Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
22/13.1GBPTM.E1
Relator: JOÃO GOMES DE SOUSA
Descritores: ESTRANGEIRO
INTÉRPRETE
DEFENSOR
BUSCA DOMICILIÁRIA
NULIDADES
Data do Acordão: 05/07/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 - Se em 1 de Agosto de 2013 no processo são praticados por força policial actos de grande relevo processual, auto de notícia, de apreensão, de constituição de arguido, de busca domiciliária, Termo de Identidade e Residência, auto de Direitos de Detido, termos de notificação, tudo exclusivamente em língua portuguesa não é possível fazer aplicação directa das Directivas nº 2010/64/EU do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de Outubro de 2010 relativa ao direito à interpretação e tradução em processo penal e a Diretiva 2012/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2012, pois que a primeira só tem aplicação directa em Portugal desde 28-10-2013 e a segunda desde 2 de Junho de 2014.

2 - A norma relativa à invalidade processual praticada, o artigo 120º, nº 1, al. c) do C.P.P., era vigente à data pelo que mesmo uma sua interpretação comunitariamente orientada antes da vigência directa das Directivas nunca poderia acarretar uma sua interpretação contra legem.

3 - Dispõe o artigo 64º, al. d) do C.P.P. que “em qualquer acto processual, à excepção da constituição de arguido, sempre que o arguido for cego, surdo, mudo, analfabeto, desconhecedor da língua portuguesa, menor de 21 anos, ou se suscitar a questão da sua inimputabilidade ou da sua imputabilidade diminuída” é obrigatória a assistência do defensor.

4 - Ora, sendo o arguido desconhecedor da língua portuguesa, como a Mmª JIC salientou, a força policial deveria ter providenciado para que fosse constituído defensor ao arguido, antes de dar vazão ao voluntarismo.

5 – Se apesar disto a força olicial avançou para proceder a uma busca domiciliária sem mandado judicial, invocando normas que não poderia invocar, pois que o flagrante delito só ocorreu durante a busca ilegal, ou seja, depois de se ter introduzido na residência do arguido sem consentimento, essa busca é nula, insanavelmente.

A regra geral da efectivação de uma busca, para mais domiciliária, está no artigo 176º, nº 1 do C.P.P.: “Antes de se proceder a busca, é entregue, salvo nos casos do n.º 5 do artigo 174.º, a quem tiver a disponibilidade do lugar em que a diligência se realiza, cópia do despacho que a determinou, na qual se faz menção de que pode assistir à diligência e fazer-se acompanhar ou substituir por pessoa da sua confiança e que se apresente sem delonga”.

E a GNR não tinha qualquer urgência na efectivação da busca pois que efectuada esta a 1 de Agosto de 2018, já a mesma suspeitava, dois dias antes – a 30 de Julho, como se afirma no auto de notícia – que o arguido tinha plantas no local. Destarte, também por aqui se apura que não há “flagrante delito”. Logo, ir ao Ministério Público e pedir um mandado de busca domiciliária era o mínimo exigível. (sumário do relator)

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório:

Nos autos de processo comum perante tribunal colectivo supra numerado, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro - Juízo Central Criminal de Portimão, J 2 – n…, natural de Harverfordwest, Reino Unido, nascido a 6/4/1975, portador do Passaporte n.º … residente em …, Lagos, actualmente residente em Maringbo Cosheston, Pembrock Dock, nº …, Reino Unido, foi acusado pela prática em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, por referência às tabelas I – C, I-A e II – A.


*

A final foi lavrado acórdão em 23 de Novembro de 2016 que julgou procedente a acusação, com alteração da qualificação jurídica dos factos, e em consequência:

a) Condenou o arguido N… pela prática de um crime de tráfico e outras actividades ilícitas do art. 21º/1 do DL 15/93 de 22/01, com referência às tabelas às tabelas I - C, I-A e II- A, na pena de 7 (sete) anos de prisão;

b) Declarou perdidos a favor do Estado o dinheiro e o estupefaciente e demais produtos e objectos apreendidos pertencentes ao arguido;

c) Com excepção do dinheiro, a que será dado o destino legal, ordenar, após trânsito, a destruição do produto estupefaciente e demais produtos e objectos apreendidos sem valor comercial.

d) Condenou o arguido no mais que é de lei.


*

Inconformado, recorreu o arguido do acórdão proferido pedindo se declare nulidade suscitada, se absolva o arguido ou se anule o julgamento e se baixe a pena do recorrente, com as seguintes conclusões:

A. Por Acórdão de 23 de Novembro de 2016, foi o arguido, ora recorrente, condenado pela prática de um crime de tráfico e outras actividades ilícitas, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de Janeiro, com referência às tabelas I-C, I-A e II-A, na pena de 7 (sete) anos de prisão.

B. No dia 1 de Agosto de 2013, após a detenção do arguido, foram efectuadas buscas e apreensões no domicílio do arguido, ora recorrente, no Sítio do…, em Lagos.

C. É nula a busca efectuada nos autos, nos temos do art. 119.º, al. c), do CPP, conjugado com o art. 64.º, n.º 1, al. d), do mesmo Código, porquanto o arguido não domina a língua portuguesa (tal como decorre de fls. 73, §2, e da gravação áudio do referido interrogatório) e a mesma não foi acompanhada por defensor.

D. A referida nulidade implica, nos termos do art. 122.º, n.º 1, do CPP, a invalidade da própria busca, bem como dos actos que dela dependerem ou que dos actos que posteriores por ela afectados.

E. In casu implica a nulidade das apreensões efectuadas na referida busca, bem como do interrogatório judicial de arguido detido e das declarações aí prestadas pelo arguido, já que a indiciação que lhe foi comunicada e as provas em que esta se baseava e que foram determinantes para imputar ao arguido o crime pelo qual vem condenado, bem como para a decisão do arguido prestar declarações sobre os factos objecto do processo, são, precisamente, os objectos apreendidos no decurso da referida busca e as diligências probatórias efectuadas sobre os mesmos (testes rápidos - exame IDENTA).

F. A referida nulidade afecta ainda, designadamente, a perícia realizada pelo Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária sobre os objectos apreendidos, bem como a reportagem fotográfica e todas as outras diligências relacionadas com a referida busca e apreensão.

G. A nulidade afecta ainda a reprodução em julgamento das declarações prestadas pelo arguido em primeiro interrogatório judicial, bem como as declarações dos agentes da GNR sobre as diligências de busca e apreensão.

H. Deve assim ser declarada a referida nulidade da busca e actos dela dependentes (fls. 3-7, na parte em que refere as diligências de busca efectuadas, 8-9, 10, 19-34, 35-51, 90, 91, 94, 94v, 96, 97, 98-107, 213-225, 228230, 231-232, bem como os actos de produção de prova realizados em audiência de julgamento, em particular a reprodução das declarações do arguido e as declarações dos agentes da GNR referentes às buscas e apreensões efectuadas, cf. acta de fls. 433).

I. Em consequência da nulidade da busca e dos actos subsequentes, impõe-se considerar não provados os factos n.º 1.1, 1.2, 1.3, 1.4, 1.5, 1.6, 1.7, 1.8, devendo assim o arguido ser absolvido, por não provados os factos constantes da acusação e do acórdão recorrido que fundamentam a sua condenação.

J. Ao não declarar esta nulidade, que é de conhecimento oficioso, violou o tribunal recorrido os artigos 64.º, n.º 1, al. d) e os artigos 119.º, al. c) e 122.º, n.º 1 do CPP.

a. Subsidiariamente

b. O Acórdão recorrido padece de contradição insanável da decisão, entre a decisão e a fundamentação, e da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, nos termos do disposto no artigo 410.º, n.º 2, al. b) do CPP.

K. Por um lado, o Tribunal considerou ao mesmo tempo não provado que “o arguido circulava pelas ruas de Barão de São João, para assim contactar com os seus potenciais clientes” (cf. ponto 2.1 da matéria de facto não provada) e provado que este cultivava cannabis para venda ou cedência onerosa a terceiros (cf. pontos 1.1, 1.5, 1.6 e 1.7 da matéria de facto provada).

L. Existe ainda contradição entre a decisão sobre a matéria de facto, pois considerou não provado o facto 2.1 referido supra, mas na fundamentação apresenta como razões de facto para fundamentar a prova de que este vendia estupefacientes nas declarações da mesma testemunha e nas declarações dos guardas da GNR, que se referiam à informação obtida desta mesma testemunha durante o inquérito. Porém, a referida testemunha não confirmou em julgamento as declarações prestadas no inquérito, e o Tribunal deu credibilidade à versão do depoimento prestado em julgamento, e por isso deu como não provado o ponto 2.1.

M. A contradição deve ser sanada considerando-se não provados os pontos 1.1, 1.5, 1.6 e 1.7, na parte em que se referem à venda ou cedência onerosa a terceiros, como decorre da impugnação da decisão da matéria de facto infra.

N. Por outro lado, existe contradição entre a decisão em matéria de facto pela qual se provou o constante dos pontos 1.12 e 1.13, os quais mencionam que “pelo menos desde Dezembro de 2012 viveu na residência identificada supra, que arrendou por 80 euros mensais, e que pagava com a ajuda da mãe que para o efeito lhe enviava 100 euros por mês” e ainda “assegurando a sua subsistência com o cultivo de produtos hortícolas e a venda de sucata recolhida no lixo, designadamente, peças de carros velhos, estimando a média mensal da venda de sucata no último ano que permaneceu em Portugal em cerca de 200 euros”, e a motivação da decisão em matéria de facto quanto à situação pessoal do arguido, segundo a qual a prova daqueles factos se fundamentou nas declarações do arguido em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, que são contrárias à conclusão de que o arguido viveria do tráfico de estupefacientes, ou seja, são contrárias aos factos provados n.º 1.1, 1.5, 1.6 e 1.7.

O. A ausência de rendimentos do arguido foi considerada como facto indiciário do qual se permitiu extrair a prova de que a finalidade do cultivo e detenção de estupefacientes pelo arguido seria a da cedência a terceiros, por oposição e exclusão do consumo próprio, como decorre da motivação da decisão em matéria de facto quanto aos factos provados, cf. fls. 443, o que é contraditório com os factos provados 1.12 e 1.13, assim sendo a prova destes factos contraditória com os factos provados 1.1, 1.5, 1.6 e 1.7 no que se refere à finalidade do cultivo e da detenção para venda ou cedência a terceiros a título oneroso.

P. A contradição deve ser sanada considerando-se não provados os pontos 1.1, 1.5, 1.6 e 1.7, na parte em que se referem à venda ou cedência onerosa a terceiros, como decorre da impugnação da decisão da matéria de facto infra.

Q. Ao decidir desta forma, violou o Acórdão recorrido os artigos 374.º, n.º 2 e 410.º, n.º 2, al. b) do CPP.

R. O Acórdão recorrido não fundamenta as razões pelas quais não atribuiu credibilidade às declarações do arguido quanto aos fins a que se destinava a actividade de cultivo e a detenção dos produtos estupefacientes, sendo a determinação de tais finalidades essenciais ao enquadramento dos factos no artigo 21.º ou no artigo 25.º do D.L. 15/93 de 22/01, tendo assim violado os artigos 97.º, n.º 1, al. a), n.º 2 e 5, e 374.º, n.º 2 do CPP e incorrendo na nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, al. a) do mesmo Código.

S. A prova resultante das declarações prestadas pelo arguido em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido (em particular os segmentos reproduzidos na motivação), reproduzidos em audiência de julgamento (cf. Acta de fls. 436 e 437), conjugada com os restantes elementos probatórios referentes ao estupefacientes apreendidos e com os factos provados 1.12 e 1.13, bem como com a ausência de prova de quaisquer actos de venda, ou cedência onerosa a terceiros, impunha que se considerassem não provados os factos 1.1, 1.5, 1.6, 1.7 e 1.8, no que respeita ao cultivo e detenção com finalidades de venda e cedência onerosa a terceiros.

T. Esta prova impunha assim que se alterassem os factos 1.1, 1.5, 1.6, 1.7 e 1.8 passando dos mesmos a constar que o arguido destinava os estupefacientes apreendidos ao seu consumo.

U. Ainda que assim não se entenda, e se mantenham como provados aqueles factos, sempre terá de acrescentar-se, como decorrência da prova indicada na conclusão T. que a detenção se destinava também ao consumo próprio, já que a finalidade de venda ou cedência onerosa a terceiros não exclui a finalidade de consumo.

V. Ao enquadrar os factos praticados pelo arguido no artigo 21.º do DL de 15/93 de 22.01 e não no artigo 25.º, errou o Tribunal a quo, violando assim as referidas normas.

W. A qualidade do produto apreendido revela menor ilicitude e “a sua quantidade, não sendo pequena, foi manifestamente exacerbada pelo tribunal recorrido que se impressionou com a quantidade de plantas existentes no local, em diferente condição” (Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 16.06.2015, Processo n.º 15/13.9GASLV.E1, Relator João Gomes de Sousa, disponível em www.dgsi.pt).

X. Em face da qualidade e quantidade dos produtos estupefacientes apreendidos, na sua maioria, plantas, em diferentes fases de crescimento, e com reduzido grau de pureza, e das circunstâncias em que foram apreendidos; em face da ausência de prova de que os produtos apreendidos fossem destinados à venda (muito menos exclusivamente à venda), e; em face das declarações e esclarecimentos prestados pelo arguido que confirmam que o mesmo é um consumidor frequente de há longa data, em suma, é toxicodependente; todas sustentando a considerável diminuição da ilicitude do facto, é de concluir que foi excessiva e desajustada a incriminação da conduta do arguido, ora recorrente, pelo tipo legal de crime previsto e punido pelo artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de Janeiro, já que a imagem global do ilícito corresponde à do tipo do artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de Janeiro.

Y. Deve assim ser alterada a decisão recorrida, condenando o recorrente pelo crime p. e p. no art. 25.º, do DL 15/93, de 22.01.

Z. Em matéria de medida da pena, deveria ter-se considerado como provada a colaboração activa do arguido com a investigação, como decorre da prova indicada na motivação, em particular as declarações dos guardas da GNR, e também do interrogatório de arguido, até porque se trata de facto com relevância para a decisão sobre a medida da pena, nos termos do art. 71.º do CP.

AA. Neste ponto a decisão, além de ter errado na matéria de facto, é nula, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, por não se ter pronunciado sobre a colaboração, considerando-a provada (aliás, o Tribunal referiu aquela colaboração na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto).

BB. A nulidade em causa deverá ser suprida acrescentando-se a colaboração activa do arguido na investigação à matéria de facto provada.

CC. Impunha-se, para decidir sobre a medida da pena, conhecer as circunstâncias pessoais e sociais do arguido à data da decisão, o que manifestamente não sucedeu, in casu, pois o Tribunal a quo utilizou para o efeito declarações prestadas mais de 3 anos antes da data da audiência (em 2 de Agosto de 2013, sendo a audiência em Novembro de 2016) e, apesar de conhecer a residência do arguido no Reino Unido, não procurou aferir quais as condições de inserção social que este ali tinha, por exemplo requerendo as referidas informações às autoridades inglesas.

DD. Neste ponto, padece a decisão recorrida da nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, que aqui se argui, e que poderá ser sanada, quer tendo em conta a documentação ora junta, quer reenviando o processo para a primeira instância, para produção de prova sobre a actual situação pessoal do arguido.

EE. Não produzir provas sobre a situação pessoal do arguido à data da decisão, com relevância para a medida da pena aplicada, bem como não aceitar conhecer das mesmas quando apresentadas em sede de recurso (ademais de arguido julgado na ausência), seja através de admissão e valoração das provas pelo Tribunal ad quem, seja através de reenvio para o Tribunal a quo, viola o direito a um processo justo e equitativo e às garantias de defesa (art. 20.º, nº 4, e art. 32.º, n.º 1, da CRP, e art. 6.º da CEDH), já que, sem que existam motivos imperiosos que justifiquem a não apreciação de tal prova, se ignoram provas essenciais e determinantes para decisão sobre a medida da pena, bem como viola o princípio da culpa e da proporcionalidade das penas (artigos 1.º, 18.º, n.º 2, 26.º, n.º 1 e 27.º, n.ºs 1 e 2 da CRP, artigo 40.º do Código Penal e art. 5.º, n.º 1, al. a) da CEDH), já que a pena imposta tem de ser proporcional à culpa e às necessidades de prevenção aferidas em função da personalidade e da situação pessoal e actual do arguido, sendo vedada a imposição de penas retributivas. Não é possível aplicar uma pena proporcionada à culpa e às necessidades de prevenção aferidas individualmente sem produzir prova suficiente para o efeito, o que, manifestamente, não sucedeu in casu.

FF. Se o Tribunal a quo tivesse procurado produzir a referida prova, teria apurado que o arguido é (e era à data dos factos) toxicodependente, em particular consumindo cannabis, mas também outros estupefacientes, desde o período em que se encontrava no ensino secundário, sofrendo de graves problemas de saúde mental (perturbação mista de ansiedade e depressiva), encontrando-se a ser acompanhado a nível médico e psicológico, e beneficiando de suporte familiar, auferindo rendimentos em virtude de subsídios por incapacidade médica que lhe permitem fazer face aos seus custos de vida.

GG. Actualmente, mantém-se aquela situação, sendo o mesmo pessoa extremamente vulnerável e que, recentemente, foi vítima de crime violento.

HH. Inexistem motivos para crer que o arguido voltaria a praticar crimes desta ou de outra natureza (aliás, não tem qualquer registo criminal ou de processo pendente desde a data da prática dos factos em apreço nestes autos).

II. Inexistem razões de prevenção que imponham a imposição de pena de prisão efectiva.

JJ. O Ministério Público em sede de julgamento, mesmo considerando o crime de tráfico e outras actividades ilícitas, admitiu a aplicação de pena que permitisse a suspensão, portanto por pena inferior a 5 anos.

KK. Decorre da jurisprudência supra citada na motivação que a pena adequada a este tipo de casos deve ser muito inferior àquela imposta ao arguido e, tendo em conta a ausência de antecedentes criminais, a sua situação pessoal e a sua postura colaborante durante as buscas, deve ser suspensa na sua execução.

LL. Deve assim, caso se mantenha a condenação do arguido, ser alterada a decisão recorrida, alterando-se a pena imposta ao arguido para pena não privativa da liberdade, para medida substancialmente inferior, decorrente do reenquadramento dos factos no crime do art. 40.º, n.º 1 ou 25.º do DecretoLei n.º 15/93 de 22 de Janeiro.


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O Ministério Público junto do tribunal recorrido pugnou na sua resposta pela manutenção na íntegra da decisão recorrida, com as seguintes conclusões:

1- O âmbito do recurso retira-se das respectivas conclusões as quais por seu turno são extraídas da motivação da referida peça legal, veja-se por favor a título de exemplo o sumário do douto Acórdão do STJ de 15-4-2010, in www.dgsi.pt, proc.18/05.7IDSTR.E1.S1.
2- “Como decorre do artigo 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões, exceptuadas as questões de conhecimento oficioso.
3- São assim, as conclusões que fixam o objecto do recurso, artigo 417º, nº3, do Código de Processo Penal.
4- Não contém o Douto Acórdão impugnado qualquer erro de julgamento da matéria de facto, ou outro vício que o inquine.
5- O arguido não tem antecedentes criminais.
6- Sopesando as provas produzidas e analisadas em audiência de julgamento afigura-se-nos que não assiste razão ao arguido pois toda a matéria constante da fundamentação do Douto Acórdão se provou.
7- Toda a prova produzida e analisada em audiência de julgamento respeitou os dispositivos contidos nos arts.124º a 127º, do Código de Processo Penal.
8- No que respeita à nulidade da busca efectuada na residência do arguido, diga-se que a mesma sucedeu nos termos previstos no artigo 174º e seguintes do Código de Processo Penal, não enfermando de qualquer nulidade, sendo válida.
9- A argumentação do recorrente quando afirma que o Acórdão recorrido padece de ”contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, não tem qualquer suporte factual ou legal.
10- E senão, vejamos o que se diz no Douto Acórdão:
a) Ac. TRC de 08.02.2017 V - Verifica-se o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP, quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação (e da medida desta) ou de absolvição Cfr. entre outros os Acórdãos do STJ de 6/4/2000, in BMJ n.º 496, pág. 169 e de 13/1/1999, in BMJ n.º 483, pág. 49.VI - A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, supõe que no texto da decisão, e sobre a mesma questão, constem posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluam mutuamente ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspectiva de lógica interna da decisão, tanto na coordenação possível dos factos e respectivas consequências, como nos pressupostos de uma solução de direito.
b) Ou no Acórdão Ac. TRC de 17.05.2017 : IV - O vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão pode apresentar-se, basicamente, sob diversas formas, tais como, uma oposição na matéria de facto provada, uma oposição entre a matéria de facto provada e a matéria de facto não provada, uma incoerência da fundamentação probatória da matéria de facto, ou ainda quando existe oposição entre a fundamentação e a decisão. V - Verifica-se este vício quando, o tribunal a quo, através de diferente redacção, nos factos provados e nos factos não provados, veio a considerar provada e não provada, a mesma causa para a disposição patrimonial, para a entrega do ouro e dinheiro da ofendida ? s arguidas.”
11- Lido e relido o Douto Acórdão conclui-se que não contém qualquer dos vícios previstos no artigo 410º, do Código de Processo Penal ou outros que a Lei Criminal preveja.
12- O Tribunal “a quo” teve em consideração para além das provas testemunhais que se mencionam e avaliam no Douto Acórdão, outras provas, tais como relatórios de vigilância, reportagens fotográficas, autos de busca e apreensão e outras informações elencadas no mencionado aresto, as quais em conjunto apontam de modo inequívoco o recorrente como autor do crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. no artigo 21°, nº 1, do D.L. 15/93, de 22/1.
13- Não deverá vingar a argumentação do arguido quando afirma que o Tribunal “a quo” deveria ter valorado a prova produzida em audiência de julgamento e qualificado a actividade ilícita provada como prevista no artigo 25º ou 26º, do D.L. 15/93, de 22/1.
14- As provas produzidas e analisadas em audiência de julgamento que se mencionam no Douto Acórdão, não apontam no sentido de qualquer diminuição considerável da ilicitude, nem obviamente deverá haver lugar a atenuação da pena.
15- É de confirmar a qualificação jurídica que consta do Douto Aresto.
16- Não beliscou o Douto Acórdão que o recorrente questiona qualquer preceito de direito europeu, constitucional ou criminal, tendo o arguido sido condenado com base em provas legalmente produzidas, bastantes e adequadas, embora o Douto Acórdão ainda não tenha transitado em julgado e esteja a ser impugnado, tudo em conformidade com as normas legais em vigor.
17- O arguido refuta a medida da pena e diz a propósito da medida da pena: o Prof. Germano Marques da Silva [Direito Penal Português, 3, pág. 130], que a pena será estabelecida com base na intensidade ou grau de culpabilidade(...). Mas, para além da função repressiva medida pela culpabilidade, a pena deverá também cumprir finalidades preventivas de protecção do bem jurídico e de integração do agente na sociedade. Vale dizer que a pena deverá desencorajar ou intimidar aqueles que pretendem iniciar-se na prática delituosa e deverá ressocializar o delinquente”.
a) Ou ainda, como se diz no Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça:” II - Culpa e prevenção constituem o binómio que preside à determinação da medida da pena, art. 71.º, n.º 1, do CP. A culpa como expressão da responsabilidade individual do agente pelo facto, fundada na existência de liberdade de decisão do ser humano e na vinculação da pessoa aos valores juridicamente protegidos (dever de observância da norma jurídica), é o fundamento ético da pena e, como tal, seu limite inultrapassável – art. 40.º, n.º 2, do CP.
III - Dentro deste limite, a pena é determinada dentro de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico, só então entrando considerações de prevenção especial, in www.dgsi.pt, Proc. nº 315/11.2JELSB.E1.S1, 1-7-2015.
18- A pena a que o arguido foi condenado está em harmonia com a gravidade dos factos que ele cometeu, com a culpa e também com outras circunstâncias, nomeadamente as previstas no artigo 71º, do Código Penal.
19- O recorrente quer que lhe seja suspensa na execução a pena de prisão que lhe venha a ser aplicadaS.
20- Sucede porém, que para além do limite temporal previsto no nº 1, do art. 50º, do Código Penal: “pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos”, e a pena aplicada ao arguido ultrapassa esse limite, o Tribunal “ a quo” não suspendeu na execução a pena de prisão aplicada ao arguido, uma vez que dada a gravidade dos factos praticados pelo recorrente, a duração e a amplitude da actividade ilícita por ele praticada e as consequências para as pessoas a quem vendia ou cedia produtos estupefacientes, bem como para a sociedade em geral que tem de arcar com os custos da recuperação dos toxicodependentes, não foi possível “concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizassem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”, art.50º, e seguintes do Código Penal.
21- O Tribunal “a quo” explicou de modo capaz e com sustentação na doutrina e jurisprudência as razões da não aplicação ao arguido do instituto previsto no art.50º e seguintes do Código Penal.
22- Apesar disso, considerando as circunstâncias: de o arguido N… não ter antecedentes criminais e estar socialmente inserido, talvez se possa fazer um juízo de prognose favorável e “concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”, art. 50º, e seguintes do Código Penal, diminuindo a pena de prisão que lhe foi aplicada e suspendendo-a na execução.
23- Não contém o Douto Acórdão nenhum vício ou nulidade, dos previstos no artigo 410º, nº2, do Código de Processo Penal ou outros, tendo sido respeitados os preceitos legais aplicáveis de Direito Europeu, Constitucional e Criminal
24-Deve persistir na íntegra o Douto Acórdão recorrido com a eventual diminuição da pena de prisão de modo a poder-se suspender na sua execução.
Concedendo provimento parcial ao recurso

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A Exmª Procuradora-geral Adjunta neste Tribunal da Relação emitiu douto parecer no sentido do provimento do recurso.

Foi cumprido o disposto no artigo 417 n.º 2 do Código de Processo Penal.


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B - Fundamentação:

B.1.1 – Factos provados:

1.1 Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde Março /Abril de 2013 e pelo menos até ao dia 8 de Setembro de 2013, que o arguido vem procedendo à venda de cannabis e MDMA a terceiros,

1.2 No dia 1 de Agosto de 2013, pelas 9h30, o arguido detinha:

– 12.878,770 (doze mil, oitocentas e setenta e oito gramas e setecentas e setenta centigramas) gramas de Cannabis – folhas e sumidades floridas ou frutificadas, a que correspondem 7303 (sete mil trezentas e três) doses individuais diárias;

- 4,121 (quatro gramas e cento e vinte e uma centigramas) gramas de MDMA, correspondentes a 21 (vinte e uma) doses individuais diárias;

- 165,000 (cento e sessenta e cinco) gramas de codeína;

1.3 O arguido detinha aquele estupefaciente em vários locais e a cannabis e sumidades em diversos estádios de desenvolvimento e formas.

1.4 Assim, o arguido tinha:

a) - plantadas na terra, em terrenos contíguos à residência sita em …, 132 (cento e trinta e duas) plantas de cannabis, com a altura entre os 90 (noventa) centímetros e o 1,5 (um virgula cinco) metros e ainda e 9 (nove) papoilas de ópio secas.

b) - junto à residência, plantadas em vasos, vulgo, cuvetes, 18 plantas de cannabis secas e, no interior de um alguidar, vários ramos de plantas de cannabis secos.

c) - no alpendre anexo à residência, o arguido tinha vários ramos de plantas de cannabis secos.

d) - no interior da residência, nas várias divisões da casa e divididos em várias embalagens, cannabis, MDMA e codeína, designadamente:

- no quarto do arguido: um saco de plástico contendo cannabis; um saco plástico com as inscrições “Tiago916808019”, contendo no seu interior cannabis; uma caixa de tabaco Chesterfield, contendo no seu interior cannabis;

- no roupeiro situado de frente quando se entra no quarto, e no interior de um saco azul: um saco hermético com as inscrições “Smokable 3 mix leaf”, contendo cannabis; um saco hermético com as inscrições “latest – mine female”, contendo cannabis; um saco hermético com as inscrições “food f2”, contendo cannabis; e três sacos herméticos, contendo cannabis;

- na mesa de cabeceira do lado esquerdo: uma caixa de madeira com doze saquetas que continham no seu interior cannabis;

- numa pequena mesa do lado esquerdo: três saquetas com cannabis; saco de tabaco contendo no seu interior cannabis; uma bomba de água, de marca Congo; um pequeno saco de cor verde contendo no seu interior MDMA.

- no interior do armário, do lado direito: uma balança de precisão, de marca Ohaus; uma balança de precisão, sem marca; uma caixa de tabaco Chesterfield, contendo no seu interior cannabis;

- na gaveta do armário: uma balança de precisão, de marca CD-V2-100; e uma bolsa de telemóvel contendo duas saquetas de MDMA;

- na estante situada no lado direito do quarto: no interior de cinco frascos de vidro, várias cabeças de opio e cannabis; e uma caixa de metal contendo no seu interior sementes de cannabis com 2,1 gramas;

- no escritório da residência: um saco plástico contendo no seu interior cannabis; um saco contendo no seu interior vários sacos herméticos; três notas de cinquenta euros emitidas pelo Banco Central Europeu, uma nota de vinte euros emitida pelo Banco Central Europeu, uma nota de cinco euros emitida pelo Banco Central Europeu e duas notas de dez libras esterlinas, emitidas pelo Banco Central do Reino Unido.

1.5 O arguido semeava, plantava, produzia, preparava e cedia a terceiros, a título oneroso, as folhas e sumidades de cannabis. Também cultivava, produzia e extraia a codeína das cabeças de papoilas, e cedia-a a terceiros a título oneroso. Finalmente, detinha para ceder a terceiros, a título oneroso, o MDMA.

1.6 As sementes, objectos e dinheiro que foram apreendidos na residência do arguido destinavam-se e eram produto da produção e cedência a terceiros do estupefaciente.

1.7 O arguido conhecia a natureza e características das substâncias que cultivava, detinha e que cedia/vendia a terceiros, bem sabendo que não estava autorizado a cultivá-las, detê-las, vendê-las ou, por qualquer outro título, cedê-las a terceiros, no entanto quis cultivá-las, detê-las e vendê-las, o que efectivamente conseguiu, obtendo com isso vantagem económica.

1.8 O arguido agiu livre, consciente e deliberadamente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

1.9 O arguido não tem antecedentes criminais.

1.10 Estudou no Reino Unido, até ao equivalente ao 12º ano, e frequentou a universidade durante um ano,

1.11 Viveu em Portugal nove anos, regressou ao Reino Unido durante um ano e voltou novamente para Portugal aonde permaneceu nos últimos quatro anos anteriores a Setembro de 2013,

1.12 Pelo menos desde Dezembro de 2012 viveu na residência identificada supra, que arrendou por 80 euros mensais, e que pagava com a ajuda da mãe que para o efeito lhe enviava 100 euros por mês,

1.13 Em Portugal nunca exerceu qualquer actividade laboral regular, assegurando a sua subsistência com o cultivo de produtos hortícolas e a venda de sucata recolhida no lixo, designadamente, peças de carros velhos, estimando a média mensal da venda de sucata no último ano que permaneceu em Portugal em cerca de 200 euros,

1.14 Desde meados de Outubro o arguido deixou de ser visto na sua residência e em Barão de S. João.


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B.1.2 - Não se provou que:

2.1 o arguido circulava pelas ruas de Barão de São João, para assim contactar com os seus potenciais clientes.


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B.1.3 – Fundamentação da matéria de facto.

«Quanto aos factos provados
A convicção do Tribunal resultou da interpretação da totalidade da prova produzida à luz das regras da experiência comum, no confronto dos depoimentos prestados pelos militares da GNR, que procederam à investigação, e das apreensões efectuadas, e do exame pericial do LPC aos produtos estupefacientes, não tendo merecido credibilidade as declarações prestadas pelo arguido em sede de 1º interrogatório judicial, que foram reproduzidas em sede de audiência, quanto aos fins a que destinava a sua actividade e os produtos estupefacientes apreendidos.
Com efeito, as declarações do arguido,
- em suma, de que cultivava e usava os produtos estupefacientes que lhe foram apreendidos exclusivamente na sua alimentação e como analgésicos, e, como tratamento alternativo ao consumo de tabaco, e que vivia em Portugal dos produtos agrícolas que cultivava, para uso exclusivo, e da venda de sucata que recolhia no lixo - confrontadas com os depoimentos das testemunhas, Nl… e H…, militares da GNR, do NIC de Portimão, que no dia 1 de Agosto de 2013 procederam à busca na residência do arguido na sequência de uma denúncia anónima que chegou ao Posto de Lagos no dia 30/7/2013, e, após terem visualizado as plantas de cannabis do exterior da propriedade, no dia 31/7, no dia seguinte, procederam às buscas e apreensões, que foram, efectuadas com a cooperação do arguido, que, designadamente, indicou aos militares aonde se encontravam as plantas no interior e no exterior da residência, e as demais substâncias e objectos, nomeadamente, a balança de precisão existente na cozinha, tudo documentado nos autos, tendo constatado que o arguido era o único residente daquela habitação, (e que, posteriormente, na sequência de informações de que em Setembro o arguido continuava a proceder à venda de estupefacientes, tentaram localizá-lo sem sucesso)
E, com a prova documental existente, o auto de busca de fls. 19, a reportagem fotográfica de fls. 24, o relatório fotográfico de fls. 104, E o exame pericial do LPC,
- quanto à natureza estupefaciente das substâncias apreendidas e respectivos pesos e quantidades – donde resulta, designadamente, que ao arguido foram apreendidas na sua residência, calculadas segundo a Portaria 94/96, mais de 7081 doses diárias de canabis com um grau de pureza de 2,9% de THC,
E, a restante prova a informação do ISS, a fls. 193 donde resulta que é desconhecida a situação contributiva do arguido desde 2007-09, e as RDE´s de fls. 199, 200, 201 e 234, e a informação da “via verde” a fls. 257, das quais resulta que no dia 14/10/2013 o arguido já se tinha ausentado da região, encontrando-se a residência desabitada, e, bem assim, que há mais de 2 anos deixou também de ser visto na região da sua anterior residência no Monte Branco em Santana da Serra,
Constituem elementos de prova que, no seu conjunto, mesmo apesar de não se ter obtido prova directa de actos de venda, interpretados segundo as regras da experiência comum, não suscitaram quaisquer dúvidas quanto à actividade e às finalidades ilícitas do arguido, pela forma que ficou consignada nos factos provados, resultando a delimitação do período de actividade encontrado do tempo necessário às plantações e ao cultivo.
Quanto ao facto não provado circunscrito ao modo como o arguido desenvolvia a actividade de venda dos produtos estupefacientes, circulando nas ruas de …, a convicção, ou, melhor, a ausência dela, fundamentou-se no depoimento da testemunha V…, que em audiência de julgamento negou ter adquirido estupefaciente ao arguido.
Quanto à situação pessoal do arguido que não compareceu em audiência de julgamento, teve-se em conta as declarações que prestou à Srª Juiz de Instrução, em sede de 1º interrogatório judicial, sobre a sua condição sócio-económica à data dos factos em Portugal.

*

Cumpre decidir

B.2 – O âmbito do recurso – como sabido - define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso.

Em função do que consta das conclusões, correcta sequênciaa do tratado em motivações, são estes os pontos pretendidos apreciar pelo arguido:

a) - nulidade da busca efectuada e ausência de notificação de actos em língua inglesa – conclusões B a J;

b) - contradição factual – conclusões K a R;

c) - deficiente fundamentação factual e erro notório na apreciação da prova – conclusões S a V;

d) - enquadramento no tipo penal – conclusões W a Z;

e) - pena imposta.

Não se descortinam razões sistemáticas que imponham diferente ordem de apreciação.


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B.3 – Nulidade da busca efectuada e ausência de notificação de actos em língua inglesa

Como se antolha de fácil percepção, a procedência das primeiras razões de inconformidade do recurso podem determinar a desnecessidade, temporária ou definitivamente, de conhecimento de uma ou mais das restantes questões.


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B.3.a) – Iniciemos a abordagem pela interpretação e tradução de actos processuais.

Esta é matéria tratada habitualmente de forma displicente como os autos, aliás, dão disso nota clara.

E só em primeiro interrogatório de arguido detido – fls. I-73 – vem a ser nomeado intérprete ao arguido depois de a Mmª Juíza de Instrução Criminal ter constatado que, como “o arguido é de nacionalidade britânica e não domina a linqua portuguesa, foi nomeada intérprete da lingua inglesa a Sr.ª A… …”.

Até lá a profusão de papel semeado nos autos faz tábua rasa de tal facto e realidade que assume foros de grande relevo processual: autos de notícia, de apreensão, de constituição de arguido, de busca domiciliária, Termo de Identidade e Residência, auto de Direitos de Detido, termos de notificação, tudo exclusivamente em língua portuguesa.

Estávamos em 1 de Agosto de 2013 em todos esses actos.

Encurtando razões, economizando na fundamentação e pedindo perdão pela auto-citação, remetemos para o sumário de acórdão aprovado por estes mesmos juízes desta Relação de Évora em 20-12-2018 no processo nº 55/2017.9GBLGS.E1 sobre as Directivas nº 2010/64/EU do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de Outubro de 2010 relativa ao direito à interpretação e tradução em processo penal tem aplicação directa em Portugal desde 28-10-2013 e a Diretiva 2012/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2012, com aplicação directa desde 2 de Junho de 2014.

Dir-se-á, com toda a razão, que as duas Directivas ainda não eram directamente aplicáveis em Portugal.

Reafirmaremos que já anteriormente era jurisprudência pacífica do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que ao menos a interpretação de actos e documentos era essencial para a existência de um processo justo e equitativo e que já se entendeu que “A Convenção Europeia dos Direitos do Homem vigora na ordem jurídica portuguesa com valor infra-constitucional e consagra, como concretização do princípio do processo equitativo, que o arguido tem, como mínimo (“minimum rights”), o direito a ser informado, no mais curto prazo compatível com o direito de defesa, em língua que entenda e de forma minuciosa, da natureza da causa da acusação contra ele formulada (nosso relato no acórdão desta Relação de 06/26/2007 no proc. 848/07-1)”.

Por isso que a inexistência de Directivas directamente vigentes à data da prática dos factos dos autos processuais referidos não impedia - e até imporia por ser essa jurisprudência europeia indiscutível, que esses actos e autos fossem acompanhados de intérprete (que não traduzidos que essa era jurisprudência minoritária) para que o arguido os entendesse. Necessariamente o auto de busca e o Termo de Identidade e residência.

E impunha-se quer por simples interpretação diligente do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, quer por aplicação comunitáriamente orientada das indicadas Directivas, já vigentes desde 15-11-2010 (Directiva 2010/64/ue) e 21-06-2012 (Directiva 2012/13/ue).

Mas haverá que reconhecer que a norma relativa à invalidade processual praticada, o artigo 120º, nº 1, al. c) do C.P.P., era vigente à data pelo que mesmo uma sua interpretação comunitariamente orientada antes da vigência directa das Directivas nunca poderia acarretar uma sua interpretação contra legem.

Mas isto, claro, não implicou uma sanação desses actos num prazo contado a partir da sua prática, pois que o arguido não se encontrava acompanhado de advogado nem entendia o português – nem lhe foi nomeado defensor – sim no prazo do início de funções de advogado, o que vem a ocorrer a partir do dia seguinte, dia 2 de Agosto, por nomeação de defensor no primeiro interrogatório judicial.

Por isso que a invalidade praticada se sanasse em prazo após 2 de Agosto de 2013.


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B.3.b) – Nulidade da busca efectuada

A invalidade da busca vem invocada com fundamento na falta de assistência de advogado ao acto e suporte normativo no artigo 119º, al. c) do C.P.P., logo, uma nulidade insanável.

Também a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido da procedência do recurso com este fundamento, a ocorrência de nulidade insanável.

Dispõe o artigo 64º, al. d) do C.P.P. que “em qualquer acto processual, à excepção da constituição de arguido, sempre que o arguido for cego, surdo, mudo, analfabeto, desconhecedor da língua portuguesa, menor de 21 anos, ou se suscitar a questão da sua inimputabilidade ou da sua imputabilidade diminuída” é obrigatória a assistência do defensor.

Ora, sendo o arguido desconhecedor da língua portuguesa, como a Mmª JIC salientou, a GNR deveria ter providenciado para que fosse constituído defensor ao arguido, antes de dar vazão ao voluntarismo. A precipitação é evidente.

Aliás, a precipitação é mais evidente quando se constata que a GNR avançou para proceder a uma busca domiciliária sem mandado judicial, invocando normas que não poderia invocar, pois que o flagrante delito só ocorreu durante a busca ilegal, ou seja, depois de se ter introduzido na residência do arguido sem consentimento.

Por outro lado, em lado algum se afirma que o arguido deu o seu consentimento e que tal consentimento tenha ficado, “por qualquer forma, documentado” – artigo 174º, nº 5, al. b) do C.P.P..

E é bom ter presente que a regra geral das buscas não está no nº 5 do artigo 174º (norma que se pretendia excepcionalíssima), que nem é aplicável ao caso dos autos por não ocorrer nenhuma das excepções das suas alíneas. Só assim seria se pretendessemos homologar os abusos policiais ou a sua actuação com esquecimento de regras constitucionais e processuais penais básicas. Mas não é para isso que servem as magistraturas.

A regra geral da efectivação de uma busca, para mais domiciliária, está no artigo 176º, nº 1 do C.P.P.: “Antes de se proceder a busca, é entregue, salvo nos casos do n.º 5 do artigo 174.º, a quem tiver a disponibilidade do lugar em que a diligência se realiza, cópia do despacho que a determinou, na qual se faz menção de que pode assistir à diligência e fazer-se acompanhar ou substituir por pessoa da sua confiança e que se apresente sem delonga”.

E a GNR não tinha qualquer urgência na efectivação da busca pois que efectuada esta a 1 de Agosto de 2018, já a mesma suspeitava, dois dias antes – a 30 de Julho, como se afirma no auto de notícia – que o arguido tinha plantas no local. Destarte, também por aqui se apura que não há “flagrante delito”.

Logo, ir ao Ministério Público e pedir um mandado de busca domiciliária era o mínimo exigível.

Daqui decorre que também com este fundamento a busca é nula por ter sido efectivada sem mandado judicial – artigo 269º, nº 1, al. c) do C.P.P. - pois que as buscas domiciliárias, nos termos e com os limites do artigo 177.º, são actos a ordenar ou autorizar pelo juiz de instrução.

E surge, de igual forma, uma obrigação para o órgão de policia criminal que efectiva a diligência de, sob pena de nulidade, comunicar a busca ao juiz de instrução e por este ser apreciada em ordem à sua validação – artigo 174º, nº 6, ex vi do disposto no artigo 177º, nº 4 do C.P.P.. O que não aconteceu.

Não há, pois uma nulidade. Há uma aparatosa nulidade. Não há, apenas, uma violação “trivial” dos direitos do arguido face à previsão constitucional da inviolabilidade do domicílio, à previsão do artigo 126º do C.P.P. e artigo 8º, nº 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem que se possa equiparar nos seus efeitos ao designado “terceiro factor Collins” da jurisprudência canadiana, no sentido de a declaração da invalidade da prova provocar uma má imagem da administração da justiça. [1]

Quid iuris agora que se constata a nulidade insanável da busca domiciliária concretizada pela GNR de ...?

Nos termos do artigo 122º, nº 1 do C.P.P. “as nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar”.

Esta constatação exige um juízo de causalidade entre o acto inválido praticado e o que dele se obteve. Este juízo causal, no caso, não é concretizável sem o apelo à natureza probatória do acto praticado: em breve, procedeu-se à busca para obtenção de prova e sequentes efeitos processuais, detenção e apresentação do arguido.

O que dele se obteve implica constatar que o processo existe apenas devido à prova obtida com a busca ilícita.

A restante prova obtida é mera sequência da apreensão efectivada na busca. Designadamente os exames efectuados aos produtos apreendidos, a única prova relevante. Sequer prova declaratória ou por depoimentos gera o mínimo de prova autónoma, não dependente da busca ilícita. Isto se exceptuarmos as próprias declarações do arguido em audiência, que se limitou a admitir o consumo.

Releva, no caso, muito mais a absoluta necessidade de provocar um forte efeito dissuasor sobre práticas ilíctas das forças de segurança interna, sendo que a ilicitude do acto seria facilmente evitável com a obtenção dos respectivos mandados de busca.

Não há, portanto, operatividade de qualquer excepção à taint doctrine que permita dissipar a nódoa da ilicitude, excepção de fonte independente, nem excepção da descoberta inevitável, sequer a excepção da mácula dissipada, muito menos a excepção de boa-fé da conduta policial, que permita reenviar os autos ao tribunal recorrido para que formule novo juízo probatório sobre a prova subsistente nos autos. Não subsiste prova minimamente relevante para tal (sobre as excepções a obra indicada em nota de rodapé a fls. 28 e 29).

Logo o reenvio dos autos seria um acto inútil que apenas permitiria remeter para o tribunal recorrente o ónus de tirar as ilações que se impõem de forma óbvia. O arguido tem que ser absolvido por ausência de prova bastante para a sua condenação, sequer como consumidor.

O que não impede que se ordene a destruição do apreendido que constitua estupefaciente ou contenha resíduos dos mesmos.

Todos os restantes objectos e valores serão restituídos ao arguido – artigo 186º do C.P.P..

Daqui decorre, naturalmente, que os restantes pontos do recurso ficam prejudicados.


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C - Dispositivo

Assim, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste tribunal em declarar totalmente procedente o recurso interposto pelo arguido, determinando-se a sua absolvição.

Notifique.

Sem tributação.

Évora, 07 de Maio de 2019 (elaborado e revisto pelo relator antes de assinado).

João Gomes de Sousa (relator)

António Condesso

[1] - Do relator “Em busca da regra mágica. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e a universalização da regra de exclusão da prova — o caso Gäfgen v. Alemanha”, in Julgar, nº 11, Maio-Agosto de 2010, pag. 26 (21-39).