Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
18/08.5GDODM.E1
Relator: JOÃO GOMES DE SOUSA
Descritores: MAUS TRATOS A MENORES
FACTOS GENÉRICOS
APRECIAÇÃO CRÍTICA DAS PROVAS
Data do Acordão: 11/05/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I - A “tunnel vision” das entidades investigatórias e instrutórias – a atenção exclusiva sobre uma pessoa ou facto, que afasta da mente do investigador a atenção sobre outras pessoas ou factos relevantes ou sobre a possibilidade de confirmação de alibis ou de motivações esconsas - cria sombras assentes em convicções, emoções e crenças bem pensantes, onde deveria reinar a calma e o equilíbrio, acima de tudo a racionalidade, a experiência e o saber, ou este feito daquela.

II - Se o tribunal recorrido, com os meios de prova disponíveis e indicados, não tinha sequer a possibilidade de emitir um juízo de simples probabilidade civilística indicado na expressão “pensamos que é mais provável do que não” (“preponderância de prova” ou “balanço de probabilidades”), ou seja, um mero juízo de maior percentagem aritmética (mais de 50 %) de os factos terem ocorrido, muito menos o será um juízo mais exigente de culpa penal, o juízo de prova além de toda a dúvida razoável.

III - O juízo a formular para a condenação criminal – num processo onde impera a presunção de inocência - deve assentar em elementos concretos, objectivos, existentes no processo e que conduzam a um elevado grau de probabilidade de que os factos ocorreram de determinada forma e não de outra, de uma “probabilidade que roça a certeza”, o que corresponde ao anglo-saxónico“proof beyond reasonable doubt”. [1]
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes que compõem a 2ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório:
No Tribunal Judicial da Comarca do Alentejo Litoral – Odemira, Juízo de Competência Genérica - correu termos o processo comum colectivo supra numerado no qual é arguida A., filha de..., natural da freguesia de Santa Maria Maior, concelho de Chaves, nascida em 03.01.1959, divorciada, professora do ensino básico, residente na Rua ..., Almodôvar, que foi pronunciada pela prática, em autoria material e na forma consumada, de seis crimes de maus tratos, previstos e punidos pelo artigo 152.°-A, n.º 1, alínea a), do Código Penal (CP), relativamente aos menores V, I, J, D e G.
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Interveio como assistente Christiane S, filha de ..., natural de França, nascida em 28.08.1968, casada, doméstica, residente na Rua..., Amoreiras Gare.

A assistente havia apresentado queixa por abusos sexuais tendo o Ministério Público lavrado despacho de arquivamento quanto a esses factos e quanto aos maus-tratos das menores C e P, filhas da assistente, tendo esta requerido instrução para pronúncia da arguida A. pela prática de dois crimes de maus-tratos, p. e p. pelo artigo 152º-A do Código Penal.

Lavrado despacho de não pronúncia relativamente a estas menores (fls. 933), a assistente interpôs recurso para esta Relação que, por acórdão de 20-12-2012, lavrado no apenso 18/08.5GDODM-A, pronunciou a arguida pela prática de dois crimes de maus-tratos relativamente às meenores C e P.

Mas já em decisão cronologicamente anterior – a 28 de Novembro de 2012 – havia decidido o tribunal recorrido (quanto aos menores V, I, J, D e G:

A) Absolver a arguida A. da prática de 1 (um) crime de maus tratos, previsto e punido pelo artigo 152.º-A, n.º 1, alínea a), CP.

B) Condenar a arguida pela prática, como autora material e na forma consumada, de 2 (dois) crimes de maus tratos, previstos e punidos pelo artigo 152.º-A, n.º 1, alínea a), CP, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, cada um.

C) Condenar a arguida pela prática, como autora material e na forma consumada, de 2 (dois) crimes de maus tratos, previstos e punidos pelo artigo 152.º-A, n.º 1, alínea a), CP, na pena de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão, cada um.

D) Condenar a arguida pela prática, como autora material e na forma consumada, de 1 (um) crime de maus tratos, previsto e punido pelo artigo 152.º-A, n.º 1, alínea a), CP, na pena de 1 (um) ano de prisão.

E) Efectuar o cúmulo jurídico das penas referidas em B) a D), condenando a arguida na pena única de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão.

F) Suspender a execução da pena de prisão pelo mesmo período, nos termos do artigo 50.º, n.º 1, CP.

G) Condenar a arguida no pagamento das custas do processo, que se fixam em 3 (três) UC – artigos 513.º e 514.º, n.º 1, do CPP, e 8.º, n.º 5 (tabela III), do RCP.

Inconformada a arguida interpôs recurso com as seguintes conclusões:

I- A recorrente foi condenada em cúmulo jurídico na pena de 2 anos e 8 meses de prisão pela prática do crime de maus tratos, art.º 152ª n.º 1 a) Cod. Penal.

II- O Tribunal deu como provados os factos 2, 3, 4, 5, 7 e 8.~

III- Com o devido respeito a prova produzida em julgamento impunha decisão diversa que considerasse não provados aqueles factos e provados os que constam desta motivação.

IV- Dos autos, e da audiência de discussão e julgamento não resulto com o mínimo de fundamento sério o conjunto de atos que constam da matéria provada tendo sido excluídos da queixa inicial as gravíssimas imputações imputadas à arguida que vieram a ser objeto de arquivamento e parte da pronúncia que igualmente se não provou.

V- Com o devido respeito a convicção do decidido assentou nos depoimentos dos menores D, J e G, olvidando e desprezando os depoimentos da Inspetora E, AL, DB, C e G.

VI- O Tribunal a quo julgou incorretamente aqueles factos porquanto do exame crítico de todos os depoimentos jamais resulta prova categórica e indiscutível naquele sentido.

VII- O Tribunal desvalorizou completamente o depoimento da Inspetora E. ao ponto de não lhe dar qualquer relevo para o objeto do processo quando o certo é que a testemunha presenciou o estado de espirito dos alunos na inesperada visita inspetiva que fez, auscultando os alunos, percecionando o tipo de ambiente, constatando direta e pessoalmente como as aulas decorriam, como se encontravam os cadernos e os livros das próprias crianças.

IX- Tão pouco sopesou o depoimento dos alunos D, B e ofendida C, que encontrando-se todos na mesma turma infirmaram quaisquer dos factos dados como provados, como os depoimentos transcritos revela.

X- A recorrente nesse no ano 2007/2008, naquela escola de ---, só lecionou até Março de 2008 ao invés do que é inculcado na pronúncia e consta dos factos provados o que não é verdadeiro.

XI- Na ata da reunião da escola, em 7 de Março de 2008 fls. 2,3,4 e seguintes, assinada pela secretária, Presidente da reunião e Presidente do Conselho Executivo, com a presença dos encarregados de educação foi enaltecido o trabalho da arguida.

XII- Esta chamou à atenção dos alunos D e V para a falta de higiene dos cadernos diários sempre que se encontravam sujos por imperativos pedagógicos e corretivos educacionais e nunca para os humilhar e ofender.

XIII- A fundamentação é um meio ao serviço da racionalidade e clareza da decisão que não é congruente e nem suficiente pelo que sem a verificação de factos a valoração é deficiente e a decisão injusta como é o caso.

XIV- Foram eleitos depoimentos de menores em detrimento de outros contrários ao logico convencimento para lá da dúvida razoável.

XV- Há insuficiência para a decisão de facto provada – art.º 410, n.º 2 a) do C.P.P. a par da violação dos princípios in dúbio pro Reo, da produção e valoração de prova em sede de julgamento e regras probatórias gerais a par da violação dos art.ºs 32 n.º 2 C.R.P. e ainda art.ºs 97 n.º 5, 127, 340, 365 n.º 3 e 372 n.º 2 todos do Cod. Proc. Penal.

XVI- O acórdão recorrido na medida da pena desatendeu a todas as circunstâncias concretas que rodearam os factos, o modo de atuação e a sua personalidade.

Termos em que admitidas as presentes motivações e conclusões e realizada a audiência oral prevista no art.º 423 do C.P.P. para discussão de toda a matéria da motivação deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se o acórdão e se assim se não entender o que se admite sem conceder, deve a pena ser especialmente atenuada e adequada à personalidade do agente, art.ºs 72 e 73 do C.P.

Respondeu a Digna Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal da Comarca de Setúbal concluindo que deve ser negado provimento ao recurso e manter-se na íntegra a sentença recorrida, sem apresentar conclusões.

O Exmº. Procurador-geral Adjunto neste Tribunal da Relação apôs visto nos autos.

Foi cumprido o disposto no artigo 417º n.º 2 do Código de Processo Penal.
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B - Fundamentação:
B.1.1 - O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:

Da pronúncia:
1. A arguida A. é professora do ensino básico, tendo leccionado no ano lectivo 2007/2008 na Escola Básica 1 de Amoreiras Gare, pertencente ao Agrupamento de Escolas de Colos.

2. Durante o referido ano lectivo, em datas e horas não concretamente apuradas, no interior da sala de aula da também referida escola, a arguida por diversas vezes puxou as orelhas aos seus alunos V, I, J e D.

3. Nos mesmos moldes, atirou com o livro dos trabalhos à cara de V, I, J, G e D.

4. Ainda durante o mesmo ano lectivo, dirigiu a V. as expressões “cheiras mal”, “porco” e “eu tenho nojo de ti”.

5. Do mesmo modo, dirigiu a D as expressões “cheiras mal” e “és porca”, recusando-se a tocar nos cadernos desta pois estavam sujos.

6. Em consequência dos comportamentos acima descritos, a arguida provocou dores nos alunos supra identificados, não tendo os mesmos necessitado de tratamento médico.

7. Com as suas condutas a arguida quis, de modo continuado, molestar e humilhar física e psiquicamente os alunos V, I, J, G e D, bem sabendo que punha em causa as suas dignidade, crescimento e desenvolvimento pessoal e social.

8. Mais sabia que a sua conduta era adequada e idónea a provocar-lhes, como o fez, medo, inquietação, tristeza, mágoa e desgaste psicossomático, para além de os atingir na sua honra e consideração.

9. A arguida agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
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Da contestação:
10. Foi efectuada perícia psicológica à arguida, na Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo, que concluiu pela incompatibilidade de qualquer actividade patológica.

11. Ao longo de 24 anos de docência, a arguida sempre viu o seu trabalho reconhecido, pelos alunos, pelos colegas e superiores.

Da audiência de julgamento:
12. A arguida não tem antecedentes criminais.

13. Integrou uma família de origem afectivamente coesa, bem conceituada no meio social e evoluída do ponto de vista cultural.

14. Deslocou-se há vinte anos para o Alentejo, no âmbito duma integração laboral como professora, zona do País onde, desde então, tem permanecido.

15. No momento actual vive sozinha.

16. Subsiste economicamente do seu vencimento como professora, no valor mensal de €1490, tendo como despesas mensais as relacionadas com a manutenção da habitação, em cerca de metade do seu ordenado.

17. Actualmente encontra-se responsável por uma turma do 1º ciclo na freguesia de ---, concelho de Almodôvar, sendo o primeiro ano em que retoma a sua actividade docente regular, após a suspensão de que foi alvo, no âmbito de processo disciplinar na sequência das acusações que motivaram o presente processo.

18. Encontra-se bem integrada na sua actual função, não existindo qualquer problema a registar, denotando uma boa relação com a comunidade.

19. Durante o tempo que leccionou até ao momento no concelho de Almodôvar, nunca existiram queixas de alunos, ou familiares destes, quanto à sua forma de trabalhar e competência, sendo comum a ideia de que as crianças gostam da sua professora.

20. O impacto da presente acção judicial não se fez sentir de forma negativa nas relações de amizade e profissionais da arguida.
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B.1.2 - Não se provaram os seguintes factos:
21. A arguida por diversas vezes puxou as orelhas e atirou com o livro dos trabalhos à cara de C.

22. Por diversas vezes puxou as orelhas a G.

23. Por diversas vezes colocou uma mão no ombro e a outra mão na zona do ânus dos seus alunos V, I, J, G, C e D, levantando-os no ar e deixando-os cair no chão em seguida.

24. A arguida disse a D que os seus cadernos estavam cheios de bactérias.

25. Mais sabia a arguida que a sua conduta era adequada e idónea a provocar a V, I, J, G, C e D, como o fez, ferimentos físicos e clima de terror.

Da contestação, excluindo conclusões ou factos sem relevo:
26. Em 07.03.2008, na reunião na escola com todos os encarregados de educação dos alunos, ficou exarado em acta que todos os encarregados de educação reconheciam o trabalho da arguida.

27. Até à data referida no ponto anterior os factos descritos nos pontos 2 a 5 eram desconhecidos dos pais e encarregados de educação.

28. Os “puxões de orelhas” e “livros na cara” referidos nos pontos 2 e 3 deixariam marcas.

29. Jamais houve, por parte da arguida, o propósito de humilhar e ofender as crianças.

30. As expressões usadas, quanto à higiene dos alunos e organização dos cadernos e livros, impunham-se por imperativo pedagógico.

31. Repreendia os alunos como caminho correctivo educacional adequado, sem exceder os limites, sem diminuir, apoucar, ou humilhar os alunos.
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B.1.3 - E apresentou as seguintes razões para fundamentar a matéria de facto:
O facto de a arguida ser professora e ter leccionado nas circunstâncias de tempo e lugar referidas no ponto 1 está assente, resultando não só das declarações da arguida, como dos mais diversos documentos juntos aos autos, os quais que se torna despiciendo aqui elencar.

No mais, a arguida negou a prática dos factos descritos nos pontos 2 a 9, restando a prova testemunhal. A valoração desta revestiu-se de dificuldades acrescidas, desde logo porque as testemunhas presenciais têm hoje entre 11 e 14 anos de idade e fizeram apelo à sua memória reportando-se a factos que ocorreram quando tinham entre 6 e 9 anos. Para além do mais, esta foi pelo menos a quarta vez que foram inquiridos acerca destes factos, designadamente foram-no no decurso do procedimento disciplinar instaurado à arguida, no inquérito, na fase de instrução e agora em sede de audiência de julgamento.

Obviamente que há testemunhas que já absorveram memórias exógenas que passam a ter como suas, outras já fantasiaram as suas próprias memórias, confundindo-as com os rumores que foram escutando ao longo do tempo, e outras ainda terão sido industriadas por terceiros acerca do que deveriam aqui relatar.

Para dificultar ainda mais a mencionada valoração, pairou sobre a sua produção da prova o espectro dos factos pelos quais a arguida não foi pronunciada e que aqui foram constantemente trazidos a lume pelos depoentes.

Por estes motivos, foi necessário efectuar uma ponderação prévia para afastar da tomada de decisão os depoimentos com pouca ou nenhuma credibilidade e os irrelevantes.

Começando pelos segundos, os depoimentos das testemunhas JP, pai do ofendido J; JS, pai da ofendida C; MG, professora no agrupamento de escolas que inclui a referida no ponto 1; MC, professora no mesmo agrupamento escolar; MR, mãe de uma aluna, ex-senhoria e amiga da arguida; AS, mãe de outra aluna; e ME, inspectora do Ministério da Educação; não tiveram qualquer relevo para o objecto do processo.

Os depoimentos das testemunhas SR, mãe do ofendido J; MN, mãe do ofendido G; FC, mãe do ofendido I; e DL, mãe dos ofendidos V e D, tiveram uma relevância bastante limitada. As duas primeiras relataram a relutância dos seus filhos em ir à escola, o que configura um indicador que algo na escola atemorizava as crianças. As duas últimas referiram que os respectivos filhos lhes confidenciaram os factos referidos nos pontos 2 a 5, sendo que os próprios filhos foram ouvidos neste tribunal, relevando antes os seus depoimentos.

Nos segundos, ou seja, no âmbito dos depoimentos com falta de credibilidade, formaram-se como que duas facções. Começando pela testemunha RS, cônjuge da assistente Christiane e pai das testemunhas C e P, o seu depoimento pautou-se sempre, não pelo relato de factos, mas pela apresentação de conclusões. Raramente respondeu directamente a uma questão, começando a resposta invariavelmente com a expressão “é normal que”. Tentou sempre convencer o tribunal dos seus argumentos e depôs sem qualquer espontaneidade. Associando isto às suas relações familiares com um sujeito processual e com duas eventuais ofendidas, uma vez que está pendente recurso da decisão que não pronunciou a arguida por factos praticados contra as suas filhas, entendemos que a credibilidade do seu depoimento é nula.

Por arrasto, este entendimento também inquinou a valoração do depoimento das suas filhas C e P. A primeira começou a relatar os factos como quem conta uma estória previamente ensaiada, afirmando logo que a professora sentava os alunos no colo com a sua mão de permeio e com esta mexia no rabo. Por coincidência, ou não, são precisamente estes factos que respeitam à matéria excluída do despacho de pronúncia e que está sob recurso. Não é verosímil que estas crianças não tenham continuamente ouvido as versões dos seus progenitores, ficando a sua própria percepção dos factos que vivenciaram permeabilizada por aquelas versões, pelo que o seu depoimento também carece de credibilidade.

As testemunhas MS e IG foram ambas auxiliares de acção educativa e estiveram presentes na sala de aula da arguida enquanto esta leccionava. A primeira, segundo conta, assistiu aos puxões de orelhas e aos livros na cara. Contudo, nunca viu os alunos no colo da professora, facto que foi relatado quase pela totalidade das testemunhas alunos. A segunda começou logo por relatar um episódio em que a arguida não a deixou entrar na escola, demonstrando assim o seu rancor quanto a esta. Estes depoimentos também não demonstraram ser credíveis.

Na facção oposta, temos as testemunhas BS, DR e própria ofendida C, todas colegas e alunas da arguida à data dos factos, que a descrevem como a mais cândida das professoras, que nunca perdeu a paciência com os alunos, nem sequer perante episódios caricatos, tais como o V entrar na sala de aula todo enlameado, do joelho ao ombro, segundo o que o próprio descreveu. É curioso que na última parte do item condições sociais e pessoais do relatório de fls. 1091-1094 consignou-se “o impacto da presente ação judicial não se fez sentir de forma negativa nas relações de amizade e profissionais de A., havendo até, movimentos de solidariedade por parte de ex-alunos e familiares destes”. Pareceu-nos que o depoimento destas testemunhas é uma manifestação dos referidos “movimentos de solidariedade”.

Ficamos assim com o núcleo duro de testemunhas que representa os ofendidos nos autos, cujo depoimento é efectivamente relevante. Não que estejam isentos de influências. A título de exemplo, G. contou a versão da mão da professora no rabo dos alunos com um constrangimento que não nos pareceu próprio de um trauma, mas antes de uma conversa previamente estudada. Era aquilo que ele era suposto dizer. Questionado sobre os puxões de orelha e livros na cara depôs logo com maior desenvoltura, própria de quem relata factos sobre os quais não está constrangido.

Porém, outras testemunhas não revelaram semelhante constrangimento, mas antes total espontaneidade, como por exemplo o I e os irmãos L, V e D.

Nenhum destes demonstrou qualquer rancor pela arguida, relatando o que lhes aconteceu a eles e aos colegas com um descaramento saudável próprio das crianças da sua idade.

O tribunal entendeu ainda que apenas podem ser considerados como provados os factos que determinado ofendido relatou que lhe sucederam, não relevando aquilo que os colegas afirmam que viram a relação a si. A título de exemplo, ainda que um dos colegas, aqui testemunha, afirme que viu o V ser arremessado pelo ar, se o próprio não se recorda de tal facto, o mesmo não pode ser considerado provado.

Assim, temos que V, I, J, G e D todos afirmaram que a arguida lhes atirou os livros à cara, pelo que se considerou o ponto 4 provado. Os mesmos repetem a afirmação quanto aos puxões de orelhas, com excepção do G, daí este ter ficado excluído do ponto 2. Para prova dos pontos 4 e 5 valeram as declarações dos próprios V e D. De salientar que o primeiro, referindo-se ao caderno da irmã, relatou que a arguida pegou no caderno daquela e disse que o mesmo “parecia uma estrumeira”. Ora, tal expressão, dita com total espontaneidade, ao contrário de outros depoimentos já referidos, não parece de modo nenhum ensaiada.

O ponto 6 resulta das regras da experiência. Puxar as orelhas e arremessar livros à cara, especialmente de crianças entre os 6 e os 9 anos, provoca dor, ainda que pouco intensa, no caso de não ser imprimida grande violência nas acções.

Os pontos 7 a 9, relativo ao tipo subjectivo do ilícito, são uma consequência lógica e natural dos factos provados anteriores, isto é, ditam as regras da experiência que quem actua do modo antes descrito, terá necessariamente que ter representado e querido praticar os factos.

O ponto 10 resulta do teor do relatório pericial de exame psicológico efectuado à arguida e junto a fls. 642-647.

O facto plasmado no ponto 11 resultou provado com base nos depoimentos das testemunhas MB, BA e MM. A primeira é ex-colega da arguida, a segunda colega e a terceira ex-aluna, actualmente com 27 anos de idade, pelo que a razão de ciência das testemunhas abarca o lapso temporal referido. As três depuseram com espontaneidade, pelo que convenceram o tribunal da veracidade do seu relato.

O ponto 12 resulta do certificado de registo criminal junto a fls. 1082.

As condições pessoais, sociais e profissionais da arguida, descritas nos pontos 12 a 20, constam do relatório social junto a fls. 1091-1094.

Os pontos 21 e 22 não se provaram porque os próprios ofendidos afirmaram que tais factos não sucederam.

Quanto ao ponto 23, causa estupefacção como é que uma pessoa, ainda que seja uma criança de tenra idade, pode ser levantada no ar por outra, colocando-lhe esta uma mão no ânus, que é o orifício no final do intestino grosso. Sem entrar em suposições graficamente explícitas, seria sempre um acto de extrema violência que deixaria certamente sequelas físicas. A mera representação dessa realidade parece inverosímil. Ainda assim, nenhum dos ofendidos descreveu um facto sequer semelhante.

No que concerne ao ponto 24, a palavra bactérias nunca foi espontaneamente referida pelas testemunhas, mas apenas sob indução do inquiridor.

No ponto 25 não foi produzida prova de terem sido provocados ferimentos. Também parece exagerado o clima de terror, face à gravidade dos factos. As próprias testemunhas não aparentaram estar propriamente traumatizadas, pelo que apenas se considerou provado que a conduta da arguida provocou medo.

O ponto 26 resultou não provado pelo teor da própria acta referida e junta a fls. 234-236. O que ficou exarado em acta, não foi que os encarregados de educação reconheciam o trabalho da arguida, mas sim “a Presidente do Conselho Executivo referiu, que percebeu que todos os Encarregados de Educação reconheceram o trabalho desenvolvido pela Professora A.”. Ou seja, não ficou consignada uma declaração emitida pela vontade dos encarregados de educação, mas antes uma declaração de ciência da entidade que presidia à reunião, pese embora seja uma declaração de ciência pouco usual, já que reflecte uma mera percepção.

O ponto 27 resultou igualmente não provado do teor da acta junta a fls. 234-236. Basta ler o referido documento para perceber que já na reunião documentada vários encarregados de educação relatam que os filhos se queixaram dos factos que foram dados como provados nos pontos 2 a 5.

O ponto 28 decorre do senso comum e da experiência de vida. Um puxão de orelhas é um castigo físico usualmente infligido às crianças que não deixa marcas, a não ser quando é aplicada demasiada força, podendo neste caso chegar a rasgar a pele. Quando dizemos usualmente não está aqui implícito, por ora, qualquer valoração da conduta. Nos restantes casos, um puxão com menos força não deixa qualquer marca e é bastante doloroso. Esta afirmação, sublinhamos, decorre da experiência de vida.

Quanto aos livros na cara deixarem marcas, depende. Se for um volume do Comentário Conimbricense ao Código Penal, certamente deixará algumas equimoses, ainda que arremessado com pouca força. Se for um caderno ou livro de exercícios, daqueles que são usualmente usados por alunos do 1º ciclo, dificilmente deixará qualquer mazela, desde que não seja arremessado contra a cara com uma força excepcional.

Os pontos 29 a 31 estão em oposição directa com os factos provados e consignados nos pontos 7 e 8. Refira-se que, independentemente do que quer que seja um imperativo pedagógico, na colisão entre este e uma norma penal, a segunda deverá sempre prevalecer, sob pena de sujeição à sanção prevista na mesma, daí que o imperativo pedagógico não se imponha, mas antes se afaste quando está em causa a prática de um crime”.
***
Cumpre conhecer.
B.2 – É sabido que âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação sem prejuízo das questões do conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência, ou não, dos vícios indicados no artigo 410°, n.° 2, do Código de Processo Penal.

A recorrente suscita as seguintes questões:

Ø O erro na apreciação da prova;
Ø A alegada “insuficiência da matéria de facto provada”, que entendemos ser a invocação de “insuficiência da prova produzida para a matéria de facto que foi dada como provada”;
Ø A apreciação da prova e o princípio in dubio pro reo;
Ø A inexistência de crimes de maus tratos, face à matéria que se deve dar como provada.

Os três primeiros pontos de inconformidade da recorrente serão analisados em conjunto e a conclusão nestes pontos ditará a resposta à última questão.

No entanto, antes de abordar as questões colocadas pela recorrente impõe-se fazer um breve introito e apreciar uma matéria de conhecimento oficioso.

Quanto ao primeiro, dizia o escritor, senhor de cultura e comunicação, Vitorino Nemésio, se bem me lembro no “Se bem me lembro”, que um processo em Portugal era uma forma de embrulhar um cidadão em papel.

Aqui a cidadã arguida, foi embrulhada em dois processos e um disciplinar e, modernidade não adivinhada pelo escritor, em relatórios psicológicos - que se podem revelar em casos contados e este conta-se - a crença moderna equivalente à adivinhatória ancestral, que atestam de forma “absoluta” e modernista quem diz a verdade, sendo que é axioma fundamental que uma vítima de um crime pós-moderno diz sempre a verdade. Nem a baixa Idade Média do alto da sua sapiência, faria melhor. Ressalva-se o bem fundamentado relatório de fls. II-643-647.

A leitura do acórdão recorrido dá alguma luz às sombras do processo, mas deveria ter ido mais longe, porque inquietante o que se lê - e se pasma – nesta versão psico-moderna de “O Processo”. Começa a ser preocupante a prática investigatória e instrutória nestes crimes pós-modernos, onde a intimidade e a sexualidade – designadamente a das crianças – surge como alavanca de interesses e de visões pessoais a impor.

A “tunnel vision” das entidades investigatórias e instrutórias – a atenção exclusiva sobre uma pessoa ou facto, que afasta da mente do investigador a atenção sobre outras pessoas ou factos relevantes ou sobre a possibilidade de confirmação de alibis ou de motivações esconsas - cria sombras assentes em convicções, emoções e crenças bem pensantes, onde deveria reinar a calma e o equilíbrio, acima de tudo a racionalidade, a experiência e o saber, ou este feito daquela.

A “tunnel vision”, “the single minded and overly narrow focus on an investigation or prosecutorial theory so as to unreasonably colour the evaluation of information received and one´s conduct in response to the information”, [2] o olhar apenas para o que uma prévia convicção nos dita.

Ora, parte substancial do trabalho de juízes, procuradores e polícias é não ter - ou remar contra - prévias convicções. [3]

E reflexo disso é que ninguém se parece ter preocupado em confirmar a tese da arguida de que a assistente dava explicações e de que a animosidade nasce de a arguida lhe ter chamado a atenção para a necessidade de declarar fiscalmente a actividade.

Quanto ao segundo diz ele respeito à exigência do contraditório, contida no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, que é uma exigência imperativa que tem que ser vertida no elenco de factos imputados aos arguidos, enquanto factos abarcáveis pelo direito de defesa, não enquanto generalidades invocadas para dificultar ou inviabilizar, consciente ou inconscientemente, esse direito.

E por esta questão iniciaremos.
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B.3 – uma inultrapassável identidade entre os conceitos de “objecto do processo” e “factos”, assim como há outra intransponível imbricação entre os conceitos de “crime” e de “factos”. Sem factos não há crime nem objecto do processo. Os factos são a base indispensável de um processo mas, naturalmente, têm que ser normativamente relevantes.

Para que se entendam existentes factos normativamente relevantes devem eles “preencher” com a sua discrição um determinado tipo penal.

Ora, os factos dados como provados de 2. a 6. têm a seguinte redacção (e como tal constavam da acusação):

2. Durante o referido ano lectivo, em datas e horas não concretamente apuradas, no interior da sala de aula da também referida escola, a arguida por diversas vezes puxou as orelhas aos seus alunos V, I, J e D.

3. Nos mesmos moldes, atirou com o livro dos trabalhos à cara de V, I, J, G e D.

4. Ainda durante o mesmo ano lectivo, dirigiu a V as expressões “cheiras mal”, “porco” e “eu tenho nojo de ti”.

5. Do mesmo modo, dirigiu a D as expressões “cheiras mal” e “és porca”, recusando-se a tocar nos cadernos desta pois estavam sujos.

6. Em consequência dos comportamentos acima descritos, a arguida provocou dores nos alunos supra identificados, não tendo os mesmos necessitado de tratamento médico.

Como encarar estes factos, desde logo em termos de permitir o contraditório? Como pode alguém defender-se de um “facto” destes se não sabe quantas vezes terão ocorrido, como se passaram, porque se passaram?

“Ninguém se pode defender de factos destes. E ninguém pode ser condenado por um facto destes. É matéria que, para que se considere “objecto do processo”, tem que ser concretizada, tem que permitir possibilidade de ser contraditada e não pode ser considerado apenas como “objecto” de “transferência” para a “opinião” de uma qualquer testemunha que “homologue” uma “generalidade”. (…). [4]

Ou seja, os factos que devem ser/são o “objecto do processo” têm que ter a característica da “falsificabilidade” popperiana, já não como critério essencial para a caracterização das teorias científicas, sim com o sentido de que a sua concretude pode ser declarada falsa. Em breve, o que não pode ser declarado não provado por falta de concretização ou por ridículo, não pode ser declarado provado” (do acórdão referido).

Como atribuir relevância normativa a estes “factos” se eles nada significam em termos penais e apenas se destinam a mascarar a pretensão de “sair” de um crime simples e tradicional (as ofensas corporais, injúrias e/ou as ameaças) para “concretizar” a pretensão de preenchimento de um crime pleno de modernidade, os maus tratos? Porque aquilo não são factos penalmente relevantes. São conclusões, são generalizações, o que seja, mas factos normativamente relevantes não são.

Esta tendência “pós-moderna” na interpretação do direito penal tem que ser controlada pelas tendências mais comezinhas do processo penal e dos direitos de defesa do cidadão, algo que se impõe hoje, com muito maior peso à magistratura judicial, face à modorra investigativa e instrutória e à nefasta influência exercida pelos meios “bem pensantes”. O “politicamente correcto” não se pode impor ao penalmente correcto.

Mas não é, apenas, a ausência de factos e/ou prova que se pretendem ultrapassar com este tipo de “alegação”.

Com a alegação genérica pretende-se ultrapassar dificuldades processuais. Deixa de haver preocupações processuais comezinhas: a natureza do crime? Público, semi-público, particular? Existência de queixa? Caducidade desse direito? Prescrição?

Qualificando os factos como “violência doméstica” ou “maus tratos” estão ultrapassadas as preocupações processuais e ganha-se a dispensa de grande rigor na linguagem, investigação, instrução e prova nos autos.

Admite-se que as dificuldades de investigação, instrução e prova podem ser relevantes neste tipo de crime ocorrido entre paredes. Para isso deve haver compreensão. Mas não pode haver compreensão para uma universalizada generalização que perverte os princípios penais e processuais penais.

Factos: investiguem-se e provem-se e tenha-se em vista um resultado que almeje um juízo para além da dúvida razoável.

E tenha-se presente o tipo penal que é claro: comete o crime (al. a) do nº 1 do artigo 152º-A do Código Penal) quem “infligir, de modo reiterado ou não, maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, ou a tratar cruelmente”.

A própria dificuldade teorética de enquadramento do tipo de crime face a crimes tradicionais que lhe ocupam um campo de previsão sincrónico, o uso pleno de conceitos indeterminados, as dificuldades inerentes aos conceitos de “modo reiterado ou não” e “maus tratos físicos ou psíquicos” impõem uma clara e precisa – concreta quanto possível – exposição de factos a inserir no tipo.

Tudo neste tipo é incompatível com uma generalização factual sob pena de futura ineficácia do tipo, para além da presente violação dos mais elementares direitos de defesa, um intolerável achincalhamento do contraditório.

Data, local, comportamentos concretos, levados ao pormenor possível mas esgotante de um agir humano, os meios utilizados e circunstâncias da acção, circunstâncias envolventes relevantes, o que – no “pedaço de vida” – possa ser juridicamente relevante e permita o processo mental de todos – acusador, defesa e tribunal – no descortinar se esse agir humano “cabe” no tipo, permite aferir da ilicitude, culpa, maior ou menor perigosidade da acção, desvalor do resultado, o habitual.

Enfim, se é a integridade corporal, saúde física e psíquica e dignidade da pessoa humana que se pretendem tutelar e se a norma apenas prevê “as condutas efectivamente maltratantes”, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à sua degradação pelos maus-tratos», é bom que a base de tais cogitações sejam factos concretos (quase diríamos, “o bom e velho facto concreto”) em vez de literatura modernista generalizante.

Assim, neste tipo de crimes onde a reiteração e/ou a intensidade do agir humano está no centro da definição de um tipo penal muito amplo (maus-tratos, violência doméstica, tráfico de droga), a precisa indicação e concretude dos factos necessários à integração no tipo é elemento essencial do julgamento. E é, na sequência, o cerne do direito de defesa.

Se a alegação factual – em qualquer imputação penal - não pode ser facilitada pelo uso de formas gerais, imprecisas, sem individualização de cada um dos factos, com utilização de fórmulas “vagas, imprecisas, nebulosas, difusas, obscuras”, neste tipo de crime a exigência é muito maior dada a amplitude do tipo penal.

Aliás, a persistir esta prática ela apenas levará a um resultado não pretendido, o esvaziar destes tipos penais, pelos abusos que já permitem.

E os abusos só são possíveis pela aceitação da generalização que não funciona como forma de controlo da veracidade das “estórias” imaginativas, onde anteriormente a exigência, o rigor factual, funcionava como “peneira”, como barreira à imaginação desenfreada, à imputação maldosa.

A jurisprudência do STJ neste campo é clara e insofismável, quer a propósito do crime de tráfico de droga, quer a propósito de crimes de maus-tratos e violência doméstica, sempre onde se pretende ultrapassar a dificuldade de prova de múltiplos factos pela imputação genérica e, logo, por presunção. Porque a isso se resume esta prática: acusa-se por presunção factual, pretendendo-se a condenação por presunção factual.

Assim, da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de STJ:

5 - Não são "factos" susceptíveis de sustentar uma condenação penal as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado ("procediam à venda de produtos estupefacientes", "essas vendas eram feitas por todos e qualquer um dos arguidos", "a um número indeterminado de pessoas consumidoras de heroína e cocaína", "utilizavam também "correios", "utilizavam também crianças", etc.).

6 - As afirmações genéricas, contidas no elenco desses "factos" provados do acórdão recorrido, não são susceptíveis de contradita, pois não se sabe em que locais os citados arguidos venderam os estupefacientes, quando o fizeram, a quem, o que foi efectivamente vendido, se era mesmo heroína ou cocaína, etc. Por isso, a aceitação dessas afirmações como "factos" inviabiliza o direito de defesa que aos mesmos assiste e, assim, constitui uma grave ofensa aos direitos constitucionais previstos no art. 32º da Constituição - (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-05-2004 - Proc. 04P908, Rel. Cons. Santos Carvalho). [5]

Logo, os factos dados como provados supra indicados deveriam dar-se como não escritos por violação irreparável do contraditório e das garantias de defesa em processo penal – artigo 32º do Constituição da República Portuguesa. O que implicaria – nesta instância que conhece de facto – a possibilidade de reenvio dos autos para um cabal esclarecimento do objecto do processo por insuficiência da matéria de facto, se necessário com cumprimento do disposto nos artigos 358º ou 359º do Código de Processo Penal, na eventual sequência do exercício do poder de investigação do Tribunal recorrido.

Isso, no entanto, não se torna necessário no caso dos autos.
*
B.4 – Isto porque a leitura da decisão recorrida e o recurso de facto da arguida – que impugnou nos termos dos nºs. 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal - conduzem os autos noutro sentido.

A simples leitura da decisão recorrida – que, convém realçar, faz um bom trabalho de análise probatória – permite enfrentar algumas perplexidades.

A primeira, sem negar o que se acaba de afirmar, prende-se com a afirmação de que alguns depoimentos são irrelevantes quando se esperaria que fossem bastante relevantes.

Em primeira linha o depoimento da inspectora do Ministério da Educação, ME, que se deslocou à escola sem pré-aviso, esteve na sala de aula, falou com a professora arguida e seus alunos e interagiu com todos eles, já depois da primeira queixa mas antes da invenção dos actos de abuso sexual. Seria de esperar bastante deste depoimento, expectativas acrescidas pelo saber e pela isenção expectável.

Mas a ele o tribunal disse nada. Mal a nosso ver, pois que – havendo recurso de facto – a sua análise concreta confirma que a testemunha tem saber e experiência na área inspectiva, deslocou-se ao local sem pré-juízos, interagiu com alunos e professora arguida e do que viu afirmou a normalidade acima da média, se nos é permitido o aparente contra-senso.

Normalidade porquanto encontrou uma sala de aula em laboração com sinais positivos, com os alunos à vontade e até com algum bulício e sem sinal de qualquer anormalidade pedagógica ou pessoal. Acima da média porque ficou crente que, sendo a professora exigente, se espantou com a organização: “espantou-me pela positiva a organização dos cadernos e levei até alguns para depois fotocopiar e trazer de novo para a escola…”.

Ou seja, a professora era competente – talvez um pouco autoritária – e os alunos estavam à vontade. Organizada, competente e autoritária podem ser pecados sociais nos dias que correm.

Mas apercebeu-se, também após reunião com os pais dos alunos, que “havia ali um mal-entendido” e que a professora estava a passar um mau bocado.

Ora, basta ler a acusação (e o despacho de arquivamento que a acompanha) e a prova produzida quer documentalmente quer por depoimentos para perceber o “mal-entendido”. E as cartas de fls. 154-164 são muito elucidativas.

Tudo começa porque a assistente faz “um jogo” com a filha onde esta ajudou a elaborar uma “lista das maldades da professora”, tudo passado em sua casa, com a presença de outra mãe de nome Marta – fls. 156 vº a 158. Depois, a lista espalha-se como história oral. Só falta homologar com um médico e um psicólogo. O que se faz, presto! Há sempre um médico e um psicólogo disponíveis para a modernidade.

Felizmente para a imagem da Justiça o Ministério Público que deduz a acusação não embarca na história inverosímil dos abusos sexuais de criança mas verte em “factos” os que constam de fls. 464:

E, a arguida … por diversas vezes … colocou-lhes uma mão no ombro e a outra mão na zona do ânus levantando-os no ar, deixando-os cair no chão em seguida, nomeadamente a V, I, J, G, C e D ”.

A arguida nasceu em 1959 e tem 1,63 m de altura (ver cópia do B.I. nos autos) o que significa que os alunos seriam levantados com “facilidade” no ar uns bons dois metros pela “zona do ânus” e atirados ao chão, levantavam-se lampeiros e dirigiam-se para o seu lugar, quais “meninos borracha”, sem beliscadura ou incómodo que se visse ou de que se ouvisse falar, enquanto os restantes esperavam “em fila”, pela sua vez de serem atirados ao ar e ao chão, segundo os mais modernos princípios da pedagogia proactiva.

Isto é surrealismo judiciário.

Só se desculpa porque saiu da mente imaginativa de uma criança de 9 (nove) anos de idade, sob pressão familiar. Mas os adultos andam um pouco acríticos. Bem fez o tribunal recorrido em dar tais “factos” como não provados.

Mas e o resto, que é como quem diz, os factos provados de 2) a 9), resultaram provados? Os factos provados de 7) a 9), como bem afirma o tribunal recorrido, só resultam provados porque provados ficaram os factos de 2) a 6).

E qual é a prova feita quanto a estes? Depoimentos das crianças respectivas, como se depreende da fundamentação factual da decisão recorrida.

Mas se a história nasce com o casal R e Christiane S, pais das testemunhas C e P e se o tribunal recorrido – bem - os considerou depoimentos com falta de credibilidade, e só depois se espalha ao resto da comunidade, crer no depoimento de crianças, então com idades compreendidas entre os 6 e os 9 anos e sujeitas a grande pressão familiar e social, é uma álea inadmissível.

Por isso que o tribunal recorrido – que realizou um bom trabalho na análise da isenção dos vários meios de prova – se fique com a prova que indica nos §§ 1º a 4º de fls. 1163, muito pouco, também levando em conta que afirmar que um caderno “parecia uma estrumeira” não prova os factos em presença, nem é criticável penal e socialmente se ele, de facto, isso parecer.
*
B.5 – Note-se, nem se trata de fazer aplicação do princípio in dubio pro reo. Trata-se, antes disso, de afirmar a inexistência de prova que permita a condenação da arguida. E isto desde o início do processo. Já é espantoso que se tenha passado da fase de inquérito, porque isto era patente. Já se antevia a denúncia infundada.

E isto porque – finda a audiência - nos temos que defrontar com um exigente padrão de prova e não nos podemos ficar com um mero juízo de maior probabilidade e muito menos com base exclusiva em depoimentos de crianças de um pequeno meio, sujeitas a uma grande pressão familiar e social para confirmar a “lista das maldades da professora” criada pela assistente. Porque a prova que sustenta a condenação é constituída, apenas, por declarações destas crianças. Nada mais.

Tendo presente que a verdade judicial (material) é “a realidade, aquilo que tem efectiva existência, com exclusão do meramente possível” (Prof. Castro Mendes – “Do conceito de prova em Processo Civil), a verdade que, “não sendo absoluta ou ontológica, há-de ser antes de tudo uma verdade judicial prática” (Prof. Fig. Dias, in “Direito Processual Penal”, 1º, 194), não será excessivo afirmar que o nosso ordenamento civil se basta, para a convicção, com uma tese de “preponderância de prova” ou “balanço de probabilidades”, aplicável ao crime se ao arguido convier a prova dos factos que lhe sejam favoráveis. [6]

Já não assim para o juízo a formular para a condenação crime da arguida, onde impera a presunção de inocência.

Aqui estamos a falar de padrões de prova, de juízos de convicção concernentes à sorte da acção, relativos a um juízo de verdade, de certeza judicial como fim natural do processo penal tendo como horizonte possível a sua condenação numa pena.

Esse juízo deve assentar em elementos concretos, objectivos, existentes no processo e que conduzam a um elevado grau de probabilidade de que os factos ocorreram de determinada forma e não de outra, de uma “probabilidade que roça a certeza”. O que corresponde ao anglo-saxónico “proof beyond reasonable doubt”. [7]

Ora, no caso concreto cremos que o tribunal recorrido, com os meios de prova disponíveis e indicados, não tinha sequer a possibilidade de emitir um juízo de simples probabilidade civilística indicado na expressão “pensamos que é mais provável do que não”, ou seja, um mero juízo de maior percentagem aritmética (mais de 50 %) de os factos terem ocorrido, de “preponderância de prova” ou “balanço de probabilidades”.

E se nem esse juízo é possível, muito menos o será um juízo mais exigente de culpa penal, o juízo de prova além de toda a dúvida razoável, pelo que resta concluir que os factos dados como provados de 2) a 9) são dados como não provados, já que a não prova dos primeiros (2 a 6) acarreta necessariamente a não prova dos restantes.

E, em consequência normativa, haverá que absolver a arguida da acusação pela prática de seis crimes de maus tratos, p. e p. pelo artigo 152º-A do Código Penal.

C - Dispositivo:
Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 2ª Subsecção Criminal deste Tribunal de Relação de Évora em conceder total provimento ao recurso e, em consequência:

· os factos dados como provados de 2) a 9) são dados como não provados;
· a arguida é absolvida da acusação pela prática de seis crimes de maus tratos, p. e p. pelo artigo 152º-A do Código Penal
·
Sem custas (elaborado e revisto pelo relator antes de assinado).

Évora, 05 de Novembro de 2013

João Gomes de Sousa
Ana Bacelar Cruz

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[1] - Sumariado pelo relator.

[2] Da Recomendação 74 do “Report of the Kaufman Commission on proceedings involving Guy Paul Morin” (1998). O Relatório Morin, também conhecido como Relatório da Comissão Kaufman, pode ser consultado em http://www.attorneygeneral.jus.gov.on.ca/english/about/pubs/morin/. A este respeito ver também o Relatório do “WORKING GROUP ON THE PREVENTION OF MISCARRIAGES OF JUSTICE” http://www.ag.gov.bc.ca/prosecution-service/pdf/Report_on_the_Prevention_of_Miscarriages_of_Justice_2005.pdf e as referências (causas e recomendações) a Marshall Inquiry, Sophonow Inquiry e Morin Inquiry.

[3] - Do relatório anterior, as recomendações sobre a “Tunnel Vision”: “The following practices should be considered to assist in deterring tunnel vision: 1. Crown policies on the role of the Crown should emphasize the quasi-judicial role of the prosecution and the danger of adopting the views and/or enthusiasm of others. Policies should also stress that Crowns should remain open to alternate theories put forward by defence counsel and other parties. 2. All jurisdictions should consider adopting a “best practice,” where feasible, given geographic realities, of having a different Crown Attorney prosecute the case than the Crown Attorney who advised that there were grounds to lay the charge. Different considerations might apply with mega-cases. 3. In jurisdictions without pre-charge screening, charges should be scrutinized by Crowns as soon as practicable. 4. Second opinions and case review should be available in all areas. 5. There should be internal checks and balances through supervision by senior staff in all areas with roles and accountabilities clearly defined and a lead Crown on a particular case clearly identified. 6. Crown offices should encourage a workplace culture that does not discourage questions, consultations, and consideration of a defence perspective by Crown Attorneys. 7. Crowns and police should respect their mutual independence, while fostering cooperation and early consultation to ensure their common goal of achieving justice. 8. Regular training for Crowns and police on the dangers and prevention of tunnel vision should be implemented. Training for Crown Attorneys should include a component dealing with the role of the police, and training for police should include a component dealing with the role of the Crown”.

[4] - Aqui, pedindo desculpa pela auto-referência, que apenas se justifica pela poupança, seguimos o já por nós referido no acórdão desta Relação de 17 de Setembro de 2013 (Recurso 97/11.8PFSTB.E1).

[5] - Ver também os acórdãos do STJ de 21-02-2007 (Proc. 06P4341, rel. Cons. Oliveira Mendes), de 15-11-2007 (Proc. 07P3236, rel. Cons. Santos Carvalho), 02-04-2008 (Proc. 07P4197, rel. Cons. Raul Borges), de 02-07-2008 (Proc. 07P3861, Rel. Cons. Raul Borges), este com indicação de jurisprudência.

[6] - Seguimos o já por nós fundamentado no acórdão desta Relação de 21-06-2011 (Proc. nº 1.273/08.6PCSTB-A.E1).

[7] - Assevera a literatura inglesa que terá sido Lord Denning que na decisão da House of Lords Miller v. Minister of Pensions (1947 - 2 All ER 372) a formular de forma perfeita o “standard of proof”, o “padrão de prova”, a força probatória suficiente para convencer o tribunal nas acções cíveis e criminais (V. g. The “Law of Evidence”, Prof. Ian Dennis, Thomson, Sweet & Maxwell, 2007, pags. 479 e segs.). Assim, quanto às acções cíveis o nível de prova foi expresso da seguinte forma: «It must carry a reasonable degree of probability, not so high as is required in a criminal case. If the evidence is such that the tribunal can say “we think it more probable than not”, then the burden is discharged, but if the probabilities are equal, it is not».

Mais exigente se apresenta o nível de prova em processo criminal, expresso por Lord Denning da seguinte forma: «It need not reach certainty but it must carry a high degree of probability. Proof beyond reasonable doubt does not mean proof beyond a shadow of doubt. The law would fail to protect the community if it permitted fanciful possibilities to deflect the course of justice. If the evidence is so strong against a man as to leave only a remote possibility in his favour which can be dismissed with the sentence “Of course it is possible but not in the least probable”, the case is proved beyond reasonable doubt; nothing short will suffice» (Retirado do acórdão de 21-06-2011 supra referido).

Correspondendo este critério ao nosso critério da “verdade que roça a certeza”, há que admitir ser muito mais explícito e de maior utilidade prática.