Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
926/14.4TBTNV-B.E1
Relator: VICTOR SEQUINHO
Descritores: INSOLVÊNCIA CULPOSA
REQUISITOS
Data do Acordão: 11/23/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Verificada qualquer das situações tipificadas nas diversas alíneas do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, funciona uma presunção inilidível de que a insolvência é culposa.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 926/14.4TBTNV-B.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo de Comércio de Santarém – Juiz 2
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Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:


(…) Santiago, SA requereu a qualificação da insolvência de (…) – Sociedade Unipessoal, Lda. como culposa, nos termos do artigo 186.º do CIRE, pedindo a afectação de (…). O administrador da insolvência e o Ministério Público manifestaram a sua concordância. Não foi deduzida oposição. Procedeu-se à elaboração de despacho saneador, seleccionando o objecto do litígio e os temas de prova. Realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença que qualificou a insolvência como culposa, julgou (…) afectado pela qualificação da insolvência, inibindo-o de administrar patrimónios de terceiros, de exercer o comércio e de ocupar qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, pelo período de 4 anos, determinou a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por Luís Barreiras e condenou este último a restituir os bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos e a indemnizar os credores no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do seu património.

(…) interpôs recurso da sentença, formulando as seguintes conclusões:
a) Entende o recorrente que a matéria de facto dada como provada na sentença é insuficiente para a qualificação da insolvência como culposa nos termos do disposto na alínea i) do n.º 2 e al. a) e b) do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE.
b) O artigo 186.º, n.º 1, do CIRE define a insolvência culposa através da seguinte expressão: “a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”.
c) O n.º 2 desse mesmo artigo institui um conjunto de factos típicos que, quando apurados, conduzem à qualificação da insolvência como culposa. Formando esses factos uma presunção inilidível de culpa.
d) Já o n.º 3 consigna uma presunção de culpa grave dos administradores do devedor que não seja uma pessoa singular, verificadas as situações aí previstas.
e) Todavia, existem duas correntes doutrinárias que analisam de diferente modo o n.º 2 do artigo 186.º:
- A primeira defende que verificada a culpa nos termos do n.º 2 do artigo aqui em causa está automaticamente dispensada a verificação do nexo de causalidade entre esses factos-índices e a criação ou agravamento da situação de insolvência. De certa forma presume a culpa e o nexo de causalidade de forma inilidível;
- A segunda entende que ainda que seja dado como provado um facto integrante das alíneas a) a i) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE e assim se presuma a culpa isso não dispensa a verificação do nexo de causalidade entre esse facto e a situação de insolvência. Neste sentido veja-se o Acórdão do TRP, de 24-09-2007 proferido no processo nº 0753853.
f) Concorda-se com a segunda corrente doutrinária aqui exposta por ser a que melhor assegura a letra e o espirito da lei vertida no n.º 1 do artigo 186.º e o qual contém uma definição de insolvência culposa que deve nortear o enquadramento dos factos descritos nos n.ºs 2 e 3.
g) Na sentença aqui colocada em crise pode ler-se “que houve violação da obrigação de apresentação à insolvência, nos termos das disposições 18º/1 e 186º/2-i do CIRE. Aliás, o gerente da insolvente, não podia desconhecer que ao agir de tal forma, mantendo em funcionamento uma empresa que já se encontrava há tanto tempo em situação de insolvência, impedia os credores de verem satisfeitos os créditos que detinham sobre a insolvente, apenas aumentando o valor daqueles.”
h) Sucede porém que o recorrente não pode concordar com a aplicação desta alínea à situação aí vertida, como adiante se verá. Desde logo, porque a falta de apresentação à insolvência se enquadra no n.º 3, al. a), do artigo 186.º, e não no n.º 2.
i) A este propósito, pode ler-se no Ac. do TRC de 28-06-2016 no processo n.º 682/15.9T8FND-A.C1, concluindo-se pela inaplicabilidade da al. i) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE.
j) Acresce que independentemente da sua aplicação por se entender verificado o facto índice que lhe é subjacente, sempre se dirá que não basta essa constatação, como acima se defendeu. Supondo que a factualidade se encontra provada, nos presentes autos não consta dos factos provados o agravamento ou criação da situação de insolvência com essa causa. Refere apenas o Tribunal a quo que com a actuação descrita a insolvente impedia os “credores de verem satisfeitos os créditos que detinham sobre a insolvente, apenas aumentado o valor daqueles”.
k) Não basta dizer genericamente que se agravou o crédito, é necessário concretizar esse agravamento, a medida desse agravamento. Aumentou? Como? Em quanto? Nenhuma destas questões tem resposta em parte nenhuma da sentença aqui colocada em crise. Verificada essa falta de concretização não se pode dar como provado o agravamento ou criação da situação de insolvência pelo insolvente.
l) Em seguida lê-se na sentença “Por outro lado, ficou provado que sociedade insolvente não prestou as contas respeitantes aos anos de 2010, 2011, 2012 e 2013. Assim, quando em 2014 foi requerida a sua declaração de insolvência, era por demais evidente a violação da obrigação de depositar as contas na conservatória de registo comercial.
m) Nada se tendo provado no sentido dessas violações não terem criado ou agravado a situação de insolvência, deve a mesma ser julgada culposa ao abrigo do art. 186º/3-a) e b) do CIRE.”
n) Ora, pese embora exista incumprimento, constata-se que as dívidas da insolvente se reportam a 2006 e 2010 e a circunstância de terem decorrido 8 e 4 anos sobre a data da insolvência – o ano de 2014 – não implicou qualquer prejuízo concreto para os credores, para além do mero acumular dos juros. Juros esses que se continuam a vencer mesmo após a data da sentença que declara a devedora insolvente.
o) Afigura-se-nos, salvo melhor opinião, que o simples acumular de juros, por via dessa não apresentação atempada à insolvência, não pode traduzir automaticamente o preenchimento dos requisitos estabelecidos no n.º 1 do artigo 186.º, ou seja na criação ou agravamento, com dolo ou culpa grave, da situação de insolvência.
p) Aliás, nem o credor requerente da insolvência nem o administrador no parecer elaborado ao abrigo do artigo 188.º alegam a criação ou agravamento da situação de insolvência.
q) Ainda que provada a culpa grave (nos casos do n.º 3 do artigo 186.º), tal não tem como consequência directa e necessária a qualificação da insolvência como culposa, pois, para que tal possa suceder, é ainda necessário que se demonstre a existência de um nexo de causalidade entre a conduta incumpridora dos administradores e a situação de insolvência do devedor, neste sentido, Acs. Rel. Guimarães de 14.06.2006, in CJ, Ano XXXI, Tomo II, pág. 288, da Rel. Porto de 20.10.2007, in CJ, Ano XXXII, Tomo IV, pág. 189 e da Rel. Coimbra de 24.03.2009, in www.dgsi.pt.
r) De toda a sentença não é possível extrair de parte nenhuma em que medida a actuação da insolvente criou ou agravou a situação de insolvência. Existem factos que no limite podem ser considerados culposos, mas não se logrou provar que desses factos resulta a insolvência ou em que medida a agrava. Muito pelo contrário, nas palavras do tribunal a quo, “Nada se tendo provado no sentido dessas violações não terem criado ou agravado a situação de insolvência”. A verdade é que também não se provou que criaram ou agravaram. Sendo assim deficiente a argumentação expendida na sentença para se concluir pelo preenchimento dos requisitos do artigo 186.º do CIRE.
s) A corroborar a posição aqui defendida pelo recorrente, pode extrair-se da sentença um excerto amplamente importante “(…) não esquecendo que é assaz diminuto o valor dos créditos reconhecidos sobre a insolvência(pelo que os prejuízos provocados pela actuação despiciente do gerente da insolvente são igualmente diminutos)”
t) Atendendo à própria actividade desenvolvida pela insolvente, compra e venda de materiais de construção, e à época a que respeitam os créditos vencidos e reclamados é forçoso concluir que a situação de insolvência se deve à conjuntura económica do país nessa época.
u) Certo é que não está provado que a insolvente produziu e/ou agravou a situação de insolvência pelo que está necessariamente coarctada a possibilidade de aplicar o n.º 3 do artigo 186.º.
v) Como acima ficou sobejamente demonstrado não estão preenchidos os requisitos para a qualificação da insolvência como culposa o que implica necessariamente a qualificação da insolvência como fortuita e conduz à inaplicabilidade do artigo 189.º do CIRE.
w) Ainda que por mera hipótese académica se conclua pela qualificação da insolvência como dolosa, o que só por mera hipótese académica se concede, a decisão aqui em recurso não se podia ter baseado no artigo 189.º do CIRE, na redacção que lhe foi dada pela Lei 16/2012 de 20 de Abril e condenado recorrente nos termos das al. b) e e) do n.º 2 e n.º 4 de tal artigo, pois os factos que lhe são imputados ocorreram antes da entrada em vigor dessas normas (Ac. TRC de 02-06-2015 no proc.528/12.0TBCLD-C.C1).
x) Somente podia ter sido aplicado o artigo 189.º do CIRE na redacção anterior do Decreto-Lei 53/2004 de 18 de Março, esclarecendo também que, na anterior redacção, foi declarada inconstitucional a al. b) do n.º 2 do artigo 189.º pelo que também não pode ser aplicada (Ac. do Tribunal Constitucional de 26-11-2008).
y) No caso, a insolvência da (…) – Sociedade Unipessoal Lda. foi decretada por sentença de 21-11-2014, no entanto os factos imputados ao Recorrente como susceptíveis de integrar os pressupostos da insolvência culposa são anteriores à data da entrada em vigor da alteração ao artigo 189.º do CIRE, reportando-se, fundamentalmente a factos compreendidos 2006 a 2010, data de vencimento dos créditos.
z) A al. e) do n.º 2 e o n.º 4 do artigo 189.º do CIRE, que se referem à condenação das pessoas afectadas pela qualificação a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente não tinha correspondência na lei anterior.
aa) Não foi fixada eficácia retractiva ao artigo 189.º, n.º 2, al. b) e e), e n.º 4 do CIRE, como exige o artigo 12.º do Código Civil, deste modo só tem aplicação para o futuro, só podendo por isso ter aplicabilidade a factos determinantes ocorridos após 30 de Maio de 2012, data da entrada em vigor do diploma.
bb) Importa ainda referir que foi declarada, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade do artigo 189.º, n.º 2, alínea b), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, na medida em que impõe que o juiz, na sentença que qualifique a insolvência como culposa, decrete a inabilitação do administrador da sociedade comercial declarada insolvente (Processo n.º 777/08) por Acórdão do Tribunal Constitucional 173/2009, de 4 de Maio.
cc) Em suma, não é aplicável o artigo 189.º, n.º 2, al. b) e e), e n.º 4 do CIRE na redacção que lhes foi dada pela Lei 16/2012 de 20 de Abril, por estarem em causa actos praticados pelo Recorrente antes da entrada em vigor de tais normas, na medida em que tal constituiria uma aplicação retroactiva da lei, o que determina a revogação da decisão na parte em que a tais condenações se refere.
Termos em que, deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogada a sentença recorrida, devendo em consequência a insolvência ser qualificada como fortuita. Todavia, caso assim não se entenda e se mantenha a qualificação da insolvência como dolosa, deverá ser decretada a inaplicabilidade do artigo 189.º, n.º 2, al. b) e e), e n.º 4 do CIRE na redacção que lhes foi dada pela Lei 16/2012, de 20 de Abril, por estarem em causa actos praticados pelo recorrente antes da entrada em vigor de tais normas, o que determina a revogação da decisão na parte em que a tais condenações se refere. Assim se fazendo justiça.

O Ministério Público contra-alegou, concluindo no sentido da manutenção da sentença recorrida.
A recorrida não contra-alegou.
O recurso foi admitido.

É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal de recurso (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi artigo 663.º, n.º 2, do CPC). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.

As questões a resolver são as seguintes:
1 – Se os factos julgados provados são enquadráveis na alínea i) do n.º 2 e/ou nas alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE;
2 – Se, em função desse enquadramento, é possível concluir que a insolvência é culposa.

A decisão recorrida julgou provados os seguintes factos:
1) A “(…) – Sociedade Unipessoal, Lda.” é uma sociedade comercial por quotas com o capital social de € 5.000 e que tem por objecto social a compra e venda de materiais de construção e produtos similares.
2) A mesma foi constituída em 30-12-2005, tendo (…) como único sócio inscrito e gerente desde a sua constituição.
3) Em 6-8-2014, a “(…) Santiago, S.A.” requereu a insolvência da “(…) – Sociedade Unipessoal, Lda.”.
4) Por sentença de 21-11-2014 foi decretada a insolvência da “(…) – Sociedade Unipessoal, Lda.”, por sentença não contestada, pacificamente transitada em julgado.
5) O crédito do requerente da insolvência, (…) Santiago, S.A., relativo ao fornecimento de produtos e prestação de serviços, reporta-se ao ano de 2006, data em que foram emitidas algumas facturas não pagas.
6) No que concerne ao crédito da Fazenda Nacional, encontra-se em dívida, designadamente, IVA com data de vencimento em 15-02-2010.
7) Relativamente ao Instituto da Segurança Social, estão em dívida contribuições que se reportam ao ano de 2006.
8) O gerente da ora insolvente conhecia a realidade económico-financeira da sua empresa.
9) O processo principal foi encerrado por insuficiência da massa, uma vez que não foi encontrado nenhum bem da insolvente para ser liquidado.
10) A insolvente não procedeu ao depósito das contas desde o ano de 2010, referentes às contas de 2009, estando em falta as contas respeitantes aos anos de 2010, 2011, 2012 e 2013.
11) Em sede de lista provisória, o AI reconheceu o total de 46.478,23 € de créditos sobre a insolvência.

Na parte que nos interessa, o artigo 186.º do CIRE (diploma ao qual pertencem todas as normas adiante referidas sem indicação da sua origem) estabelece o seguinte:
N.º 1 – A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
N.º 2, alínea i) – Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188.º.
N.º 3 – Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido o dever de requerer a declaração de insolvência [alínea a)] ou a obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial [alínea b)].
A sentença recorrida considerou que “houve violação da obrigação de apresentação à insolvência, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 18º/1 e 186º/2-i do CIRE” e que “Nada se tendo provado no sentido destas violações não terem criado ou agravado a situação de insolvência, deve a mesma ser julgada culposa ao abrigo do art. 186º/3-a) e b) do CIRE”. As violações que a sentença recorrida tem em vista são a da já referida obrigação de apresentação à insolvência, nos termos do artigo 18.º, n.º 1, e a da obrigação de depósito das contas na conservatória do registo comercial nos anos de 2010 a 2013. A isto, o recorrente contrapõe que a falta de apresentação à insolvência se enquadra no n.º 3, al. a), do artigo 186.º, e não no n.º 2 do mesmo artigo.
Afigura-se, à partida, inadmissível uma interpretação que conduza a considerar que uma mesma conduta do devedor, a saber, o incumprimento da obrigação de apresentação à insolvência nos termos do artigo 18.º, n.º 1, é simultaneamente enquadrável na alínea i) do n.º 2 e na alínea a) do n.º 3. Importa, desde logo, ter em conta o disposto no artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil, segundo o qual, na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados. Em geral, a referida interpretação implicaria o reconhecimento de um lapso do legislador, que teria repetido uma previsão legal, pelo que, no mínimo, careceria de uma fundamentação convincente nesse sentido, que a sentença recorrida não contém. Acresce que, sendo muito diversas as consequências jurídicas do enquadramento de uma conduta do devedor no n.º 2 ou no n.º 3 do artigo 186.º, como adiante analisaremos, uma tal interpretação apenas se justificaria perante a irrefutável constatação da existência de um tão clamoroso lapso do legislador, a demonstrar com especial cuidado em sede de fundamentação. Não é, pois, conclusão a que possa chegar-se de ânimo leve, sem procurar uma interpretação alternativa que conduza à atribuição de um âmbito de aplicação específico a cada uma das normas em causa e omitindo qualquer esforço de fundamentação.
Ora, tal interpretação alternativa à da sentença recorrida é possível e, mais do que isso, impõe-se de forma evidente. A alínea i) do n.º 2 reporta-se ao incumprimento, que tem de ser reiterado, dos deveres de apresentação e de colaboração do devedor até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188.º, ou seja, dos deveres previstos no artigo 83.º. Esta conclusão resulta do simples cotejo entre este último artigo e a referida alínea i). Se dúvidas restassem, bastaria atentar no n.º 3 do artigo 83.º, no qual expressamente se prevê que a recusa de prestação de informações ou de colaboração é livremente apreciada pelo juiz, nomeadamente para efeito da qualificação da insolvência como culposa. É disto que se trata na alínea i) do n.º 2 do artigo 186.º, não da violação do dever de apresentação à insolvência nos termos do artigo 18.º, n.º 1, prevista na alínea a) do n.º 3 daquele artigo. Não há, pois, sobreposição entre as duas normas em causa.
Sendo assim e não se tendo provado qualquer incumprimento dos deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83.º por parte da sociedade devedora, forçoso é concluir pela inaplicabilidade da alínea i) do n.º 2 do artigo 186.º à situação dos autos.
Provou-se, isso sim, que, não obstante conhecer a realidade económico-financeira da devedora, o recorrente, seu único sócio e gerente, não a apresentou, nessa qualidade, à insolvência, tendo esta última sido decretada apenas em 2014, a requerimento de um credor, quando não existia qualquer bem para ser liquidado. Mais se provou que a devedora não procedeu ao depósito das contas desde o ano de 2010, referentes às contas de 2009, estando em falta as contas respeitantes aos anos de 2010, 2011, 2012 e 2013. Estas omissões da devedora enquadram-se nas alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 186.º.

Feito este enquadramento, cumpre dar resposta à segunda questão acima formulada: há fundamento para concluir que a insolvência é culposa?
Recordemos o disposto no n.º 1 do artigo 186.º, que constitui a cláusula geral nesta matéria: “A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.” Sinteticamente, são pressupostos da insolvência culposa uma actuação dolosa ou com culpa grave e um nexo de causalidade entre tal actuação e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.
O n.º 2 descreve comportamentos dos administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja pessoa singular, que determinam sempre a qualificação da insolvência como culposa. Verificada qualquer das situações tipificadas nas diversas alíneas, funciona uma presunção inilidível de que a insolvência é culposa. “Considera-se sempre culposa”, diz a parte inicial do preceito. Logo, não há lugar para indagações sobre a verificação dos pressupostos enunciados na cláusula geral do n.º 1. Ocorrendo qualquer das situações tipificadas, presume-se, sem possibilidade de prova em contrário, que há dolo ou culpa grave e o nexo de causalidade acima referido.
É completamente diferente o regime estabelecido no n.º 3. Essa diferença não reside apenas na natureza ilidível da presunção que estabelece, resultante da sua conjugação com o artigo 350.º, n.º 2, do Código Civil, mas também no âmbito da presunção. A presunção do n.º 2 reporta-se à natureza culposa da insolvência, ao passo que a do n.º 3 se restringe à verificação do pressuposto subjectivo da mesma, ou seja, à existência de culpa grave. É, pois, errado afirmar-se que os n.ºs 2 e 3 do artigo 186.º se distinguem apenas pela diversa natureza das presunções que estabelecem. Distinguem-se por isso, mas também porque a presunção do n.º 2 se reporta à qualificação da insolvência como culposa e a do n.º 3 se reporta apenas à verificação de um dos pressupostos dessa qualificação. Daí que, ao contrário do que acontece quando se verifique qualquer das hipóteses tipificadas pelo n.º 2, a ocorrência de uma hipótese tipificada pelo n.º 3 dispense a prova do pressuposto subjectivo da insolvência culposa (sem prejuízo da ilisão da presunção através de prova em contrário), mas não a do nexo de causalidade entre a actuação do devedor e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.
Como vimos anteriormente, a matéria de facto julgada provada permite concluir que se encontram preenchidas as hipóteses previstas nas alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 186.º. A presunção de culpa grave daí resultante não foi ilidida, pelo que esta última se tem por verificada. Falta, todavia, a prova do nexo de causalidade entre a actuação com culpa grave e a criação ou o agravamento da situação de insolvência. Da matéria de facto julgada provada, nada resulta que permita concluir pela existência do referido nexo de causalidade. Logo, não há fundamento para concluir que a insolvência é culposa, donde resulta, nos termos do artigo 185.º, a sua qualificação como fortuita.
Em conclusão, o recurso merece provimento, impondo-se a revogação da sentença recorrida e a qualificação da insolvência como fortuita.
Fica prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas pelo recorrente.

Sumário

1 – A alínea i) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE reporta-se ao incumprimento dos deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83.º do mesmo código.
2 – O incumprimento da obrigação de apresentação à insolvência nos termos do artigo 18.º, n.º 1, do CIRE, enquadra-se, não na alínea i) do n.º 2, mas sim na alínea a) do n.º 3 do artigo 186.º do mesmo código.
3 - Verificada qualquer das situações tipificadas nas diversas alíneas do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, funciona uma presunção inilidível de que a insolvência é culposa.
4 – O n.º 3 do artigo 186.º do CIRE distingue-se do n.º 2, não apenas pela natureza ilidível da presunção que estabelece, mas também pelo âmbito da mesma presunção. Enquanto a presunção do n.º 2 se reporta à natureza culposa da insolvência, a do n.º 3 restringe-se à verificação do pressuposto subjectivo da mesma, ou seja, à existência de culpa grave.
5 – Daí que, ao contrário do que acontece quando se verifique qualquer das hipóteses tipificadas pelo n.º 2, a ocorrência de uma hipótese tipificada pelo n.º 3 dispense a prova do pressuposto subjectivo da insolvência culposa (sem prejuízo da ilisão da presunção através de prova em contrário), mas não a do nexo de causalidade entre a actuação do devedor e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.

Decisão

Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso procedente, revogando a sentença recorrida e qualificando a insolvência como fortuita.
Custas a cargo da recorrida.
Notifique.

Évora, 23.11.2017

Vítor Sequinho dos Santos (Relator)

Conceição Ferreira

Rui Machado e Moura