Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
807/19.5T8TMR.E1
Relator: JOSÉ ANTÓNIO MOITA
Descritores: INCUMPRIMENTO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
Data do Acordão: 02/13/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - A alínea a) do artigo 62.º do CPC, respeitante aos factores de atribuição da competência internacional aos Tribunais Portugueses, acolhe o princípio da coincidência, fazendo aquela acompanhar a competência interna de raiz territorial;
2 - Assim, se de acordo com as regras da competência em razão do território, se constatar que algum tribunal português é territorialmente competente, também lhe é atribuída a competência internacional por via de tal princípio;
3 - No caso concreto, não prevalecendo instrumento jurídico internacional sobre o direito interno em matéria de competência internacional e verificando-se o elemento de conexão decorrente da mencionada alínea a) do artigo 62.º do CPC, por força do disposto nos nos 7 e 8, conjugados entre si, do artigo 9.º do RGPTC, é de considerar o Tribunal Português internacionalmente competente para apreciar a questão aflorada no procedimento tutelar cível de incumprimento instaurado em juízo pela Apelante.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 807/19.5T8TMR.E1

Apelante: (…)
Apelado: (…)


Sumário do Acórdão
(da exclusiva responsabilidade do relator – artigo 663.º, n.º 7, do C.P.C.)
(…)
***
Acordam os Juízes da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora no seguinte:

I - RELATÓRIO
(…), divorciada, residente na 63 (…), Ave. (…), Toronto – Ontário, Canadá, veio suscitar contra (…), divorciado, residente em 35 Rue de La (…), (…) – France e “com residência em Portugal, na Estrada (…), 116, (…), 2495-641 Fátima”, o incumprimento do regime de regulação do exercício de responsabilidades parentais de (…), nascida em 09/10/2003, natural da freguesia de Fátima, Concelho de Ourém, filha de Requerente e Requerido, no que tange ao segmento da pensão alimentícia devida à (…), alegando ter sido acordado em sede de acção de divórcio por mútuo consentimento, que correu termos entre ambos, o exercício das responsabilidades parentais da (…), o qual, além do mais, foi devidamente homologado pela decisão que decretou o divórcio, proferida em Conservatória do Registo Civil em 30/12/2009, a qual transitou devidamente em julgado.
Após ter dado nota à Requerente que se lhe afigurava existir incompetência internacional do Tribunal a quo para conhecer do incumprimento suscitado, o Mmº Juiz a quo proferiu a seguinte decisão:
“(…) veio suscitar contra (…) o incumprimento do regime de exercício de responsabilidades parentais de (…).
Importa considerar que:
A (…) nasceu em 09-10-2003, natural da freguesia de Fátima, concelho de Ourém, e é filha de requerente e requerido;
Por acordo homologado por sentença a (…) ficou a residir desde 30-12-2009 com a sua mãe;
A (…) vive com a requerente no Canadá.
O requerido tem a sua residência habitual em França.
Ora, a (…) não tem residência habitual em qualquer Estado-Membro subscritor do Regulamento n.º 2201/2003 de 27 de Novembro, nomeadamente neste País ou em França, logo existe a conexão relevante para o conferir de competência internacional a qualquer dos tribunais dos referidos países.
A circunstância de a (…) ser Portuguesa, assim como os seus pais, e ter sido regulado o exercício das responsabilidades parentais em Portugal, não constituem elementos relevantes, por desde logo não estar em causa a competência de um Estado-Membro, como previsto no artigo 8.º do referido diploma legal.
Aliás, em conformidade com o artigo 5º da Convenção de Haia de 19-10-1996 (Decreto 52/2008, de 13 de Novembro), a competência internacional para conhecer do presente litígio, em face da residência da (…), é das autoridades do Canadá.
Trata-se de uma excepção dilatória que implica o indeferimento liminar (artigo 96.º e 99.º, n.º 1, do CPC).
Pelo exposto, declaro este tribunal internacionalmente incompetente e indefiro liminarmente o requerimento inicial.
Custas pela requerente.
Valor: € 30.000,01
Notifique”.
*
Inconformada com a decisão, a Requerente apresentou requerimento de recurso, ao qual apenas respondeu o Ministério Público.
*
O recurso foi recebido na 1ª Instância como apelação, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo e o Requerido citado para os termos da acção e do recurso.
*
Já nesta Relação, foi proferido pelo relator despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões, a que a Apelante acedeu, tendo aperfeiçoado as mesmas da seguinte forma:
“1) A Recorrente intentou contra o Requerido, no Juízo de Família e Menores de Tomar do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, incidente de incumprimento das responsabilidades parentais, nos termos acima transcritos;
2) Sobre tal requerimento foi proferido Despacho pelo Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo nos seguintes termos: «Afigura-se que este tribunal não será internacionalmente competente para conhecer do litígio, porquanto a menor residirá com a sua mãe no Canadá e o pai tem a sua residência habitual em França. Assim, notifique a requerente para, querendo, se pronunciar»;
3) A Recorrente pronunciou-se nos termos acima transcritos.
4) Por Sentença de fls., decidiu o Meritíssimo Juiz o seguinte: «Pelo exposto, declaro este tribunal internacionalmente incompetente e indefiro liminarmente o requerimento inicial»;
5) Salvo o devido respeito, não podemos concordar com tal decisão;
6) Estabelece o artigo 62.º do Código de Processo Civil que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando a ação possa ser proposta em tribunal português segundo as regras da competência territorial estabelecidas na lei portuguesa (al. a)), tiver sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram (b)), ou quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real (al. c));
7) Tal não obsta ao estabelecido em tratados internacionais e regulamentos comunitários em virtude do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa;
8) As regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa em matérias de providências tutelares cíveis são as que constam do atual artigo 9.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível;
9) Para apreciarmos a competência internacional do tribunal português de acordo com o referido artigo 9.º do RGPTC, deve atender-se à Convenção relativa à Competência, à Lei Aplicável, ao Reconhecimento, à Execução, e à Cooperação em Matéria de Responsabilidade Parental e de Medidas de Proteção de Crianças, concluída em 19/10/1996 (Convenção de Haia de 1996) a qual foi aprovada em Portugal pelo Decreto n.º 52/2008, de 13/11, e ao Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27/11/2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e matéria de responsabilidade parental e que é obrigatório em todos os elementos e diretamente aplicável aos Estados-Membros da Comunidade Europeia;
10) Conforme dispõe a Convenção de Haia de 1996 e o Regulamento (CE) n.º 2021/2003, de 27/11/2003, será competente para regular o exercício das responsabilidades parentais, o tribunal do Estado da residência habitual do menor à data da instauração do processo – vide artigo 5.º da referida Convenção de Haia e artigo 8.º, n.º 1, do citado Regulamento CE;
11) Haverá contudo que ter em conta as exceções que são feitas aquela regra geral e que constam quer do artigo 5.º, n.º 2, da referida Convenção, quer do artigo 8.º, n.º 2, do citado Regulamento;
12) Dispõe o artigo 5.º da Convenção de Haia de 1996, o seguinte: 1 – As autoridades jurídicas ou administrativas do Estado Contratante no qual a criança tem a sua residência habitual possuem competência para tomar as medidas necessárias à proteção da pessoa ou bens da criança. 2 – Com ressalva do artigo 7.º, em caso de mudança da residência habitual da criança para outro Estado Contratante, as autoridades do Estado da nova residência habitual terão a competência;
13) Enquanto o artigo 7.º da mesma Convenção estabelece: “1 – Em caso de afastamento ou retenção ilícita da criança as autoridades do Estado Contratante, no qual a criança tinha a sua residência habitual imediatamente antes do seu afastamento ou retenção, mantêm as suas competências até que a criança adquira a residência habitual num outro Estado”, e (...);
14) E estabelece o artigo 8.º do Regulamento (CE) n.º 2021/2003, o seguinte: “1. Os tribunais de um Estado-Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado-Membro à data em que o processo seja instaurado no tribunal. 2. O n.º 1 é aplicável sob reserva do disposto nos artigos 9.º, 10.º e 12.º”;
15) O artigo 12º do Regulamento (CE) n.º 2021/2003, que tem como epígrafe “Extensão da competência”, estabelece designadamente o seguinte: “1. Os tribunais do Estado-Membro que, por força do artigo 3.º, são competentes para decidir de um pedido de divórcio, de separação ou de anulação do casamento, são competentes para decidir qualquer questão relativa à responsabilidade parental relacionada com esse pedido quando: a) Pelo menos um dos cônjuges exerça a responsabilidade parental em relação à criança; e b) A competência desses tribunais tenha sido aceite, expressamente ou de qualquer forma inequívoca, pelos cônjuges ou pelos titulares da responsabilidade parental à data em que o processo é instaurado em tribunal, e seja exercida no superior interesse da criança. 2 (...). 3. Os tribunais de um Estado-Membro são igualmente competentes em matéria de responsabilidade parental em processos que não os referidos no n.º 1, quando: a) A criança tenha uma ligação particular com esse Estado-Membro, em especial devido ao facto de um dos titulares da responsabilidade parental ter a sua residência habitual nesse Estado-Membro ou de a criança ser nacional desse Estado-Membro; e b) A sua competência tenha sido aceite explicitamente ou de qualquer outra forma inequívoca por todas as partes no processo à data em que o processo é instaurado em tribunal e seja exercida no superior interesse da criança. 4. Se a criança tiver a sua residência habitual no território de um Estado terceiro que não seja parte contratante na Convenção de Haia, de 19 de Outubro de 1996, relativa à competência à lei aplicável, ao reconhecimento, à execução e à cooperação em matéria de responsabilidade parental e de medidas de proteção das crianças, presume-se que a competência baseada no presente artigo é do interesse da criança, nomeadamente quando for impossível instaurar um processo no Estado terceiro em questão”;
16) As responsabilidades parentais foram reguladas em Portugal mediante acordo homologado na Conservatória do Registo Civil da Marinha Grande, aquando da dissolução do casamento dos progenitores por divórcio, conforme decorre do doc. 1, junto ao requerimento inicial;
17) A menor e os seus pais têm todos a nacionalidade portuguesa;
18) A menor encontra-se a residir com a mãe no Canadá, país para onde emigrou;
19) Enquanto o pai é emigrante em França;
20) Pai e mãe mantêm, contudo, residência em Portugal na Estrada (…), (…), freguesia de Fátima, concelho de Ourém;
21) Residência à qual regressam praticamente todos os anos quando têm férias;
22) Os avós maternos residem também em Portugal na Estrada (…), n.º 116, (…), freguesia de Fátima, concelho de Ourém;
23) Os avós paternos são também naturais da freguesia de Fátima e aqui residiram, sendo que já faleceram;
24) A menor (…) teve e manteve uma relação afetiva com os avós paternos enquanto foram vivos assim como com os avós maternos, relação que ainda mantém;
25) Existe assim uma forte ligação com Portugal de todas as partes diretamente interessadas nos autos;
26) A Recorrente decidiu apresentar o requerimento inicial de incumprimento das responsabilidades em Portugal, por entender que o tribunal português, mercê das referidas circunstâncias estaria em melhores condições para salvaguardar de uma forma mais célere e eficaz os superiores interesses da sua filha, com quem reside, como se disse;
27) Sendo que o tribunal português tem as condições necessárias para poder exercer a sua competência no superior interesse da criança em causa;
28) Por ter sido liminarmente indeferido requerimento inicial apresentado, desconhece-se por não ter sido citado, se o Requerido aceita de forma inequívoca a competência do tribunal português;
29) O indeferimento liminar decidido pelo Meritíssimo Juiz a quo foi prematuro;
30) No presente caso, o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo fez uma errada interpretação dos factos e do direito aplicável;
31) O Mm.º Juiz não teve designadamente em conta a forte conexão existente com Portugal, que permite a aplicação do disposto no artigo 12.º do citado Regulamento n.º 2021/2003;
32) Está aqui em causa também a interpretação do conceito de residência habitual, na aceção do artigo 8.º, n.º 1, do mesmo Regulamento n.º 2021/2003;
33) Veja-se a variada jurisprudência relacionada com esta questão e acima transcrita e que interpreta e aplica aos casos neles decididos o conceito de residência habitual na aceção do artigo 8.º, n.º 1, do Regulamento n.º 2021/2003;
34) Destaca-se a acima citada e transcrita jurisprudência constante do Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, de 02/04/2009, publicado no Jornal Oficial da U.E. em 20/06/2009, disponível em http://eur-lex.europa.eu/legalcontent/pt/txt, e ainda a jurisprudência nacional citada e acima transcrita, constante do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 07/05/2013, disponível em www.dgsi.pt;
35) No caso presente verificam-se todos os requisitos previstos no artigo 12.º do Regulamento (CE) n.º 2021/2003, para que deva ser atribuída competência internacional ao tribunal português para decidir sobre o incumprimento das responsabilidades parentais peticionada pela progenitora, ora Recorrente, pelo que sendo o tribunal português internacionalmente competente é aplicável o
previsto no artigo 9º do RGPTC sendo territorialmente competente o Juízo de Família e Menores de Tomar;
36) A sentença da qual ora se recorre é assim nula, por violação de norma internacional, constante do artigo 12º do Regulamento (CE) n.º 2021/2003, de 27/11, respeitante à competência dos Estados-Membros da União Europeia (da qual fazem parte Portugal e França) bem como por violação dos arts. 5º, nº 2 e 7º da Convenção de Haia de 1996, assinada e ratificada por Portugal, França e Canadá;
37) Nulidade que ora se invoca, com todas as consequências legais;
38) Verifica-se assim, que a decisão recorrida não está fundamentada de facto e de direito, razões pelas quais deverá a Sentença recorrida ser revogada, o que, desde já e aqui, se requer, com todas as consequências legais daí resultantes;
39) O Meritíssimo Juiz a quo, na decisão sob recurso, viola o disposto nas alíneas b), c) e d) do artigo 615.º do Código do Processo Civil, uma vez que não apreciou a totalidade das questões como o deveria ter feito, sendo por esse facto nula;
40) A decisão recorrida, viola o disposto no artigo 205.º da C. R. P., uma vez que segundo esta disposição Constitucional, “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na Lei”;
41) A decisão recorrida, viola o disposto no artigo 204º da C. R. P., uma vez que esta norma é tão abrangente, que nem é necessário que os Tribunais apliquem normas que infrinjam a Constituição, basta apenas e tão só, que violem “os princípios nela consignados”;
42) A decisão recorrida viola os princípios consignados na Constituição da República Portuguesa, nomeadamente consignados nos artigos 13º e 20º;
43) A decisão recorrida viola o disposto no artigo 202º da C.R.P., nomeadamente o n.º 2, uma vez que: “na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos... e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados”;
44) O Tribunal com a decisão recorrida não assegurou a defesa dos direitos da Recorrente, ao não fundamentar exaustivamente a sua decisão, e nem sequer aplicar as normas legais aplicáveis ao caso em concreto;
45) A Sentença sob recurso violou:
a) O disposto nos artigos 62º, alínea a), 152º, 154º, 411º, 615º, alíneas b), c) e d), do Código do Processo Civil e o disposto no artigo 9.º do RGPTC;
b) O disposto no artigo 7.º da Convenção de Haia de 1996, aprovada pelo Decreto nº 52/2008, de 13/11 e dos arts. 8º, nº 2, e 12º, nº 3, do Regulamento (CE) nº 2021/2003 do Conselho, de 27/11.
c) O disposto nos artigos 13.º, 20.º, 202.º, 204.º e 205.º da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que se requer a V. Exas. a revogação da sentença recorrida, com as consequências legais daí resultantes, por tal ser de LEI, DIREITO E JUSTIÇA”.
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A resposta ao recurso do Ministério Público contem as seguintes conclusões:
“1 - Tendo a criança e os seus pais nacionalidade portuguesa e residindo ela com carácter de permanência no Canadá, aí tendo a sua vida organizada, não será caso para aplicar o disposto no artigo 12.º, n.º 4, do Regulamento (CE) n.º 2021/27/11.
2 - Na verdade, a criança reside num estado terceiro para efeitos de aplicação do referido Regulamento, estado esse que é parte contratante na Convenção da Haia, de 19 de Outubro de 1996, Convenção relativa à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento, à execução e à cooperação em matéria de responsabilidade parental e de medidas de proteção das crianças.
3 - Tal circunstância obsta à extensão da competência prevista no n.º 4.º do citado artigo 12.º, Regulamento (CE) n.º 2021/27/11.
4 - Assim, nos termos disposto no artigo 5.º da Convenção da Haia, de 19 de Outubro de 1996, a competência para conhecer do litígio em causa nos autos compete às autoridades do Canadá.
5 - O despacho recorrido indica com clareza os fundamentos em que se sustentou e a recorrente foi capaz de os identificar e pôr em causa.
6 – Esses fundamentos são os que resultam da interpretação e aplicação das normas citadas no despacho recorrido não se verificando, por isso, as nulidades que são invocadas pela recorrente.
Termos em que deverá ser mantida a decisão recorrida
Contudo V. Exas, encontrarão, como sempre, a decisão JUSTA.
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O recurso é o próprio e foi admitido adequadamente quanto ao modo de subida e efeito fixado.
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Correram Vistos.
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II – QUESTÕES OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do disposto no artigo 635.º, n.º 4, conjugado com o artigo 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil (doravante apenas CPC), o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso, salvo no que concerne à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas pertinentes ao caso concreto e quando se trate de matérias de conhecimento oficioso que, no âmbito de recurso interposto pela parte vencida, possam ser decididas com base em elementos constantes do processo, pelo que as únicas questões que importa decidir respeitam ao seguinte:
1 - Nulidades da sentença;
2- Competência internacional do Tribunal a quo para conhecer e decidir do presente procedimento.
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III – FUNDAMENTOS DE FACTO
Os factos a considerar são os já acima descritos no relatório elaborado.

IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Decorre do artigo 615.º, n.º 1, do CPC que:
“É nula a sentença quando:
[ …]
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.”
Quanto à nulidade plasmada na alínea b):
Decorre do artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa que “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.
Por seu turno, resulta do artigo 154.º do Código de Processo Civil, epigrafado “Dever de fundamentar a decisão”, que:

1 - As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas.
2 - A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.
Esta norma enquadra-se naquelas que caracterizam o processo civil em geral.
Já na parte do CPC atinente à sentença, deparamos com o supra mencionado artigo 615º.
Acrescente-se que por força da previsão do nº 3, do artigo 613º, do C.P.C., não existem dúvidas de que o normativo constante do aludido artigo 615º, nº 1, b), (tal como sucede com os das alíneas c) e d)), também se aplica a despachos, sem prejuízo do previsto no já mencionado nº 2, do artigo 154º, do CPC.
Assim, é de considerar que ao despacho sindicado no âmbito deste recurso, que declarou a incompetência internacional do Tribunal a quo, se impõem as exigências de fundamentação de facto e de direito da alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
Dito isto, será que o despacho em apreço peca por falta de fundamentação de facto e/ou de direito, que assuma relevância para declarar a sua nulidade como pretende a Apelante?
Segundo a lição do Prof. José Alberto dos Reis, só a falta absoluta de motivação constitui nulidade, sendo que a insuficiência ou a mediocridade da motivação afecta o valor doutrinal da sentença, mas não produz nulidade (cfr. Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 140).
Por seu turno, em douto Parecer, o Prof. Calvão da Silva deixou bem claro que, na sentença, o tribunal tem de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, sob pena de se verificar falta de fundamentação de direito (cfr. Col. Jur., 1995, 1º - 7).
Jurisprudencialmente podemos a este respeito destacar, entre outros, os acórdãos do STJ de 05/05/2005, Processo 05B839, de 21/12/2005, Processo 05B2287, de 18/05/2006, Processo 06B1441, de 19/12/2006, Processo 06B3791, de 10/04/2008, Processo 08B396 e de 06/07/2017, Processo 121/11.4TVLSB.L1.S1 (todos acessíveis para consulta in www.dgsi.net), reportando-se os indicados, à excepção do último, ao artigo 668.º, n.º 1, b), do CPC, anterior ao NCPC, cuja redacção, todavia, é idêntica à do actual artigo 618.º, n.º 1, b).
Neste último aresto do STJ de 2017 refere-se a propósito da nulidade prevista no supra citado normativo o seguinte:
“A nulidade apontada tem correspondência com o nº 3 do artigo 607º do mesmo C.P. Civil que impõe ao juiz o dever de, na parte motivatória da sentença, «descriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes…».
Significa tal que não basta que o Juiz decida a questão que lhe é colocada, tornando-se indispensável que refira as razões que o levaram a ditar aquela decisão e não outra de sentido diferente; torna-se necessário que demonstre que a solução encontrada é legal e justa”.
Alinhamos com a doutrina e jurisprudência acabadas de retratar acima, que, sublinhe-se, consideram que só a falta absoluta de motivação e não a motivação meramente deficiente, incompleta, ou não convincente, conduz àquela nulidade.
Retornando ao caso concreto decorre da leitura da decisão recorrida, por um lado, que foram elencados pelo Mmº Juiz a quo um conjunto de factos com base nos quais o mesmo alicerçou a sua decisão, mormente os descritos entre as linhas 4 a 9 da decisão, ou seja logo após a expressão “Importa considerar que:”, até ao parágrafo que termina com a palavra “França” e, por outro lado, que foram indicadas expressamente pelo Mmº Juiz a quo as normas jurídicas nas quais se estribou para decidir pelo indeferimento liminar da petição inicial, designadamente o artigo 5º da Convenção de Haia e os artigos 96º e 99º do CPC.
Nesta conformidade improcede a arguida nulidade de sentença.
Relativamente à nulidade definida na al. c), diz-nos António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa in “Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, artigos 1º a 702º” (Almedina, 2018), em anotação ao referido artigo 615º, o seguinte:
“A nulidade a que se reporta a 1ª parte da al. c) ocorre quando existe incompatibilidade entre os fundamentos e a decisão, ou seja, em que a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado final. Situação que, sendo violadora do chamado silogismo judiciário, em que as premissas devem condizer com a conclusão, também não se confunde com um eventual erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide contrariamente aos factos apurados ou contra norma jurídica que lhe impõe uma solução jurídica diferente” (cfr. pág. 737-738).
E acrescentam os referidos Autores na obra acabada de citar, relativamente à 2ª parte da alínea c), que: “A decisão judicial é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível e é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes” (cfr. pág. 738).
A este respeito decidiu-se no acórdão do STJ de 14/06/2011, no Processo 214/10.5YRLSB.S1 (acessível para consulta in “Sumários”, 2011, páginas 501), o seguinte:
“A nulidade por oposição entre os fundamentos e a decisão, na acepção da existência de uma contradição real entre os fundamentos e a respectiva parte dispositiva, acontece quando os fundamentos referidos pelo juiz conduziriam, necessariamente, a uma decisão de sentido oposto ou, pelo menos, de sentido diferente, mas não já quando se verifica uma errada subsunção dos factos à norma jurídica aplicável, nem, tão pouco, quando se verifica uma errada interpretação da mesma, situações essas que configuram antes um erro de julgamento”.
Na mesma linha de orientação (adoptada aliás pacificamente noutros arestos do mesmo Tribunal) surge o acórdão proferido pelo STJ de 03/02/2011 no Proc.º 1045/04.7TBALQ.L1.S1 (acessível in www.dgsi.pt), quando refere: “A nulidade por contradição entre a fundamentação e a decisão supõe um vício intrínseco à sua própria lógica, traduzido em a fundamentação em que se apoia não poder suportar o sentido da decisão que vem a ser proferida”.
Atendendo ao supra exposto, analisando os fundamentos plasmados na decisão recorrida, não constatamos ambiguidade nos passos seguidos na fundamentação fáctica e jurídica da mesma, revelando-se a mesma compreensível, tal como insusceptível de interpretações díspares, não se descortinando a existência de oposição entre os ditos fundamentos e o dispositivo revelando-se a parte decisória em coerência com os fundamentos que foram relevados pelo Tribunal a quo.
Se houve erro de julgamento, isso é questão diversa que será objecto de apreciação a seu tempo, mas não nesta sede em que não tem cabimento fazê-lo.
Isto dito, improcede, também, a arguida nulidade da sentença constante da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
Relativamente à nulidade prevista na alínea d), do aludido artigo 615.º do CPC, concretamente a chamada “Omissão de pronúncia”, a que alude a primeira parte da dita alínea, diz-nos António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, na obra acima citada, ainda em anotação ao mencionado artigo (pág. 738), que a omissão de pronúncia afere-se “seja quanto às questões suscitadas, seja quanto à apreciação de alguma pretensão”. E acrescentam ainda que “o dever de decidir tem por referência as questões suscitadas e, bem assim, as questões de conhecimento oficioso”, não obrigando, todavia “a que se incida sobre todos os argumentos, pois que estes não se confundem com «questões» […]”.
Neste sentido saliente-se, entre vários outros, os acórdãos do STJ de 27/03/2014, proferido no processo n.º 555/2002 e de 08/02/2011, proferido no processo n.º 842/04TBTMR.C1.S1 (ambos acessíveis para consulta in www.dgsi.pt ).
Neste último aresto de 08/02/2011 decidiu-se de forma bastante clara o seguinte:
“Não há que confundir as questões colocadas pelas partes com os argumentos ou razões que estas esgrimem em ordem à decisão dessas questões em determinado sentido: as questões submetidas à apreciação do tribunal identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as excepções invocadas, desde que não prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio. Coisa diferente são os argumentos, as razões jurídicas alegadas pelas partes em defesa dos seus pontos de vista, que não constituem questões…”.
E acrescenta-se ainda no dito acórdão que: “Se na apreciação de qualquer questão submetida ao conhecimento do julgador este não se pronuncia sobre algum ou alguns dos argumentos invocados pelas partes, tal omissão não constitui qualquer nulidade da decisão por falta de pronúncia”.
Por seu turno, quanto ao chamado “excesso de pronúncia”, prevenido na 2ª parte da supra identificada alínea d), os Autores supra citados, ainda na obra igualmente acima identificada (pág. 738), enquadram-no na “apreciação de questões de facto ou de direito que não tenham sido invocadas e que não sejam de conhecimento oficioso”.
Também na dimensão jurisprudencial existem ideias solidificadas quanto a esta nulidade.
De acordo com o acórdão do STJ de 04/03/2004, proferido no Processo 04B522 (acessível para consulta in www.dgsi.pt), a nulidade por excesso de pronúncia “reporta-se a questões e não a motivações, ou seja, apenas se reporta a pontos essenciais de facto ou de direito em que as partes centralizaram o litígio, incluindo as excepções “[…] e não à sua argumentação em defesa dos seus pontos de vista fáctico-jurídicos”.
Neste mesmo sentido veja-se o Acórdão do STJ de 05/02/2004, proferido no Processo 03B3809, publicado na mesma base de dados.
Já ao nível dos Tribunais de Relação e na mesma linha orientadora destacamos o acórdão da Relação de Guimarães de 24/01/2012 , proferido no Processo 3782/09 ( acessível para consulta in www.dgsi.pt), particularmente no excerto em que refere o seguinte: “Não padece de nulidade, por excesso de pronúncia […], a sentença que, com fundamentos jurídicos diversos dos invocados pelas partes, decide das questões que lhe são colocadas”.
Aportando novamente ao caso concreto, também não se vislumbra que o Tribunal a quo tenha incorrido na nulidade ora em apreciação seja a título de omissão, seja de excesso, de pronúncia. Com efeito, o Tribunal a quo, após ter possibilitado à ora Apelante o exercício do contraditório por forma a obviar ao proferimento de decisão-surpresa, conheceu em despacho liminar da excepção dilatória de incompetência absoluta (por violação de regras de competência internacional), a qual é de conhecimento oficioso nos termos do disposto no artigo 578º do CPC, declarando a sua verificação, o que, naturalmente, prejudicou o conhecimento da questão de mérito suscitada no procedimento tutelar cível instaurado, de acordo com o disposto no artigo 608.º, n.º 2, 1ª parte, do CPC, também aplicável ao despacho liminar pela remissão feita a partir do artigo 613.º, n.º 3, do mesmo diploma legal.
Destarte, não se verificando em concreto omissão ou excesso de pronúncia, conclui-se igualmente pela improcedência da nulidade da sentença com fundamento na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
Aqui chegados, apreciemos, de seguida, a questão respeitante à incompetência internacional do Tribunal a quo.
Estamos perante um procedimento tutelar cível assente em incidente de incumprimento de regulação do exercício das responsabilidades parentais por alegada falta de pagamento pontual de prestações alimentícias à Apelante pelo Apelado devidas à filha, que têm em comum, com dezasseis anos de idade, (…).
Mesmo a continuar a entender-se que se trata , ainda , de um incidente do processo de regulação (o que hodiernamente pode discutir-se face aos contornos a que presentemente obedece a sua tramitação), é certo que o incumprimento está especificamente regulado no artigo 41.º do Regulamento Geral do Processo Tutelar Cível (doravante apenas RGPTC), apartando-se, como tal, do regime previsto no artigo 16.º desse diploma para a generalidade dos incidentes, sendo certo que no caso concreto, por ter na sua base um acordo celebrado em processo de divórcio por mútuo consentimento homologado por Conservador do Registo Civil, o mesmo não foi processado por apenso àquela acção, mas sim em termos idênticos ao exigido no artigo 42.º, n.º 2, do RGPTC.
Como refere Tomé d`Almeida Ramião (“Regime Geral do Processo Tutelar Cível”, Anotado e Comentado, Quid Juris, 3ª edição, pág. 163), em comentário ao artigo 41º do RGPTC: “Nestes casos, visto não haver processo judicial de regulação, o incidente de incumprimento dará origem a distribuição autónoma, embora com o processamento previsto neste preceito”.
Ora, está factualmente reconhecido na decisão recorrida, sendo certo que os factos aí reproduzidos não foram objecto de impugnação nos termos do previsto no artigo 640.º do CPC, que à data da instauração do incumprimento em apreço a (…) vivia com a Apelante e que esta residia no Canadá, bem como que nesse momento o Apelado residia habitualmente em França.
Impõe-se, pois, saber se o Tribunal Português é internacionalmente competente para apreciar e decidir do presente procedimento tutelar cível assente em incumprimento de RERP, como sustenta a Apelante.
Sobre a competência internacional dos Tribunais Portugueses dispõe o artigo 59.º do CPC, nos seguintes termos:
“Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º”.
Por conseguinte, a competência internacional pode advir, designadamente, de regulamentos ou convenções internacionais (que prevalecem sobre o direito interno dos respectivos Estados-Membros, ou Estados Contratantes/Outorgantes), ou do disposto nos artigos 62.º, 63.º ou 94.º do CPC, sendo certo que quer o segundo desses artigos, que elenca taxativamente situações de conexão reveladoras de competência exclusiva dos Tribunais Portugueses, quer o terceiro e último, atinente a pacto privativo e atributivo de jurisdição, não terão, em qualquer circunstância, aplicabilidade ao caso vertente atenta a matéria em apreciação nele e os factos apurados na decisão recorrida.
Assim, caso a criança resida num Estado Membro da União Europeia releva em termos de aplicabilidade o Regulamento CE n.º 2201/2003 do Conselho, de 27/11/2003, “relativo à Competência, ao Reconhecimento e à Execução de Decisões em Matéria Matrimonial e em Matéria de Responsabilidade Parental”, publicado no Jornal Oficial de 23/12/2003, que se encontra em vigor desde 01/03/2005, o qual vincula todos os Estados Membros da União Europeia, com excepção da Dinamarca.
Este Regulamento é obrigatório quanto a todos os segmentos que regula, estabelecendo inequivocamente, além do mais, a competência internacional dos Estados-Membros no que concerne a matérias de responsabilidade parental, sendo directamente aplicável nos Estados-Membros, de acordo com o artigo 249.º, n.º 4, do Tratado que instituiu a Comunidade Europeia e artigo 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, sendo que a competência é atribuída, em regra, por força do artigo 8.º, n.º 1, aos Tribunais do Estado-Membro da residência habitual da criança.
Porém, residindo a (…) no Canadá e não sendo este País um dos Estados-Membros da União Europeia, não lhe é aplicável, por conseguinte, o aludido Regulamento CE, o que afasta a possibilidade de subsumir o caso vertente quer àquela regra do artigo 8.º, n.º 1, quer aos desvios à mesma previstos nos seus artigos 9.º, 10.º e 12.º, quer ainda ao disposto nos artigos 13.º a 15.º do dito Regulamento.
Sempre se dirá, ainda, que mesmo que o presente instrumento fosse aplicável ao Canadá, atendendo ao disposto no artigo 1.º, n.º 1, b), 2, a contrario sensu, e 3, e), do referido Regulamento CE , considerando que no caso concreto, como ressalta da leitura da petição inicial, o procedimento tutelar cível de incumprimento suscitado visa apenas o segmento dos alimentos (e não o da guarda/residência ou visitas) da regulação do exercício das responsabilidades parentais a favor da (…), não seria o mesmo, de igual modo, aplicável ao caso vertente.
Prosseguindo, vejamos de seguida se é aplicável um outro instrumento internacional, cujas normas também prevalecem sobre as regras do direito interno nacional, mormente sobre as que estabelecem a competência internacional dos Tribunais Portugueses, concretamente a Convenção da Haia de 19/10/1996, “Relativa à Competência, à Lei Aplicável, ao Reconhecimento, à Execução e à Cooperação em Matéria de Responsabilidade Parental e Medida de Proteção de Crianças”, publicada no Jornal Oficial da União Europeia, L 151/39, de 11/06/2008, de que são Estados Signatários Portugal (desde 01/04/2003 onde vigora desde 01/08/2011) e o Canadá (desde 23/05/2017), que o Tribunal a quo considerou aplicável ao caso vertente.
No artigo 1.º dessa Convenção estipulou-se o seguinte:
“1 – A presente Convenção tem por objecto:
a) Determinar qual o Estado cujas autoridades têm competência para tomar as medidas orientadas à proteção da pessoa ou bens da criança”.
[…]
2 – Para os efeitos desta Convenção, a expressão «responsabilidade parental» designa a autoridade parental ou qualquer outra relação análoga de autoridade que determine os direitos, poderes e responsabilidades dos pais, tutores ou outros representantes legais relativamente à pessoa ou bens da criança”.
No artigo 2º estatuiu-se que: “A Convenção aplicar-se-á às crianças desde o momento do seu nascimento até atingirem a idade de 18 anos”.
Como tal é passível de ser aplicável à Laura que tem 16 anos de idade.
No artigo 3º previram-se “as medidas previstas no artigo 1º “.
Já o artigo 5º, epigrafado “Competência”, estatuiu o seguinte:
“1 – As autoridades jurídicas ou administrativas do Estado Contratante no qual a criança tem a sua residência habitual possuem competência para tomar as medidas necessárias à proteção da pessoa ou bens da criança”.
Este preceito estabelece a regra relativamente à competência.
Nos artigos 6.º a 14.º da mencionada Convenção da Haia, estão previstas outras situações que implicam desvios, ou excepções, à mencionada regra.
Do exame dos factos mencionados na sentença recorrida não resulta que o caso concreto se enquadre em qualquer uma dessas excepções, ou desvios.
Como tal pareceria adequado aplicar a mencionada regra ao caso vertente.
Porém, no artigo 4º da dita Convenção está previsto o seguinte:
“Esta Convenção não se aplica a:
[…]
e) Obrigações alimentares”.
Ora, como já acima exposto, o presente procedimento tutelar cível consubstancia-se num incumprimento respeitante, precisamente, à obrigação de alimentos devidos à (…), que recaí sobre o ora Apelado.
Do exposto se conclui que, ao contrário do sustentado no despacho recorrido, também esta Convenção não se mostra aplicável ao caso concreto.
Na busca de instrumentos internacionais que possam prevalecer em termos de competência internacional sobre as regras estabelecidas quanto a essa questão na ordem jurídica interna Portuguesa já acima referenciadas, incidentes sobre a matéria específica aflorada no caso concreto, haverá ainda que referir a Convenção da Haia de 23 de Novembro de 2007 “Sobre a Cobrança Internacional de Alimentos em Benefício dos Filhos e de outros Membros da Família”, publicada no Jornal Oficial da União Europeia, L 192/51 de 22/07/2011, que se aplica a Portugal (e também à França), desde 01/08/2014 (enquanto Estado Membro da União Europeia que assinou a Convenção em 06/04/2011 e depositou o seu instrumento de ratificação a 09/04/2014) e ao Canadá, signatário da mesma desde 23/05/2017.
Nesta Convenção não encontramos uma regra que especificamente se refira à matéria da competência.
No entanto, no artigo 9º da mesma previu-se que “Os pedidos previstos no presente capítulo são apresentados através da autoridade central do Estado Contratante de residência do requerente à autoridade central do Estado requerido.
Para efeitos da presente disposição, a residência exclui a simples presença” (itálico nosso).
Localizando-se, como já assinalámos supra, a residência da Requerente à data da instauração do presente processo no Canadá seria de equacionar a aplicabilidade de tal regra.
No entanto, bem compulsando os autos e mormente o pedido formulado em concreto neste procedimento tutelar cível baseado no artigo 41º do RGPTC, constatamos que em rigor o mesmo não se enquadra em nenhuma das categorias de pedidos descriminadas nas alíneas a) a f) do artigo 10º da Convenção da Haia de 23/11/2007 para que remete o já mencionado artigo 9º desse instrumento internacional.
Na verdade com o presente procedimento tutelar cível a Apelante pretende que se avalie a existência de uma alegada situação de incumprimento da obrigação de alimentos devidos à (…) por parte do Apelado, com o respectivo apuramento do montante que não foi pago, através de uma decisão que o declare, podendo, numa segunda fase, despoletar-se o mecanismo pré-executivo previsto no artigo 48º do RGPTC para garantir o pagamento do montante em falta apurado caso o obrigado não se disponibilize a fazê-lo voluntariamente (itálico nosso).
Como tal não se visa apenas o reconhecimento e execução de uma decisão pré-existente, nem a obtenção de uma decisão sobre os alimentos devidos à (…), porque essa já resulta previamente tomada pela homologação do acordo de RERP inserido no processo de divórcio a seu tempo proferida no mesmo e que o decretou, nem mesmo a alteração dessa decisão homologatória sobre os ditos alimentos para a criança.
De todo o modo, ainda que se considerasse passível de aplicação ao caso concreto alguma das referidas alíneas a) a f) do artigo 10º sempre seria de atender ao disposto no artigo 37.º, n.º 1, da Convenção a que ora nos vimos referindo, o qual estatui que:
“1. A Convenção não exclui a possibilidade de recurso aos procedimentos aplicáveis nos termos do direito interno de um Estado Contratante que permitem a uma pessoa (o requerente) submeter diretamente à autoridade competente desse Estado uma matéria regulada pela Convenção, designadamente para obter ou alterar uma decisão em matéria de alimentos, sem prejuízo do disposto no artigo 18º”.
Perante o exposto e em face do concretamente peticionado no caso em apreço é de considerar não resultar a matéria da competência internacional dos Tribunais Portugueses prejudicada pelo estabelecido em instrumentos internacionais.
Tal constatação remete-nos, então, agora, para a análise do disposto no artigo 62.º do C.P.C., epigrafado “Fatores de atribuição da competência internacional”, a fim de concluirmos se efectivamente existe, ou não, no caso em apreço, algum dos elementos de conexão referidos no mencionado normativo, visto que no que tange aos artigos 63º e 94º do CPC já referimos supra não se verificar tal conexão no que tange à previsão do artigo 63º e não ser aplicável face aos elementos resultantes dos autos, mormente da decisão recorrida, o disposto no artigo 94º.
Dispõe o artigo 62º do CPC o seguinte.
“Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:
a) Quando a ação possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa;
b) Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram;
c) Quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão pessoal ou real. “
Estes elementos de conexão não são de aplicação cumulativa, bastando que se verifique no caso concreto uma das situações prevenidas em qualquer uma das alíneas acima reproduzidas.
É nossa convicção que perante os elementos factuais resultantes da decisão recorrida é aplicável ao caso vertente desde logo a previsão da alínea a).
Sobre esta referem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, Artigos 1º a 361º, Almedina, 4ª edição, 2018, pág. 154), o seguinte:
“A alínea a) consagra, nos mesmos termos que no direito anterior, o critério da coincidência, pelo qual se determina a competência internacional dos tribunais portugueses sempre que a ação possa ser proposta em Portugal segundo as regras específicas de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa… Atribui-se, assim, a este último conjunto de regras uma dupla funcionalidade”.
Ainda a respeito desta alínea deixamos expressa a posição esclarecida de António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa (obra acima citada, em comentário ao artigo 62.º do CPC, pág. 94):
“A competência internacional acompanha, desde logo, a competência interna de raiz territorial; se, de acordo com as regras da competência em razão do território, algum tribunal português for territorialmente competente, também lhe é atribuída a competência internacional por via do princípio da coincidência”.
Ora, relembrando que resulta da decisão recorrida que a Apelante tinha a sua residência à data da propositura deste procedimento tutelar cível de incumprimento, relativo ao segmento da pensão alimentícia devida à filha (…) de 16 anos de idade, no Canadá sendo a residência da criança a da mãe, pois com ela vivia à data da instauração do processo, possuindo o Apelado na mesma data residência habitual em França, mostra-se aplicável o disposto no n.º 7, devidamente conjugado com o n.º 8 do artigo 9.º do RGPTC, que possibilita a instauração do presente procedimento tutelar cível em tribunal português, em face da regra de competência territorial aí prevista.
Conclui-se, assim, nos termos expostos, ser o Tribunal Português internacionalmente competente para apreciar e decidir do presente procedimento tutelar cível de incumprimento suscitado pela ora Apelante, por aplicação dos artigos 59.º e 62.º, alínea a), do CPC.
Destarte, embora não exactamente pelas razões invocadas pela Apelante, afigura-se ser de conceder provimento ao recurso interposto pela mesma.
*
V – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta 1ª Secção Cível em julgar procedente o presente recurso de apelação interposto por (…) e, em consequência disso:
a) Revoga-se o despacho de indeferimento liminar proferido nos autos em 08/07/2019 pelo Mmº Juiz a quo, por via do qual declarou o Tribunal a quo internacionalmente incompetente para apreciar e decidir do presente procedimento tutelar cível de incumprimento, devendo o mesmo ser substituído por outro que determine o prosseguimento da causa nos termos que legalmente se mostrem aplicáveis à mesma;
b) Condena-se em custas o Apelado – artigo 527.º, n.º 2, do CPC.
D.N.
Évora, 13/02/2020
José António Moita
Silva Rato
Mata Ribeiro