Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1928/21.0T8STB.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: EMPREITADA
ABANDONO DA OBRA
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
PERSONALIDADE JURÍDICA
RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUAL
INDEMNIZAÇÃO POR DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Data do Acordão: 03/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I - As nulidades da sentença reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal e que se mostrem obstativos de qualquer pronunciamento de mérito.
II - Celebrado entre o autor e a ré um contrato de empreitada por via do qual esta se obrigou a realizar as obras constantes do plano de trabalhos de empreitada discriminado no “Mapa de Pagamento/Planeamento de Obra”, no prazo máximo de 8 a 10 meses, com início em 01.10.2020 e termo em 31.07.2021, de acordo com as fases descritas naquele mapa, e estando provado que em finais de dezembro de 2020 não se encontrava ainda instalado o estaleiro, nem feitas as escavações de acordo com o projeto, conforme definido no plano para o 1º mês de obra, não pode deixar de se concluir que a ré se constituiu em mora.
III - Mantendo-se a situação inalterada no final de janeiro de 2021, e não obstante as insistências dos autores, a ré abandonou a obra, revelando esta omissão que não pretendia concluir o pouco trabalho realizado, constituindo tal abandono da empreitada incumprimento definitivo, assistindo aos autores o direito a resolver o contrato.
IV - Resolvido o contrato deve ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente. Só assim não será, se a retroatividade contrariar a vontade das partes ou a finalidade da resolução.
V - A desconsideração da personalidade coletiva da sociedade significa uma derrogação do princípio legal da separação de esferas jurídico-patrimoniais, visando-se com ela uma correção das consequências jurídicas da imputação à sociedade, segundo as regras gerais, de certos atos que, pelo seu caráter abusivo ou pela sua finalidade extra-societária, se entende que devem obrigar outras pessoas (outros patrimónios).
VI - Assim, quando exista uma utilização da personalidade coletiva que seja, ou passe a ser, instrumento de abusiva obtenção de interesses estranhos ao fim social desta, contrária a normas ou princípios gerais, como os da boa fé e do abuso de direito, relacionados com a instrumentalização da referida personalidade jurídica, deve atuar a desconsideração desta, depois de se ponderarem os verdadeiros interesses em causa, para poder responsabilizar os que estão por detrás da autonomia (ficcionada) da sociedade e a controlam.
VII - No âmbito da responsabilidade contratual, tem lugar a indemnização por danos não patrimoniais, desde que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito (art. 496.º do CC).
(Sumário pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
R.F.B.R. e O.M.M.L., instauraram a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra Vanguardargumento Unipessoal, Lda. e V.C.S.A., pedindo que os réus sejam condenados a:
a) Restituir aos autores, com fundamento em enriquecimento sem causa, a quantia de € 55.020,32, acrescida de juros de mora que, à taxa legal de 4% ao ano, se vencerem desde a data da citação até integral e efetivo pagamento e
b) Pagar a cada um dos autores, pelos danos morais causados, a quantia de € 2.000,00, acrescida de juros de mora que, à taxa legal de 4% ao ano, se vencerem desde a data da citação até integral e efetivo pagamento.
Subsidiariamente, e caso assim se não entenda, pedem os autores que o contrato de empreitada seja declarado nulo e, consequentemente, os réus condenados a restituir-lhes a quantia de € 55.020,32.
Alegam, em resumo, que:
- O réu V.C.S.A., que é o único titular do capital social e gerente da sociedade ré, se mostrou disponível, em maio de 2020, na referida qualidade de gerente, para executar os trabalhos de construção da moradia que os autores queriam construir em terreno que haviam adquirido para essa finalidade, tendo os autores salientado ao réu que tinham vendido a casa onde moravam e que se encontravam a residir, temporariamente, na garagem da casa da mãe da autora, pelo que o prazo de construção era essencial para eles.
- O réu garantiu ter condições para executar as obras no prazo máximo de 8 a 10 meses, pelo que os autores lhe adjudicaram, verbalmente, a obra de construção da moradia, tendo-lhe entregue, em numerário, a quantia de € 5000,00, comprometendo-se o réu a reduzir a escrito e apresentar aos autores, para assinatura, o contrato de empreitada, o que veio a suceder em 11 de setembro de 2020, momento em que o autor R.F.B.R.e a ré sociedade, representada pelo réu, assinaram o contrato de empreitada junto aos autos de procedimento cautelar.
- De acordo com o plano de trabalhos de empreitada discriminado no “Mapa de Pagamento/ Planeamento de Obra” do Anexo I ao Contrato de Empreitada, a R. comprometeu-se a executar a obra no prazo máximo de 8 a 10 meses, com início em 01.10.2020 e termo em 31-07-2021, de acordo com as fases constantes daquele mapa, e os pagamentos deveriam observar os escalonamentos aí consignados.
- Em 29.01.2021 não se encontravam sequer executados todos os trabalhos para o 1º mês de obra e os autores já tinham entregue ao réu a quantia de € 55.020,32, sendo que o réu deixou de atender às suas chamadas e procedeu ao abandono da obra, pelo que os autores lhe remeteram carta a declarar a resolução do contrato e a solicitar a devolução das importâncias pagas, propósito posteriormente reiterado pela sua advogada.
- Em fevereiro de 2021, solicitaram a um técnico que medisse os trabalhos realizados, tendo aquele concluído que os mesmos rondavam apenas os € 1.600,00, além de que apresentavam deficiências que careciam de ser corrigidas, sendo que à data da resolução já deveria estar concluída a estrutura da moradia, onde se incluem as subfases de fundações, pilares do piso 0 e 1, Lage do piso 0 e 1, enchimentos, argamassas, alvenarias, muros e piscina.
- A quantia entregue pelos autores ingressou numa conta titulada pelo próprio réu V.C.S.A., a qual foi indicada no contrato de empreitada.
- Quer no contrato de empreitada quer no placar colocado no local da obra, em vez da firma “Vanguardargumento Unipessoal Lda.”, o réu V.C.S.A. fez constar a firma “V.A.-Remodelação e Construção Urbana, Lda., a qual não tem existência jurídica, não tendo também sido indicado o Alvará conferido pelo IMPIC, I.P.
- A conduta dos réus causou aos autores muita ansiedade e desgaste, que os privou e continua a provar das condições psicológicas necessárias à concentração para trabalhar e descansar, passando noites em claro, sentindo-se inseguros com a incerteza de terem dinheiro suficiente para continuar o projeto de construção da sua habitação, além de que o facto de não terem casa e terem de viver numa garagem com os filhos, dois dos quais menores, é causa de tristeza e de desânimo.
Em fundamentação do pedido subsidiário alegam ainda os autores que a obrigação de restituir deve também fazer-se através dos bens pessoais do réu V.C.S.A., enquanto sócio único da sociedade ré, por força do instituto da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade, já que é o titular efetivo único da totalidade do seu capital social, que utiliza como uma extensão do seu património pessoal.
Regularmente citados, os réus não contestaram.
Foi proferido despacho a considerar confessados os factos articulados na petição e inicial e, cumprido o disposto no nº 2 do artigo 567º do CPC, não foram apresentadas alegações.
Foi de seguida proferida sentença que julgou a ação improcedente e absolveu os réus dos pedidos formulados.
Inconformados, os autores apelaram do assim decidido, tendo finalizado as alegações com as conclusões que a seguir se transcrevem:
« A)
O presente recurso vem interposto da douta Sentença proferida na ação declarativa com o n.º 1928/21.0T8STB, do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal – Juízo Central Cível de Setúbal – Juiz 3, que absolveu os RR. do pedido de restituição aos AA., a título principal por via do enriquecimento sem causa e, subsidiariamente, da nulidade do contrato de empreitada, da quantia €55.020,32 (cinquenta e cinco mil e vinte euros e trinta e dois cêntimos).
B)
Perante a revelia absoluta operante dos RR., o Tribunal estava obrigado a dar como provados os factos tal como articulados pelos AA. na p.i., à exceção “de factos para cuja prova se exija documento escrito”, conforme decorre dos artigos 567.º, n.º 1 e 568.º al. d), ambos do CPC, o que não fez, alterando, infundadamente, a redação dos artigos 13.º, 23.º, 26.º, 40.º, 51.º, 54.º, 61.º e 71.º da pi, julgando não provados os factos articulados pelos autores e correspondência às alíneas B) a J) da decisão de facto e omitindo da decisão os factos articulados nos artigos 16.º, 18.º, 19.º, 20.º, 21.º, 55.º, 56.º, 62.º, 63.º, 64.º, 67.º e 76.º da pi.
C)
Entendem os autores que não se verifica a exceção de que o Tribunal se socorreu para considerar não obrigada no contrato de empreitada a sociedade Ré, por um lado por não haver exigência legal de forma para o contrato de empreitada (como o próprio Tribunal reconhece) e, por outro, pelo facto de esse documento existir, pelo que a organização da decisão de facto inquina de nulidade a Sentença por excesso de pronúncia.
D)
Verifica-se, assim, que o Tribunal devia ter dado como provados os factos tal como articulados pelos autores na petição inicial quanto à responsabilidade da sociedade ré, ocorrendo violação manifesta do princípio da revelia operante prevista no n.º 1 do artigo 567.º do CPC.
E)
Sempre existirá erro de julgamento quanto à matéria que o Tribunal alterou e sem que para a mesma fosse exigida prova por documento, concretamente quanto aos factos constantes dos pontos 13,
F)
No artigo 13.º (com correspondência do Ponto 13 dos Factos Provados), o TAQ não devia ter substituído a expressão “assinaram” por “ celebraram”, devendo o artigo ter a seguinte redação: “No dia 11 de setembro de 2020, o A. R.F.B.R.e o R. V.C.S.A., tendo por objeto a construção da moradia, assinaram um documento que denominaram por “Contrato de Empreitada”, subordinando-o às condições constantes do documento junto ao procedimento cautelar como Doc. N.º 8 e cujo teor aqui se dá por reproduzido para os devidos efeitos).”, por não haver qualquer fundamento para substituir o verbo “assinar” por “celebrar”.
G)
Sem qualquer fundamento, o TAQ alterou a redação do artigo 23.º da pi, onde se escreveu que "No 1.º mês de obra, entre 01-10-2020 e 31-10-2020, a ré estava obrigada a executar os trabalhos de limpeza do terreno, instalação do estaleiro, marcação por topógrafo e escavações" por “O referido pagamento pressupunha a execução, entre 01-10-2020 e 31- 10-2020 dos trabalhos de limpeza do terreno, instalação do estaleiro, marcação por topógrafo e escavações”, pelo que deverá o mesmo ter a seguinte redação: "No 1.º mês de obra, entre 01-10-2020 e 31-10-2020, a ré estava obrigada a executar os trabalhos de limpeza do terreno, instalação do estaleiro, marcação por topógrafo e escavações".
H)
Sem qualquer fundamento, o TAQ deu como assente, no Ponto19 dos Factos Provados que “O referido pagamento pressupunha a execução, entre 01-11-2020 e 31- 12-2020, dos trabalhos de construção da estrutura da moradia, onde se incluem as subfases de fundações, pilares do piso 0 e 1, Lage do piso 0 e 1, enchimentos, argamassas, alvenarias, muros e piscina”, em vez da redação dada pelos autores no artigo 25.º da pi, pelo que o mesmo deve passar a ter a seguinte redação: "No 2.º e 3.º meses de obra, entre 01-11-2020 e 31-12-2020, a ré obrigou-se a executar os trabalhos de construção da estrutura da moradia, onde se incluíam as subfases de fundações, pilares do piso 0 e 1, Lage do piso 0 e 1, enchimentos, argamassas, alvenarias, muros e piscinas”.
I)
No Ponto 26 dos Factos provados o TAQ altera a redação do facto tal como articulado pelos autores na pi, dando como provado que “Desde o início que o contrato não foi cumprido pontualmente, havendo atrasos e ausências na obra, designadamente em reuniões marcadas, que o R. V.C.S.A. justificava com “esquecimentos” e atrasos de terceiros”, eliminando o segmento articulado pelos autores de que "Desde o início que a ré não cumpriu pontualmente o contrato (...)" que, por não carecer de prova documental, deve ser aditado.
J)
O TAQ deu como provado que “32. Em 11-02-2021, os AA, através da sua mandatária, enviaram carta registada à Ré sociedade, onde, além do mais se refere 8…)” quando, na pi, se articulou que “Por carta registada, enviada à ré com aviso de receção em 11-02-2011, os autores, através da sua mandatária, reiteraram a resolução do contrato de empreitada com fundamento no incumprimento definitivo do mesmo, instando a ré a restituir a quantia paga” (artigo 40.º da pi).
K)
O TAQ não fundamenta a nova redação que dá ao artigo, não havendo qualquer documento ou outro meio de prova exigível legalmente em face da revelia absoluta operante que lhe permita fazer uma nova formulação do mesmo, designadamente omitir que os autores reiteraram à ré (fazendo alusão à comunicação resolutiva que o autor R.F.B.R.já havia remetido à Ré por email e que ficou provado no Ponto 29 dos factos provados) a resolução do contrato, devendo o facto ter a redação de “Por carta registada, enviada à ré com aviso de receção em 11-02-2021, os autores, através da sua mandatária, reiteraram a resolução do contrato de empreitada com fundamento no incumprimento definitivo do mesmo, instando a ré a restituir a quantia paga (Cfr. fotocópia da carta que se encontra junta ao procedimento cautelar como Doc. N.º 16 e cujo teor se dá por reproduzido para os devidos efeitos).
L)
O TAQ deu como assente que “41. Os autores pagaram, até 06-10-2020, a quantia de 55.020,32€.”, o que apenas corresponde a parte do articulado pelos autores no artigo 51.º da pi, pelo que deve ser aditado que: “(…) sem que tenha sido executado qualquer trabalho válido na obra, para além da limpeza do terreno” por ser facto que não carece de prova documental.
M)
No artigo 44.º dos factos provados, e que corresponde ao artigo 54.º da pi, o TAQ deve ser acrescentado o advérbio “antecipadamente”, passando o facto a ter a seguinte redação: “Assim que o réu V.C.S.A. recebeu, antecipadamente, os pagamentos respeitantes ao 1.º e 2.º meses de obra, nunca mais foi feito qualquer trabalho.”
N)
Quanto ao facto provado no ponto 49, e que corresponde ao facto alegado no artigo 61.º da pi, o Tribunal apenas deu como assente que “O réu V.C.S.A. identifica no contrato uma sociedade com uma firma falsa para criar confusão entre intervenientes.”, omitindo o segmento final alegado pelos AA. “em benefício do enriquecimento do seu património pessoal”, que deve ser aditado.
O)
O Tribunal deu como provado que “53. O réu V.C.S.A. emite faturas dos valores que recebe na sua conta pessoal.”, o que não resulta do artigo 71.º da pi, onde não se escreveu “O réu”, mas sim “Sendo que, emite faturas dos valores que recebe na sua conta pessoal por saber que não vai pagar os respetivos impostos.”, artigo que vem na sequência do artigo precedente em que se faz referência à atuação da sociedade Ré e que, juntamente com as faturas juntas ao processo, permite concluir que as faturas são da sociedade Ré e não do Réu V.C.S.A., conforme parece resultar da redação dada pelo Tribunal ao fazer constar que “O réu V.C.S.A. emite faturas (…)”.
P)
O TAQ omitiu, ainda, da Sentença, os factos alegados pelos autores nos artigos 16.º, Artigos 18.º, 19.º, 20.º, 21.º, 55.º, 56.º, 62.º, 63.º, 64.º, 67.º e 76.º e que, por força do disposto no artigo 567.º do CPC, devem ser aditados aos Factos Provados.
Q)
Dos factos tal como organizados na douta Sentença não existe qualquer obrigado no contrato de empreitada, não tendo a ré sociedade sido ali substituída pelo réu V.C.S.A. na assunção das obrigações no âmbito do contrato de empreitada que foi reduzido a escrito e com base no qual o TAQ excecionou o efeito cominatório da revelia absoluta dos réus.
R)
Desta omissão resulta a impossibilidade de considerar injustificada a deslocação patrimonial feita pelos autores e, por conseguinte, esse pressuposto do enriquecimento sem causa.
S)
O facto assente no Ponto 13) dos Factos Provados – assinatura aposta no documento intitulado por “Contrato de Empreitada” pelo autor R.F.B.R.e pelo réu V.C.S.A. – não é de todo suficiente para considerar que o réu V.C.S.A. assumiu as obrigações contratuais da empreitada, mas tão só que a sua assinatura não vinculou a ré sociedade.
T)
Não sendo obrigada no contrato a sociedade ré com a qual o autor R.F.B.R.considerou estar a contratar, nunca existiu (ou, no limite, deixou de existir) causa para o pagamento dos €55.020,23.
U)
Acresce que, tão-pouco se pode considerar ter existido qualquer causa para que o referido valor tivesse ingressado no património pessoal do réu V.C.S.A., o que justifica a restituição com fundamento no enriquecimento sem causa, por verificados os pressupostos do artigo 473.º do CC, porquanto resulta dos factos provados que os autores (ou melhor, o autor R.F.B.R. já que a autora O.M.M.L. nem sequer assinou o contrato) quiseram e pensaram estar a contratar com a sociedade ré, titular do alvará, e a entregar-lhe os pagamentos efetuados por conta de um contrato de empreitada válido.
V)
Os factos provados não permitem chegar à conclusão da existência de um contrato de empreitada entre os AA. e o Réu singular, nem que os autores efetuaram pagamentos ao réu V.C.S.A. enquanto verdadeiro obrigado e outorgante nesse contrato, conforme decorre, por ex., dos seguintes factos provados: “A referida quantia ingressou numa conta titulada pelo próprio réu V.C.S.A., o que os autores apenas se aperceberam quando alertados pela sua mandatária” e que “O réu V.C.S.A. recebeu na sua conta bancária o dinheiro dos autores, não o afetando nem à obra (…)”
W)
O que resulta, pois, da fundamentação de facto é que a sociedade Ré não se obrigou no contrato de empreitada porquanto o réu V.C.S.A. a não vinculou enquanto gerente, seguindo o Tribunal a quo, neste ponto, o que doutamente se entendeu no TRE que revogou o douto despacho do TAQ que não decretou o arresto dos bens dos réus, mas para se atender à pretensão dos AA. ali requerentes.
X)
Em face do exposto, e tendo-se provado que as quantias ingressaram na conta pessoal do Réu V.C.S.A., verificam-se os pressupostos do enriquecimento sem causa, pelo que a Sentença padece de erro de julgamento ao julgar não aplicável ao caso o instituto do enriquecimento sem causa, violando o disposto no artigo 473.º do CC.
Y)
Mas mesmo que assim se não entendesse, sempre o Tribunal a quo deveria ter condenado na restituição aos AA. por força do instituto do enriquecimento sem causa, conforme manda o previsto no n.º 1 do artigo 795.º do CC (“restituição nos termos prescritos para o enriquecimento sem causa”) e conforme foi já decidido noutros processos em que os aqui réus também são demandados (Cfr. Sentença junta como Doc. N.º 19 e Sentença que se junta ex novo e que só agora se junta por ter sido notificada em 24-11-2021)
Z)
Mas mesmo que se considerasse ter sido o Réu V.C.S.A. a vincular-se como pessoa singular no contrato de empreitada (que por mera cautela de patrocínio se equaciona), a solução sempre seria a da obrigação de restituição da quantia aos autores por força da nulidade desse mesmo contrato, conforme pedido subsidiário formulado na ação.
AA)
Tem-se entendido que os efeitos da resolução do contrato não são os da nulidade, senão quanto à liquidação.
AB)
Dos factos provados resulta que os autores resolveram o contrato putativamente celebrado com a ré Vanguardargumento, tendo sido esta a única destinatária e declaratária das duas comunicações resolutivas dadas como assentes e, por conseguinte, sem qualquer eficácia relativamente ao réu singular enquanto eventual (mas não aceite) contratante.
AC)
Sendo uma declaração receptícia e dirigida à sociedade ré, mesmo acolhendo a tese da douta Sentença, não se poderia considerar resolvido o contrato de empreitada com o réu V.C.S.A. (nem o reconhecimento resolutivo veio a ser peticionado).
AD)
Ainda em desabono da tese sufragada na douta Sentença – impossibilidade de declaração de nulidade de contrato extinto por resolução – diga-se que que a resolução é uma forma de supressão ou extinção de contratos válidos, pelo que os contratos nulos ou anuláveis não são resolúveis.
AE)
Assim, admitindo na Sentença a nulidade do contrato por vício de forma, o TAQ jamais poderia ter considerado resolvido o contrato, devendo, ao invés, declarar a sua nulidade com as legais consequências, conforme pedido subsidiariamente formulado, já que sempre seria a nulidade que impediria os efeitos da resolução e não o inverso.
AF)
A declaração de nulidade do negócio jurídico tem efeito retroativo (ex tunc), devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado (artigo 289º, nº. 1, do Código Civil);
AG)
O TAQ devia ter condenado os réus no pedido de restituição das quantias recebidas, fosse por via do enriquecimento sem causa, fosse por via da nulidade do contrato.
AH)
Ao absolver os réus, a douta Sentença enferma de erro de julgamento, violando os artigos 473.º, 795.º, n.º 1 e 289.º, todos do CC.
AI)
A Sentença é nula ao abrigo do disposto no artigo 615.º, n.º 1 do CPC e artigo 3.º, n.º 3 do CPC.
Nestes termos, e nos mais e melhores de Direito que V.Ex.ªs sempre doutamente suprem, deve o presente recurso merecer provimento, revogando-se a douta Sentença recorrida, como é de elementar JUSTIÇA!»

No despacho em que admitiu o recurso, o Tribunal a quo proferiu decisão nos termos do art. 617º, nº 1, do CPC, concluindo pela inexistência da nulidade da sentença por excesso de pronúncia.

Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), são as seguintes, atendendo à sua precedência lógica, as questões a decidir:
- nulidade da sentença;
- impugnação da matéria de facto;
- vinculação contratual da ré;
- resolução do contrato;
- desconsideração da personalidade jurídica da ré.
- nulidade do contrato.

III – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICO-JURÍDICA
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1. A sociedade Vanguardargumento é uma sociedade comercial que tem por objeto a “Construção civil e obras públicas, reabilitação e conservação de edifícios, compra e venda de bens imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim”.
2. E é titular do alvará de empreiteiro de obras particulares n.º 91129-PAR, emitido em 07-03-2019 pelo Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção, I.P. (IMPIC, I.P.)
3. O réu V.C.S.A. é o único titular do capital social e gerente da referida sociedade.
4. No dia 06-12-2019, os autores adquiriram, por compra, na proporção de 2/3 para o autor R.F.B.R.e de 1/3 para a autora O.M.M.L., pelo preço de 42.500,00€ (quarenta e dois mil e quinhentos euros), o prédio urbano composto de lote de terreno para construção sito na Rua (…), na freguesia de Charneca de Caparica, descrito na 2.ª CRP de Almada sob o n.º (…) e inscrito na matriz urbana da UF de Charneca de Caparica e Sobreda sob o artigo (…).
5. Os autores compraram o lote de terreno para ali edificarem uma moradia unifamiliar para sua habitação própria permanente.
6. Para compra do terreno e pagamento das despesas iniciais com o projeto e construção, em 28-11-2019 o A. R.F.B.R.vendeu um imóvel de que era proprietário e onde residia com a A. O.M.M.L. e, em 11-05-2020, com a mesma finalidade, a A. O.M.M.L. vendeu um outro imóvel de que era proprietária.
7. Com a mesma finalidade, contraíram ainda um empréstimo de 190.000,00€ (cento e noventa mil euros) junto do Banco BPI, S.A.
8. Em maio de 2020, a sociedade ré, representada pelo seu sócio e gerente V.C.S.A. mostrou-se disponível para executar os trabalhos de construção da moradia.
9. Os AA transmitiram ao R. V.C.S.A. que tinham vendido a casa onde moravam e que se encontravam a residir, temporariamente, na garagem da casa da mãe da A. O.M.M.L., pelo que o prazo de construção era essencial para eles.
10. O R. V.C.S.A. garantiu ter condições para executar as obras no prazo máximo de 8 a 10 meses, o que levou os AA a adjudicar-lhe, verbalmente, a obra de construção da moradia no lote de terreno acima identificado.
11. Com a adjudicação verbal, a pedido do R. V.C.S.A., no final de maio de 2020, os AA entregaram-lhe, em numerário, a quantia de 5.000,00€ (cinco mil euros).
12. O R., na qualidade de gerente da sociedade ré, ficou de reduzir a escrito e apresentar aos requerentes, para assinatura, o contrato de empreitada.
13[1]. No dia 11 de setembro de 2020, o A. R.F.B.R.e o R. V.C.S.A., celebraram o acordo escrito denominado por “Contrato de Empreitada”, junto a fls. 33 e ss. do procedimento cautelar, aqui dado por inteiramente reproduzido, o qual foi assinado pelo 2º R. abaixo da designação de 2º Outorgante e onde, além do mais consta:
“Entre
Primeiro Outorgante: Sr. R.F.B.R. (…), designado como Primeiro Outorgante,
E
Segundo Outorgante: V.A - Remodelação e Construção Urbana Lda, nº contribuinte (…), com sede na Rua Bento Jesus Caraça, Lote nº 62 - Quinta do Conde Sesimbra, tendo como Sócio Gerente o Ex.mo Sr. V.C.S.A., sendo representante e Empreiteiro, como tal doravante designado para efeitos do presente contrato, contribuinte nº (…), designado como Segundo Outorgante,
É estabelecido e reciprocamente ajustado o presente CONTRATO DE EMPREITADA, que se rege pelas cláusulas seguintes:
1ª Cláusula
OBJECTO
1. A PRIMEIRA OUTORGANTE é a adjudicatária da empreitada de Construção de Habitação e Piscina, silo na Rua (…), de ora em diante designada por Empreitada, por contrato celebrado com o Sr: R.F.B.R. com morada fiscal na Rua (…), adiante designada por DONO DE OBRA.
2. Pelo presente contrato, a PRIMEIRA OUTORGANTE contrata com a SEGUNDA OUTORGANTE, a execução dos trabalhos de Construção e Habitação, da Empreitada referida no número anterior,
3. A SEGUNDA OUTORGANTE tem perfeito conhecimento das cláusulas do Caderno de Encargos da mencionada Empreitada, obrigando-se a dar satisfação às respetivas disposições, especificações e requisitos do Projeto, do Caderno de Encargos. do Plano de Trabalhos e demais documentação relativa à Empreitada, de modo que a PRIMEIRA OUTORGANTE não possa ser tida por responsável pelo seu não cumprimento, na parte que com este contrato se relacionar.
4. Para a execução dos trabalhos ora contratados, a SEGUNDA OUTORGANTE inspecionou o local da obra e está. inteirada de todas as dificuldades e exigências associadas à execução da mesma, nomeadamente, no que respeita a materiais, equipamento mão-de-obra e acessibilidades, bem como aos demais fatores que possam interferir nos trabalhos a executar.
2ª Cláusula
NATUREZA DOS TRABALHOS
1. Os trabalhos a executar pela SEGUNDA OUTORGANTE, no âmbito do presente contrato constam de: Construção de Habitação, conforme Proposta de Orçamento DT- 03-20, data a 03 da Junho de 2020 e lista de preços nele apresentado, constantes no ANEXO I do presente contrato.
3ª Cláusula
PREÇO
1. A SEGUNDA OUTORGANTE obriga-se a executar todos os trabalhos do presente contrato em regime de Valor Final, ANEXO I- pela quantia de e 148.500,00 Euros.
2. Ao preço mencionado no artigo anterior acresce o IVA À TAXA LEGAL EM VIGOR.
3. No preço para execução dos trabalhos estão incluídos todos os encargos com os meios de mão-de-obra, materiais a equipamentos necessários e adequados para satisfação do objeto do contrato.
(…)
4. Estão incluídos nos preços deste contrato, sendo da inteira responsabilidade da SEGUNDA OUTORGANTE, para além dos pagamentos de salários do pessoal ao seu serviço e respetivos encargos sociais e os pagamentos aos seus fornecedores, todos os encargos decorrentes, seguro contra riscos de acidentes de trabalho, seguro de responsabilidade civil, seguros de equipamentos e máquinas.
5ª Clausula
PRAZO DE EXECUÇÃO
1. O prazo de execução dos trabalhos é de acordo com a licença de construção, com início a 01/10/2020 e término a 30/06/2021.
2. A SEGUNDA OUTORGANTE obriga-se a mobilizar os meios necessários, em dotação e natureza adequados, para que os trabalhos sejam executados em total conformidade com este prazo.
3. Os trabalhos serão levados a efeito de forma coordenada com os restantes trabalhos da empreitada e de modo a não levar a risco de incumprimento dos respetivos prazos de execução, consagrados no PLANO DE TRABALHOS DA EMPREITADA aprovado pelo DONO DE OBRA, ANEXO I.
4. No caso da ocorrência de atraso na execução dos trabalhos deste contrato, levando a risco de Incumprimento dos prazos do PLANO DE TRABALHOS da empreitada ou ainda por ordem emanada pelo DONO DE OBRA, obrigando a diminuição desses prazos, deverá a SEGUNDA OUTORGANTE reforçar os meios empregues em obra ou aumentar o período de duração diária da sua utilização ou ainda, a laborar a sábados, domingos e feriados, sem que por essa facto resulte aumento de encargos ou assunção da quaisquer outras responsabilidades para a PRIMEIRA OUTORGANTE.
(…)
8ª Clausula
FATURAÇÃO E PAGAMENTO
1. O pagamento dos trabalhos do contrato será feito por prestações variáveis antecipadas, em função do valor dos trabalhos realizados de acordo com o ANEXO I.
2. As faturas a emitir pela SEGUNDA OUTORGANTE deverão fazer referência ao número deste contrato, ser acompanhadas petos correspondentes ANEXO I. ser elaboradas em duplicado e dar entrada no prazo dê 5 dias apôs a data de elaboração dos mesmos, no local a indicar pelo DONO DE OBRA3.
A aprovação dos pagamentos deverá ser aprovada e antecipada, pela Direção de FISCALIZAÇÃO - (Arq. (…)), constitui condição para a PRIMEIRA OUTORGANTE aceitar a emissão das correspondentes faturas.
4. Sem prejuízo do disposto no número seguinte, o prazo para pagamento das faturas, é de 5 dias a contar da data da sua receção pela PRIMEIRA OUTORGANTE, sendo que os pagamentos serão levados a efeito, imediatos à conclusão do prazo, para o seguinte NIB da segunda outorgante (NIB - (…)),
5. Só serão levadas a pagamento as faturas que se encontrem corretamente elaboradas, assistindo à PRIMEIRA OUTORGANTE o direito de devolver as faturas que não se encontrem nessa situação…
(…)
10ª Clausula
INCUMPRIMENTOS
1. O SEGUNDO OUTORGANTE incorre em Incumprimento do presente contrato, nomeadamente. quando:
a) Não der início à execução dos trabalhos deste contrato decorrido que seja aprazo de 5 dias apôs comunicação pela PRIMEIRA OUTORGANTE;
o) Interromper, por sua iniciativa, a execução dos trabalhos por mais de três dias seguidos e desde que a interrupção não resulte de facto que configure algumas das situações previstas na cláusula7.a;
c) Se atrasar, em mais de 15 dias, ao prazo de execução dos trabalhos ou qualquer outro prazo parcelar fixado nesta contrato;
d) Abandonar a obra; considerando-se como abandono (i) a ausência da obra do pessoal elou do representante designado pela SEGUNDA OUTOR.GANTE durante 2 (dois) dias úteis consecutivos, (ii) a não comparência daquele em obra no dia designado pela PRIMEIRA OUTORGANTE para reuniões para que esteja convocado e/ou para início da reparação das anomalias detetadas durante o período de garantia;
e) Não der execução aos trabalhos de reparação que lhe selam exigidos nos termos e para observância do disposto na cláusula 9ª, nº 5, deste contrato
f) Não proceder ao pagamento das importâncias que lhe sejam fixadas para indemnizar ou ressarcir a PRIMEIRA OUTORGANTE dos prejuízos a que tenha dado causa, nos termos deste contrato;
g) Desrespeitar quaisquer obrigações que lha sejam exigíveis, nos termos da Lei e/ou do presente contrato.
2. A ocorrência de um dos seguintes factos, por causas não imputáveis à PRIMEIRA OUTORGANTE, não confere à SEGUNDA OUTORGANTE o direito a qualquer indemnização ou compensação;
i) a suspensão, 'total ou parcial, dos trabalhos da Empreitada que implique a suspensão, total ou parcial, dos trabalhos ora contratados;
ii) a rescisão do contrato de Empreitada que implique a rescisão do presente contrato;
iii) a redução alou supressão de trabalhos da Empreitada pelo Dono de Obra que implique a redução e I ou supressão, seja total, seja parcial, dos trabalhos ora contratados…
11ª Cláusula
PENALIDADES
1. O incumprimento do presente contrato pela SEGUNDA OUTORGANTE. confere à PRIMEIRA OUTORGANTE o direito de o resolver, mediante simples comunicação ao SUBEMPREITEIRO.
2. Sem prejuízo elo disposto no número anterior a PRIMEIRA OUTORGANTE terá direito a exigir indemnização pelos prejuízos sofridos, bem como a proceder. por si ou por intermédio de terceiro ao cumprimento da prestação em falta ou em mora ou à eliminação dos defeitos da prestação efetuada, consoante o caso, debitando à SEGUNDA OUTORGANTE os correspondentes encargos.
3. Caso se verifique o incumprimento referido na alínea c) da cláusula anterior, a PRIMEIRA OUTORGANTE poderá, se o entender, aplicar à Segunda as multas por violação dos prazos contratuais estabelecidas.
4. Quaisquer sanções pecuniárias aplicadas pelas entidades fiscalizadoras competentes, decorrentes, nomeadamente, de má sinalização dos trabalhos, de infrações à legislação ambiental, laboral ou às normas de higiene e segurança, imputáveis à SEGUNDA OUTORGANTE, serão integralmente suportadas por esta,
5. A PRIMEIRA OUTORGANTE reserva-se o direito de utilizar o material da SEGUNDA sem qualquer indemnização, em caso de incumprimento do presente contrato e/ou abandono da obra pela SEGUNDA.
6. Sem prejuízo do disposto no ponto anterior, a resolução do contrato nos termos desta cláusula, determina, de imediato. a suspensão de pagamentos à SEGUNDA OUTORGANTE é o apuramento definitivo de saldos credores e devedores, mediante elaboração de auto de medição dos trabalhos, com redução do preço contratualmente fixado ao valor dos trabalhos que tenham sido executados até à data da resolução do contrato.”.
14. No plano de trabalhos de empreitada discriminado no “Mapa de Pagamento/ Planeamento de Obra” do Anexo I ao Contrato de Empreitada, foi assumido o compromisso de executar a obra no prazo máximo de 8 a 10 meses, com início em 01-10-2020 e termo em 31-07-2021, e de acordo com as seguintes fases:
- Primeiro mês de obra, com a duração de um mês, para limpeza do terreno, instalação do estaleiro, marcação da obra por topógrafo e escavações;
- Início do 2º mês de obra, com duração de dois meses, para os trabalhos de terraplenagem e aterros, execução da estrutura da moradia e enchimento;
- Início do 4º mês de obra, com a duração de três meses, para revestimento e trabalhos das especialidades de canalização e eletricidade e ainda para isolamento;
- Início do 7º mês de obra, com a duração de três meses, para acabamento das especialidades e trabalhos exteriores, incluindo pavimento exterior, pintura, carpintaria e
- Início do 9º mês de obra, com a duração de um mês, para limpezas gerais e entrega da obra.
15. De acordo com o “Mapa de Pagamentos/Planeamento de Obra” constante do Anexo I do Contrato de Empreitada, ficou acordado o pagamento faseado, nos termos seguintes:
- 10%, no montante de 14.850,00€ (catorze mil oitocentos e cinquenta euros), no 1º mês de obra;
- 25%, no montante de 37.125,00€ (trinta e sete mil cento e vinte cinco euros), no início do 2º mês de obra;
- 30%, no montante de 44.550,00€ (quarenta e quatro mil quinhentos e cinquenta euros), no início do 4º mês de obra;
- 30%, no montante de 44.550,00€ (quarenta e quatro mil quinhentos e cinquenta euros), no início do 7.º mês de obra e
- 5%, no montante de 7.425,00€ (sete mil quatrocentos e vinte e cinco euros), no início do 9.º e último mês de obra.
16. No dia 26-08-2020 os AA pagaram, por transferência bancária para a conta com o IBAN (…) que lhes foi fornecida pelo R. V.C.S.A., a quantia de 12.634,38€ (doze mil seiscentos e trinta e quatro euros e trinta e oito cêntimos) referente aos 10% do primeiro mês de obra, quantia que ingressou diretamente na conta pessoal do Requerido V.C.S.A..
17. O referido pagamento pressupunha a execução, entre 01-10-2020 e 31-10-2020 dos trabalhos de limpeza do terreno, instalação do estaleiro, marcação por topógrafo e escavações.
18. No dia 06-10-2020, a pedido do requerido V.C.S.A., os AA transferiram para a conta com o IBAN (…), já identificada no contrato de empreitada, a quantia de 37.385,94€ (trinta e sete mil trezentos e oitenta e cinco euros e noventa e quatro cêntimos) referente a 30% devidos no 2º mês de obra, quantia que ingressou diretamente na conta pessoal do Requerido V.C.S.A..
19. O referido pagamento pressupunha a execução, entre 01-11-2020 e 31-12-2020, dos trabalhos de construção da estrutura da moradia, onde se incluem as subfases de fundações, pilares do piso 0 e 1, Lage do piso 0 e 1, enchimentos, argamassas, alvenarias, muros e piscina.
20. Desde o início que o contrato não foi cumprido pontualmente, havendo atrasos e ausências na obra, designadamente em reuniões marcadas, que o R. V.C.S.A. justificava com “esquecimentos” e atrasos de terceiros.
21. Devido às quantias já pagas, os AA, apesar da preocupação com a conduta do requerido, foram insistindo para que os prazos fossem cumpridos.
22. Em finais de dezembro de 2020 não se encontrava ainda instalado o estaleiro, nem feitas as escavações de acordo com o projeto, conforme definido no plano para o 1º mês de obra.
22-a). Os AA foram insistindo para que o contrato fosse cumprido, telefonando e mandando mensagens ao Réu, para que desse andamento à obra, mas sem sucesso.
23. O Réu justificava-se com o atraso da cofragem, dizendo que já estava a tratar da situação e que no início de janeiro voltavam à obra.
24. Por mensagem de correio eletrónico de 10-12-2020, sem o prévio conhecimento ou consentimento dos AA, o R. V.C.S.A. elaborou e remeteu ao A. e R.F.B.R.uma nova calendarização da obra, onde constava, para janeiro de 2021, na 1ª semana, a realização de escavações, na 2ª e 3ª semanas as fundações, e na 4ª semana os pilares do Piso 0.
25. Porém, nunca foi feito qualquer trabalho na obra, mantendo-se a situação inalterada no final de janeiro de 2021.
26. O R. V.C.S.A. deixou de atender o telefone aos AA.
27. Tendo abandonado a obra.
28. Nunca mais apareceu ou contactou os AA, designadamente no sentido de continuar os trabalhos.
29. No dia 29-01-2021, o A. remeteu ao R. V.C.S.A., por correio eletrónico, uma comunicação escrita, declarando a resolução do contrato por incumprimento do mesmo e pedindo a restituição da quantia paga.
30. No dia 08-02-2021, o R. V.C.S.A. respondeu ao requerente através da comunicação escrita cuja cópia consta de fls. 51 e vº do p.c., onde além do mais consta:
“Ex mo Sr. R.F.B.R. Nif: (…)
Na sequência da sua carta enviada por e-mail no dia 29/01/2021, no qual mereceu todo o meu respeito, passo a ditar:
1 - Em primeiro lugar o Sr R.F.B.R. por livre e espontânea vontade enviou um e-mail com o pedido de rescisão de contrato celebrado na data 11 de Setembro de 2020, sem nada ter combinado com a empresa VANGUARDARGUMENTO UNIPESSOAL, LDA
2 - Este projeto, foi alvo de vários pedidos (via telemóvel) de alterações (por exemplo: as escadas interiores em vez de serem em betão o cliente quer em estrutura metálica) O cliente foi informado por mim, como empreiteiro que não deve alterar o projeto de Estabilidade, uma vez que o projeto de licenciamento aprovado pela Camara Municipal de Almada não pode sofrer alteração, nesta fase uma vez que estamos a iniciar a obra
(…)
Como diz o Sr R.F.B.R. e certo que o planeamento, derrapou (dedicado á não entrada no dia do planeamento, mas nunca foi minha intenção abandonar a obra) foi enviado novo de obra no dia 10/12/2021 no qual o Sr. R.F.B.R.não se pronunciou pelo Plano Apresentado e daí seguirmos em obra
Sr. R.F.B.R.foi avisado para não alterar o projeto da estabilidade, uma vez que o mesmo já estava aprovado na CMA
Perante os factos estamos com atrasos de obra, mas não esqueçamos que o Prazo Legal da empreitada termina a 17 de Março de 2022, eu na boa fé e como sempre planei com o cliente terminar a obra no Final de Julho de 2021, mas alertando sempre o cliente que poderá ser impossível visto que a empreitada não é de lodo da responsabilidade da empresa Vanguardargumento pessoal, Lda, como consta no Anexo do contrato
Movimentos Financeiros;
Os montantes transferidos (1° Pagamento foi feito em Dinheiro, 2.a e 3.a em Tranche), não constam na sua realidade), ou seja as faturas que o 1° outorgante tem em seu poder não são iguais ao pagamentos pelo mesmo efetuados, (ainda falta dinheiro), mas não foi por esse motivo que a obra parou.
Relembro que no dia 06/10/2020, foi feito a 3.a Tranche, nesse mesmo dia foi dito pelo Cliente que no dia 30/10/2020 seria feito o resto do valor de € 6.700,00 e no qual até à presente data nada aconteceu, eu na boa fé simplesmente nunca mais disse nada, pensado que o cliente a faria, tal situação não aconteceu.
Outros Relevantes;
Tendo em consideração este assunto de outro Relevante, nunca fui alertado de tal situação, dai nada existir no contrato por penalizações (aluguer de habitação)....., etc, acho este processo todo ele uma cabala de suborno.
Credito para construção, foi me dito só depois de assinar o contrato e passado alguns dias, pensei eu que o cliente nada disso o fizesse porque como ouve o primeiro pagamento em Dinheiro, (para mim eu pensei, ..... bem o cliente vai pagar a obra em dinheiro mais o Iva.
Do Direito;
Visto que no contrato a data de término da obra seria na data de 30/06/2021, e no qual ainda poderá ser executada, visto que poderá acontecer alguma derrapagem, tendo o cliente em seu poder algumas empreitadas, como consta no mesmo contrato ( ex. Alumínios, corte térmico cor a indicar no projeto, Estores elétricos, cor a indicar no projeto, Gradeamentos em tubo aço Inox, incluindo vidro temperado, Loiças Sanitárias, marca Sanitana, média gama, Cozinha cor branca, incluindo eletrodomésticos média Gama, Portão pequeno, Portão grande elétrico, Arranjos exteriores, Relva, Portão de garagem), com isto tudo o cliente vai necessitar do nosso apoio, como foi dado sempre desde do inicio para que a obra mais tarde não parar…”.
31.Os requerentes não fizeram quaisquer pedidos de alteração e muito menos praticaram qualquer ato que impedisse a normal execução dos trabalhos nos prazos contratualmente fixados.
32. Em 11-02-2021, os AA, através da sua mandatária, enviaram carta registada à Ré sociedade, onde, além do mais se refere:
“…Verifica-se, assim, uma situação de incumprimento definitivo nos termos das diversas alíneas da cláusula 10.ª do Contrato} designadamente a interrupção, por mais de 3 dias seguidos, dos trabalhos, atraso em mais de 15 dias na execução dos trabalhos contratados e abandono da obra.
Trata-se de um incumprimento muito grave das obrigações assumidas e geradora de avultados prejuízos para o meu cliente.
Acresce que, a conduta de VV.Ex.ªs é suscetível de gerar responsabilidade criminal, porquanto, sob o embuste da concretização de uma empreitada, o sócio único e gerente da sociedade fez com que o meu cliente lhe entregasse (pensando estar a entregar à sociedade contratada), a avultada quantia de 55.020,32€ (cinquenta e cinco mil e vinte euros e trinta e dois cêntimos).
Em consequência, nos termos da cláusula 21.ª do Contrato de Empreitada, informa-se V. Exas. que se considera definitivamente incumprido o contrato de empreitada geral de construção, com fundamento no não cumprimento do contrato…”
33. A referida comunicação foi rececionada no dia 12-02-2021.
34. A Ré nada disse, nem restituiu qualquer quantia.
35. Em fevereiro de 2021, a pedido dos AA, o Eng.º Civil (…) deslocou-se ao local da obra para medir os trabalhos ali realizados e elaborou o parecer técnico junto a fls. 54 vº a 58, que aqui se dá por inteiramente reproduzido e onde além do mais se refere:
“1) O terreno não se encontra vedado em toda a sua extensão como comprovam as fotos do registo fotográfico;
2) Após análise feita no local e com base no projeto, a escavação que foi realizada não se enquadra com o que é necessário para as fundações da moradia e dos muros de suporte;
3) O muro técnico que foi feito não se enquadra com as normas em vigor no concelho de Almada, nem as caixas aplicadas nem as medidas do muro e das caixas se enquadram com o legalmente exigido.”
36. Estimando o custo dos trabalhos realizados na obra em 1. 600,00€, conforme se discrimina:
“Vedação parcial do terreno com barrotes de pinho e malha-sol, material e mão-de-obra, estimativa 400 euros;
Escavação e deslocação de terra para aterro 1000 euros;
Execução de muro técnico material e mão de obra 200 euros.”
37. E concluiu pela necessidade de corrigir as anomalias verificadas, nos seguintes termos:
“1) Vedar o terreno na sua totalidade;
2) Proceder à marcação da implantação da moradia e dos muros de suporte de acordo com o projeto para corrigir a escavação;
3) Demolir o muro técnico e levar o entulho para aterro custo estimado 120 euros;
4) Colocar um wc portátil no terreno para se poderem iniciar os trabalhos;
5) Executar um muro técnico de acordo com as normas e com o projeto para puderem pedir ramais de água e luz necessários á execução da obra.”
38. Em 29 de janeiro de 2021, data em que os autores comunicaram a resolução do contrato de empreitada, deveria estar já concluída a estrutura da moradia, onde se incluem as subfases de fundações, pilares do piso 0 e 1, Lage do piso 0 e 1, enchimentos, argamassas, alvenarias, muros e piscina.
39. Porém, a essa data, não se encontrava sequer concluída a primeira fase.
40. Além de que os poucos trabalhos que foram feitos não cumpriam as normas, tendo de ser feitos de novo.
41[2]. Os autores pagaram, até 06-10-2020, a quantia de 55.020,32€.
42. A referida quantia ingressou numa conta titulada pelo Réu V.C.S.A., do que os autores apenas se aperceberam quando alertados pela sua mandatária.
43. Conta essa que foi desde logo indicada, verbalmente, pelo requerido V.C.S.A. e, posteriormente, inscrita no Contrato de Empreitada como a conta para onde deviam ser feitos todos os pagamentos à requerida.
44[3]. Assim que o réu V.C.S.A. recebeu os pagamentos respeitantes ao 1.º e 2.º meses de obra, nunca mais foi feito qualquer trabalho.
45. Os autores foram ainda alertados pela sua mandatária para o facto de a designação social da empresa adjudicatária identificada no contrato de empreitada ser distinta da designação social da ré.
46. Quer no contrato de empreitada quer no placar colocado no local da obra, em vez da firma “Vanguardargumento Unipessoal Lda.”, o réu V.C.S.A. fez constar a firma “V.A.-Remodelação e Construção Urbana, Lda.”.
47. Não se encontra registada qualquer sociedade com a firma “V.A.-Remodelação e Construção Urbana, Lda.”.
48. O R. V.C.S.A. também não identifica no contrato de empreitada, o Alvará conferido pelo IMPIC.
49[4]. O réu V.C.S.A. identifica no contrato uma sociedade com uma firma falsa para criar confusão entre intervenientes.
50. Em 2019, a ré apresentou um volume de faturação da atividade de construção de 179.999,77€ (cento e setenta e nove mil novecentos e noventa e nove euros e setenta e sete cêntimos), com custos de apenas 29.526,37€ (vinte e nove mil quinhentos e vinte seis euros e trinta e sete cêntimos) e gastos com pessoal de 1.985,76€ (mil novecentos e oitenta e cinco euros e setenta e seis cêntimos).
51. A sociedade ré, para cuja identificação o réu V.C.S.A. usa também uma firma falsa, apenas serve para angariação de clientes e faturação.
52. O réu V.C.S.A., que não é construtor, serve-se da sociedade detentora de alvará para obter dinheiro dos contratos celebrados com a sociedade de que é único sócio e gerente e que afeta diretamente ao seu património pessoal.
53[5]. O réu V.C.S.A. emite faturas dos valores que recebe na sua conta pessoal.
54. A ré sociedade tem dívidas às Finanças em montante de, pelo menos, 42.730,71€.
55. Quantia essa que em janeiro de 2021 era já de 85.930,75€.
56. Nos contratos não indica conta bancária da sociedade ré.
57. O réu V.C.S.A. recebeu na sua conta bancária o dinheiro dos autores, não o afetando nem à obra nem ao pagamento das dívidas da sociedade, designadamente fiscais.
58. Os factos acima relatados causaram aos autores muita ansiedade e desgaste, que os privou e continua a provar das condições psicológicas necessárias à concentração para trabalhar e descansar, passando noites em claro.
59. Os autores sentem revolta pelo facto de o réu se ter apropriado de todo o dinheiro que tinham e que apenas conseguiram com a venda de todo o seu património imobiliário.
60. Sentem-se inseguros financeiramente, designadamente com a incerteza de terem dinheiro suficiente para continuar o projeto de construção da sua habitação.
61. O facto de não terem casa e terem de viver numa garagem com os filhos, dois dos quais menores, é causa de tristeza e de desânimo.
62. Os autores são pessoas honestas e trabalhadoras.[6]

E foram considerados não provados os seguintes factos[7]:
B) Que o acordo/contrato a que se alude em 13 tenha sido celebrado pelo R. V.C.S.A. em representação da R. sociedade.
C) Que nos termos do mesmo acordo/contrato a sociedade ré obrigou-se à construção, tipo “chave na mão”, e mediante o preço global de 148.500,00€, acrescido de IVA, da “Habitação e Piscina, sito na Rua (…)”, compreendendo os trabalhos discriminados no quadro do Anexo I do Contrato de Empreitada.
D) Que o compromisso a que se alude em 14, tenha sido assumido pela R. sociedade.
E) A ré sociedade obrigou-se a executar os trabalhos “de acordo com a licença de construção, com início a 01/10/2020 e término a 30/06/2021” e de acordo com o “Plano de Trabalhos da Empreitada” constante do Anexo I do Contrato de Empreitada. Que o contrato de empreitada foi celebrado entre o Requerente e a Requerida sociedade.
F) No 1.º mês de obra, entre 01-10-2020 e 31-10-2020, a ré estava obrigada a executar dos trabalhos de limpeza do terreno, instalação do estaleiro, marcação por topógrafo e escavações.
G) No 2.º e 3.º meses de obra, entre 01-11-2020 e 31-12-2020, a ré obrigou-se a executar os trabalhos de construção da estrutura da moradia, onde se incluíam as subfases de fundações, pilares do piso 0 e 1, Lage do piso 0 e 1, enchimentos, argamassas, alvenarias, muros e piscina.
H) Desde o início que a ré sociedade nunca cumpriu pontualmente o contrato revelando atrasos e ausências na obra, designadamente em reuniões marcadas, que o réu V.C.S.A. justificava com “esquecimentos” e atrasos de terceiros.
I) Que as insistências a que se alude em 22.a) tenham sido com a R. sociedade.
J) Que os autores tenham pago à Ré sociedade e esta se tenha apropriado da quantia de € 55.020,32.

Da nulidade da sentença
Dizem os recorrentes na última conclusão [AI)] que “[a] Sentença é nula ao abrigo do disposto no artigo 615.º, n.º 1 do CPC e artigo 3.º”.
Lendo o corpo alegatório, vemos que que a nulidade em causa é a constante da alínea d), considerando os recorrentes que «ao afastar o efeito cominatório da revelia absoluta, se verifica excesso de pronúncia determinativa da nulidade da Sentença (artigo 615.º, n.º 1 al. d) do CPC)».
Mais se constata que os recorrentes entendem tratar-se de “uma decisão surpresa”, pois o tribunal a quo «fez um verdadeiro julgamento, alterando factos para os quais a lei não exigia prova por documentos e sem que fosse dada oportunidade de contraditório aos autores».
Vejamos.
De acordo com a alínea d) do nº 1 do artigo 615º do CPC, temos que a sentença é nula «Quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento»; tal normativo está em consonância com o comando do nº 2 do art. 608º do CPC, no qual se prescreve que «O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras».
As nulidades da sentença reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal e que se mostrem obstativos de qualquer pronunciamento de mérito.
Assim, os vícios de omissão ou de excesso de pronúncia incidem sobre as “questões” a resolver, nos termos e para os efeitos dos artigos 608º e 615º, nº 1, alínea d), do CPC, com as quais se não devem confundir os “argumentos” expendidos no seu âmbito.
No que respeita à decisão de facto, «o não atendimento de um facto que se encontre provado ou a consideração de algum facto que não devesse ser atendido nos termos do artigo 5.º, n.º 1 e 2, do CPC, não se traduzem em vícios de omissão ou de excesso de pronúncia, dado que tais factos não constituem, por si, uma questão a resolver nos termos do artigo 608.º, n.º 2, do CPC. Reconduzem-se antes a erros de julgamento passíveis de ser superados nos termos do artigo 607.º, n.º 4, 2.ª parte, aplicável aos acórdãos dos tribunais superiores por via dos artigos 663.º, n.º 2, e 679.º do CPC. (…)»[8].
Como ensina Alberto dos Reis[9]:
«(…) quando o juiz tome conhecimento de factos de que não pode servir-se, por não terem sido, por exemplo, articulados ou alegados pelas partes (art. 664.º), não comete necessariamente a nulidade da 2.ª parte do art. 668.º. Uma coisa é tomar em consideração determinado facto, outra conhecer de questão de facto de que não podia tomar conhecimento; o facto material é um elemento para a solução da questão, mas não é a própria questão.

«(…) uma coisa é o erro de julgamento, por a sentença se ter socorrido de elementos de que não podia socorrer-se, outra a nulidade de conhecer questão de que o tribunal não podia tomar conhecimento. Por a sentença tomar em consideração factos não articulados, contra o disposto no art. 664.º, não se segue, como já foi observado, que tenha conhecido de questão de facto de que lhe era vedado conhecer.»
«E, por argumento de maioria de razão, o mesmo se deve entender nos casos em que o tribunal considere meios de prova de que lhe não era lícito socorrer-se ou não atenda a meios de prova apresentados ou produzidos, admissíveis necessários e pertinentes. Qualquer dessas eventualidades não se traduz em excesso ou omissão de pronúncia que impliquem a nulidade da sentença, mas, quando muito, em erro de julgamento a considerar em sede de apreciação de mérito»[10].
Ora, é justamente o caso dos autos, em que o Tribunal a quo, pelas razões constantes da motivação da decisão de facto, considerou não provados determinados factos, apesar da confissão ficta (tácita ou presumida) dos réus, por falta de contestação, o que não consubstancia qualquer excesso de pronúncia, devendo antes a questão ser colocada no âmbito da impugnação da matéria de facto, como efetivamente foi pelos recorrentes, sendo ainda nesse âmbito que se deve apurar se deviam ter sido considerados provados outros factos alegados na petição inicial.
Quanto à alegada “decisão surpresa”, que a existir seria consumida pela nulidade da sentença por excesso de pronúncia, a mesma é inexistente, tudo se reconduzindo, como vimos supra, a um eventual erro de julgamento, sendo manifesto que o tribunal a quo não tinha que ouvir os recorrentes sobre como ia decidir a matéria de facto.
Em suma, a sentença não enferma das nulidades invocadas pelos recorrentes.

Da impugnação da matéria de facto
A discordância dos recorrentes quanto à decisão da matéria de facto radica no facto de os réus, regularmente citados, não terem apresentado contestação, e o tribunal a quo, não obstante ter considerado verificada a situação de revelia absoluta operante, não ter dado como provados os factos tal como articulados pelos autores, fazendo um julgamento que os recorrentes consideram “ferido de erro”.
Segundo os recorrentes, o tribunal recorrido não só alterou, infundadamente, a redação dos artigos 13.º, 23.º, 26.º, 40.º, 51.º, 54.º, 61.º e 71.º da petição inicial, como também julgou indevidamente não provados os factos alegados pelos autores correspondentes às alíneas B) a J) da decisão de facto, tendo ainda omitido decisão quanto aos factos alegados nos artigos 16.º, 18.º, 19.º, 20.º, 21.º, 55.º, 56.º, 62.º, 63.º, 64.º, 67.º e 76.º daquele articulado.
O tribunal recorrido fundamentou assim a decisão sobre a matéria de facto:
«A convicção sobre a matéria provada assenta na confissão ficta decorrente da falta de contestação, conforme acima referido, concatenada com a prova documental junta ao procedimento cautelar de arresto.
Ainda assim, no que respeita à vinculação da ré sociedade, a que se alude nos artigos 13º, 14º, 15º, 17º, 20º, 23º, 25º e 26º, da p.i., releva o seguinte: no artº 13 os autores remetem para o documento 8 junto ao p.c., dizendo que os réus se obrigaram aos seus termos, afirmando no artº 14, que nos termos do referido contrato, a sociedade ré obrigou-se.
Acontece que o contrato apenas está assinado pelo réu singular, sem qualquer menção ou carimbo da ré sociedade. E no seu introito consta: Segundo Outorgante: V.A - Remodelação e Construção Urbana Lda, nº contribuinte 513431837, com sede na Rua Bento Jesus Caraça, Lote nº 62 - Quinta do Conde Sesimbra, tendo como Sócio Gerente o Ex.mo Sr. V.C.S.A., sendo representante e Empreiteiro, como tal doravante designado para eleitos do presente contrato, contribuinte nº (…), designado como Segundo Outorgante
Conforme foi referido no Ac. do TRE que apreciou o recurso no âmbito do procedimento cautelar apenso “O Requerido foi o responsável pela elaboração do texto do contrato, cabendo-lhe fornecer os elementos de identificação da sociedade contratante, se pretendesse contratar como gerente dessa sociedade. Ora, não apenas forneceu o nome de uma sociedade juridicamente inexistente (…) como a conta bancária indicada para se proceder aos pagamentos era uma conta pessoal.
Visto que "os gerentes vinculam a sociedade, em atos escritos, apondo a sua assinatura com indicação dessa qualidade" – artº 260° nº 4 do Código das Sociedades Comerciais - há a verificar que, no contrato, o 2° Requerido não mencionou essa qualidade de gerente da 1ª Requerida, pelo que não a vinculou”.
Desta feita, embora a confissão ficta baste para justificar a matéria dos pontos 8 e 12 (sendo esta a manifestação de uma mera intenção), a mesma não pode contrariar a prova documental apresentada e as regras legais que regem sobre a vinculação das sociedades comerciais, cfr. artº 568º, al. d) do CPC, o qual está relacionado com o artigo 364º do CC, que dita que “quando a lei exigir, como forma da declaração negocial, documento autêntico, autenticado ou particular[11], não pode este ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior. Se, porém, resultar claramente da lei que o documento é exigido apenas para prova da declaração, pode ser substituído por confissão expressa, judicial ou extrajudicial, contanto que, neste último caso, a confissão conste de documento de igual ou superior valor probatório.”.
Assim se justificando especificamente a matéria do ponto 13 e a recondução das alíneas B) e C) aos factos não provados.
Seguindo este raciocínio, tendo ainda em vista que no doc. de fls. 40 e ss. do p.c. não há qualquer menção à sociedade Ré, mas apenas a uma outra e ao réu V.C.S.A., conferiu-se a redação dada ao ponto 14 e levou-se a matéria das als. D) a I) aos factos não provados.
Paralelamente, tendo em vista o que ficou provado nos pontos 42, 52 e 57, houve que levar a matéria da al. J) aos factos não provados.»
Vejamos, pois, cada um dos factos impugnados e se deviam ter sido considerados provados outros factos alegados pelos autores.
O ponto 13 dos factos provados tem a seguinte redação:
«No dia 11 de setembro de 2020, o A. R.F.B.R.e o R. V.C.S.A., celebraram o acordo escrito denominado por “Contrato de Empreitada”, junto a fls. 33 e ss. do procedimento cautelar, aqui dado por inteiramente reproduzido, o qual foi assinado pelo 2º R. abaixo da designação de 2º Outorgante e onde, além do mais consta:
(…)».
Dizem os recorrentes que este ponto tem uma redação diversa do que alegaram no artigo 13º da petição inicial, sustentando que o tribunal recorrido não devia ter substituído “assinaram” por “celebraram”, porquanto assim não foi alegado pelos autores, nem tal pode decorrer do documento nº 8, no qual assenta a factualidade em causa.
Entendem, por isso, que o ponto 13, por não haver qualquer fundamento para substituir o verbo “assinar” por “celebrar”, deve passar a ter a seguinte redação:
«No dia 11 de setembro de 2020, o A. R.F.B.R.e o R. V.C.S.A., tendo por objeto a construção da moradia, assinaram um documento que denominaram por “Contrato de Empreitada”, subordinando-o às condições constantes do documento junto ao procedimento cautelar como Doc. N.º 8 e cujo teor aqui se dá por reproduzido para os devidos efeitos).»
E têm, no essencial, razão os recorrentes, pois não é despiciendo dizer-se que alguém assinou um documento, ou que celebrou o acordo constante desse documento, o que envolve já uma certa valoração jurídica que, por sinal, não corresponde à alegação dos autores.
Ainda assim, não há razão para não manter no ponto 13 a transcrição do documento aí efetuada, que é preferível a dar-se “por reproduzido para os devidos efeitos” esse mesmo documento.
Assim, o ponto 13 dos factos provados passa ter a seguinte redação:
No dia 11 de setembro de 2020, o A. R.F.B.R.e o R. V.C.S.A., tendo por objeto a construção da moradia, assinaram um documento que denominaram por “Contrato de Empreitada”, subordinando-o às condições constantes do documento junto ao procedimento cautelar como Doc. N.º 8, no qual, além do mais, consta:
(…).[12]

Dizem também os recorrentes que o tribunal recorrido alterou, sem qualquer fundamento, a redação do artigo 23º da petição inicial, onde foi alegado que «[n]o 1.º mês de obra, entre 01-10-2020 e 31-10-2020, a ré estava obrigada a executar os trabalhos de limpeza do terreno, instalação do estaleiro, marcação por topógrafo e escavações», fazendo constar do ponto 17 dos factos provados que «[o] referido pagamento pressupunha a execução, entre 01-10-2020 e 31-10-2020 dos trabalhos de limpeza do terreno, instalação do estaleiro, marcação por topógrafo e escavações», pelo que o ponto 17 deve ter a redação de acordo com o que foi alegado pelos autores.
Ora, alegar que alguém “estava obrigada” não é um facto, mas uma conclusão que se há de retirar de factos concretos, sendo que a alegação do artigo 23º da petição inicial é feita na sequência da remissão que os autores fazem no artigo 13º para o documento nº 8 do procedimento cautelar, no qual a ré não consta como parte do contrato em causa.
Assim, tendo em conta o pagamento efetuado e a que se alude no ponto 16 dos factos provados, não merce censura a redação dada ao ponto 23 que, em puros termos factuais, reflete o que foi alegado pelos autores, sem qualquer valoração jurídica que apenas deve ser feita em sede de enquadramento jurídicos dos factos.
Mantém-se, pois, intocado o ponto 17 dos factos provados.

O mesmo se diga relativamente ao ponto 19 dos factos provados, dando-se por reproduzido tudo quanto se disse a respeito do ponto 17, pelo que se mantém aquele ponto 19 nos seus precisos termos.

Relativamente ao ponto 32, onde se deu como provado que «[e]m 11-02-2021, os AA, através da sua mandatária, enviaram carta registada à Ré sociedade, onde, além do mais se refere: (…)», dizem os recorrentes que alegaram no artigo 40º da petição inicial que «[p]or carta registada, enviada à ré com aviso de receção em 11-02-2011, os autores, através da sua mandatária, reiteraram a resolução do contrato de empreitada com fundamento no incumprimento definitivo do mesmo, instando a ré a restituir a quantia paga», não fundamentando o tribunal recorrido a redação do ponto 32 dos factos provados, pelo que se devia ter limitado a dar como provado o facto tal como articulado pelos autores.
Propõem, assim, que o ponto 32 passe a ter a seguinte redação:
«Por carta registada, enviada à ré com aviso de receção em 11-02-2021, os autores, através da sua mandatária, reiteraram a resolução do contrato de empreitada com fundamento no incumprimento definitivo do mesmo, instando a ré a restituir a quantia paga (Cfr. fotocópia da carta que se encontra junta ao procedimento cautelar como Doc. N.º 16 e cujo teor se dá por reproduzido para os devidos efeitos).
Ora, a redação proposta pelos recorrentes nada de relevante acrescenta ao que já consta do ponto 32, onde se transcreveu a parte final da carta em questão, sendo as demais considerações, como o emprego do pretérito perfeito do verbo reiterar na 3ª pessoa do plural (reiteraram) irrelevante, considerando, ademais, o teor do ponto 29 dos factos provados.
Por sua vez, não é exata a alegação dos recorrentes de que o aviso de receção tenha a data de 11.02.2021 – essa é a data do envio da carta -, pois como se alcança do Doc. 16 junto com o procedimento cautelar, que os autores dão como reproduzido, o aviso de receção tem a data de 12.02.2021.
Assim, não se justificando introduzir qualquer alteração, mantém-se intocado o ponto 32 dos factos provados.

Alegam os recorrentes que no ponto 41, o tribunal recorrido deu como provado que «[o]s autores pagaram, até 06-10-2020, a quantia de 55.020,32€.», o que apenas corresponde a parte do que articularam no artigo 51º da petição inicial, pelo que deve ser aditado «sem que tenha sido executado qualquer trabalho válido na obra, para além da limpeza do terreno».
Neste ponto assiste razão aos recorrentes, não se encontrando razões para que não tenha sido considerado no ponto 41 o que os autores alegaram na segunda parte do artigo 51º da petição inicial, com exceção do emprego do adjetivo “válido” que encerra uma conclusão.
Assim, o ponto 41 dos factos provados passa ter a seguinte redação:
«Os autores pagaram, até 06-10-2020, a quantia de 55.020,32€., sem que tenha sido executado qualquer trabalho na obra, para além da limpeza do terreno».

Relativamente ao ponto 44 dos factos provados, que corresponde ao alegado pelos autores no artigo 54º da petição inicial, dizem os recorrentes que o tribunal recorrido omitiu o advérbio “antecipadamente”, que deve constar da redação daquele ponto.
Nada a opor à inclusão do referido advérbio no ponto 44 que passa ter a seguinte redação:
«Assim que o réu V.C.S.A. recebeu, antecipadamente, os pagamentos respeitantes ao 1.º e 2.º meses de obra, nunca mais foi feito qualquer trabalho.»

Insurgem-se também os recorrentes contra a redação do ponto 49 dos factos provados, que corresponde ao que foi alegado no artigo 61º da petição inicial, pois o tribunal apenas deu como assente que «[o] réu V.C.S.A. identifica no contrato uma sociedade com uma firma falsa para criar confusão entre intervenientes», omitindo o segmento final alegado pelos autores, isto é, «em benefício do enriquecimento do seu património pessoal».
Ora, ainda que a factualidade omissa revista feição algo conclusiva, o certo é que a mesma tem ainda um substrato relevante para o acervo dos factos que importam para uma decisão justa[13], evidenciando com maior rigor a conduta do réu em todo o processo negocial.
Assim, o ponto 49 dos factos provados passa a ter a seguinte redação:
«O réu V.C.S.A. identifica no contrato uma sociedade com uma firma falsa para criar confusão entre intervenientes, em benefício do enriquecimento do seu património pessoal».

No ponto 53 dos factos provados, que corresponde ao alegado pelos autores no artigo 71º da petição inicial, foi dado como assente que «[o] réu V.C.S.A. emite faturas dos valores que recebe na sua conta pessoal».
O que os autores alegaram no artigo 71º foi que o réu «emite faturas dos valores que recebe na sua conta pessoal por saber que não vai pagar os respetivos impostos».
Esta factualidade aparece na sequência do que os autores alegaram no artigo 70º, onde é feita referência à atuação da sociedade ré, o que, conjugadamente com as faturas juntas ao processo, leva a concluir que as faturas são emitidas pela sociedade e não pelo réu e, em qualquer caso, não existe razão para não dar como provado tudo o que foi alegado pelos autores no artigo 70º da petição inicial.
Assim, o ponto 53 dos factos provados passa a ter a seguinte redação:
«O réu emite faturas dos valores que recebe na sua conta pessoal por saber que não vai pagar os respetivos impostos».

Sustentam ainda os recorrentes que o tribunal recorrido omitiu da sentença a factualidade alegada nos artigos 16.º, 18.º, 19.º, 20.º, 21.º, 55.º, 56.º, 62.º, 63.º, 64.º, 67.º e 76.º, os quais, por força do disposto no artigo 567.º do CPC, devem ser aditados aos factos provados.
Vejamos.
A alegada omissão na inclusão dos factos provados da matéria alegada no artigo 16º da petição inicial, no qual os autores reproduziram o ponto 4 da cláusula 5.ª do contrato, só pode atribuir-se a mero lapso ou a uma leitura deficiente da sentença, pois tal matéria consta já do ponto 13 onde foi reproduzido o teor do contrato.

O mesmo se diga relativamente aos artigos 18º, 19º, 20º e 21º da petição inicial.
Com efeito, a matéria alegada nos artigos 18º, 20º e 21º referentes às cláusulas 8ª, 10ª e 11ª, está reproduzida no ponto 13 dos factos provados, e o alegado no artigo 19º está reproduzido no ponto 15 dos factos provados.

Os artigos 55º e 56º da petição inicial em nada relevam para a boa decisão da causa, pois é indiferente a tal decisão o comportamento dos réus relativamente a terceiros com quem contrataram, hão havendo que “inundar” a matéria de facto provada com factos irrelevantes, só porque os réus não contestaram a ação.

Os artigos 62º e 64º da petição inicial são meras conclusões – sendo que a factualidade subjacente ao alegado no artigo 64º está já contemplada no ponto 7 dos factos provados - e, como tal, não podem constar do elenco dos factos provados.

A factualidade do artigo 63º da petição inicial relevante está já contemplada nos pontos 6 e 59 dos factos provados, sendo desnecessário qualquer aditamento.

O alegado no artigo 67º da petição inicial é uma mera conclusão do que foi alegado no artigo 66º, cuja factualidade está contemplada no ponto 50 dos factos provados.

Por último, o artigo 76º da petição inicial, na parte onde se alega que os autores são pessoas honestas e trabalhadoras, tem substrato relevante para o acervo dos factos que importam para uma decisão justa, nomeadamente no que tange ao pedido de condenação por danos não patrimoniais – sem curar de saber já se tal pedido é ou não viável -, pelo que deve essa matéria constar do elenco dos factos provados:
«62. Os autores são pessoas honestas e trabalhadoras.»

Quanto à matéria de facto não provada, cuja “impugnação” foi feita sob a invocação de uma nulidade da sentença inexistente, foi a mesma justificada na motivação da decisão de facto com o argumento de que o contrato referido no ponto 13 dos factos provados está apenas assinado pelo réu, sem qualquer menção ou carimbo da ré sociedade, pelo que a confissão ficta não pode contrariar a prova documental apresentada e as regras legais que regem sobre a vinculação das sociedades comerciais.
Será assim?
É certo, como se diz na sentença recorrida, citando a propósito o acórdão da Relação de Lisboa de 10.03.2015[14], que embora o contrato de empreitada não esteja, em regra, submetido a nenhuma forma especial, sendo, portanto, em princípio, um negócio consensual (nos termos do art. 219º do Código Civil), o art. 29º do Decreto-Lei nº 12/2004, de 9 de Janeiro, veio consagrar a forma escrita para os contratos de empreitada e subempreitada de obra (de construção civil) particular acima de certo valor (isto é, cujo valor ultrapasse 10 % do limite fixado para a classe 1, sendo que a Portaria nº 17/2004, de 10 de Janeiro, definiu as classes das habitações, dispondo que a classe 1 vai até € 140.000,00) – o que, em termos práticos, significa que os contratos de empreitada e subempreitada (de construção civil) particular cujo valor seja superior a 14.000,00 euros têm de ser obrigatoriamente reduzidos a escrito.
Porém, nesse mesmo aresto, com relevância para o caso, escreveu-se:
«A inobservância dessa forma escrita acarreta a nulidade do contrato – prescreve o nº 4 do mesmo preceito, em consonância com o regime geral consagrado no art. 220º do Código Civil.
Simplesmente – como certeiramente se observou no Acórdão da Relação de Guimarães de 31/5/2012 (Proc. nº 1085/10.7TBBCL-A.G1; relator – MANUEL BARGADO), cujo texto integral está acessível on-line in: www.dgsi.pt -, trata-se duma nulidade atípica, que não só não é de conhecimento oficioso, mas apenas pode ser invocada pelo dono da obra (no caso das empreitadas) e pelo empreiteiro (no caso das subempreitadas).
De facto, tal nulidade, que se presumia imputável à empresa adjudicatária (empreiteiro) - na primitiva redacção do nº 2 do art. 29º do DL nº 12/2004, de 9 de Janeiro -, com as alterações introduzidas àquele preceito pelo art. 7º do DL 18/2008, de 29 de Janeiro, deixou de poder ser invocada pelo empreiteiro (no que diz respeito às empreitadas) e pelo dono da obra (no que concerne às subempreitadas), nos termos do novo nº 4 do art. 29º.
Isto porque a redacção do mesmo art. 29º do DL nº 12/2004 sofreu as alterações introduzidas pelo art. 7º do DL 18/2008, de 29 de Janeiro (diploma que aprovou o Código dos Contratos Públicos [CCP] e entrou em vigor em 30.08.2008, 6 meses após a data da sua publicação - conforme dispõe o seu art. 18º, nº 1).
O referido art. 29º passou então a ter a seguinte redacção:
“1 – (…).
2 - Incumbe sempre à empresa que recebe a obra de empreitada, ainda que venha a celebrar um contrato de subempreitada, assegurar e certificar-se do cumprimento do disposto no número anterior.
3 - Nos contratos de subempreitada, a obrigação prevista no número anterior incumbe à empresa que dá os trabalhos de subempreitada.
4 - A inobservância do disposto no n.º 1 do presente artigo determina a nulidade do contrato, não podendo esta ser invocada pela parte obrigada a assegurar e a certificar-se do seu cumprimento.
5 - As empresas são obrigadas a manter em arquivo os contratos celebrados em que são intervenientes pelo período de cinco anos a contar da data da conclusão das obras”
A nova redacção conferida ao art. 29º esclareceu que é ao empreiteiro que cabe certificar-se da redução a escrito do contrato de empreitada, mesmo nos casos em que venha a celebrar-se um contrato de subempreitada (nº 1), a não ser nos contratos de subempreitada celebrados com terceiros, casos em que tal obrigação incumbe à empresa que dá os trabalhos de subempreitada (nºs 2 e 3), e estabeleceu (no nº 4) que a nulidade do contrato determinada pela inobservância do disposto no nº 1 não pode ser invocada pela parte obrigada a assegurar e certificar-se do seu cumprimento, isto é, o empreiteiro ou o dono da obra (na subempreitada).»
Ora, no caso dos autos, o autor ora recorrente ocupa a posição de dono da obra no contrato de empreitada, pelo que só ele gozaria de legitimidade para invocar a putativa nulidade formal do contrato de empreitada, pelo que mesmo que se considere – como considerou a sentença recorrida - que a ré não é parte no contrato escrito a que se alude no ponto 13 dos factos provados, não podia deixar de ser atendida a matéria de facto alegada pelos autores nos artigos 8º a 12º da petição inicial (pontos 8 a 12 dos factos provados) e confessada pelos réus (confissão ficta), a qual aponta para a existência de um contrato verbal de empreitada entre os autores e a ré sociedade, sendo certo que os autores não invocaram em momento algum a nulidade do contrato por o mesmo não ter sido reduzido a escrito.[15]
Ademais, saber se a ré se obrigou ou não no contrato de empreitada, é algo que tem a sua discussão no aspeto jurídico da causa e não na decisão sobre a matéria de facto.
Assim, consideram-se eliminadas todas as alíneas constantes do elenco dos factos não provados.

Da vinculação da ré sociedade ao contrato de empreitada
Na sentença, depois de se ter qualificado o contrato invocado como causa de pedir pelos autores como de empreitada, tendo por objeto a edificação no lote de terreno adquirido pelos autores de uma moradia unifamiliar para habitação própria permanente dos autores, sendo adjudicatária a ré sociedade, considerou-se que no contrato reduzido a escrito referido no ponto 13 dos factos provados, o réu não mencionou a sua qualidade de gerente da ré, como impõe o art. 260º, nº 4, do Código das Sociedades Comerciais (CSC), pelo que não a vinculou.
A questão não pode, porém, salvo melhor juízo, ser analisada tendo apenas em consideração aquele contrato, sendo necessário atender à factualidade que antecedeu a sua redução a escrito.
Na verdade, resulta da matéria de facto que entre o autor marido e a ré sociedade, representada pelo réu, único sócio e gerente, foi celebrado um contrato (verbal) de empreitada, tendo por objeto a edificação, no lote de terreno adquirido pelos autores, de uma moradia unifamiliar para habitação própria permanente dos autores, ficando o réu, na qualidade de gerente da sociedade, de reduzir a escrito e apresentar aos autores, para assinatura, o contrato de empreitada (cfr. pontos 8 a 12).
O réu veio a reduzir a escrito o contrato junto a fls. 33 e seguintes do procedimento cautelar apenso, assinado pelo autor marido e pelo réu, mas nesse contrato consta como segunda outorgante e adjudicatária da obra “V.A - Remodelação e Construção Urbana Lda.”, sociedade que não se encontra sequer registada (ponto 47).
A razão pela qual assim sucedeu, como está provado, é que o réu identifica no contrato uma sociedade com uma firma falsa para criar confusão entre intervenientes, em benefício do enriquecimento do seu património pessoal (ponto 49).
Ora, embora formalmente a ré não seja parte no contrato reduzido a escrito, não pode deixar de se considerar que o seu clausulado foi o querido pelas partes, sendo certo que nesse contrato está bem identificado o lote de terreno comprado pelos autores para aí edificarem uma moradia unifamiliar e, ademais, foi isso que foi alegado pelos autores e confessado (confissão ficta) pelos réus.
Assim, tem de se concluir que entre os autores e a ré sociedade foi celebrado um contrato de empreitada verbal que se rege pelas cláusulas do referido contrato escrito, às quais autores e ré sociedade se encontram vinculados.

Da resolução do contrato
Antes de abordarmos esta questão uma nota prévia se impõe.
Na petição inicial, alegaram os autores que a conduta da ré «desde o início do contrato é demonstrativa de uma inequívoca intenção de não cumprimento do mesmo, designadamente pela não realização de qualquer trabalho para além da limpeza do lote de terreno e construção defeituosa de uma parede técnica (art. 88º), verificando-se, assim, «que a ré incumpriu, de forma grave e definitiva, o contrato de empreitada, justificando a sua resolução por parte dos autores ao abrigo do disposto nas alíneas a), b), c) e d) do artigo 10.º do contrato de empreitada» (art. 89º), concluindo que a ré «se constituiu na obrigação de indemnizar os autores pelos prejuízos causados, prejuízos esses que correspondem, pelo menos, por força do disposto no artigo 795.º, n.º 1 do CC, ao preço pago para o fornecimento de materiais e mão de obra do qual não obtiveram a respetiva contrapartida, no montante de 55.020,32€ e que, dessa forma, fica obrigada a restituir nos termos do enriquecimento sem causa».
Será que perante esta alegação está o tribunal impedido de recorrer à responsabilidade civil contratual para decidir o pleito submetido à sua apreciação, como se entendeu na sentença recorrida, citando o acórdão do STJ de 24.01.2019[16], em cujo sumário se pode ler:
«I - O art. 474º do CC, afirmando a subsidiariedade do enriquecimento sem causa face a outro instituto, nomeadamente a responsabilidade civil, ao qual possa ser reconduzido o mesmo conjunto de factos que também preencha os requisitos daquele, aponta para a impossibilidade de se recorrer ao primeiro por o segundo ser, no caso, configurável.
II – Em hipóteses como esta, é de dar destaque, na configuração da causa de pedir concretamente invocada, ao vetor normativo seguido pelo autor.
III – Apontando este para a valoração dos factos enquanto integradores de um enriquecimento cuja restituição se pretende com a propositura da ação, a sentença, ao valorar os factos na perspetiva da responsabilidade civil, e apesar de tal parecer ser permitido pela liberdade de qualificação jurídica consagrada no nº 3 do art. 5º do CPC, operou convolação que extravasa o âmbito da causa de pedir tal como o definiu o autor.»
Não parece que a situação retratada neste aresto seja idêntica à dos autos.
Na verdade, resulta inequívoco que os autores assentam a causa de pedir na existência do contrato de empreitada e no seu incumprimento definitivo pela ré, pelo que resolveram o contrato.
Sucede apenas que os autores, movendo-se ainda no campo da responsabilidade contratual, invocaram a norma do art. 795º do CC, que sob a epígrafe “Contratos bilaterais”, prescreve no seu nº 1:
«Quando no contrato bilateral uma das prestações se torne impossível, fica o credor desobrigado da contraprestação e tem o direito, se já a tiver realizado, de exigir a sua restituição nos termos prescritos para o enriquecimento sem causa».
Como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela,[17] «[o] princípio contido no n.º 1 deste artigo 795.º é o de o credor ficar desobrigado da sua contraprestação, se a prestação do devedor se tornou impossível. É o corolário natural da chamada condição resolutiva tácita. Se já tiver realizado a sua contraprestação, pode pedir a restituição dela nos termos prescritos para o enriquecimento sem causa. Trata-se, efectivamente, de um cumprimento doravante indevido, a que são aplicáveis as disposições dos artigos 473.º e seguintes.
Pode, porém, a impossibilidade resultar de culpa do devedor. O regime é nesse caso mais severo, porque além do direito à indemnização, conferido ao credor no n.º 1 do artigo 801.º, e do direito à resolução do contrato, pode o credor, se já realizou a sua prestação, exigir a restituição dela por inteiro (art. cit., n.º 2), ao passo que a restituição por enriquecimento tem os limites do artigo 479.º. Não é, portanto, aplicável neste caso o nº 1 do artigo 795.º».
Ou seja, o preceito resolve o problema do risco da impossibilidade de cumprimento fortuita ou casual nos contratos sinalagmáticos, o que não é o caso dos autos, em que a impossibilidade resulta de culpa da ré.
Assim, porque continuamos a mover-nos no estrito campo da responsabilidade civil contratual, nada obsta a que os factos sejam valorados tendo em conta tal instituto.
In casu, por força do contrato de empreitada ficou a ré sociedade obrigada a executar as obras constantes do plano de trabalhos de empreitada discriminado no “Mapa de Pagamento/Planeamento de Obra” do Anexo I ao “Contrato de Empreitada”, no prazo máximo de 8 a 10 meses, com início em 01.10.2020 e termo em 31.07.2021, de acordo com as fases descritas no ponto 14 dos factos provados.
Está provado que em finais de dezembro de 2020 não se encontrava ainda instalado o estaleiro, nem feitas as escavações de acordo com o projeto, conforme definido no plano para o 1º mês de obra, justificando o réu o facto com o atraso da cofragem, dizendo que já estava a tratar da situação e que no início de janeiro voltavam à obra.
Porém, nunca foi feito qualquer trabalho na obra, mantendo-se a situação inalterada no final de janeiro de 2021, tendo a obra sido abandonada, nunca mais aí aparecendo o réu que também não mais contactou os autores, designadamente no sentido de continuar os trabalhos.
Por isso, no dia 29.01.2021, o autor remeteu ao réu, por correio eletrónico, uma comunicação escrita, declarando a resolução do contrato por incumprimento do mesmo e pedindo a restituição da quantia paga, tendo posteriormente, em 11.02.2021, os autores, através da sua mandatária, enviado uma carta registada à ré sociedade, na qual informam, que nos termos da cláusula 21.ª do Contrato de Empreitada, consideram «definitivamente incumprido o contrato de empreitada geral de construção, com fundamento no não cumprimento do contrato…», comunicação essa que foi rececionada no dia 12.02.2021, mas a ré nada disse nem restituiu qualquer quantia.
Provado está também que em fevereiro de 2021, a pedido dos autores, o Eng.º Civil (…) deslocou-se ao local da obra para medir os trabalhos ali realizados e elaborou o parecer técnico junto a fls. 54 vº a 58, apontando as várias deficiências que encontrou na obra, estimando o custo dos trabalhos realizados na obra em € 1.600,00 e concluindo pela necessidade de corrigir as anomalias verificadas, nos seguintes termos:
«1) Vedar o terreno na sua totalidade;
2) Proceder à marcação da implantação da moradia e dos muros de suporte de acordo com o projeto para corrigir a escavação;
3) Demolir o muro técnico e levar o entulho para aterro custo estimado 120 euros;
4) Colocar um wc portátil no terreno para se poderem iniciar os trabalhos;
5) Executar um muro técnico de acordo com as normas e com o projeto para puderem pedir ramais de água e luz necessários á execução da obra.» [pontos 35, 36 e 37].
Está igualmente provado que em 29 de janeiro de 2021, data em que os autores comunicaram a resolução do contrato de empreitada, deveria estar já concluída a estrutura da moradia, onde se incluem as subfases de fundações, pilares do piso 0 e 1, Lage do piso 0 e 1, enchimentos, argamassas, alvenarias, muros e piscina, mas nessa data não se encontrava sequer concluída a primeira fase, além de que os poucos trabalhos efetuados não cumpriam as normas, tendo de ser feitos de novo [pontos 38 e 39].
O artigo 1222º do Código Civil [CC]confere ao dono da obra o direito de exigir a redução do preço ou a resolução do contrato de empreitada se não forem eliminados os defeitos ou construída de novo a obra, isto se os defeitos tornarem a obra inadequada ao fim a que se destina.
A resolução do contrato é a destruição da relação contratual validamente constituída, operada pela vontade de um dos contraentes, com base num facto posterior à celebração do contrato.[18]
Não existe a mais pequena dúvida quanto ao facto de a ré ter abandonado a obra num momento em que poucos trabalhos tinha realizado.
É pacífico que se a prestação a que se vinculou não for realizada pelo empreiteiro em termos adequados – em conformidade com o que foi convencionado, sem vícios e no prazo acordado – dá-se o incumprimento da obrigação com a subsequente responsabilidade. Todavia, o incumprimento da obrigação tornar-se-á definitivo se a obra não tendo sido realizada já o não puder ser, por o dono da obra ter perdido o interesse ou por não ter sido realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo dono da obra.
Esta é doutrina que se encontra plasmada no artigo 808º do CC:
«1. Se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha com a prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação.
2. A perda do interesse na prestação é apreciada objectivamente.»
Da interpretação deste artigo resulta que o não cumprimento da prestação[19] será definitivo se a obra, não tendo sido realizada, já o não puder ser, por o dono da obra ter nela perdido o interesse (1ª parte do n.º 1 do artigo 808º), ou por não ter sido realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo dono da obra (2ª parte do n.º 1 do artigo 808º). Diferente do incumprimento definitivo é a situação de mora em que se considera constituído o devedor quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efetuada no tempo devido (nº 2 do artigo 804º do CC). Mas o não cumprimento, presumidamente culposo – artigo 799º do CC – já confere ao credor o direito a ser indemnizado e a resolver o contrato – artigo 801º, nº 2 do CC – enquanto que a simples mora apenas constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor (nº 1 do artigo 804º do CC). O artigo 808º, nº 1 do CC equipara ao incumprimento definitivo a perda do interesse do credor que seja subsequente à mora e a não realização da prestação no prazo que razoavelmente foi concedido ao devedor para cumprir a obrigação».
Ora, tendo em consideração a factualidade constante dos pontos 20 a 28 dos factos provados, não pode deixar de concluir-se que a ré, que já se havia constituído em mora por não ter cumprido o prazo essencial convencionado, apesar da intimação dos autores, abandonou definitivamente a empreitada, abandono esse que traduz, com toda a evidência, a intenção de não querer concluir os trabalhos a que se obrigara perante o autor marido.
Como é sabido, para além das situações tipificadas de não cumprimento definitivo, existe uma outra situação que a doutrina e a jurisprudência equiparam ao incumprimento definitivo e que se traduz na declaração expressa ou tácita do devedor de não querer cumprir.
Assim, quando se esteja face a uma tal declaração expressa ou perante determinada conduta ou omissão que revele manifestamente a intenção de não cumprir a prestação, o credor não tem de esperar pelo respetivo vencimento (se ainda não tiver ocorrido), nem tem de alegar e provar a perda de interesse na prestação ou de interpelar admonitoriamente o devedor para cumprir.
Perante uma declaração do tipo referido ou perante conduta ou omissão com o aludido significado, o credor pode, desde logo, ter por não cumprida definitivamente a obrigação.[20]
No caso em apreço, tendo em conta a factualidade acima descrita, é manifesto que a omissão da ré revela claramente que não pretendia concluir os trabalhos, o que significa abandono da empreitada.
Havendo, pois, fundamento legal para os autores resolverem o contrato, tem de ter-se por válida e operante a declaração de resolução expressa na comunicação eletrónica de 29.01.2021 (cfr. ponto 29 dos factos provados).
Por outro lado, atento o disposto nos artigos 433º, 434 nº1 e 289, nº1, do CC, a resolução tem efeitos retroativos, salvo se a retroatividade contrariar a vontade das partes ou a finalidade da resolução.
Consequentemente, resolvido o contrato deve ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.
Só assim não será, se a retroatividade contrariar a vontade das partes ou a finalidade da resolução.
No caso concreto, sabe-se que os autores entregaram ao réu, com a adjudicação verbal da empreitada, no final de maio de 2020, a quantia de € 5.000,00; no dia 26.08.2020 pagaram, por transferência bancária, a quantia de € 12.634,38 referente aos 10% do primeiro mês de obra; e no dia 06.10.2020, transferiram para a conta identificada no contrato de empreitada, a quantia de € 37.385,94€ referente a 30% devidos no 2º mês de obra (cfr. pontos 11, 16 e 18 dos factos provados), ou seja, um total de € 55.020,32.
Ora, como resulta da prova, os autores não se aproveitaram de nada da prestação parcial da ré, pois os poucos trabalhos realizados, estimados em € 1,600,00, apresentavam várias deficiências, tendo de ser feitos de novo.
Logo, não se pode sequer falar em parte útil da prestação da ré.
Portanto, no caso, os autores não têm de restituir à ré o equivalente do que ela lhes prestou parcialmente por força da retroatividade da resolução (nem de qualquer utilidade que não lhes adveio dos trabalhos realizados).
Já a ré está obrigada a restituir aos autores as quantias que estes lhe entregaram e que somam a quantia de € 55.020,32.

Da desconsideração da personalidade jurídica da ré.
Na petição inicial lançaram os autores mão da figura da desconsideração ou levantamento da personalidade jurídica, sustentando que «[o] réu utiliza a sociedade para benefício das regras da limitação da responsabilidade social e, assim, evitar que os credores da sociedade, como é o caso dos ora autores, possam ver satisfeito os seus créditos por via do seu património pessoal», devendo por isso o crédito dos autores ser satisfeito por via do património pessoal do réu V.C.S.A..
Como é sabido, o ordenamento jurídico acolhe, a par das pessoas singulares, as pessoas coletivas. Comporta, assim, no seu seio, novos entes dotados de personalidade jurídica. Desta personalidade emerge a titularidade de direitos e obrigações autónomos e, inerentemente, além do mais, a distinção entre as pessoas singulares que são, ao mesmo tempo, membros da pessoa coletiva e esta. Os direitos e as obrigações duns não se confundem com os direitos e obrigações dos outros.
Ao longo do tempo, veio a constatar-se a existência de inúmeras situações em que o conceder àquela linha demarcadora um valor absoluto não seriam de admitir.
Progressivamente, doutrina e jurisprudência anglo-americanas e alemãs, foram construindo a figura – que julgamos ainda em evolução – da desconsideração da personalidade jurídica das pessoas coletivas ou, porque, de longe, reportada a maior parte das vezes a sociedades comerciais, a figura da desconsideração da personalidade jurídica das sociedades comerciais.[21]
Já Castro Mendes[22] escrevia que «não devemos antropomorfizar a pessoa colectiva a ponto de perdermos de vista que – ao contrário da pessoa singular, fim em si mesma – ela não é mais que um instrumento de realização de interesses humanos.
Inclusivamente, a personificação pode ser, ou passar a ser, instrumento de abuso; e deve neste caso ponderar quais os verdadeiros interesses humanos em causa. Esta atitude é o que os juristas anglo-saxónicos chamam romper o véu da pessoa colectiva».
Segundo Pedro Cordeiro[23], deve entender-se por desconsideração «o desrespeito pelo princípio da separação entre a pessoa colectiva e os seus membros ou, dito de outro modo, desconsiderar significa derrogar o princípio da separação entre a pessoa colectiva e aqueles que por detrás dela actuam».
Existe assim, na desconsideração, um atingimento da pessoa jurídica diferente da visada. Será direta, se se ultrapassar a sociedade para atingir os sócios e indireta (ou invertida) se partindo-se dos sócios, se atingir a sociedade[24].
Não se trata de pôr em crise o instituto da personalidade coletiva, importante fator de cooperação e de progresso dentro do Direito: apenas de cercear formas abusivas de atuação que ponham em risco a harmonia e a credibilidade do sistema[25].
E é com este objetivo que surge o levantamento da personalidade jurídica como “instituto de enquadramento”[26] que traduz uma delimitação negativa da personalidade coletiva por exigência do sistema.
É neste domínio do abuso da responsabilidade limitada que o instituto da desconsideração da personalidade adquire toda a sua dimensão.
Hoje, estão mais ou menos sistematizadas as condutas societárias reprováveis que, nessa vertente, podem conduzir à aplicação do referido instituto.
De entre elas, avultam: a confusão ou promiscuidade entre as esferas jurídicas da sociedade e dos sócios; a subcapitalização, originária ou superveniente, da sociedade, por insuficiência de recursos patrimoniais necessários para concretizar o objeto social e prosseguir a sua atividade; as relações de domínio grupal[27].
Também na vertente do abuso da personalidade se podem perfilar algumas situações em que a sociedade comercial é utilizada pelo(s) sócio(s) para contornar uma obrigação legal ou contratual que ele, individualmente assumiu, ou para encobrir um negócio contrário à lei, funcionando como interposta pessoa. Nessas hipóteses, desde que seja patente um comportamento abusivo e fraudulento por parte de determinado sócio, em prejuízo de terceiros, supera-se a capa da sociedade e passa a ver-se esse sócio, que responderá individualmente perante o lesado, após ser chamado a juízo[28].
Na desconsideração da personalidade jurídica é ainda necessário determinar se existe e com que potencialidade uma atuação em fraude à lei.
Esta verificar-se-á aquando da existência de um efeito prejudicial a terceiros[29].
A lei não contém referência expressa à figura da desconsideração da personalidade jurídica, mas a dimensão do princípio da boa fé - emergente, no essencial do que aqui nos importa, do artigo 762º, nº 2, conjugado com o artigo 334º, ambos do Código Civil - alcança-a[30].
A questão está assim em saber se, no caso concreto, se poderá concluir se o réu utilizou a sociedade de que é o único sócio e gerente, como instrumento da sua vontade e no seu interesse pessoal.
A resposta a esta questão só pode ser afirmativa, tendo em consideração a seguinte factualidade provada:
«49. O réu V.C.S.A. identifica no contrato uma sociedade com uma firma falsa para criar confusão entre intervenientes, em benefício do enriquecimento do seu património pessoal.
50. Em 2019, a ré apresentou um volume de faturação da atividade de construção de 179.999,77€ (cento e setenta e nove mil novecentos e noventa e nove euros e setenta e sete cêntimos), com custos de apenas 29.526,37€ (vinte e nove mil quinhentos e vinte seis euros e trinta e sete cêntimos) e gastos com pessoal de 1.985,76€ (mil novecentos e oitenta e cinco euros e setenta e seis cêntimos).
51. A sociedade ré, para cuja identificação o réu V.C.S.A. usa também uma firma falsa, apenas serve para angariação de clientes e faturação.
52. O réu V.C.S.A., que não é construtor, serve-se da sociedade detentora de alvará para obter dinheiro dos contratos celebrados com a sociedade de que é único sócio e gerente e que afeta diretamente ao seu património pessoal.
53. O réu V.C.S.A. emite faturas dos valores que recebe na sua conta pessoal, por saber que não vai pagar os respetivos impostos.
54. A ré sociedade tem dívidas às Finanças em montante de, pelo menos, 42.730,71€.
55. Quantia essa que em janeiro de 2021 era já de 85.930,75€.
56. Nos contratos não indica conta bancária da sociedade ré.
57. O réu V.C.S.A. recebeu na sua conta bancária o dinheiro dos autores, não o afetando nem à obra nem ao pagamento das dívidas da sociedade, designadamente fiscais.»
Verifica-se, pois, uma derrogação do princípio legal da separação de esferas jurídico-patrimoniais, visando-se com ela uma correção das consequências jurídicas da imputação à sociedade, segundo as regras gerais, de certos atos que, pelo seu caráter abusivo ou pela sua finalidade extra-societária, se entende que devem obrigar outras pessoas (outros patrimónios).
Revela-nos esta factualidade a grave violação pelo réu da boa fé e da ética dos negócios, em que sobressai a utilização abusiva, em seu proveito, do fim social ou económico próprio da separação patrimonial da sociedade ré.[31]
Portanto, deve ser assacada ao réu V.C.S.A. a responsabilidade (solidária) pela restituição aos autores da quantia de € 55.020,32.

Dos danos não patrimoniais
Como é sabido, perante o incumprimento definitivo imputável ao devedor, como é o caso, tratando-se de contrato bilateral, o credor pode não só resolver o contrato como pedir uma indemnização pelos danos sofridos em consequência do incumprimento (art. 801º do CC).
Parece hoje não sustentar entendimento diverso que mesmo no âmbito da responsabilidade contratual tem lugar a indemnização por danos não patrimoniais, ponto é que estes, pela sua gravidade mereçam a tutela do direito (art. 496º do CC).
Já se descreveu atrás a matéria de facto provada, interessando aqui salientar que os autores transmitiram ao sócio gerente da ré, o aqui réu V.C.S.A., que tinham vendido a casa onde moravam e que se encontravam a residir, temporariamente, na garagem da casa da mãe da autora, pelo que o prazo de construção era essencial para eles.
Foi estipulado no contrato que o prazo de execução dos trabalhos, de acordo com a licença de construção, teria início a 01.10.2020 e término a 30.06.2021.
Porém em finais de dezembro de 2020 não se encontrava ainda instalado o estaleiro, nem feitas as escavações de acordo com o projeto, conforme definido no plano para o 1º mês de obra e mais tarde a ré abandonou a obra, tendo realizado poucos trabalhos, e apesar das insistências dos autores nunca foi feito qualquer trabalho na obra, mantendo-se a situação inalterada no final de janeiro de 2021, tendo a ré abandonado a obra.
Assim, em consequência do incumprimento culposo da ré, os autores, que são pessoa trabalhadoras e honestas, sentiram muita ansiedade e desgaste, que os privou e continua a provar das condições psicológicas necessárias à concentração para trabalhar e descansar, passando noites em claro, sentindo ainda revolta pelo facto de o réu se ter apropriado de todo o dinheiro que tinham e que apenas conseguiram com a venda de todo o seu património imobiliário.
Daí que os autores se sintam também inseguros financeiramente, designadamente com a incerteza de terem dinheiro suficiente para continuar o projeto de construção da sua habitação, sendo que o facto de não terem casa e terem de viver numa garagem com os filhos, dois dos quais menores, é causa de tristeza e de desânimo (cfr. pontos 58 a 62 dos factos provados).
Todo este circunstancialismo de facto permite concluir que, no caso, se ultrapassou a barreira dos simples incómodos e aborrecimentos inerentes à grande maioria das obras de construção de um prédio, de modo que a inquietação, a angústia e o receio revelados pelos autores, não possam ser considerados como álea inerente à empreitada em questão.
Relativamente ao montante da indemnização, afigura-se justa e equitativa a indemnização de € 2.000,00 peticionada pelos autores.
Merece, pois, provimento a apelação, ainda que por fundamentos não totalmente coincidentes com os invocados pelos autores/recorrentes, com a consequente procedência da ação.
Vencidos no recurso e na ação, suportarão os réus/recorridos as respetivas custas - artigo 527º, nºs 1 e 2, do CPC.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em:
i) julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida.
ii) julgar procedente a ação, condenando os réus solidariamente a restituir aos autores a quantia de € 55.020,32, e a pagar-lhes uma indemnização a título de danos não patrimoniais de € 4.000,00 (€ 2.000,00 para cada autor).
As custas da apelação e da ação são a cargo dos réus/recorridos.
*
Évora, 24 de março de 2022
(Acórdão assinado digitalmente no Citius)
Manuel Bargado (relator)
Francisco Xavier (1º adjunto)
Maria João Sousa e Faro (2º adjunto)

__________________________________________________
[1] Este ponto 13 foi alterado pela Relação, passando a ter a seguinte redação: «No dia 11 de setembro de 2020, o A. R.F.B.R.e o R. V.C.S.A., tendo por objeto a construção da moradia, assinaram um documento que denominaram por “Contrato de Empreitada”, subordinando-o às condições constantes do documento junto ao procedimento cautelar como Doc. N.º 8, no qual, além do mais, consta:
(restante redação do ponto).»
[2] Este ponto 41 foi alterado pela Relação, passando a ter a seguinte redação: «Os autores pagaram, até 06-10-2020, a quantia de 55.020,32€., sem que tenha sido executado qualquer trabalho na obra, para além da limpeza do terreno».
[3] Este ponto 44 foi alterado pela Relação, passando a ter a seguinte redação: «Assim que o réu V.C.S.A. recebeu, antecipadamente, os pagamentos respeitantes ao 1.º e 2.º meses de obra, nunca mais foi feito qualquer trabalho.»
[4] Este ponto 49 foi alterado pela Relação, passando a ter a seguinte redação: «O réu V.C.S.A. identifica no contrato uma sociedade com uma firma falsa para criar confusão entre intervenientes, em benefício do enriquecimento do seu património pessoal».
[5] Este ponto 53 foi alterado pela Relação, passando a ter a seguinte redação: «O réu emite faturas dos valores que recebe na sua conta pessoal por saber que não vai pagar os respetivos impostos».
[6] Facto aditado pela Relação.
[7] A Relação eliminou todas as alíneas do elenco dos factos não provados.
[8] Cfr. Acórdão do STJ de 23.03.2017, proc. 7095/10.7TBMTS.P1.S1, disponível, como os demais citados sem outra indicação, in www.dgsi.pt.
[9] In Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, 1984, pp. 144-146.
[10] Cfr. o citado Acórdão do STJ de 23.03.2017.
[11] É que “embora o contrato de empreitada não esteja, em regra, submetido a nenhuma forma especial, sendo, portanto, em princípio, um negócio consensual (nos termos do art. 219º do Código Civil), o art. 29º do Decreto-Lei nº 12/2004, de 9 de Janeiro, veio consagrar a forma escrita para os contratos de empreitada e subempreitada de obra (de construção civil) particular acima de certo valor (isto é, cujo valor ultrapasse 10 % do limite fixado para a classe 1, sendo que a Portaria nº 17/2004, de 10 de Janeiro, definiu as classes das habitações, dispondo que a classe 1 vai até € 140.000,00) – o que, em termos práticos, significa que os contratos de empreitada e subempreitada (de construção civil) particular cujo valor seja superior a 14.000,00 euros têm de ser obrigatoriamente reduzidos a escrito.” Ac. Do TRL, de 10-03-2015, pº nº 215314/09.3YIPRT.L1-1, (…).
[12] Restante redação do ponto 13.
[13] Cfr. o Acórdão do STJ de 14.07.2021, proc. 19035/17.8T8PRT.P1.S1.
[14] Proc. 215314/09.3YIPRT.L1-1.
[15] Os autores alegaram, a título subsidiário, a nulidade daquele contrato, mas com outros fundamentos que não a sua não redução a escrito.
[16] Proc. 948/14.5TVLSB.L1.S1. Este acórdão foi citado na decisão recorrida para sustentar não ser possível responsabilizar o réu a título de responsabilidade civil contratual.
[17] Código Civil Anotado, Vol. II, 3ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, p. 50.
[18] Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, 4ª. ed., p. 265 e Vaz Serra, RLJ, ano 112º, p. 29.
[19] Mora do empreiteiro – nº 1 do art. 808º do CC.
[20] Cfr., inter alia, o Acórdão do STJ de 12.03.2009, proc. 08A4071.
[21] Trata-se do “disregard of legal entity” ou “lifting the corporate veil”, do direito anglo-americano e do “Durchgriff” (penetração ou superação), da doutrina alemã.
[22] Teoria Geral do Direito Civil, ed. da AAFDL, I, 1995, p. 362.
[23] A Desconsideração da Personalidade Jurídica das Sociedades Comerciais, p. 19, citado no Acórdão do STJ de 12.05.2011, proc. 280/07.0TBGVA.C1.S1.
[24] Oliveira Ascensão, Lições de Direito Comercial, Lisboa 1986/87, I, p. 473.
[25] Menezes Cordeiro, em Anotação ao Acórdão do STJ de 09.01.2003, disponível in www.oa.pt.
[26] Menezes Cordeiro, idem.
[27] Ricardo Costa, Boletim da Ordem dos Advogados, nº 30, págs. 13 e 14 e Menezes Cordeiro, Manual do Direito das Sociedades, I, pág. 364, ambos os autores citados no Acórdão do STJ de 03.02.2009, proc. 08A3991.
[28] Acórdão do STJ de 03.02.2009 mencionado na nota anterior, citando Menezes Cordeiro, Manual …, p. 369.
[29] Acórdão da Relação do Porto de 24.01.2005, proc. 0411080.
[30] Acórdão do STJ de 12.05.2011, citado na nota 23.
[31] Cfr., neste sentido, o Acórdão do STJ de 07.11.2017, proc. 919/15.4T8PNF.P1.S1.