre ainda ponderar que mercê das lesões e sequelas decorrentes do acidente, a Autora passou a não gostar do seu corpo, o que degradou o relacionamento com o pai do seu filho, e contribuiu para o fim da relação, não mais tendo mantido com ele relações sexuais ou dormido com ele; passou a ser uma pessoa insegura, ansiosa, com humor depressivo e lábil; por causa dos ferimentos graves de que padeceu, sente medo intenso e sentimento de desproteção; deixou de conduzir; tem baixa auto-estima; passou a isolar-se mais e a conviver menos.
Enfim, não vamos reproduzir aqui todo o elenco de factos que espelham a gravidade das consequências do acidente na vida da Apelante. Como se referiu na sentença recorrida, o acidente afectou a Autora em todas as vertentes da vida, seja pessoal, familiar ou profissional tendo sofrido consequências que mudaram radicalmente o seu modo de vida, sentindo-se marcada para o resto da vida, com sentimentos de tristeza e de angústia e depressão. Em suma, é impossível “apagar” da vida da Autora as consequências deste acidente.
Ora, conforme já anteriormente expressámos, quando alguém na idade da autora, se confronta com as provadas limitações funcionais, dependências e cicatrizes, que afectam a sua vida familiar, social, e profissional, estamos, como é bom de ver perante sequelas com tal gravidade que constituem dano não patrimonial que deve ser compensado, sendo que a censurabilidade da conduta do segurado da Ré é um dos factores a ter em conta na fixação da compensação em dinheiro que se arbitrará à autora como lenitivo para o sofrimento físico-psíquico que padeceu e ainda padece e perdurará na sua memória.
No caso dos autos, o sofrimento da autora em consequência do acidente e até à consolidação das lesões, ocorreu durante período temporal prolongado (cerca de um ano e meio), foi acentuado estando médico legalmente fixado numa escala mais próxima do grau máximo que do mínimo, e continua a estar presente na sua vida nos termos sobreditos, sofrendo ainda uma limitação funcional significativa, ainda que não muito elevada, não se podendo olvidar em termos de normalidade da vida, que quanto maior for o tempo em que um indivíduo se encontra em situação de incapacidade, ainda que temporária, mais aumenta a sua angústia quanto ao futuro, sendo sabido que, no caso, atenta a idade da autora, é comum acontecer que as sequelas do acidente no foro psicológico agravem com o decurso do tempo, com as inerentes consequências.
Por tudo o que vem de referir-se, é de concluir que a autora deve ter uma compensação adequada às sequelas decorrentes do acidente que sempre a afectarão, sendo para esse fim que deve servir o constante aumento dos prémios dos seguros.
Efectivamente, assim tem decidido o Supremo Tribunal de Justiça, como lapidarmente pode ler-se no seguinte sumário: “O objectivo essencial do aumento continuado e regular dos prémios de seguro que tem ocorrido em Portugal no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil por acidentes de viação não é o de garantir às companhias seguradoras a obtenção de lucros desproporcionados, mas antes o de, em primeira linha, assegurar aos lesados indemnizações adequadas”[34].
Ora, para encontrar a indemnização adequada «não se devem perder de vista os padrões indemnizatórios decorrentes da prática jurisprudencial, procurando - até por uma questão de justiça relativa - uma aplicação tendencialmente uniformizadora ainda que evolutiva do direito, como aliás impõe o n.º 3 do artigo 8.º do CC. (…)
Para tal efeito, são relevantes, além do mais: a natureza, multiplicidade e diversidade das lesões sofridas; as intervenções cirúrgicas e tratamentos médicos e medicamentosos a que o lesado teve de se submeter; os dias de internamento e o período de doença; a natureza e extensão das sequelas consolidadas, o quantum doloris, o dano estético (…)» e evidentemente o balizamento pelos padrões que têm vindo a ser seguidos pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, pese embora a constatação de alguma diversificação nos valores fixados, que resulta também da diversidade casuística a que se tem precisamente de atender.
Nestes termos, ponderando a situação que os presentes autos convocam, na comparação com outras indemnizações a título de danos não patrimoniais que têm vindo mais recentemente a ser arbitradas, em situações em que intensidade e gravidade das lesões sofridas e das sequelas decorrentes do acidente se nos afigura comparável com a presente[35], sendo até superiores em algumas das vertentes de apreciação, ter-se-ia por condizente e ajustado a esses padrões atribuir a indemnização compensatória à autora a este título de danos não patrimoniais, no montante ali arbitrado de € 35.000,00[36].
Portanto, tudo ponderado, o valor global encontrado em primeira instância é equitativo, encontra-se até ligeiramente acima destes outros casos referidos apenas a título exemplificativo, de entre muitos outros que se encontram para limitações funcionais que, independentemente de todo o respeito que nos merecem, porque existem, não atingem a gravidade daqueloutras que decorrem de incapacidades incomparavelmente superiores à sofrida pela Recorrente e que, portanto, esses sim, atingem valores indemnizatórios próximos do peticionado.
Nestes termos, improcede totalmente o recurso.
Porque integralmente vencida na Apelação, atenta a regra da causalidade vertida no artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, deveria a Recorrente suportar as respectivas custas.
Porém, tendo-lhe sido concedido o benefício do apoio judiciário nessa modalidade, encontra-se dispensada de proceder ao respectivo pagamento.
*****
III.3. - Síntese conclusiva
I - A reapreciação do julgamento de facto pela Relação destina-se primordialmente a corrigir invocados erros de julgamento que se evidenciem a partir dos factos tidos como assentes, da prova produzida ou de um documento superveniente, por forma a imporem decisão diversa.
II - Significa esta formulação legal que não basta que a prova produzida nos autos permita decisão diversa, necessário é que a imponha. Por isso se exige ao Recorrente que motive as alegações de recurso, dizendo as razões que determinam, em seu entender, diverso juízo probatório, para que a Relação possa aquilatar se os meios de prova por aquele indicados impõem ou não decisão diversa da recorrida quanto aos concretos pontos de facto impugnados.
III - A convicção do Tribunal, quer de primeira instância, quer da Relação, assenta na apreciação conjugada de todos os meios de prova, sendo evidentemente apreciada segundo as regras de experiência e a livre convicção do julgador, de acordo com um exame crítico de todas as provas produzidas, quando não estamos em presença de prova vinculada.
IV - Não tendo a Apelante colocado em crise a credibilidade dos demais meios de prova em que se formou a convicção do julgador, e fundando a sua pretensão de modificação da matéria de facto, num único depoimento, tal não impõe decisão diversa da recorrida.
V - De facto, apreciada toda a prova oral produzida, cotejada com os demais elementos de prova documental e pericial juntos aos autos, e todos eles sopesados de harmonia com as regras da experiência comum, algumas afirmações produzidas por alguma(s) testemunha(s) não basta(m) para firmar uma convicção segura do tribunal de que os factos da vida tenham ocorrido como relatados ou percepcionados por esse e não por outro depoente.
VI - A limitação funcional, ou dano biológico, em que se traduz uma incapacidade é apta a provocar no lesado danos de natureza patrimonial e de natureza não patrimonial. Por isso que, em situações similares à presente, temos cindido a apreciação do quantum indemnizatório devido nas vertentes do dano biológico e dos danos não patrimoniais, ambas avaliadas segundo a equidade.
VII - Precisamente por ser com recurso à equidade que os tribunais se esforçam por encontrar a justa indemnização que o caso concreto demanda, apesar de não ter sido essa a opção efectuada em primeira instância, que sopesou conjuntamente os danos sofridos pela Recorrente em decorrência do acidente de viação em apreço, o certo é que o julgador chegou a um resultado que se mostra em consonância com os padrões indemnizatórios médios que os tribunais, mormente os superiores, têm arbitrado para casos com contornos e consequências semelhantes às dos presentes autos, pelo que, a apelação não pode proceder.
*****
IV - Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
A Recorrente está dispensada de proceder ao pagamento das custas, que seriam a seu cargo.
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Évora, 10 de Maio de 2018
Albertina Pedroso [37]
Tomé Ramião
Francisco Xavier


_________________________________________________
[1] Juízo Central Cível e Criminal de Portalegre - Juiz 2.
[2] Relatora: Albertina Pedroso;
1.º Adjunto: Tomé Ramião;
2.º Adjunto: Francisco Xavier.
[3] Doravante abreviadamente designado CPC.
[4] Suprime-se por repetir a matéria de facto já constante do ponto 14.
[5] Cfr. neste sentido, ABRANTES GERALDES, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 3.ª Edição Revista e Actualizada, pág. 313; e na jurisprudência de forma meramente exemplificativa, Ac. STJ de 24-05-2012, processo n.º 850/07.7TVLSB.L1.S2, disponível em www.dgsi.pt.
[6] No recente Estudo publicado no Blog do IPPC em 02-04-2017, com o título “Limites do poder cognitivo do juiz – nas instâncias e no STJ”, que corresponde à intervenção realizada pelo Autor nas I Jornadas Científicas de Processo Civil que tiveram lugar em Felgueiras no dia 31/3/2017.
[7] 12 Em princípio, atento o disposto no artigo 682.º, n.ºs 2 e 3, do CPC.
13 Sobre este ponto concreto, vide a anotação de MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA ao acórdão do STJ, proferido no processo 1965/04, intitulada Prova, poderes da Relação: a lição da epistemologia, in Cadernos de Direito Privado, n.º 44, página 29 e ss.
[8] 14 Sobre este ponto, vide, por exemplo, o Acórdão do STJ de 14/7/2016, proferido no processo n.º 605/11.4TTLRA.C1.S1, e doutrina nele citada.
15 Neste preciso sentido, vide Miguel Teixeira de Sousa, in Blog do IPPC, Papers de 19/5/2014 (Livre apreciação e controlo da prova pela Relação) e de 01/06/2014 (Renovação da prova na Relação).
[9] Doravante CC.
[10] Cingimo-nos à apreciação desta parte porque o restante valor, pedido a título de danos patrimoniais, foi julgado improcedente, em segmento decisório da decisão recorrida que já transitou por não ser objecto do presente recurso.
[11] Cfr. Ac. STJ de 04-06-2015, proferido no processo n.º 1166/10.7TBVCD.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[12] Cfr. a título meramente exemplificativo, o Acórdão de 06.10.2016, processo n.º 866/11.9TBABT.E1, relatado pela ora Relatora e no qual foi 1.º Adjunto o ora 2.º Adjunto, confirmado pelo recente Acórdão do STJ de 15.02.2018 (ainda inédito); bem como o Acórdão desta conferência de 09.03.2017, Processo n.º 81/14.0T8FAR.E1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
[13] Neste sentido, cfr. Ac. STJ, de 19-11-2009, proferido na revista n.º 585/09.6YFLSB, 1.ª secção e disponível em www.stj.pt, Sumários de Acórdãos, onde se afirma que “estamos perante danos patrimoniais indirectos quando o dano, atingindo embora valores ou interesses não patrimoniais, se reflecte no património do lesado, daí que possa concluir-se que nem sempre o dano patrimonial resulta da violação de direitos ou interesses patrimoniais”.
[14] Cfr. artigo doutrinário de 2011 da autoria de Maria da Graça Trigo, actualmente Juíza Conselheira no Supremo Tribunal de Justiça, com o título Adopção do Conceito de “Dano Biológico” pelo Direito Português, acessível na Internet, no qual é efectuada uma análise de Acórdãos significativos do Supremo Tribunal de Justiça a este respeito. Para mais desenvolvimentos, vd. João António Álvaro Dias, in Dano Corporal – Quadro Epistemológico e Aspectos Ressarcitórios, Almedina, Colecção Teses, Set. 2001, sobretudo em págs. 395 e segs.
[15] Veja-se exemplificativamente o acórdão acabado de citar.
[16] Acórdão do STJ, de 07-02-2002, Revista n.º 3985/01 - 2.ª Secção.
[17] Cfr. Ac. STJ de 20-01-2011, proferido no processo n.º 520/04.8GAVNF.P2.S1, e disponível em www.dgsi.pt.
[18] Cfr. Ac. STJ de 20-01-2010, proferido no processo n.º 203/99.9TBVRL.P1.S1, e disponível em www.dgsi.pt.
[19] Cfr. Ac. STJ de 10- 10-2012, proferido no processo n.º 632/2001.G1.S1, e disponível em www.dgsi.pt.
[20] Cfr. o recente Ac. STJ de 30-06-2016, proferido no processo n.º 161/11.3TBPTB.G1.S1, e disponível em www.dgsi.pt, decisão em que a citada autora é adjunta.
[21] Cfr. o recente acórdão do STJ, de 02-06-2016, proferido no processo n.º 2603/10.6TVLSB.L1.S1, e disponível em www.dgsi.pt.
[22] Cfr. citado Ac. STJ de 16-06-2016.
[23] Cfr. Ac. do STJ de 04-06-2015, proferido no processo n.º 1166/10.7TBVCD.P1.S1, e disponível em www.dgsi.pt.
[24] Acórdão STJ de 05-11-2009, processo n.º 381-2002.S1- 7ª SECÇÃO, em www.dgsi.pt.
[25] Mormente os já referidos acórdãos deste TRE de 06.10.2016, processo n.º 866/11.9TBABT.E1, disponível em www.dgsi.pt, relatado pela ora Relatora e no qual foi 1.º Adjunto o ora 2.º Adjunto, confirmado pelo recente Acórdão do STJ de 15.02.2018 (ainda inédito); bem como o Acórdão desta conferência de 09.03.2017, Processo n.º 81/14.0T8FAR.E1.
[26] Cfr. Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, 6ª edição, vol. l.°, pág. 571.
[27] In “Código Civil Anotado”, vol. I, pág.501.
[28] In “Direito das Obrigações”, vol. II, pág. 288.
[29] In “Direito das Obrigações”, pág. 387.
[30] In “Direito das Obrigações”, vol. I, pág. 299.
[31] Ac. do STJ, de 30.10.96, in BMJ 460, pág. 444.
[32] Cfr. Ac. STJ de 26.01.94 in CJSTJ, Tomo I, pág.65 e de 16.12.93, in CJSTJ, Tomo III, pág.181.
[33] Inter alia, Ac. STJ de 19-05-2009, Proc.º n.º 298/06.0TBSJM.S1, disponível em www.stj.pt.
[34] Ac. STJ de 05-07-2007, Revista n.º 1734/07 - 6.ª Secção, disponível no local citado.
[35] Veja-se o caso do citado acórdão do STJ de 30-01-2016, em que se provou que em resultado do embate o Autor teve um período de repercussão temporária na actividade total de 277 dias e parcial de 302 dias; ficou com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 16 pontos; sofreu um quantum Dolores de grau 5 numa escala de 1 a 7; sofreu um dano estético de grau 3 numa escala de 1 a 7; as lesões sofridas provocaram-lhe dores físicas intensas, tanto no momento do acidente como no decurso do tratamento; as sequelas de que ficou a padecer definitivamente continuam a provocar-lhe dores físicas, incómodo e mal-estar; tais sequelas vão acompanhá-lo durante toda a vida; na data do acidente o Autor era fisicamente bem constituído, dinâmico, alegre e trabalhador; as cicatrizes de que ficou afectado desfeiam-no notoriamente; o que lhe causa profunda tristeza e amargura.
[36] Cfr. citado acórdão de 02-06-2016 e os exemplos ali referidos.
[37] Texto elaborado e revisto pela Relatora.